AF-IEFP_referencial Anexo

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ÍNDICE

Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5 Texto 6 Texto 7 Texto 8 Texto 9 Texto 10 Texto 11 Texto 12 Texto 13 Texto 14 Texto 15 Texto 16 Texto 17 Texto 18 Texto 19 Texto 20 Texto 21 Texto 22 Texto 23 Texto 24 Texto 25 Texto 26

Formação do formador de pessoas adultas . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 Declaração Universal dos Direitos Humanos . . . . . . . . . . . . . . . . .15 Concepção integrada dos direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . . . .21 A mudança no período moderno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .26 O mundo na era da globalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33 Paradigmas educacionais escola e sociedades . . . . . . . . . . . . . .36 Paradigmas e modelos pedagógicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .46 «Ser adulto»: alguns elementos para a discussão deste conceito e para a formação de professores de «adultos» . . . . . . .56 Maturidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65 A vida adulta: uma visão dinâmica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .68 Vida adulta em formação permanente: da noção ao conceito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .79 O desenvolvimento cognitivo do adulto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .94 Educação de adultos: um campo e uma problemática . . . . . .105 A dimensão histórica do sujeito na formação docente . . . . . . .1 1 1 Experiências de aprendizagem e histórias de vida . . . . . . . . . . . .118 A competência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .137 A teoria da competência e da autodeterminação . . . . . . . . . . .152 Construindo competências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .162 Construir competências é virar as costas aos saberes? . . . . . .170 Engenharia pedagógica e formações abertas . . . . . . . . . . . . . . .177 Engenharia didáctica profissional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .188 O meu professor ideal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .194 Portefólio: a memória de um percurso formativo . . . . . . . . . . .208 Concepções de educação, concepções curriculares e modelos de intervenção didáctica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .217 Sentido do projecto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .225 Inovação curricular: o projecto interdisciplinar . . . . . . . . . . . . .229


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In RIVILLA, A. Medina e DOMÍNGUEZ, Concha (1998) Enseñanza y curriculum para la formación de personas adultas: el profesional de la educación de adultos, Madrid, Ediciones Pedagógicas


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3. FORMAÇÃO DO FORMADOR DE PESSOAS ADULTAS As teorias do ensino têm apoiado e projectado teorias específicas de formação de formadores, facilitando o seu conhecimento e desenvolvendo um processo de contínua complementaridade entre elas. A formação do formador/a tem de emergir da análise dos paradigmas mais consolidados do ensino e da formação de docentes. Os dois capítulos, a partir dos quais construímos o modelo de formação do educador de pessoas adultas, são: 3.1. Paradigmas e modelos de formação do formador. 3.2. A procura de um modo clarificador da formação de formadores de adultos: o processo de formação.

3.1. Paradigmas e modelos de formação de formadores A relação entre os paradigmas de ensino e de formação dos professores/formadores é total: tanto é assim que podemos identificar tantos paradigmas de ensino como de formação de docentes. Scardamalia e Bereiter (1989) propõem quatro concepções de ensino: ensino como transmissão cultural, ensino como treino de destrezas, ensino como melhoria do desenvolvimento, ensino como produto de uma mudança conceptual. Segundo a concepção que adoptemos, podemos encontrar paradigmas correspondentes aos que se têm trabalhado no ensino: paradigma processo-produto, paradigma académico-cultural, paradigma cognitivo, etc. Entre os paradigmas de formação de docentes destacamos três pela sua grande incidência, já que são os mais adequados, aqueles em que temos trabalhado e a partir dos quais podemos encontrar uma síntese superadora do marco conceptual actual que nos possibilite a produção de conhecimento sobre a formação do educador de adultos. – Paradigma Comportamentalista (Processo-Produto). – Paradigma Cognitivista (Mediacional) (Professor Reflexivo). – Paradigma emergente de formação no/do centro ou colaborativo.

3.1.1. Paradigma Comportamentalista (Processo-Produto) A base deste paradigma é o pós-positivismo e especialmente o movimento da psicologia comportamentalista (behaviorista), que pretende objectivar a realidade, para a conhecer, através de um conjunto de variáveis que a descobrem e a analisam. O ensino é uma actividade interactiva que organiza optimamente o processo

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instrutivo para produzir os resultados de aprendizagem previstos. O conhecimento dos processos facilita-nos ou, pelo menos, induz-nos a prever os resultados de aprendizagem pretendidos. O ensino eficiente é aquele que organiza e estrutura o processo mais adequado para optimizar os resultados previstos. Quanto mais observáveis forem esses processos e maior for a nossa capacidade de análise para os desagregarmos, melhor conseguiremos tanto a previsão como a consecução dos objectivos antecipados. A ênfase do paradigma consiste na identificação, explicitação e controlo do conjunto representativo das condutas e actuações mais características dos professores na formação. O paradigma processo-produto representa a prática rigorosa e a explicitação dos comportamentos que se dão na «classe». A ênfase na relação entre o processo e o produto – sem descer ao conhecimento das razões pelas quais professores e alunos reagem e actuam, e como o fazem – levou a que alguns autores o denominassem como paradigma da caixa negra, em que o essencial é a busca das razões entre as entradas e as saídas, sem aprofundar as causas e os processos intrínsecos que entre elas têm lugar. As críticas, que tanto o paradigma cognitivista/professor reflexivo como o sócio-crítico realizaram ao processo-produto, incidem na sua negligência para compreender as razões entre o ensinado e aprendido, o esquecimento do porquê dos fenómenos interactivos; […] O paradigma processo-produto conectou-se com grande precisão com várias componentes conceptuais e metodológicas do seu tempo. A sua relação e reconhecimento do positivismo e neopositivismo como visão paradigmática mais ampla, o aproveitamento da metodologia hipotético-dedutiva e a aplicação do método experimental permitiram extrair e controlar as actuações mais evidentes da realidade do ensino. A incidência na explicitação dos comportamentos (expressa na definição de objectivos operativos) e a procura dos mais representativos de um ensino eficaz e eficiente fizeram o professor avançar na repetição como prática de ensino (Gage, 1990, 1993); mas a sua maior pertinência encontra-se na aplicação da experimentação sistemática e dos tratamentos correlacionais no estudo da realidade. O seu compromisso com o controlo, a replicação e a busca da inter-relação entre variáveis possibilitou grandes ganhos no conhecimento rigoroso do ensino e da formação dos professores. Dentro deste paradigma destacamos o modelo de competências, que foi um dos mais consolidados para analisar a actuação do professor na formação, se bem que a sua ênfase na análise e na busca de correlações entre elas nos trouxe toda a profundidade que se podia esperar dele. Hölman e Schöll (1982) consideram que esta orientação da formação de formadores é uma «etapa pedagógica essencial». Sem dúvida, Huber (1991) mostra-se crítico deste modelo e afirma que «é uma tendência que carece de base científica e cuja formação é essencialmente inadequada; a sua filosofia é rudimentar, ao proceder de um movimento de racionalização e burocratização do ensino». Estas duas citações espelham a dialéctica

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entre os defensores e detractores do modelo. Em todo o caso, podemos considerar que alguns dos seus contributos são especialmente relevantes, já que nos facilitam: – Descobrir as competências mais adequadas de que o professor se deve apropriar para desenvolver o seu ensino. – Seleccionar os materiais e actividades educativas específicas. – Aplicar os instrumentos e processos de avaliação adequados ao nível da exigência solicitado. O estudo das competências mais adequadas para que o professor actue na formação foi objecto de numerosas investigações. Entre elas referimo-nos às de Allen e Ryan (1976), que desenvolveram uma forte linha de investigação denominada de «microensino», em função da qual se criava uma adequada situação laboratorial que possibilitava aos sujeitos a garantia do domínio da competência prevista no tempo designado. As competências básicas enumeradas por Allen e Ryan para o desenvolvimento da aprendizagem são: – Capacidade de indução. – Adequação e variação de estímulos. – Facilidade para organizar conclusões. – Capacidade para situar os silêncios e empregar recursos não verbais. – Propiciar a participação dos alunos. – Seleccionar as perguntas mais pertinentes. – Empregar perguntas com um grau significação. – Empregar perguntas criadoras/fecundas. – Utilizar exemplos oportunos e sugestivos. – Aplicar o princípio de redundância a aspectos-chave. – Explicar com clareza e empatia. – Alcançar uma comunicação integral. Estas são as características que para estes autores mais incidiam no domínio e trabalho eficaz do docente: portanto, conseguir e garantir ao professor a capacidade de actuação, mediante meticulosos ensaios com a ajuda de um circuito fechado de TV e de os microgrupos de alunos que colaboravam para o efeito (autoscopia/simulação). Outros autores buscaram a amplitude e relevância de conjuntos de competências e microcompetências que o docente devia dominar para organizar optimamente a sua formação, agrupando-as em: Destrezas de comunicação: – Comunicação oral e coerente. – Escrita lógica e correcção gramatical. – Composição e expressão oral. – Habilidade para compreender e interpretar investigações profissionais.

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Conhecimentos básicos. Destrezas técnicas: – Diagnóstico dos alunos. – Selecção de objectivos adequados. – Elaboração de material didáctico. – Proposta de óptimas actividades de aprendizagem. – Relação pessoal e profissional com os estudantes. – Orientação da actividade instrutiva com eficácia. – Elaboração de teste de rendimento, de acordo com o modelo de Ensino-Aprendizagem. Destrezas administrativas na formação: – Gestão da formação. – Dinamismo na formação. – Ganho de êxito. – Arquivo de documentos. Destrezas interpessoais: – Criação de um status orientador que apoie o conhecimento e trabalho dos alunos. – Capacidade de aceitação pessoal e social dos alunos. – Desenvolvimento do autoconceito. – Fomento dos valores nos alunos. Flanders (1977) centrou-se na análise dos comportamentos entre professor e aluno e identificou a analogia entre processos directos e indirectos, descrevendo os seguintes procedimentos: – Escuta e anima os alunos. – Responde às perguntas dos alunos. – Estimula a participação dos alunos. – Parte de propostas dos alunos. – Expõe ou explica os conceitos fundamentais. – Justifica a sua actuação perante os alunos. – Critica a actuação dos alunos. – Os alunos respondem às perguntas colocadas. – Os alunos participam propondo novas perguntas. – Gere o silêncio ou a confusão. Este conjunto de condutas observou-se ao analisar o discurso do professor na formação, já que se anotava, em cada três segundos, que conduta se evidenciava, aplicando-se um quadro de dupla entrada em que se iam registando as ocorrências na «classe».

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Esta amostra, sendo reduzida, é indicativa da conduta do professor na formação, possibilitando a docentes e investigadores várias reflexões sobre: – A clareza, relevância e precisão das condutas. – A amplitude de algumas delas. – O caminho para o desenvolvimento pessoal que podemos seguir, pelo menos enquanto domínio de um novo campo na formação de docentes. – A urgência de que cada docente seleccione e estruture o conjunto das condutas mais representativas da sua actuação na formação, como profissional que aspira a melhorar e a estruturar-se. Se bem que a formação do docente supere a simples enumeração do domínio de competências, parece ajustado descobrir e analisar: quais as competências básicas que o formador de pessoas adultas há-de dominar? Que tipo de destrezas e estilos de acção são essenciais ao professor de adultos e quais hão-de ser as correspondentes competências do formador/a? Ante as exigências das abundantes competências e em plena euforia comportamentalista, Shavelson (1973) (1986), propõe a busca da «capacidade para seleccionar e estruturar a competência por excelência»: esta é a capacidade de «eleger em cada momento a competência necessária para cada aluno, espaço, matéria, etc.», em que o docente actua. Encontramo-nos no início do paradigma mediacional/cognitivo, em que temos de eleger o conjunto de competências que, pela sua importância, mais afectam os docentes. Este paradigma passa da análise do comportamento explícito ao estudo do implícito, das imagens, processos, conceitos e acções que preocupam o docente.

