FRANK PERETTI
Este mundo tenebroso I
Tradução
Wanda Assumpção
Edição revista e atualizada maio de 2006
©1986, 2003 de Frank E. Peretti Título do original: This Present Darkness Edição publicada por CROSSWAY BOOKS Uma divisão da GOOD NEWS PUBLISHERS (Wheaton, Illinois, 60187, EUA)
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Vida PROIBIDA
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Coordenação editorial: Rosa Ferreira Edição: Jurandy Bravo Nogueira Jr. Revisão: Josemar de Souza Pinto e Nilda Nunes Diagramação: Efanet Design Capa: Alexandre Gustavo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Peretti, Frank E. Este mundo tenebroso / Frank E. Peretti; tradução Wanda Assumpção — São Paulo : Editora Vida, 2006. Título original: This present darkness ISBN 85-7367-030-4 1. Ficção norte-americana I. Título.
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CDD
Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813
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A Bรกrbara Jean, esposa e amiga, que me amou e esperou.
Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes. Efésios 6.12 (ARA)
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Madrugada de lua cheia. Dois vultos em roupas de trabalho surgiram na Rodovia 27, na periferia de Ashton, cidadezinha cuja vida girava em torno da faculdade. Com mais de 2 metros de altura e compleição robusta, eram perfeitamente proporcionados. O moreno exibia traços marcantes; o outro era loiro e poderoso. A pouco menos de 1 quilômetro da cidade, observaram-na e à cacofonia de sons festivos de suas lojas, ruas e becos, até que se puseram a caminhar. Era época do Festival de Verão de Ashton, um exercício anual de frivolidade e caos, seu jeito de dizer obrigada, volte sempre, boa sorte, foi bom tê-lo conosco aos cerca de 800 alunos da Faculdade Whitmore que saíam para as tão almejadass férias de verão. A maior parte faria as malas e iria para casa, mas, sem dúvida alguma, permaneceriam todos pelo menos o suficiente para aproveitar as festividades, a discoteca, o parque de diversões, os filmes baratos e tudo o mais que fosse possível, às claras ou às escondidas, só por farra. Tempo de loucuras, oportunidade para embebedar-se, engravidar, brigar, cair no conto-do-vigário e passar mal do estômago, tudo na mesma noite. No centro da cidade, alguém com senso comunitário abrira um lote vazio de sua propriedade e permitira a um grupo ambulante de migrantes empreendedores montar seus brinquedos, barracas e toaletes portáteis. Os brinquedos tinham melhor aspecto no escuro, grandes embustes cobertos de ferrugem e iluminação alegre, movidos a motores de trator com o escapamento aberto que competiam com a oscilante música de parque de diversões, guinchando ruidosamente de algum lugar no meio da barafunda. Nessa noite cálida de verão, no entanto, a multidão que por ali perambulava comendo algodão-doce só queria se divertir, divertir a valer. A roda-gigante girava devagar, hesitava para receber passageiros, girava um pouco mais até o desembarque, em seguida descrevia algumas voltas completas a fim de fazer valer o preço do bilhete; um carrossel revolvia em um círculo espalhafatoso, de luzes brilhantes, os cavalinhos descascados e 7
caindo aos pedaços ainda saracoteando ao som pré-gravado de órgão a vapor; os freqüentadores do parque jogavam bolas a cestas, moedas a cinzeiros, dardos a balões de gás e dinheiro fora ao longo da instável passagem montada às pressas, onde os vendilhões repetiam sempre a mesma arenga, tentando convencer os transeuntes a tentarem a sorte. Em meio a tudo isso, os dois visitantes altos e calados se perguntavam como uma cidade de 12 mil habitantes — incluindo os alunos da faculdade — conseguia produzir tão grande e fervilhante multidão. A população geralmente sossegada comparecera em massa, incrementada por gente de outras paragens à procura de diversão, deixando ruas, bares, lojas, becos e estacionamentos lotados nessa ocasião em que tudo era permitido e o ilegal, ignorado. A polícia trabalhava sem parar, mas cada prostituta, baderneiro, vândalo e bêbado algemado significava apenas que mais de uma dúzia continuava solta e vagueando pelas ruas. O festival, em um crescendo naquela que seria sua última noite, era como uma tempestade furiosa impossível de ser debelada; podia-se apenas esperar que amainasse, certo de haver muito o que limpar depois. Os visitantes avançaram lentamente pelo parque apinhado, ouvindo conversas, observando as atividades. Estavam curiosos em relação à cidade, por isso demoravam observando aqui e ali, à direita e à esquerda, adiante e atrás. A aglomeração de transeuntes passava por eles como peças de vestuário a revolver-se na máquina de lavar, serpenteando de um lado a outro da rua, em ciclo imprevisível, sem fim. Os dois homens altos não tiravam os olhos da multidão. Estavam à procura de alguém. — Ali — avisou o moreno. Ambos a viram. Era jovem, muita bonita, mas também inquieta, olhando de um lado para o outro, máquina fotográfica nas mãos e expressão orgulhosa no rosto. Atravessaram, apressados, a multidão e colocaram-se ao lado da moça, que não lhes percebeu a presença. — Sabe — disse o moreno —, você poderia tentar olhar lá adiante. Com esse comentário simples, passou a mão nos ombros dela e a conduziu rumo a certa barraca na passagem. Ela atravessou o gramado e os papéis de bala, caminhando na direção da barraca onde alguns adolescentes desafiavam-se mutuamente a estourar balões de gás com 8
dardos. Nada disso a interessava até que... sombras movendo-se sorrateiras atrás da barraca chamaram-lhe a atenção. Posicionou a máquina, deu mais alguns passos cuidadosos em silêncio e levou a máquina rapidamente ao olho. O clarão do flash iluminou as árvores ao fundo enquanto os dois homens se afastavam depressa para o próximo encontro. Moviam-se ágeis, sem hesitação, seguindo a passos rápidos pelo centro da cidade. Seu destino ficava a cerca de 1,5 quilômetro dali, enveredando pela Rua Popular e subindo uns 800 metros até o topo de Morgan Hill. Não demorou quase nada para que se detivessem em frente à igrejinha branca no meio do minúsculo estacionamento, com seu gramado bem cuidado e o bonito quadro anunciando o horário da escola bíblica dominical e do culto. Encimando o pequeno quadro de avisos, o nome “Igreja da Comunidade de Ashton” e, em letras pretas desenhadas às pressas sobre fosse o que fosse que estivesse escrito ali, as palavras “Henry L. Busche, Pastor”. Olharam para trás. Da alta colina, via-se toda a cidade se estender até cada um de seus limites. A oeste, brilhava o parque cor-de-caramelo; a leste, erguia-se o campus imponente e conservador da Faculdade Whitmore; ao longo da Rodovia 27, da rua principal ao centro, erguiam-se os prédios comerciais, as pequenas filiais de famosas cadeias de lojas, alguns postos de gasolina batalhando por conquistar fregueses com ofertas especiais, uma loja de ferragens, o jornal da cidade, diversos estabelecimentos pequenos de comerciantes locais. Daquela posição, a cidadezinha parecia tão tipicamente americana — pequena, inocente e inofensiva como o pano de fundo dos quadros de Norman Rockwell. Os dois visitantes, porém, não se valiam apenas dos olhos para perceber as coisas. Mesmo daquela posição privilegiada, o verdadeiro substrato de Ashton pesava muito em seu espírito e mente. Podiam senti-lo: inquieto, forte, crescente, bem planejado e cheio de propósito... um tipo de maldade muito singular. Não eram avessos a indagar, estudar, investigar. Na maioria das vezes, tais atividades faziam parte de seu trabalho. Assim, nada mais natural que hesitassem diante dessa tarefa ao se perguntar: por que aqui? 9