3.1.2. Paradigma do professor reflexivo O nosso entendimento ampliou e sobretudo completou as evidentes limitações do Comportamentalismo, sendo um espaço paradigmático de grande actualidade e cuja estrutura conceptual foi sintetizada por CaIderhead (1988, p. 23) no seguinte esquema: TEORIA/APROXIMAÇÃO

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MÉTODO

EXEMPLOS DE AUTORES

Teoria dos constructos pessoais

Técnica de rede

Nash, 1973 Ben Peretz, 1984

Teoria Cognitiva

Pensamento em voz alta Estimulação da memória/ das recordações; Entrevistas

Leinhardt, 1982 Broume e Juhl, 1984

Interaccionismo simbólico/fenomenológico

Etnografia

Hargraves, Hertes e Mellor, 1985 Tabnick e Zeichner, 1985

Biografia

Estudo de caso Entrevista

Elbaz, 1983 Butt, 1984, 1989

Teoria das decisões

Captar a estratégia

Borko e Caldwel, 1982 Rohrkemper e Brophy, 1983

Teoria implícita, teoria em acção

Observação e inferência negociada

Day, 1984

Teoria subjectiva

Informações verbais

Huber e Mandl, 1980 Krause, 1986

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Este autor evidencia a amplitude das aproximações ao estudo do professor reflexivo e ao conhecimento profissional, evidenciando uma grande dificuldade em alcançar uma síntese da investigação e dos resultados obtidos dada a fragmentação dos marcos teóricos actuais e a imaturidade dos métodos de investigação. Outros autores, como Zabalza (1987), criticam este paradigma pelo reducionismo individualista, isolamento e excessiva delimitação. Este paradigma centra a sua óptica e campo de investigação acerca do professor, manifestando algumas limitações como o esquecimento da interacção com o aluno, a renúncia ao estudo complementar à aprendizagem, análise dos contextos, etc., ainda que tenha a grande vantagem da focalização do seu objecto, clarificação metodológica e garantia do «ensino como actividade complementar de estudo e sua influência na formação de professores». As aportações mais destacadas para o conhecimento do ensino centraram-se na análise: – Das reflexões do professor. – Das decisões interactivas. – Das teorias e crenças. Vilar (1987) afirma que este paradigma pretende solucionar os problemas que o docente encontra na prática, seleccionando acções, aprofundando-as e verificando se foram conseguidas as propostas previstas. Este modo de proceder relaciona e destaca a investigação na acção e a reflexão a partir da prática. Schön (1983) considera que, quando o professor reflecte na acção, converte-se num investigador da sua própria prática e, a partir da sua análise, vai elaborando uma nova teoria, procurando a não separação entre o pensamento e a acção, garantindo a metáfora do professor como «o prático que busca óptimas actuações apoiadas na reflexão […]». Marcelo (1989, 1992, 1994), ao analisar a actuação do docente no primeiro ano de entrada no ensino, verifica que este é um período de insegurança e desgaste profundo mas nuclear para integrar teoria e prática, pensamento e realidade. Noutros trabalhos já citados (Medina, 1988, 1989, 1991) analisamos como aprendem os professores a partir da análise da sua própria prática, reflectindo sobre as experiências mais formativas que possibilitam a sua realização como professor, o que o leva a reassumir a análise crítica da sua própria actuação e biografia. A metodologia biográfica representou «o estudo rigoroso, a partir da visão mais criativa e crítica da própria história como docente, a fim de destacar e recuperar os seus aspectos mais inovadores, tomando-os como base para melhorar e actualizar as decisões mais pertinentes em cada processo de formação pessoal». Huberman (1989), na sua teoria dos ciclos de vida dos professores, manifesta-nos a necessidade de conhecer essa tipologia para actuar consequentemente, sublinhando o primeiro ano como sendo o de choque com a

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prática, que é necessário antecipar e dedicar um esforço especial, em contraste com os anos de término de carreira e de reforma, entre os 55 e os 65 anos, habitualmente atravessada por pensamentos e sentimentos de reconhecimento e valorização. Do nosso ponto de vista, esta teoria apresenta uma perspectiva muito rica mas tem de ser trabalhada com o máximo cuidado pelas limitações que se inscrevem na generalização destes ciclos de vida dos docentes. Os projectos propostos pelos docentes costumam caracterizar-se, segundo Huberman (1988), por conterem uma visão harmoniosa do sujeito quando se dá uma explicitação amadurecida dos problemas sustentada por uma valoração crítica. Com base nesta análise, ampliamos a via biográfica e, aproveitando os trabalhos de Huber (1989, 1991), podemos afirmar que os docentes reúnem as condições adequadas, tanto para se debruçarem reflexivamente sobre sua a prática como, ao actuarem nela, para procederem à explicitação das suas teorias sobre os modos de ensinar. Assim, descobrimos um novo conceito, denominado Conhecimento Prático, que se consolidou como superação da prática e validação da teoria. O que é o conhecimento prático? É a concepção que vamos elaborando da prática educativa como resultado de uma reflexão sistematizada sobre ela; é a integração da teoria e da prática na acção de ensinar, procurando os seus fundamentos e tomando as decisões mais adequadas. Ligados à elaboração do conhecimento prático existem dois componentes substanciais: a. As teorias implícitas que fundamentam e sustentam a nossa prática. b. A prática como suporte e interrogação das teorias. Neste paradigma, a análise destes elementos essenciais facilita a compreensão do que temos vindo a expor sobre a construção da teoria a partir da prática; apoia-nos no estudo e desenvolvimento de um novo paradigma baseado na produção colaborativa de conhecimento a partir da análise da prática; ajuda-nos na construção de conhecimento emanado da acção. Aclarar quais são as teorias implícitas dos professores é um aspecto básico para atribuir sentido à prática, já que a teoria é uma formalização argumentada da realidade educativa que intenta compreendê-la e explicá-la. Huber (1989) considera que os professores têm estruturas cognitivas que elucidam as nossas acções, que podem ser definidas «como um conjunto de pontos de vista cognitivos em torno de si próprios e do mundo, que se mostram como aglomerados complexos com uma estrutura fundamentada, em cuja totalidade são comparáveis às funções que desenvolvem as teorias objectivas, e desempenham as funções de explicação, predição e tecnologia».

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Existem fortes analogias entre as teorias subjectivas e as científicas, sobretudo nas suas utilizações próximas: – Valoração das situações (educativas), ao aplicar experiências anteriores à situação actual. – Valoração de condutas que facilitam repertórios de novas condutas. – Valoração de funções porque actuamos de uma ou outra forma. – Valoração da autoavaliação, meta-avaliação, descoberta dos motivos das reacções afectivas. A análise das teorias implícitas trará aos docentes não só um novo campo de formação, mas também de identificação e emergência de bases mais fundamentadas para buscar e aprofundar as chaves da sua formação. Peterson e Clark (1990) sistematizaram os contributos deste paradigma, destacando os seguintes: conhecimento do papel do pensamento (reflexão) na criação da relação pré e pós-acção, pensamentos interactivos, tomada de decisões, etc. Este paradigma possibilitou novos conceitos e métodos para trabalhar os aspectos essenciais do ensino dos professores, buscando nos seus processos os mais destacados elementos da sua concepção e, sobretudo, aprofundando os motivos, visões e linhas de trabalho dos docentes. A partir dos nossos trabalhos, sintonizámo-nos com a amplitude desta linha de investigação, sem reduzirmos a análise do pensamento do docente, mas antes buscando a interacção entre docentes e alunos.

3.1.3. O paradigma de formação no centro: a prática colaborativa No quadro a seguir apresentado propomos as bases do trabalho colaborativo e esperamos, a partir da sua análise, facilitar aos professores dos centros um quadro de actuação, reflexão e indagação conjuntas. Neste esquema/gráfico os elementos nucleares são: – A cultura escolar colaborativa. – A prática reflexivo-indagadora individual e em equipa. – A elaboração de um desenho em comum. – A produção de conhecimento prático com os participantes (discentes) e colegas. Tal como expusemos noutro trabalho (Medina, 1991), o trabalho colaborativo exige aos docentes: a. Pensar nele como um complemento substantivo da sua função profissional. b. Desenvolver atitudes consolidadas de colaboração. c. Adquirir ou assumir que é possível realizar com outros companheiros uma acção fecunda em benefício mútuo, respeitando e tolerando diversas opções mas intensificando o ganho das metas comuns, que dão sentido a toda a actividade da comunidade educativa. d. Valorar o trabalho colaborativo como uma possibilidade real de sustentação e capacitação de todos os membros do centro.

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e. Assumir a actuação em equipa como base de potenciação do conjunto de membros da comunidade educativa. f. Praticar, ajustar e dominar estratégias que tornem possível o trabalho formativo. g. Estruturar espaços e tempos de modo a que sejam possibilitadas tarefas de trabalho colaborativo. h. Evidenciar, no organigrama de acções e práticas no centro, a existência de um compromisso com o trabalho colaborativo. i. Entender o trabalho colaborativo como um espaço de reciprocidade, contributo e superação partilhada. j. Reflectir em equipa sobre as possibilidades e limitações desta modalidade de trabalho, convidando-se todos os membros que assumam como substancial a formação solidária, evitando inibir o protagonismo de cada participante e admitindo as mais diversas propostas. A acção global de todos os membros será levada a cabo na comunidade escolar, enquanto conjunto de pessoas implicadas nas tarefas da escola, facilitando os meios para inovar no centro e formação. A formação colaborativa é uma linha poderosa de trabalho no centro, em que Marsh, Day e colaboradores (1990) destacam o respeito pela autonomia curricular dos professores, pela realização do desenho e desenvolvimento curricular e, ao situar os docentes como protagonistas do seu trabalho, corroboram a fecundidade dos seus contributos. Escudero (1992) manifestou que «a colaboração é o novo marco rigoroso que avaliza e dá sentido à formação de professores, sendo o centro um conjunto estruturado que sintetiza o mapa complexo de expectativas, interesses e problemas a trabalhar». O centro assume a perspectiva de colaboração e inovação quando: – «Se constitui como foco de acção-reflexão-acção, como unidade básica de mudança. – Reconstrói uma cultura escolar que promove esta mudança colaborativa. – Configura um quadro de interdependência, confiança, colaboração, autonomia e implicação pessoal. – Se estrutura num processo complexo que incide, implica e envolve a comunidade escolar no seu conjunto. – Estimula as condições espacio-temporais que possibilitam que uns aprendam com os outros como membros da mesma equipa. Esta visão global da formação colaborativa implica que o professor/formador se apoie num «ambiente de aprendizagem que satisfaça as suas necessidades e expectativas como adulto, as suas relações como activo processador de informação, as suas aspirações e as suas exigências como intérprete activo da sociedade e da escola».

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Paradigma baseado no centro

A V A L I A Ç Ã O

Acção-reflexão-indagação em equipa

Teoria e prática de ensino pessoal e em equipa I N O V A Ç Ã O

Cultura colaborativa dos formadores

Desenho curricular e adaptação curricular colaborativa

Análise da acção curricular e conhecimentos do currículo

A prática interactiva de formadores e participantes

O referido autor sugere o seguinte processo: – Criação de uma relação inicial nos centros. – Diagnóstico da situação e determinação dos âmbitos preferentes. – Análise e formulação de problemas. – Busca de soluções e satisfação de necessidades como preparação da elaboração de um plano de actuação. – Preparação da implementação e desenvolvimento do plano. – Desenvolvimento colaborativo do plano. – Avaliação. Entre as actuações, processos e consolidações do trabalho em comum dos docentes sublinhamos a elaboração de um «projecto explícito» de trabalho que aglutine a acção dos professores e promova a autonomia colaborativa do conjunto de membros da comunidade educativa. Entre as acções a realizar destacamos: a. Estabelecer o sentido, concepção, elementos e integração do projecto de formação no centro (PFC) na linha da sua formação, contexto cultural e clima de compromisso global. b. Delinear a elaboração do PFC como um quadro de actuação colaborativa, base da acção dos professores/as e participantes adultos.

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c. Integrar na construção do PFC um estilo de investigação-reflexiva (colaborativa), que forme os docentes e implique a toda a comunidade escolar. d. Construir o PFC e expô-lo por escrito como um referente que orienta, sintetiza e agrega os anteriores processos. e. Constatar que a acção da formação é uma aplicação inovadora do PFC, estruturada pela retroalimentação contínua que a reflexão na formação possibilita a cada docente. f. Incorporar selectivamente os contributos que os formadores/as experimentam na formação, evidenciando uma atitude de abertura permanente. A formação colaborativa no centro é um marco inovador que facilita a profissionalidade dos docentes no desenvolvimento do seu trabalho. A enumeração de alguns dos paradigmas que tiveram maior incidência na formação dos docentes oferece-nos uma base substantiva para delinear o modelo de formação do formador de adultos. A síntese dos paradigmas propostos leva-nos a buscar a melhor adaptação dos mesmos para promover a actualização profissional, a partir do esforço e integração paradigmática ou a superação dos existentes, configurando um modelo de desenvolvimento do formador de adultos.