Mas só por um instante. Talvez fosse a sensibilidade aguçada, o instinto, uma impressão muito leve só a eles discernível, suficiente, no entanto, para fazer que de repente se escondessem no canto da igreja, confundindo-se com a parede chanfrada, quase invisíveis no escuro. Nada diziam, não se moviam; apenas observavam com olhar penetrante algo que se aproximava. A cena noturna da rua tranqüila era um mosaico do intenso luar azulado e de sombras imprecisas. Contudo, uma das sombras não oscilava ao vento como as das árvores, tampouco era estática como as dos prédios. Rastejava, tremia, avançava em direção à igreja, enquanto a luz que atravessava parecia desaparecer em seu negror, como se fosse uma fenda rasgada no espaço. Mas a sombra tinha forma, a forma animada de uma criatura qualquer. Quando se aproximou da igreja, ouviram-se sons: o arranhar de garras no chão, o leve farfalhar de asas membranosas adejando ao vento acima de seus ombros. A criatura tinha braços e pernas, mas, ao cruzar a rua e subir os degraus na frente da igreja, deu a impressão de se mover sem a ajuda deles. Seus olhos malévolos e esbugalhados, dotados de brilho próprio, amarelado, refletiam a luz azulada e pura da lua cheia. A cabeça retorcida emergia de ombros encurvados enquanto baforadas de hálito rançoso saíam em chiados penosos pelos vãos entre fileiras de dentes afiados e pontiagudos. Ou ela ria ou tossia — a respiração arquejante que lhe escapava do fundo da garganta poderia ser qualquer das duas coisas. Da posição rastejante em que se encontrava, ergueu-se sobre as patas e correu os olhos pela tranqüila vizinhança, as bochechas pretas e rígidas repuxandose em riso horrendo, a própria máscara da morte. Encaminhou-se para a porta da frente. A mão escura atravessou-a como o espeto a um líquido; inclinou o corpo para a frente e penetrou na porta. Mas só a metade. Súbito, como se colidisse com uma parede em alta velocidade, a criatura foi lançada para trás, despencando com fúria escada abaixo, o hálito brilhante e rubro desenhando espirais no ar. Com um berro sinistro de raiva e indignação, ergueu-se da calçada onde se estatelara e fixou os olhos na estranha porta que lhe barrara a passagem. Nesse momento, as membranas de suas costas começaram a erguer-se, apossando-se de grande massa de ar. Com enorme alarido, voou de cabeça para a porta, rumo ao saguão — e para dentro de uma nuvem de ardente luz branca. 10
A criatura gritou e cobriu os olhos, para logo em seguida sentir-se agarrada por mãos fortes, poderosas feito um torno. Arremessada no espaço como um boneco de pano, num instante se viu outra vez do lado de fora, expulsa à força. Bateu as asas muito rápido, formando um borrão no ar, ao mesmo tempo que reunia forças, em posição de vôo, e se arrojava de novo contra a porta, fumaça vermelha escapando-lhe das ventas em grande jorro e nuvem, garras à mostra, prontas para atacar, o espectral retinir de um berro saindo de sua garganta. Como a flecha atravessa o alvo, como a bala passa por uma tábua, arremeteu porta adentro... E no mesmo instante sentiu as entranhas arrebentarem. Houve uma explosão de vapores sufocantes, um último berro e o agitar de patas dianteiras e traseiras murchando, até não sobrar nada, exceto o mau cheiro de enxofre se dissipando e os dois estranhos, subitamente, no interior da igreja. O loiro embainhou a espada resplandecente à medida que a luz branca que o circundava desaparecia. — Um espírito de perturbação? — perguntou. — Ou de dúvida... ou temor. Quem sabe? — E esse era dos pequenos? — Ainda não vi nenhum menor. — Tem razão. Quantos você diria que existem? — Muitos, muito mais do que nós, e por toda parte. Nunca ficam ociosos. — É, deu pra perceber. — Mas o que fazem por aqui? Nunca vimos tamanha concentração. Não aqui. — Oh, a razão disso não ficará oculta por muito tempo. — Atravessou as portas do saguão com o olhar e observou a nave do templo. — Vamos ver o tal homem de Deus. Afastaram-se da porta e cruzaram o pequeno vestíbulo. O quadro de avisos na parede exibia pedidos de alimentos para uma família que passava necessidade, ofertas de pequenos serviços para adolescentes e pedido de oração em favor de um missionário enfermo. Um grande cartaz anunciava assembléia da congregação para a sexta-feira seguinte. Na outra 11