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TEXTO 2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

In http://www.aministia-internacional.pt


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Artigo 1: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Artigo 2: Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamadas na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. Artigo 3: Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo 4: Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o tráfico de escravos, sob todas as formas, são proibidos. Artigo 5: Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Artigo 6: Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica. Artigo 7: Todos são iguais perante a lei, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo 8: Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei. Artigo 9: Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado.

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Artigo 10: Toda a pessoa tem o direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial, que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida. Artigo 11: 1.º Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público, em que todas as garantias necessárias para a sua defesa lhe sejam asseguradas. 2.º Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto foi cometido. Artigo 12: Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio, ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques, toda a pessoa tem direito à protecção da lei. Artigo 13: 1.º Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado. 2.º Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país. Artigo 14: 1.º Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países. 2.º Este direito não pode porém ser invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por actividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas. Artigo 15: 1.º Todo o indivíduo tem direito a uma nacionalidade. 2.º Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade. Artigo 16: 1.º A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução têm direitos iguais.

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2.º O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. 3.º A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado. Artigo 17: 1.º Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem o direito à propriedade. 2.º Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. Artigo 18: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião: este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. Artigo 19: Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado por causa das suas opiniões e o de procurar, receber ou difundir, sem consideração de fronteiras, informações ou ideias por qualquer meio de expressão. Artigo 20: 1.º Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas. 2.º Ninguém pode ser obrigado a pertencer a uma associação. Artigo 21: 1.º Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2.º Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país. 3.º A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente, por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto. Artigo 22: Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. Artigo 23: 1.º Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.

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TEXTO 2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


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2.º Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3.º Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social. 4.º Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para a defesa dos seus interesses. Artigo 24: Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas. Artigo 25: 1.º Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice e noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. 2.º A maternidade e a infância têm direito a ajuda e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social. Artigo 26: 1.º Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos, em plena igualdade, em função do seu mérito. 2.º A educação deverá visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutençao da paz. 3.º Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos. Artigo 27: 1.º Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e dos benefícios que deste resultam. 2.º Todos têm direito à protecção dos direitos morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.

TEXTO 2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

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Artigo 28: Toda a pessoa tem direito a que reine no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tomar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração. Artigo 29: 1.º O indivíduo tem deveres para com a comunidade fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade. 2.º No exercício destes direitos e no gozo destas suas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito pelos direitos e liberdades dos outros e assim satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade democrática. 3.º Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente aos fins e aos princípios das Nações Unidas. Artigo 30: Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou um indivíduo, o direito de se entregar a alguma actividade ou de praticar algum acto destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.

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TEXTO 2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


TEXTO 3 CONCEPÇÃO INTEGRADA DOS DIREITOS HUMANOS

Boaventura de Sousa Santos* IN semanário EXPRESSO, 14 de Maio de 1994, p. 20

* Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e director do Centro de Estudos Sociais


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OS DIREITOS HUMANOS são uma das promessas principais do projecto da modernidade e, na aparência pelo menos, uma das que obteve um maior grau de realização. Sinal disso mesmo será porventura o consenso em torno dos direitos humanos, um consenso que é virtualmente total nos países desenvolvidos. Este consenso é um fenómeno sociológico importante em si mesmo e merece, por isso, alguma ref1exão. Em primeiro lugar, cabe indagar em que medida o consenso está relacionado com a ambiguidade conceptual dos direitos humanos, pelo que uma maior precisão conceptual destes fará surgir, no lugar do consenso, o dissenso. Se este for o caso, o consenso não é uma conquista ideológica incondicional, tem um custo, que alguns considerarão elevado, e esse é o da ambiguidade conceptual. Em segundo lugar, pode perguntar-se se o consenso apenas respeita aos direitos humanos da primeira geração ou se, pelo contrário, abrange também os novos direitos humanos, da segunda ou da terceira gerações. Da resposta a esta pergunta depende saber se o consenso é o resultado de uma prática de inclusão ou de uma prática de exclusão de direitos humanos. Em terceiro lugar, sendo certo que o conceito de direitos humanos exerce uma função legitimadora do poder político que lhes proclama obediência, e que os direitos humanos são consignados em conceitos e normas abstractas, deve investigar-se em que medida esta função pode ser exercida independentemente de um juízo social sobre a efectiva aplicação dos direitos humanos, sobretudo em países cuja cultura jurídica e política dominante favorece as proclamações 1egais em detrimento da avaliação das práticas sociais. Desde meados do século XVIII, a trajectória da modernidade está vinculada ao desenvolvimento do capitalismo nos países centrais, o que pode ser ilustrado também no campo dos direitos humanos. Este desenvolvimento pode ser dividido em três períodos: o período do capitalismo liberal que cobre todo o século XIX; o período do capitalismo organizado que se inicia nos finais do século XIX e que se prolonga até ao fim da década de sessenta; e o período do capitalismo «desorganizado» ou neoliberal que se inicia então e se prolonga até hoje. Um tanto esquematicamente pode dizer-se que o primeiro período é o período da expansão e consolidação dos direitos cívicos e políticos (da liberdade de expressão ao direito de voto) pois, como é sabido, a componente democrática do Estado liberal começou por ser muito ténue e só se foi ampliando em consequência das lutas sociais pela democracia. O segundo período, o do capitalismo organizado, é dominado pela conquista dos direitos sociais e económicos (do direito da segurança social ao serviço nacional de saúde), a segunda geração dos direitos humanos, e a forma política do Estado em que se veio a traduzir é o Estado-providência. Por fim, o terceiro período, que estamos a viver, é um período complexo pois, se é certo que nele se têm vindo a pôr em causa os direitos conquistados no período anterior, os direitos sociais e económicos, por outro lado, tem-se vindo a lutar, e nalguns países desenvolvidos com algum êxito, pelo que se poderia considerar a terceira geração de direitos humanos, os chamados pós-materialistas, como os direitos à qualidade de vida, ao meio ambiente saudável, à fruição cultural, à igualdade sexual e à paz.

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Três formas de desigualdade As relações sociais capitalistas geram três formas específicas de desigualdade: a desigualdade política que se traduz no conceito de dominação, a desigualdade socioeconómica que se traduz no conceito de exploração e a desigualdade simbólico-cultural que se traduz no conceito de alienação. As lutas pelos direitos humanos no período do capitalismo liberal visaram confrontar e democratizar, na medida do possível, a forma política das relações sociais capitalistas, isto é, a dominação. As lutas do período do capitalismo organizado tiveram como alvo privilegiado a forma social e económica destas relações e, portanto, a exploração. Por último, as lutas do período do capitalismo desorganizado ou neoliberal têm vindo a incidir prevalentemente na dimensão simbólico-cultural das desigualdades, isto é, na alienação. O valor democrático dominante por detrás das lutas sociais pelos direitos humanos foi, no primeiro período, a liberdade, no segundo a igualdade e no terceiro, a autonomia e subjectividade. Em todos os períodos, o que se tem consolidado é contudo a liberdade possível, a igualdade possível e a autonomia e subjectividade possíveis no marco das relações sociais capitalistas. Trata-se, porém, de possibilidades, activas, criadoras, na medida em que as lutas sociais pelos direitos humanos acabaram por transformar significativamente as relações sociais capitalistas. Até onde pode ir tal transformação é ponto de debate. Aliás, hoje o consenso sobre a bondade dos direitos humanos corre de par com a verificação do agravamento das condições sociais que tornam possível a sua vigência prática. A crise do Estado-providência e as filosofias políticas neocontratualistas, muito em voga ultimamente, põem em causa os direitos humanos da segunda geração, os direitos sociais e económicos, que até há alguns anos pareciam uma conquista irreversível. E como os obstáculos à igualdade são também obstáculos à liberdade e vice-versa, a crise dos direitos humanos da segunda geração parece arrastar consigo a crise dos direitos humanos da primeira geração, os direitos cívicos e políticos, do que resulta um crescente autoritarismo e uma nova reformalização da democracia. Por outro lado, os direitos da terceira geração, cuja emergência aponta para a necessidade de confrontar uma crise civilizacional bem mais profunda que a crise de um dado modo de produção, também não se sustentam socialmente sem os direitos humanos das duas primeiras gerações.

TEXTO 3 CONCEPÇÃO INTEGRADA DOS DIREITOS HUMANOS

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A crise do inexistente Estado-providência A especificidade da sociedade portuguesa no domínio dos direitos humanos assenta em que a ideia das três gerações de direitos humanos não se lhe adequa, nem histórica, nem sociologicamente. Ao contrário, as três gerações de direitos são, em Portugal, uma única geração. De facto, o 25 de Abril provocou um curto-circuito histórico, uma vasta mobilização social em que se lutou pelo reconhecimento simultâneo dos direitos cívicos e políticos, dos direitos económico-sociais e dos direitos à qualidade de vida e ao meio ambiente. Ao mesmo tempo que se restaurava a democracia política e se organizavam os partidos políticos, os trabalhadores viam reconhecidos o seu direito à contratação colectiva e ao salário decente, à saúde e à segurança social, enquanto o incipiente movimento ecológico barrava o caminho à central nuclear de Ferrel. Por este curto-circuito histórico que sem dúvida significou uma dramática aceleração histórica na nossa sociedade, pagamos um preço. Em primeiro lugar, ao contrário do que aconteceu noutros países, a sucessão geracional dos direitos começou paradoxalmente depois de todos terem sido gerados. Cedo se verificou que o reconhecimento efectivo dos direitos cívicos e políticos iria mais longe que o reconhecimento dos direitos económicos e sociais e o reconhecimento destes mais longe que o dos direitos à qualidade de vida, à cultura, ao meio ambiente. É esta a situação em que ainda nos encontramos. Em segundo lugar, se os direitos cívicos e políticos nasceram contra o Estado, os direitos económicos e sociais assentam em transferências de pagamentos e políticas redistributivas que só o Estado pode realizar e que historicamente realizou através do Estado-providência. Ora, a concessão dos direitos económicos e sociais ocorreu entre nós num momento em que estavam a entrar em crise nos países desenvolvidos devido fundamentalmente à crise financeira do Estado. Como não tínhamos tido anteriormente a possibilidade de consolidarmos um Estado-providência, caímos em breve na situação paradoxal de importarmos a crise do Estado-providência sem nunca termos tido um verdadeiro Estado-providência. É nessa situação que nos encontramos hoje.

Cidadania activa precisa-se Mas o curto-circuito histórico do 25 de Abril teve neste domínio ainda um outro efeito. A concessão de direitos fez-se, como é próprio do Estado moderno, através de leis gerais, abstractas e de aplicação universal. Ocorre, porém, que esta arquitectura constitucional e legislativa foi enxertada numa tradição política autoritária, de um Estado distante, mais predador que protector, de uma administração elitista e autocrática, habituada a conhecer amigos e inimigos mas não cidadãos. Este enxerto teve como efeito que muitos dos direitos nunca foram efectivamente respeitados ou só o foram muito selectivamente e que muitas leis não foram aplicadas. Daqui resultou uma enorme discrepância entre quadros legais, em geral, avançados, e práticas sociais normalmente mais retrógradas. O Portugal legal continua hoje muito à frente do Portugal real e o Estado tem sido o gestor principal dessa diferença.

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CADERNO DE RECURSOS

Quase como uma lei sociológica, pode dizer-se que nos últimos vinte anos quanto mais eficazmente a legislação procurou defender os interesses das classes de menos recursos, maior foi a probabilidade de ela não ser aplicada eficazmente. Penso que esta lei sociológica continua ainda em vigor. Nestas circunstâncias, é fácil concluir que a luta pelo aprofundamento da democracia em Portugal deve pautar-se por uma concepção integrada dos direitos humanos. A adopção de tal concepção tem uma implicação de peso. Nos países desenvolvidos da Europa, as lutas pelas sucessivas gerações de direitos humanos foram protagonizadas por diferentes agentes colectivos: as duas primeiras gerações, pelos partidos e pelos sindicatos, os chamados velhos movimentos sociais; a terceira geração pelos novos movimentos sociais (movimento ecológico, movimento feminista, movimento de consumidores, etc.). Em Portugal, os velhos movimentos sociais são novos, e os novos são apenas emergentes. O curto-circuito histórico dos direitos humanos terá por força de se repercutir nas formas organizativas das lutas por eles. Se os partidos e os sindicatos se isolarem dos movimentos emergentes e das suas agendas acabarão eles próprios isolados. Se os novos movimentos privilegiarem a luta contra os partidos e os sindicatos em detrimento da luta contra os limites dos partidos os sindicatos estarão condenados à inanição. As próximas revisões da Constituição e do sistema eleitoral deverão reconhecer sem ambiguidades que a aprendizagem da cidadania activa em Portugal não se faz apenas numa escola, seja ela a dos partidos, dos sindicatos ou dos movimentos e associações de cidadãos. Faz-se em todas dado que o analfabetismo democrático é ainda muito grande e, consequentemente, a democracia que temos é ainda de muito baixa intensidade.

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TEXTO 4 A MUDANÇA NO PERÍODO MODERNO

Anthony Giddens In GIDDENS, A. (2000). Sociologia, Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian (2.ª ed.). pp. 617-627


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Por que é que nos últimos duzentos anos, o período da modernidade, se assistiu a uma tão grande aceleração da mudança social? Este é, certamente, um tema muito complexo, embora não seja difícil indicar alguns dos factores que contribuíram para tal. De forma não surpreendente, esses factores podem ser ordenados em categorias segundo linhas semelhantes às dos factores que influíram sobre a mudança social através da história. Ao analisá-los, iremos incluir o impacto do meio físico na ponderação da importância global dos factores económicos.

Influências económicas Ao nível da economia, a influência de maior alcance é o impacto do capitalismo industrial. O capitalismo difere de um modo fundamental dos sistemas de produção preexistentes, pois envolve uma expansão da produção constante e uma acumulação de riqueza crescente. Nos sistemas de produção tradicionais, os níveis de produção eram bastantes estáticos pois estavam ajustados às necessidades habituais. O desenvolvimento capitalista promove a revisão constante da tecnologia de produção, um processo que envolve um recurso à ciência cada vez maior. O nível de inovação tecnológica fomentado na indústria moderna é muitíssimo maior do que em qualquer outro tipo de ordem económica anterior. O impacto da ciência e da tecnologia no modo como vivemos pode ser, em larga medida, conduzido por factores económicos, mas também se estende para além da esfera económica. A ciência e a tecnologia influenciam, e são influenciadas, por factores políticos e culturais. O desenvolvimento científico e tecnológico, por exemplo, ajudou a criar as modernas formas de comunicação como a rádio e a televisão. Como vimos, tais formas electrónicas de comunicação produziram mudanças políticas em anos mais recentes. A rádio, a televisão e os outros media electrónicos também moldaram as formas como pensamos e sentimos o mundo.

Influências políticas O segundo tipo mais importante de influência na mudança no período moderno consiste nos desenvolvimentos políticos. A luta entre as nações para expandir o seu poder, desenvolver a sua riqueza e triunfar militarmente sobre os seus rivais foi uma fonte estimulante de mudança durante os últimos dois ou três séculos. A mudança política nas civilizações tradicionais estava, normalmente, confinada às elites. Uma família aristocrata, por exemplo, podia substituir outra no poder, enquanto para a maioria da população a vida continuava relativamente inalterada. Isto não acontece com os sistemas políticos modernos, nos quais as actividades dos dirigentes políticos e funcionários do governo afectam constantemente a vida da maioria da população. Quer nacional quer internacionalmente, as tomadas de decisão política promovem e fomentam alterações sociais muito mais vastas do que em tempos anteriores.

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O desenvolvimento político nos últimos dois ou três séculos influenciou a mudança económica tanto quanto as alterações económicas influenciaram a política. Os governos desempenham hoje um papel importante de estímulo (e, por vezes, de retardador) do crescimento económico. Em todas as sociedades industriais, há um elevado nível de intervenção do Estado na produção, sendo o governo, de longe, o maior empregador. O poder militar e a guerra também tiveram grande importância. O poder militar das nações ocidentais, desde o século XVII até ao presente, permitiu-lhes influenciar todos os cantos do mundo e foi um suporte essencial da propagação global do estilo de vida ocidental. No século xx, o efeito das duas guerras mundiais foi profundo. A devastação de muitos países conduziu a processos de reconstrução que provocaram importantes alterações institucionais, por exemplo, na Alemanha e no Japão depois da Segunda Guerra Mundial. Mesmo aqueles Estados que saíram vitoriosos – como o Reino Unido – sofreram alterações internas importantes com o impacto da guerra na sua economia.

Influências culturais Entre os factores culturais que afectam os processos de mudança social nos tempos modernos, o desenvolvimento da ciência e a secularização do pensamento contribuíram para o carácter crítico e inovador da perspectiva moderna. Já não assumimos que os costumes ou hábitos sejam aceites meramente porque se revestem da autoridade da tradição. Pelo contrário, requer-se cada vez mais que os nossos modos de vida na sociedade moderna tenham uma base «racional». Por exemplo, o projecto de um edifício hospitalar não poderia basear-se principalmente em quaisquer preferências anteriores, mas sim na sua capacidade para servir os propósitos para os quais é construído, ou seja, cuidar eficazmente de doentes. Para além do modo como pensamos, o conteúdo das ideias também se alterou. Ideais como os de aperfeiçoamento pessoal, de liberdade, de igualdade e de participação democrática são, em grande parte, criações dos últimos dois ou três séculos. Esses ideais serviram para mobilizar processos de mudança social e política de grande alcance, incluindo as revoluções. Estas ideias também não podem ser ligadas à tradição, antes sugerem a revisão constante do modo de vida na busca da melhoria humana. Embora tenham sido inicialmente desenvolvidos no Ocidente, esses ideais tornaram-se verdadeiramente universais na sua aplicação, promovendo a mudança na maioria das regiões do mundo.

Mudanças actuais e perspectivas futuras Para onde nos conduz a mudança social hoje em dia? Quais os principais desenvolvimentos que irão provavelmente afectar as nossas vidas no dealbar do século XXI? Os teóricos sociais não estão de acordo com as respostas a dar a estas perguntas que, obviamente, envolvem muita especulação. Vamos observar três perspectivas sobre os temas em causa: a noção de que vivemos presentemente numa sociedade pós-industrial, a ideia de que atingimos um período pós-moderno e a teoria de que atingimos o «fim da história».

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Rumo a uma sociedade pós-industrial? Alguns observadores sugeriram que actualmente está a ter lugar uma transição para uma nova sociedade que já não assenta essencialmente no industrialismo. Declaram que estamos a entrar numa fase de desenvolvimento para além da era industrial. Foi cunhada uma variedade de termos para descrever a nova ordem social que se supõe estar a emergir, tais como a sociedade de informação, sociedade de serviços e sociedade do conhecimento. O termo que se tornou de uso mais comum – empregue em primeiro lugar por David Bell, nos Estados Unidos, e por Alain Tourraine, em França –, é SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL (Bell, 1973; Tourraine, 1974), referindo-se o «pós» (que significa «depois») à ideia de que estamos a caminhar para além das tradicionais formas de desenvolvimento industrial. A diversidade de nomes é um indicador da miríade de ideias avançadas para interpretar mudanças sociais correntes. Um tema que aparece constantemente é o do significado da informação ou do conhecimento na sociedade do futuro. O nosso modo de vida, baseado na manufactura de bens materiais, centrada na energia produzida pela máquina e na fábrica, está a ser substituído por outro em que a informação é a base do sistema produtivo. O retrato mais nítido e mais compreensivo da sociedade pós-industrial é o fornecido por Daniel Bell no seu trabalho The Coming of the Post-lndustrial Society (O Advento da Sociedade Pós-Industrial) (1973). A ordem pós-industrial, afirma Bell, distingue-se pelo crescimento do sector de serviços à custa dos que produzem bens materiais. Os trabalhadores de colarinho azul, empregados numa fábrica ou oficina, deixaram de ser o tipo essencial de trabalhador. Os trabalhadores de colarinho branco (administrativos e outros profissionais) acabam por ultrapassar em número os de colarinho azul, com os postos de trabalho profissionais e técnicos a crescer mais rapidamente que todos os outros. As pessoas que trabalham em ocupações de colarinho branco do nível mais alto especializaram-se na produção da informação e do conhecimento. A produção e controlo daquilo que Bell designa como conhecimento codificado – a informação sistemática e coordenada – são o principal recurso estratégico de que depende a sociedade. Aqueles que se preocupam com a sua criação e distribuição – os cientistas, especialistas de computadores, economistas, engenheiros e profissionais de todo o tipo – tornam-se cada vez mais os grupos sociais predominantes, substituindo os industriais e empresários do velho sistema. Ao nível da cultura, há um afastamento da «ética do trabalho» característica do industrialismo; as pessoas são mais livres para inovar e para se realizarem, tanto no seu trabalho, como nas suas vidas domésticas. Até que ponto é válida a perspectiva que afirma que a antiga ordem industrial está a ser suplantada por uma sociedade pós-industrial? Enquanto esta tese foi amplamente aceite, as asserções empíricas de que depende são suspeitas em vários sentidos.

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1. A tendência para o aumento das ocupações no sector de serviços, em conjunto com o declínio de emprego noutros sectores de produção, data quase desde o início da própria industrialização, não sendo, portanto, um fenómeno recente. Desde o princípio do século XIX, tanto a produção como os serviços se expandiram à custa da agricultura, com o sector de serviços a mostrar de modo consistente uma taxa de crescimento mais rápida do que o da produção. O trabalhador de colarinho azul nunca foi o tipo mais comum de empregado; uma proporção mais elevada de trabalhadores assalariados sempre trabalhou na agricultura e no sector dos serviços, com este último sector a aumentar em proporção com o declínio dos efectivos na agricultura. Por certo, a transferência mais importante não foi do trabalho industrial para os serviços, mas sim dos empregos agrícolas para todos os outros tipos de ocupação. 2. O sector de serviços é muito heterogéneo. As ocupações deste sector não podem ser simplesmente tratadas como se fossem idênticas a «trabalhos de colarinho branco»; muitos empregos deste sector (como o de empregado de postos de gasolina) são considerados como ocupações de colarinho azul por serem manuais. A maior parte dos cargos de colarinho branco implicam um conhecimento especializado diminuto e adquiriram um carácter essencialmente mecânico. Isto acontece com a maioria do trabalho administrativo menos importante, como o de escriturário ou o de secretariado. 3. Muitos empregos de «serviços» contribuem para um processo que produz bens materiais e, por isso, deveriam ser inseridos na área fabril. Assim sendo, um programador de computador que trabalha para uma firma industrial, a projectar e a dirigir a operação de ferramentas mecânicas, está directamente envolvido num processo de produção de bens materiais. 4. Ninguém pode estar certo quanto ao impacto a longo prazo da expansão dos microprocessadores e da comunicação electrónica. De momento, estão integrados no processo de fabrico em vez de o substituírem. Parece certo que tais tecnologias continuarão a mostrar taxas muito elevadas de inovação e introduzir-se-ão noutras áreas da vida social. Mas não sabemos com clareza até que ponto continuamos a viver numa sociedade onde o conhecimento codificado é o recurso principal. 5. A tese da sociedade pós-industrial tende a exagerar a importância dos factores económicos na produção da mudança social. Tal sociedade é descrita como consequência dos desenvolvimentos da economia, os quais conduzem a mudanças noutras instituições. A maior parte dos defensores da hipótese pós-industrial foi pouco influenciada por Marx, ou criticou directamente as suas teorias. Mas a sua posição é quase marxista na medida em que consideram que os factores económicos dominam a mudança social. Alguns dos desenvolvimentos citados pelos teóricos da sociedade pós-industrial são características importantes da era actual, mas não é óbvio que o conceito de «sociedade pós-industrial» seja a melhor forma de os explicar. Além disso, as forças impulsionadoras das mudanças que hoje ocorrem são tanto políticas e culturais como económicas.