parede, o relatório da oferta semanal indicava que, em relação à semana anterior, tinha havido uma queda nas contribuições; o mesmo sucedera com a freqüência: de 61 para 42 pessoas. Seguiram pelo corredor estreito e curto, caminhando entre as fileiras de tábuas escurecidas e bancos de ripa, em direção à frente da nave, onde um pequeno facho de luz incidia sobre a cruz rústica no topo do batistério. No centro da plataforma recoberta por um tapete gasto, erguia-se a pequena mesa sagrada, o púlpito, sobre o qual repousava uma Bíblia aberta. Era um mobiliário humilde, funcional, mas rústico, revelando simplicidade ou pouco-caso da parte da congregação. De repente, o primeiro som entrou em cena: um soluço manso, abafado, vindo da ponta do banco direito. Ali, ajoelhado em ardente oração, a cabeça repousando sobre o duro encosto do banco de madeira, as mãos cerradas com fervor, encontrava-se um rapaz — muito jovem, pensou o loiro a princípio; jovem e vulnerável. Seu semblante era o retrato vivo da dor, do sofrimento e do amor. Movimentava os lábios em silêncio à medida que nomes, petições e louvor jorravam com paixão e lágrimas. Os dois não puderam evitar ficar ali parados por um instante, observando apenas, estudando, ponderando. — O pequeno guerreiro — comentou o moreno. O loiro formulou as frases em silêncio, olhando para o jovem contrito em oração. — Sim — observou —, é ele. Mesmo agora está intercedendo, colocando-se diante do Senhor em favor do povo da cidade... — Vem aqui quase todas as noites. Ante esse comentário, o grandalhão sorriu. — Ele não é tão insignificante assim. — Mas é o único. Está sozinho. O homenzarrão loiro balançou a cabeça: — Existem outros. Sempre existem outros. Apenas têm de ser encontrados. Por enquanto, essa oração solitária e vigilante serve para começar. — Ele será ferido, você sabe disso. — E também o jornalista. E nós. — Mas venceremos? Os olhos do grandalhão pareceram lampejar com fogo reativado. 12
— Lutaremos. — Lutaremos — concordou o amigo. Postaram-se bem junto ao guerreiro ajoelhado, de ambos os lados; nesse instante, pouco a pouco, como o desabrochar de uma flor, uma luz alva inundou o recinto. Iluminou a cruz na parede dianteira, fez sobressair lentamente cores e veios de cada tábua dos bancos, crescendo em intensidade. O templo, até então humilde e sem graça, resplandeceu com uma beleza sobrenatural. As paredes reluziam, os tapetes gastos cintilavam e o pequenino púlpito erguia-se agora alto e rijo feito sentinela de costas para o Sol. Também os dois homens resplandeciam, de repente muito brancos, suas roupas transfiguradas em vestes que pareciam arder intensamente. Tinham o rosto bronzeado, brilhante, os olhos reluzindo como o fogo. E cada um trazia um faiscante cinto dourado do qual pendia uma espada reluzente. Impuseram as mãos sobre os ombros do rapaz, e então, como o abrir de um gracioso dossel, sedosas, tremeluzentes, diáfanas membranas começaram a se desenrolar de suas costas e ombros, erguendo-se para se encontrar e sobrepor-se à cabeça de ambos, ondulando suaves ao vento espiritual. Juntos, ministraram paz ao jovem tutelado, cujas lágrimas abundantes principiaram a arrefecer. O Clarim de Ashton era um jornal popular, típico de cidade do interior; pequeno, pitoresco, talvez um pouco desorganizado às vezes, despretensioso. Em outras palavras, a versão impressa de Ashton. Sua sede ocupava pouco espaço em um prédio da rua principal, no centro da cidade. Uma construção simples, de pavimento único, grande vitrina na frente e uma porta pesada cheia de marcas de pés e fenda para a correspondência. O jornal saía duas vezes por semana, às terças e sextas, e não dava muito lucro. Pela aparência do escritório e demais instalações, um negócio de orçamento minguado. Na parte da frente do prédio, ficavam o escritório e a redação. Esta consistia em três escrivaninhas, dois computadores, dois cestos de lixo, dois telefones; uma cafeteira elétrica sem o fio e um mundo de notas, papéis timbrados ou não e bugigangas típicas de escritório. Um balcão 13