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A pós-modernidade e o «fim da história» Recentemente alguns autores foram mais longe e não se limitaram a falar do fim da era do industrialismo. Em sua opinião, os desenvolvimentos que estão a ter lugar na actualidade são ainda mais profundos. O que está em curso será, nada mais nada menos, do que um movimento que vai para além da modernidade – entendendo por tal as instituições e modos de vida associados globalmente às sociedades modernas, como a nossa crença no programa, nos benefícios da ciência e na sua capacidade para controlar o mundo moderno. Estará a chegar uma era pós-moderna, ou esta já terá mesmo chegado. Os defensores da ideia de pós-modernidade defendem que as sociedades modernas se inspiravam na ideia de que a história tinha uma forma – «ia em alguma direcção» e conduzia ao progresso – e que, presentemente, esta noção entrou em colapso. Já não existem «grandes narrativas» – as concepções globais da história – com algum sentido (Lyotard, 1985). Não só já não existe uma concepção geral de progresso defensável, como já não há algo a que possa chamar-se história. O mundo pós-moderno é, assim, um mundo altamente plural e diversificado. As imagens circulam à volta do mundo em inúmeros filmes, vídeos e programas de TV. Entramos em contacto com muitas ideias e valores, mas estes têm pouca ligação com a história das áreas em que vivemos ou mesmo com as nossas histórias pessoais. Tudo parece fazer parte de um fluxo constante. Tal como expressa um grupo de autores: O nosso mundo está a ser refeito. A produção em massa, o consumo de massas, a grande cidade, o Estado omnipotente, a construção planificada e estandardizada das habitações e o Estado nacional estão em declínio; a flexibilidade, a diversidade, a diferenciação e a mobilidade, a comunicação, a descentralização e a internacionalização estão em ascensão. No decurso deste processo, as nossas próprias identidades, o nosso sentido de identidade, as nossas próprias subjectividades estão a transformar-se. Encontramo-nos na transição para uma nova era (S. Hall et al., 1988). A história acaba com a modernidade, porque já não há qualquer modo de descrever em termos gerais o universo plural que nasceu. […]

Avaliação É muito duvidoso que a história tenha chegado ao fim no sentido de termos esgotado todas as alternativas que se nos oferecem. Quem pode dizer que novas formas de ordem económica, política ou cultural podem emergir no futuro? Tal como os pensadores da Idade Média não tinham qualquer ideia sobre a sociedade industrial que estava para surgir com o declínio do feudalismo, não podemos, no momento, antecipar como é que o mundo vai evoluir no próximo século.

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Deveríamos ter reservas, portanto, acerca da ideia do fim da história e, também, acerca da ideia da pós-modernidade. Os teóricos da pós-modernidade enfatizam em demasia a diversidade e a fragmentação, à custa de novas formas da integração global. O pluralismo é importante, mas a humanidade de hoje enfrenta problemas comuns, problemas que requerem para a sua solução iniciativas gerais. A expansão do capitalismo apenas numa direcção não pode continuar indefinidamente; o mundo tem reservas finitas. Como humanidade colectiva, precisamos de tomar medidas para superar as diferenças económicas que separam países ricos e pobres, tal como estas divisões no interior das sociedades. Precisamos de o fazer ao mesmo tempo que protegemos os recursos de que dependemos todos. Ao nível da ordem política, a democracia liberal não é, de facto, suficiente. Como um quadro confinado ao Estado-nação, não resolve a questão do modo de criação de uma ordem pluralística global, livre da violência.

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TEXTO 5 O MUNDO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO

Anthony Giddens (pp. 15-35)


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[…] Este mundo em que vivemos, no final do século xx, será realmente diferente do que foi em outras épocas? É. Temos boas razões, razões objectivas, para pensar que estamos a viver um período histórico de transição muito importante. Além do mais, as mudanças que nos afectam não estão confinadas a nenhuma zona do globo, fazem-se sentir um pouco por toda a parte. […] Contudo, o mundo em que agora vivemos não se parece muito com aquele que foi previsto, nem o vemos como tal. Em vez de estar cada vez mais dominado por nós, parece totalmente descontrolado – um mundo virado do avesso. Além disso, algumas das razões que levaram o homem a pensar que a vida se tornaria mais estável e previsível, incluindo os progressos da ciência e da tecnologia, tiveram por vezes efeitos totalmente opostos. As mudanças do clima e os riscos que transportam consigo, por exemplo, resultam provavelmente das nossas intervenções no meio ambiente. Não são fenómenos naturais. É inevitável que a ciência e a tecnologia tenham de estar envolvidas nas tentativas que fazemos de enfrentar os riscos ambientais, mas também temos de reconhecer que ambas tiveram papéis importantes na origem de muitos deles. Enfrentamos situações de risco, de que o aquecimento global é apenas um exemplo, que nenhuma geração anterior teve de enfrentar. Muitos dos novos riscos e incertezas afectam-nos, qualquer que seja o lugar em que vivamos, pouco importando que sejamos privilegiados ou pertencentes às classes mais desfavorecidas. Estão relacionados com a globalização, esse conjunto de transformações que, no seu todo, constituem a razão de ser deste livro. Também a ciência e a tecnologia se estão a globalizar. Já alguém calculou que o número de cientistas a trabalhar nesta altura é superior à totalidade dos que trabalharam durante toda a história da ciência. Mas a globalização é um fenómeno diversificado, tem outras dimensões. Está a trazer para a ribalta outras formas de risco e novas incertezas, em especial as que se relacionam com a economia electrónica global, ela própria de criação muito recente. Como acontece com a ciência, também neste caso o risco tem duas faces. O risco está estreitamente ligado à inovação. E existe sempre a tendência para o minimizar; o enlace activo entre o risco financeiro e o risco empresarial é a verdadeira locomotiva da globalização da economia. A globalização também afecta a vida corrente, da mesma forma que determina eventos que se passam à escala planetária. É por isso que este livro inclui discussões alargadas acerca da sexualidade, do casamento e da família. Em muitas partes do mundo, as mulheres estão a exigir maior autonomia em relação ao passado e a entrar no mundo laboral em grande número. Estes aspectos da globalização são pelo menos tão importantes como os que afectam os mercados. Contribuem para o stress e para as tensões que afectam as maneiras de viver tradicionais e as culturas da maioria das regiões do mundo. A família tradicional está ameaçada, está a mudar, e vai mudar ainda mais. Outras tradições, como as que têm a ver com a religião, também estão a passar por transformações de importância enorme. Um mundo de tradições em desmoronamento alimenta o fundamentalismo (pp. 15-17). […]

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TEXTO 5 O MUNDO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO


CADERNO DE RECURSOS

Por conseguinte, eu diria sem hesitar que a globalização, tal como estamos a vivê-la, a muitos respeitos não é apenas uma coisa nova, é também algo de revolucionário. Porém, creio que nem os cépticos nem os radicais compreenderam inteiramente o que é a globalização ou quais são as suas implicações em relação às nossas vidas. Para ambos os grupos trata-se, antes de tudo, de um fenómeno de natureza económica. O que é um erro. A globalização é política, tecnológica e cultural, além de económica. Acima de tudo, tem sido influenciada pelo progresso nos sistemas de comunicação, registado a partir do final da década de 1960 […]. É um erro pensar-se que a globalização só diz respeito aos grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não é apenas mais uma coisa que «anda por aí», remota e afastada do indivíduo. É também um fenómeno «interior», que influencia aspectos íntimos e pessoais das nossas vidas. Por exemplo: o debate que decorre em muitos países acerca dos valores da família parece ter muito pouco a ver com as influências da globalização. Mas tem. Os sistemas tradicionais da família estão a transformar-se, ou estão sujeitos a grandes tensões, em diversas partes do mundo, em especial sempre que as mulheres exigem maior igualdade de direitos. Pelo que sabemos através dos registos históricos, nunca houve qualquer sociedade em que as mulheres fossem, mesmo aproximadamente, iguais aos homens em direitos. Trata-se de uma revolução global na vida corrente, cujas consequências se estão a fazer sentir em todo o mundo, em todos os domínios, do local de trabalho à política […]. Será a globalização uma força promotora do bem geral? Dada a complexidade do fenómeno, a resposta não é simples. As pessoas que fazem a pergunta, e que culpam a globalização pelo aprofundamento das desigualdades entre países, estão geralmente a pensar apenas em termos de globalização económica e, dentro desta, na liberalização do comércio mundial. Ora, como é óbvio, a liberalização do comércio mundial não é um benefício ingénuo, especialmente quando estão em causa os países menos desenvolvidos. A abertura de um país, ou apenas de parte dele, ao comércio sem barreiras pode obstruir a economia local de subsistência (pp. 22-27). […] Por estas razões, há que admitir que a ideia de risco sempre andou associada à modernidade mas, na minha opinião, na época actual ela assume uma importância nova e peculiar. O risco era considerado um meio de regular o futuro, de o normalizar e de o colocar sob o nosso domínio. Mas as coisas não se passaram assim. As tentativas que fazemos para controlar o futuro acabam por se voltar contra nós, forçando-nos a procurar novas formas de viver com a incerteza. A melhor maneira de explicar o que está a acontecer é estabelecer uma distinção entre dois tipos de risco. A um, chamarei risco exterior. O risco exterior é o que nos chega de fora, das imposições da tradição ou da natureza. Quero distingui-lo do risco provocado que, para mim, é o risco resultante do impacte do nosso desenvolvimento tecnológico sobre o meio ambiente. O risco criado refere-se a situações de que não temos experiência histórica. Muitos dos riscos ambientais, como os relacionados com o aquecimento global, pertencem a este tipo. São influenciados directamente pela globalização […] (p. 35).

TEXTO 5 O MUNDO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO

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TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES

Yves Bertrand/Paul Valois 1994, pp. 50-183


CADERNO DE RECURSOS

2.2.1. Os paradigmas socioculturais Quando examinamos um pouco mais de perto a complexidade das sociedades e, por analogia, a das organizações sociais, somos levados a procurar as estruturas ou os elementos em que se baseiam ou a compreender o seu funcionamento. Em suma, procuramos compreender o que se passa simplificando os fenómenos através da construção de modelos. No capítulo 1 destacámos uma série de elementos que nos parecem importantes quando analisamos a sociedade e os seus componentes, elementos que agrupámos sob a denominação de paradigma sociocultural. Definimos o paradigma sociocultural como um conjunto de crenças, concepções ou generalizações e valores que apresentam uma concepção do conhecimento; uma concepção das relações entre a pessoa, a sociedade e a natureza, um conjunto coerente de valores e interesses, uma forma de executar e um significado global que, por um lado, definem e delimitam, para um determinado grupo social, o seu campo de acção possível e a sua prática social e cultural e, por outro, asseguram por isso mesmo a sua coerência e a sua relativa unanimidade. Afirmámos que o paradigma sociocultural remete essencialmente para a acção exercida pela sociedade, a partir da sua actividade, sobre as suas práticas sociais e culturais através da combinação dos cinco componentes mencionados. O que caracteriza esta acção e retroacção é o facto de o paradigma sociocultural, enquanto acção exercida sobre as práticas sociais e culturais, ser o resultado de uma reflexão, de um distanciamento da sociedade em relação à sua actividade, distanciamento esse que permite a emergência de uma imagem normativa e exemplar, isto é, reguladora das suas acções, da sua modificação, da sua produção, da sua adaptação ou da sua reprodução. Esta imagem normativa e exemplar liga-se ao conceito de imagem do futuro definido por Polak (1961/1973). O paradigma sociocultural tem importância porque, ao apoiarmo-nos no nosso esquema de análise sistémica do funcionamento de uma sociedade, estamos a considerar que a escolha de um paradigma educacional assenta na escolha explícita ou implícita de um paradigma sociocultural. Uma leitura das tendências e das forças inscritas na sociedade ocidental revela a existência de pelo menos quatro paradigmas socioculturais fundamentais […].

2.2.2. Os paradigmas educacionais Admitamos, sem remorsos, que há vários paradigmas educacionais que estruturam as práticas educativas das sociedades contemporâneas. Haverá ainda muitos outros que determinarão eventualmente a prática educativa das sociedades do futuro. A nossa análise incide sobre um número bastante restrito de paradigmas educacionais. Lembremo-nos que a dimensão normativa caracteriza o paradigma educacional. De entre os

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES

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CADERNO DE RECURSOS

paradigmas educacionais que pudemos identificar, escolhemos os que nos pareceram mais representativos. a) O paradigma racional centrado na transmissão dos conhecimentos e valores dominantes. b) O paradigma tecnológico centrado na utilização da tecnologia educacional. c) O paradigma humanista que visa o crescimento da pessoa. d) O paradigma sociointeraccional preocupado essencialmente com a abolição da exploração entre os homens […].