velho e gasto, trazido de uma estação de trem desmantelada, formava a divisória entre o escritório em si e a recepção. Como já era de esperar, um sininho acima da porta tinia todas as vezes que alguém entrava. Nos fundos desse labirinto onde se desenvolvia pouca atividade, um luxo exagerado para o lugar chamava a atenção: a divisória de vidro fechando o escritório do editor. Na realidade, era uma nova adição. O novo editor-proprietário trabalhara como repórter em cidade grande, e ter um escritório fechado por vidro fora sempre um dos grandes sonhos da sua vida. Esse novo sujeito era Marshall Hogan, um tipo robusto e enérgico, a quem sua equipe — o compositor, a secretária-repórter-moça-dos-anúncios, o rapaz do paste-up e a repórter-colunista — carinhosamente se referia como “Átila, o Hogan”. Comprara o jornal havia alguns meses, e o choque entre a sofisticação de quem vem da cidade grande e a calma interiorana da equipe ainda provocava estranhamentos de tempos em tempos. Marshall queria um jornal de qualidade e ágil, que operasse com eficiência e dentro dos prazos, com um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. No entanto, a transição do New York Times para O Clarim de Ashton estava sendo como pular de um trem em disparada de encontro a uma parede de gelatina. As coisas simplesmente não funcionavam com tanta rapidez naquele escritório pequenino. O alto nível de eficiência a que se habituara tinha de dar lugar às peculiaridades de O Clarim, tais como guardar o pó de café usado para o adubo artesanal da secretária e alguém apresentar a tão esperada história de interesse humanitário só depois de muito tempo e coberta de excremento de papagaio. Naquela manhã de segunda-feira, o trânsito na redação era frenético, sem dar tempo a ninguém de curtir a ressaca do fim de semana. A edição de terça-feira precisava sair às pressas, e toda a equipe estava sentindo as dores de parto. Corriam de cá para lá, das escrivaninhas na frente para a sala de paste-up atrás, espremendo-se para passar quando se encontravam no estreito corredor, carregando rascunhos de artigos e anúncios a serem tipografados, provas já prontas e fotografias em meios-tons em diversos formatos e tamanhos para ornamentar as novas páginas. Nos fundos, entre luzes cintilantes, mesas atravancadas de trabalhos e corpos em rápido movimento, Marshall e Tom, o homem do paste-up, debruçavam-se 14
sobre um grande cavalete em forma de banco, montando o jornal a partir de recortes e pedaços esparramados por todos os lados. Este vai aqui, este não cabe ali — então precisaremos encaixar em outro lugar, este é muito grande, o que usaremos para preencher esse espaço? Marshall começava a ficar de mau humor. Toda segunda e quinta, ele ficava de mau humor. — Edie! — berrou. — Estou indo! — respondeu a secretária. Pela milésima vez, Marshall lhe disse: — O lugar das galés é nas bandejas em cima da mesa, não direto na mesa, nem no chão, nem... — Eu não pus nenhuma galé no chão! — protestou Edie e saiu correndo da sala de paste-up com mais galés nas mãos. Mulher rija e miúda de 40 anos, tinha a personalidade perfeita para se opor à grosseria de Marshall. Ainda sabia onde encontrar as coisas pelo escritório melhor que ninguém, principalmente o novo chefe. — Eu as deixei dentro de suas lindas bandejinhas, como você deseja. — Então como vieram parar aqui no chão? — Foi o vento, Marshall. Agora não vá me perguntar de onde ele vem! — Pronto — disse Tom —, terminamos as páginas três, quatro, seis e sete... O que me diz das páginas um e dois? O que vamos fazer com tanto espaço vazio? — Incluímos a cobertura de Bernie para o festival, com um texto bem redigido, fotos dramáticas de apelo emocional e tudo o mais. Claro, assim que ela arrastar o traseiro até aqui e nos trouxer o material! Edie! — Olá! — Por Deus do céu, Bernie está mais de uma hora atrasada! Dá pra ligar pra ela outra vez? — Foi o que acabei de fazer. Ninguém atende. — Droga! George, o pequeno tipógrafo aposentado que ainda trabalhava por puro prazer, girou a cadeira, afastando-se da mesa de tipografia, e sugeriu: — Que tal o churrasco da Liga das Senhoras? Estou acabando de montar esse artigo, e a foto da sra. Marmaselle ficou picante o suficiente para provocar uma bela ação na justiça. 15