Sinopse dos paradigmas da educação * PARADIGMA RACIONAL

ABORDAGEM MODO DE CONHECIMENTO

Transmitir um saber predeterminado; transmitir uma verdade única, objectiva, regularizada e reguladora; promover as capacidades intelectuais.

Transmissão de conhecimentos predeterminados; saber ter conteúdo da comunicação centrado nas actividades cognitivas.

Apresentar a ciência como modelo de produção do conhecimento; veicular o progresso científico como imagem da criatividade.

Transmissão de conhecimentos predeterminados.

Transmitir uma verdade única objectiva, regularizada e reguladora.

Transmissão de conhecimentos predeterminados.

CONCEPÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE A PESSOA, A SOCIEDADE E A NATUREZA

Transmitir a imagem do indivíduo centrada na ordem existente; promover a legitimidade da ordem estabelecida e dos valores veiculados; adaptar o indivíduo à sociedade.

O meio determina o comportamento aceitável do aluno; transmissão de valores predeterminados; modelo de transformação única cujos elementos não variam e são idênticos de uma escola para outra; modelo estruturado segundo os princípios de organização e da gestão industrial; o aluno comporta-se segundo regras conformes às normas aceites pela maioria.

Relativizar a importância do aluno enquanto pessoa; optimizar a inclinação do aluno enquanto futuro trabalhador; promover as capacidades intelectuais; aceitar como normal que alguns, minoritários, tomem as decisões por outros, maioritários.

O aluno conforma-se com o modo único de desenvolvimento; o aluno está subordinado às expectativas e às directivas do professor; avaliação do aluno segundo as normas socioculturais; o professor domina, motiva e dirige os alunos.

Apresentar a ciência como modelo de produção do conhecimento; apresentar as relações humanas segundo a estratégia do mercado.

Transmissão de conhecimentos atomizados.

* Síntese dos quadros apresentados no texto original

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TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES


CADERNO DE RECURSOS

(continuação) PARADIGMA RACIONAL

ABORDAGEM VALORES E INTERESSES

Socializar o indivíduo com a ideia de progresso, de produção e de consumo; veicular o progresso económico como imagem da criatividade; apresentar as relações humanas segundo a estratégia do mercado.

Transmissão de valores predeterminados; o aluno como receptor de uma mensagem predeterminada.

Transmitir a imagem do aluno conformista, centrado na ordem estabelecida.

O aluno conforma-se com o modelo único de desenvolvimento e recebe uma mensagem predeterminada. Conformidade ao modelo único de desenvolvimento; domínio das emoções, da imaginação, da sensibilidade e da afectividade.

Contribuir para a reprodução da divisão social do trabalho.

Avaliação do comportamento por comparação.

MODO DE EXECUÇÃO

Optimizar a tendência do aluno enquanto futuro trabalhador; contribuir para a reprodução da divisão social do trabalho; apresentar as relações humanas de acordo com as estratégias do mercado; transmitir a imagem do indivíduo oportunista, materialista, conformista, centrado na ordem estabelecida; socializar o indivíduo com a ideia de progresso, de produção e de consumo.

Conformidade com as normas socioculturais aceites pela maioria; recepção da mensagem predeterminada.

Aceitar como normal que alguns (minoria) tomem as decisões pelos outros (maioria); legitimar uma estrutura de decisão hierárquica.

Modelo estruturado de acordo com os princípios da organização e da gestão industrial; burocratização e hierarquização das decisões; o aluno subordinado às expectativas e às directivas do professor.

O indivíduo oportunista. Apresentar a ciência como modelo de produção do conhecimento; veicular o progresso económico, científico e tecnológico como imagem da criatividade. SIGNIFICADO GLOBAL

Socializar o indivíduo com a ideia de progresso económico, científico e tecnológico como imagem da criatividade.

Conformidade às normas socioculturais.

Transmitir uma verdade única, objectiva, regularizada e reguladora; apresentar a ciência como modelo de produção do conhecimento; a ciência como imagem da criatividade.

Conteúdo da comunicação centrado nas actividades cognitivas; transmissão de conhecimentos predeterminados.

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES

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CADERNO DE RECURSOS

(continuação) PARADIGMA TECNOLÓGICO

ABORDAGEM MODO DE CONHECIMENTO

Promover o modo racional de conhecimento.

Relevo para a planificação e organização de actividades pedagógicas que conduzem a comportamentos predeterminados.

Contribuir para transformar a educação em ciência.

Colaboração entre várias disciplinas; relevo para a eficácia da comunicação; actividades pedagógicas que levem a comportamentos predeterminados e observáveis.

Contribuir para transformar a educação em ciência; produzir um ser tecnológico.

Resultados apreciáveis com base em comportamentos predeterminados e observáveis; insistência na eficácia, na planificação e na organização.

CONCEPÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE A PESSOA, A SOCIEDADE E A NATUREZA

Ostentar uma neutralidade aparente, abstendo-se de qualquer crítica normativa; atomizar e «desideologizar» os debates.

Conteúdo da comunicação ligado às exigências da sociedade que determina as competências a adquirir; os valores dominantes não devem ser questionados; polarização em torno dos meios de comunicação.

Perpetuar uma concepção oligárquica da democracia; promover o especialista como fundamento de qualquer modelo de decisão de resolução de problema.

O professor-engenheiro e outros especialistas como conceptualizadores e actualizadores do sistema de intervenção pedagógica; importância do papel dos especialistas.

Veicular uma imagem mecanomórfica da pessoa.

Subordinação do aluno às actividades que conduzem aos comportamentos predeterminados.

Promover o modo racional do conhecimento que postula a separação entre o observador e o observado.

Recurso à individualização do ensino como medida de eficácia.

VALORES E INTERESSES

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Ostentar uma neutralidade aparente; promover o como fazer, a eficácia e a economia.

Prescrever comportamentos que correspondem às exigências da sociedade.

Produzir um ser tecnológico; promover o como fazer e a eficácia, o controlo e a economia.

Conformar-se com os comportamentos predeterminados.

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES


CADERNO DE RECURSOS

(continuação) PARADIGMA TECNOLÓGICO

ABORDAGEM MODO DE EXECUÇÃO

Ostentar uma neutralidade aparente ao abster-se de qualquer crítica normativa.

Conteúdo da comunicação ligada às exigências da sociedade que determina as competências a adquirir; os valores dominantes não são questionados; polarização à volta dos meios e concentração nos resultados imediatos e não nas consequências a longo prazo.

Ostentar uma neutralidade aparente, abstendo-se de qualquer crítica normativa.

Os valores dominantes não são questionados.

Transmitir o desenvolvimento tecnológico e a utilização de tecnologias como imagem de criatividade.

Recurso a diversos media; educação como metodologia de resolução dos problemas; aliança entre a tecnologia da comunicação e as abordagens sistémicas.

SIGNIFICADO GLOBAL

Transmitir o desenvolvimento tecnológico e a utilização de tecnologias como imagem de criatividade. Contribuir para transformar a educação em ciência; promover o modo racional do conhecimento.

Relevo para a eficácia da comunicação; actividades pedagógicas que culminam em comportamentos predeterminados.

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES

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CADERNO DE RECURSOS

PARADIGMA HUMANISTA

Promover uma concepção do conhecimento baseada na subjectividade e concebida como uma qualidade do ser; a criatividade subjectiva, a expressão do eu, a comunicação, a alegria e o amor como modelos de criatividade.

ABORDAGEM

A aprendizagem como experiência que decorre na vida interior «daquele que se educa»; o meio escolar considerado como secundário em relação aos recursos internos «daquele que se educa»; o desenvolvimento «daquele que se educa» mais importante do que o conjunto dos conhecimentos adquiridos. O meio como modo de facilitar o desenvolvimento «daquele que se educa»; potencial gerador do ambiente escolar; conformidade com a dinâmica de interacção entre o sujeito e o objecto. Posse «daquele que se educa» de todos os recursos necessários à experiência da aprendizagem.

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Substituir o saber fazer pelo saber ser, organicidade das aquisições; formar uma pessoa aberta à experiência; promover a comunicação como dimensão de um modelo de criatividade.

Meio ambiente educativo adequado à dinâmica de interacção entre o sujeito e o objecto.

Levar a ordem social dominante a centrar-se principalmente na pessoa.

Concentração do meio ambiente educativo «daquele que se educa».

Promover a concentração sobre o desenvolvimento do aluno.

Função secundária atribuída aos factores exteriores «àquele que se educa»; papel diluído da administração que utiliza os recursos do meio.

Formar uma pessoa criativa, aberta à experiência e orientada para o momento presente.

Valorização dos comportamentos exploratórios.

Formar uma pessoa aberta à experiência.

A aprendizagem como experiência activa que se desenvolve no interior «daquele que se educa»; valorização dos componentes exploratórios; posse «daquele que se educa» de todos os recursos necessários à experiência da aprendizagem.

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES

O meio social e natural como meio que facilita o desenvolvimento «daquele que se educa».


CADERNO DE RECURSOS

(continuação) PARADIGMA HUMANISTA

ABORDAGEM

Propor uma «nova» imagem da pessoa em que esta é livre interiormente para se mover em qualquer direcção.

«Aquele que se educa» determina os próprios conteúdos e controla as suas actividades de aprendizagem; agente activo e primeiro da sua aprendizagem; participação «daquele que se educa» na escolha das actividades e dos materiais de aprendizagem.

Incidir na criação de uma pessoa que possua um sentimento de liberdade total; criticar a forma como a sociedade dita democrática trata as pessoas.

«Aquele que se educa» tem capacidade de autonomia.

Centrar-se no desenvolvimento da pessoa; dar o poder à pessoa; levar a ordem social dominante a centrar-se na pessoa; propor uma «nova» imagem da pessoa em que esta é livre interiormente para se movimentar em qualquer direcção e autorizar-se a ser o processo transformador que ela própria é.

«Aquele que se educa» determina os conteúdos e controla as actividades da aprendizagem. A aprendizagem como experiência activa que se passa na vida interior «daquele que se educa»; valorização da criação de um ambiente incitador que favorece o desenvolvimento «daquele que educa».

SIGNIFICADO GLOBAL

Centrar-se no desenvolvimento do aluno; levar a ordem social dominante a centrar-se na pessoa.

«Aquele que se educa» determina os conteúdos e controla as suas actividades da aprendizagem.

Promover uma concepção do conhecimento centrado na subjectividade.

A aprendizagem como experiência activa que se passa na vida interior «daquele que se educa»; aprendizagem subordinada às necessidades afectivas e cognitivas «daquele que se educa»; presença do educador com simpatia afectiva e intelectual, atenção e intuição.

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES

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CADERNO DE RECURSOS

PARADIGMA DA DIALÉCTICA SOCIAL

Desmascarar uma falsa visão das relações de produção; mostrar a transversalidade das instituições e das organizações; propor a análise institucional como método de análise para esclarecer as reais relações com as instituições; trabalhar em verdadeiros meios de trabalho para compreender a relação entre os conhecimentos e a organização da sociedade.

ABORDAGEM

Domínio do saber social como conhecimento a adquirir; dialéctica dos campos de força.

Mostrar a transversalidade das instituições e das organizações. Abolir as relações entre dominadores e dominados.

Abolir as relações entre educadores e educandos; antimodelo pedagógico. Importância do saber individual.

Conceber a pessoa como um ser social; definir a pessoa através da sua relação com as outras pessoas; conceber a liberdade como um produto social colectivo.

Reconversão das expectativas individuais em exigências individuais, das exigências individuais em exigências colectivas e das exigências colectivas dirigidas aos animadores em exigências colectivas dirigidas à colectividade constituída em grupo.

Incidência sobre as implicações sociais, económicas e políticas da observação sociológica; criar instituições reguladas pela base; efectuar uma análise institucional social.

Gestão colectiva dos meios de aprendizagem; escolha e controlo dos métodos e dos programas de aprendizagem pelos destinatários da comunicação pedagógica.

Incidência sobre as implicações sociais, económicas e políticas da observação sociológica; reconhecer a transversalidade das instituições e das organizações.

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Propor, como método de análise, a análise institucional para esclarecer as relações reais mantidas com as instituições; conceber a pessoa como um ser social; falar preferencialmente de pessoas em vez de pessoa.

Relação mútua e condicional da autogestão pedagógica e da autogestão política; gerência colectiva dos meios de aprendizagem.

Reconhecer a transversalidade das instâncias políticas, ideológicas e económicas, assim como a das instituições e das organizações.

Reconversão das expectativas individuais em exigências individuais, das exigências individuais em exigências colectivas e das exigências colectivas dirigidas aos animadores em exigências colectivas dirigidas à colectividade constituída em grupo.

Realizar a autogestão pedagógica: fazer com que todas as pessoas participem ao máximo no processo de produção; conceber a pessoa como estando sempre em situação de transformar «uma desordem estabelecida».

Controlo e escolha dos métodos e programas de aprendizagem pelos estudantes; o meio social como causa da crise da educação.

Contestar os actuais sistemas sociais e escolares; criticar e substituir uma forma de democracia ao serviço da classe dirigente.

Controlo e escolha dos métodos e programas de aprendizagem pelos estudantes.

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES


CADERNO DE RECURSOS

(continuação) PARADIGMA DA DIALÉCTICA SOCIAL

ABORDAGEM

Conceber a autonomia das pessoas como condição e finalidade da autogestão.

Os alunos dependem apenas de si próprios e libertam a sua capacidade de actividade instituinte.

Definir a pessoa através da sua relação com as outras pessoas; conceber a liberdade como um produto social e colectivo. Abolir as relações entre dominadores e dominados, entre professores e alunos.

O emissor da comunicação pedagógica como animador que propõe modelos de funcionamento institucional ou formula propostas no âmbito de uma cooperação em que o grupo define e organiza as contra-instituições.

Conceber instituições políticas reguladas pela base; criticar e substituir uma forma de democracia ao serviço da classe dirigente; eliminar a burocracia.

Presença de um animador que propõe modelos de funcionamento institucional ou que formula propostas de modelos em que o grupo define e organiza as contra-instituições.

Criar instituições reguladas na base; conceber a liberdade como um produto social e colectivo. Propor a permanência da situação autogestionária como modelo da criatividade.

Gerência colectiva dos meios de aprendizagem; antimodelo pedagógico.

Facilitar o aparecimento de uma sociedade autogerida pela análise institucional da organização escolar; efectuar uma análise institucional social; criticar e substituir uma forma de democracia ao serviço da classe dirigente.

Os meios escolares e social como objecto da formação autogerida.

Não veicular um modelo de sociedade; ser anti-ideológico; conceber as instituições políticas reguladas pela base. SIGNIFICADO GLOBAL

Facilitar o aparecimento de uma sociedade autogerida pela análise institucional da organização escolar; efectuar uma análise institucional social; conceber as instituições políticas reguladas pela base.

Escolha e controlo dos métodos e dos programas de aprendizagem pelos estudantes que dependem de si próprios e que libertam a sua capacidade de actividade instituinte.

Abolir as relações entre dominadores e dominados, entre professores e alunos.

Presença de um animador que propõe modelos de funcionamento institucional ou que formula propostas de modelos em que o grupo define e organiza as contra-instituições. Impedir que as pessoas sejam alienadas, que desempenhem actividades que lhes são estranhas.

TEXTO 6 PARADIGMAS EDUCACIONAIS ESCOLA E SOCIEDADES

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TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS

Olívia Santos Silva


CADERNO DE RECURSOS

Os paradigmas, em permanente construção histórica, são um conjunto de concepções presentes num determinado contexto e numa determinada época, configurando a forma como os seres humanos conhecem o mundo, o seu modo de pensar e agir. Trata-se, neste sentido, de um conjunto conceptual que garante a coerência interna de qualquer proposta na área da educação e da formação, bem como a relação que se estabelece entre o que se faz e o que se pensa, permitindo ao formador agir intencionalmente. Paradigmas são, portanto, um complexo de conceitos inter-relacionados de forma a proporcionarem referenciais que permitem observar, compreender e orientar possíveis soluções para determinado problema: o quê, como, o que se pretende. Paradigma é, por conseguinte, uma matriz de crenças, valores, pressupostos e princípios coerentes entre si que conformam a natureza, finalidades, objectivos e metodologias da formação, produzindo orientações pedagógicas distintas e dando lugar a opções e formas diferenciadas ou opostas de actuação docente. Assim, conforme estejam integrados num ou noutro paradigma, presenciamos um conjunto de modelos de educação e formação diferenciados, sustentados por linhas distintas de orientação epistemológicas e metodológicas. Ao educador cabe fazer a distinção entre paradigmas para que possa perceber e tomar consciência das diversas alternativas do pensamento educacional ao longo da história e para que, dessa forma, consiga aperceber-se, em cada época, das ideias mais marcantes e das menos relevantes. Só em posse do conhecimento de determinados paradigmas, o educador pode compreender, dar sentido e encaminhar os processos educativos, sendo para isso necessário uma reflexão sobre quais os paradigmas que os orientam ou podem orientar e por que razão. Desta forma, uma análise da vida da formação, sob o ponto de vista das orientações que determinam as práticas educativas e formativas, remete-nos para a identificação das tendências ou paradigmas que, consciente ou inconscientemente, são determinantes nos normativos, na linguagem, nas escolhas, nas acções, afirmando esta ou aquela configuração docente. Entender essa configuração significa deslindar os pressupostos teóricos e práticos, compreendendo-os no momento em que ocorrem e nas determinações históricas que os configuraram. Para tanto, é necessário que o formador defina as suas ferramentas teóricas, estabeleça pontos de referências com os quais possa atribuir sentidos, produzir interpretações do que vive nas acções pedagógicas, inserindo-as numa vertente reflexiva sobre o seu projecto educativo. Ao educador cabe analisar informações e teorias, construir um todo de conhecimentos sólidos para fundamentar as suas práticas pedagógicas. Acreditando-se que teoria e prática têm de estar em constante e estreito diálogo, ao educar, o educador já está a produzir uma prática geradora de uma teoria pedagógica, de forma a não se saber onde começa uma e onde acaba a outra. Pensando assim é que se propõe, a seguir, uma leitura de algumas tendências e paradigmas orientadores das práticas educativas, tais como são lidas na realidade.

TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS

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CADERNO DE RECURSOS

Em todo o lugar onde houver convivência, interacção entre sujeitos, estão-se a produzir saberes, está-se a aprender. Aprender é um processo que acontece sob a forma de relações em espaços diferentes, nos quais o sujeito estabelece ligações entre a sua subjectividade e o ambiente, produzindo, assim, saberes. A Pedagogia, instituída como «ciência do educador», surge como via para informar e compreender o processo de aprendizagem, para além do espaço físico onde acontece. Portanto, a Pedagogia oferece-se como possibilidade de reflexão acerca do processo de ensino-aprendizagem, nas suas dimensões sociais, culturais, históricas, filosóficas e metodológicas. Ainda que de modo simplificado, globalmente, poder-se-iam ordenar as diversas tendências pedagógicas em torno de dois eixos organizadores: – directividade: quando há uma acção intencional que visa produzir resultados de aprendizagem, normalmente protagonizada pelo professor/formador. Neste contexto, o aluno/formando é aquele que precisa aprender e só aprenderá se se sujeitar às orientações do professor. – não-directividade: quando não há uma orientação anterior, mas se produzem orientações de acordo com a vontade e os objectivos do aprendente. Neste caso, não há primazia do professor/formador em relação ao aluno, mas ambos estão na condição de aprendentes. Observando a história da educação e da formação, e com base nestas duas possibilidades, surge a classificação de distintas correntes pedagógicas que a seguir se apresentam.

Do Ponto de Vista da Pedagogia Sinopse dos paradigmas de natureza pedagógica Pedagogia Não Crítica

Tradicional Nova Tecnicista

Pedagogia Crítica

Crítico-repodutivista Sócio-crítico

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TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS


CADERNO DE RECURSOS

Quadro-síntese dos modelos inscritos pela pedagogia PARADIGMAS

MODELOS

ESPECIFICAÇÕES

PEDAGOGIA TRADICIONAL

A sua essência diz respeito ao magistrocentrismo: o professor sabe e o aluno não sabe, mas com o auxílio, a orientação e os métodos propostos pelo professor pode vir a saber. Preocupa-se também com a moralização dos sujeitos. O professor é o responsável pela transmissão dos conteúdos, é o centro do processo educativo. Deve, portanto, ter domínio dos conteúdos fundamentais e ser bem preparado para a transmissão do acervo cultural. A experiência relevante que o aluno deve vivenciar é a de ter acesso democrático às informações, conhecimento e ideias, podendo, assim, conhecer o mundo físico e social. Enfatiza-se a disciplina intelectual, para o que se necessita de atenção, concentração, silêncio e esforço. A escola/o espaço de formação é o lugar por excelência onde se raciocina e o ambiente deve ser convenientemente austero para o aluno não se dispersar. O professor tem poder decisório quanto à metodologia, conteúdo e avaliação. Procura a retenção das informações e conceitos através da repetição de exercícios sistemáticos (tarefas).

PEDAGOGIA NÃO CRÍTICA

Há a tendência de tratar a todos os alunos igualmente: todos deverão seguir o mesmo ritmo de trabalho, estudar os mesmos livros-texto, no mesmo material didáctico e adquirir os mesmos conhecimentos. Aqui, a concepção de educação é caracterizada como produto, já que estão preestabelecidos os modelos a serem alcançados. Não se destaca, portanto, o processo. São privilegiadas as actividades intelectuais. A transferência da aprendizagem depende do treino, sendo imprescindível a retenção, a memorização, para que o aluno responda a situações novas de forma semelhante às situações anteriores.

Centraliza toda prática pedagógica no aluno, respeitando-o como capacitado a aprender desde que aja, produza acções. A educação atingirá o seu objectivo – corrigir o desvio da marginalidade – se incutir nos alunos o sentido de aceitação dos demais e pelos demais. Contribui assim para construir uma sociedade em que os seus membros se aceitem e se respeitem em suas diferenças.

PEDAGOGIA NOVA

Assim é que o professor deixa de ser o centro do processo, dando o lugar ao aluno. O professor deixa de ser o transmissor dos conteúdos, passando a facilitador da aprendizagem. Os conteúdos programáticos passam a ser seleccionados a partir dos interesses dos alunos. As técnicas pedagógicas da exposição, marca principal da Pedagogia tradicional, cedem lugar aos trabalhos em grupo, dinâmicas de grupo, pesquisa, jogos de criatividade. A avaliação deixa de valorizar os aspectos cognitivos, com ênfase na memorização, passando a valorizar os aspectos afectivos (atitudes) com ênfase em auto-avaliação. Desloca-se o eixo do acto pedagógico da dimensão intelectual para a dimensão afectiva, do aspecto lógico para o psicológico. Desta forma, esforço, disciplina, directividade, quantidade, passam a interesse, espontaneidade, não-directividade, qualidade. Há, também, em decorrência desse ideário, uma mudança no «clima» da escola: de austero para afectivo, alegre, ruidoso, colorido. Reduz-se, assim, o processo de ensino a uma das suas dimensões – a dimensão do saber ser.

TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS

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CADERNO DE RECURSOS

(continuação) MODELOS

ESPECIFICAÇÕES

As principais premissas desta Pedagogia passam a ser a eficiência, a racionalidade e a produtividade. O centro de ensino não é mais o professor, nem mais o aluno, mas as técnicas. Daí o nome desta Pedagogia: tecnicista. Partindo dela, reorganiza-se o processo educativo no sentido de torná-lo objectivo e operacional. As escolas passam a burocratizar-se. Exige-se dos professores a operacionalização dos objectivos, como instrumento para medir comportamentos observáveis, válidos porque mensuráveis, porque controláveis. Dissemina-se o uso da instrução programada (auto-ensino), das máquinas de ensinar, testes de múltipla-escolha, do tele-ensino e múltiplos recursos audiovisuais. PEDAGOGIA TECNICISTA

PEDAGOGIA NÃO CRÍTICA

PARADIGMAS

A Tecnologia Educacional, por coerência, é a grande inspiradora da Pedagogia Tecnicista. Esta pedagogia é sustentada por um dos paradigmas da Psicologia: o behaviorismo ou comportamentalismo. Os behavioristas ou comportamentalistas valorizam a experiência ou a experiência planeada como base do conhecimento. Correndo o risco de redundância, assinala-se, mais uma vez, que o papel do professor é alterado: de transmissor de conteúdos e centro do processo na Pedagogia tradicional, passando a facilitador da aprendizagem do aluno, que é o centro. No tecnicismo, o professor é um «arranjador» das contingências de ensino. Há muitos incentivos e recompensas às actividades desenvolvidas pelos alunos, levando a uma grande competitividade entre eles. Reduz-se aqui o processo educativo apenas a uma das suas dimensões: dimensão do saber fazer.

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TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS


CADERNO DE RECURSOS

MODELOS PEDAGOGIA CRÍTICO-REPODUTIVISTA

PARADIGMAS

ESPECIFICAÇÕES

A Educação, ao contrário do que pensam as teorias não críticas, reproduz sempre o sistema social onde se insere, reproduz sempre as desigualdades sociais. Seu nome, crítico-reprodutivo, advém do facto de, apesar de perceberem a determinação social da educação (críticas), consideram que esta mantém com a sociedade uma relação de dependência total (reprodutivistas). As teorias crítico-reprodutivistas não possuem uma proposta pedagógica; limitam-se às análises profundas da determinação social da Educação.

Admite que a Educação é determinada pela sociedade onde está situada, mas admite também que as instituições sociais apresentam uma natureza contraditória, donde concede a possibilidade de mudanças. Assim, a Educação pode reproduzir as injustiças, mas tem, também, o poder de provocar mudanças. Dentro desta perspectiva teórica, estamos num movimento que busca resgatar os aspectos positivos das teorias firmadas no quotidiano escolar (as teorias não críticas), articulando-os na direcção de uma transformação social.

PEDAGOGIA SÓCIO-CRÍTICA

PEDAGOGIA CRÍTICA

O carácter do processo educativo essencialmente reflexivo implica constante acto de desvelamento da realidade. Funda-se na criatividade, estimula a reflexão e a acção dos alunos sobre a realidade. A relação professor/aluno é democrática, baseada no diálogo. Ao professor cabe o exercício da autoridade competente. A teoria dialógica da acção afirma a autoridade e a liberdade. Não há liberdade sem autoridade. O ensino parte das percepções e experiências do aluno, considerando-o como um sujeito situado num determinado contexto social. A educação deve buscar ampliar as capacidades do aluno, considerado sempre num determinado contexto social. A educação desenvolve as capacidades do aluno para detectar problemas reais e propor soluções originais e criativas. Objectiva, também, desenvolver as capacidades do aluno para fazer perguntas relevantes em qualquer situação e desenvolver habilidades intelectuais, como a observação, análise, avaliação, compreensão e generalização. Para tanto, estimula a curiosidade e a atitude investigadora do aluno. O conteúdo parte da situação presente, concreta. Valoriza-se o ensino competente e crítico de conteúdos como meio para preparar os alunos para uma prática social transformadora. A educação é entendida como processo de criação e recriação de conhecimentos. Professor e aluno são considerados sujeitos do processo ensino-aprendizagem. A apropriação do conhecimento é também um processo que exige trabalho e disciplina. Valoriza-se a problematização, o que implica uma análise crítica sobre a realidade-problema, desvelando-a. É ir além das aparências, entendendo o real significado dos factos. Visa a emancipação dos sujeitos a partir de suas aprendizagens.

TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS

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CADERNO DE RECURSOS

Do ponto de vista da Psicologia Todas as ciências agregadas à Psicologia tomaram rumos diferenciados, redefiniram conceitos básicos e propuseram amplas abordagens sobre a vida humana. Em termos da relação que os sujeitos estabelecem com os objectos do conhecimento, a Psicologia apresenta três grandes paradigmas: a) Empirismo e do Comportamentalismo. O comportamentalismo está inserido na tradição das investigações empiristas em psicologia e pressupõe que a aprendizagem é a mudança de comportamento resultante do treino ou da experiência, como o meio que determina o sujeito. Na base destas duas propostas está a concepção de que o objecto é apreendido pelo sujeito. b) Aprendizagem Significativa. Esta corrente assenta na proposição de que o sujeito já possui esquemas prévios de conhecimento do objecto de aprendizagem. Para que a aprendizagem se efective é preciso que o sujeito aja sobre os objectos de conhecimento, atribuindo-lhe um significado próprio para o interiorizar. Neste sentido, o conhecimento é anterior à aprendizagem. Esse conhecimento constitui-se como um ponto de ancoragem onde as novas informações se irão integrar, modificando e reestruturando as suas estruturas cognitivas, criando condições conceptuais para a realização de novas aprendizagens e para a resolução dos problemas que a vida coloca. Ausubel, o percursor da Aprendizagem Significativa, reconhece a necessidade e a inevitabilidade de recorrer a processos mecânicos de aprendizagem, face a conceitos inteiramente novos para o aprendente, que posteriormente deverão ser transformados em elementos significativos. Para consubstanciar e agilizar esse processo Ausubel propõe o recurso a «organizadores prévios», considerados âncoras criadas com a finalidade de preparar a estrutura cognitiva, que, através da abstracção, permitem interligar conceitos aparentemente não relacionáveis. Segundo Ausubel, para que ocorra um processo significativo de aprendizagem é necessário que: – O conhecimento a ser apreendido seja potencialmente significativo, isto é, seja relacionado com os saberes prévios do indivíduo. Perante a necessidade de introduzir na aprendizagem «novos saberes ou conceitos», então estes terão de ser tornados significativos através de «organizadores prévios». – Recorra a um conteúdo mínimo presente na «estrutura cognitiva» do indivíduo, com âncoras suficientes para satisfazer as necessidades relacionais. – O aprendente revele uma disposição para relacionar saberes e não simplesmente para os memorizar mecanicamente, estratégia cognitiva muito comum em estudantes habituados a métodos de ensino e de avaliação repetitivos e rigidamente padronizados. Então, muitas vezes, em processos de aprendizagem é preciso engendrar uma reconciliação integrativa entre os «velhos» e os «novos» conceitos. c) Construtivismo e Interaccionismo. O sujeito age em interacção com o objecto, apreende-o e aprende sobre si próprio. Há uma inter-relação com vista ao conhecimento. Este posicionamento associa-se ao construtivismo e ao interaccionismo.

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TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS


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Para o construtivismo o conhecimento é construído, na sua forma e conteúdo, por um processo de interacção entre o sujeito e o meio, processo desencadeado pela actividade do sujeito e estimulado pelo meio. Pode-se afirmar que o construtivismo proposto por Piaget se insere numa posição integradora entre o empirismo e o racionalismo, pois, para ele, o conhecimento depende de construções sucessivas com a elaboração de estruturas novas, numa linearidade evolutiva. Se, por um lado, o construtivismo se apresenta como uma perspectiva de carácter epistemológico cuja base é a percepção de que o ser humano, ser cognitivo, desenvolve a sua inteligência reelaborando estruturas mentais hierarquicamente construídas, por outro, como forma de superar esta postura, o interaccionismo propõe a mediação como o elemento desestruturante e possibilitador do sujeito, em interacção com outros sujeitos, utilizando a linguagem para produzir saberes. O interaccionismo pressupõe que o indivíduo interioriza a cultura, a natureza, tornando-se cada vez mais autónomo e capaz de utilizar a linguagem em benefício da produção do seu conhecimento. A linha divisória entre esta terceira concepção e as anteriores reside no aspecto caracterizador da relação do sujeito com o objecto de conhecimento. Nas duas primeiras, o objecto é o ponto de convergência; o sujeito age no intuito de obter o conhecimento relacionando-se com esse objecto. Na terceira concepção, insere-se a acção e a linguagem como formas de produção do conhecimento. A linguagem gera, sobretudo, uma mudança na concepção da aprendizagem, pois passa-se de uma ideia de unidade, de pensamento e saber único, para a possibilidade de se recriar o saber e até mesmo o objecto a ser conhecido por meio da linguagem.

TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS

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Quadro-síntese dos modelos inscritos pela Psicologia

APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA

EMPIRISMO E COMPORTAMENTALISMO

MODELO

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CARACTERÍSTICAS

Esta concepção de formação assenta numa epistemologia positivista e na Psicologia comportamentalista. Neste sentido valoriza a dimensão tecnicista do ensino. A formação tende a reduzir-se a um conjunto de técnicas que o professor deve adquirir e aplicar no processo de ensino-aprendizagem dos alunos. O sucesso do professor é medido pelo domínio destas técnicas. Está subjacente a este paradigma a ideia da educação como uma ciência aplicada. O professor é visto como um simples executor de leis e princípios do ensino eficaz que foram concebidos e experimentados por especialistas. Numa perspectiva ideológica, esta formação, ao centrar-se nas técnicas de ensino e ao naturalizar a sua natureza, acaba por confirmar o contexto educacional e social vigente. O comportamentalismo está inserido na tradição das investigações empiristas em Psicologia e pressupõe que a aprendizagem é a mudança de comportamento resultante do treino ou da experiência, já que é o meio ou o objecto que determina o sujeito.

Em relação ao aprendente – Consideração das estruturas cognitivas preexistentes a partir das quais se estabelece a realização de novas experiências de aprendizagem, assim como dos conhecimentos anteriores relevantes para a nova informação. – Motivação que se gera entre duas dimensões: uma afectiva/emocional (vontade de aprender, autoconceito e auto-estima) e outra cognitiva (aprender através de sentidos e significados). A conjugação de ambas as dimensões favorece a motivação intrínseca. Em relação aos conteúdos Organização numa lógica significativa ou epistemológica; estrutura lógica organizada pela coerência, clareza, organização, não arbitrariedade, articulação; linguagem clara e adequada à compreensão do formando; metodologia facilitadora da atribuição de sentidos e significados, partindo do conhecido e do próximo para o mais estranho e distante, indo do saber contextualizado e simples para o mais abstracto e complexo. Em relação às actividades Intensa actividade interna e externa, construção de significados, desenvolvimento de estratégias cognitivas e metacognitivas, processos individuais e interactivos: valor pedagógico do erro, atitude investigativa e científica, aprendizagem colaborativa e crítica, contextualização das actividades e das experiências educativas. Em relação à avaliação: auto e heteroavaliação com devolução da informação; ajudar auto-reflexão sobre o processo e percurso de aprendizagem.

TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS


CADERNO DE RECURSOS

(continuação) MODELO

CARACTERÍSTICAS

CONSTRUTIVISMO

O conhecimento é construído, na sua forma e conteúdo, por um processo de interacção entre sujeito e meio, processo activado pela actividade do sujeito e estimulado pelo meio. Inscreve-se, por isso, numa concepção complexa e ecológica da realidade e da aprendizagem. Para ele, o conhecimento depende de construções sucessivas com a elaboração de estruturas novas, numa linearidade evolutiva, implicando estratégias de investigação, numa perspectiva de «educação e formação ao longo da vida». O construtivismo apresenta-se com uma perspectiva de carácter epistemológico cuja base é a percepção de que o ser humano, ser cognitivo, desenvolve a sua inteligência reelaborando estruturas mentais hierarquicamente construídas.

INTERACCIONISMO

Visão crítica e social dos processos de formação e aprendizagem, concebida como projecto aberto e flexível construído por processos de reflexão, investigação e experimentação.

O interaccionismo propõe a media o como o elemento desestruturante e possibilitador do sujeito, em interacção com outros sujeitos, utilizando a linguagem para produzir saberes. O interaccionismo pressupõe que o indivíduo interioriza a cultura e a natureza, tornando-se, progressivamente, mais autónomo e capaz de utilizar a linguagem para a produção do seu conhecimento.

TEXTO 7 PARADIGMAS E MODELOS PEDAGÓGICOS

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TEXTO 8 «SER ADULTO»: ALGUNS ELEMENTOS PARA A DISCUSSÃO DESTE CONCEITO E PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE «ADULTOS»

NILCE DA SILVA (Professora-Doutora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Brasil)


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O presente artigo pretende discutir o conceito de adulto contrapondo-se à ideia de que tal período da vida constitui-se num «ideal» a ser alcançado pelas crianças. Neste sentido, a teoria sobre as etapas do desenvolvimento infantil de um dos principais psicólogos do século XX, o suíço Jean Piaget, é nossa importante interlocutora. Ao seu lado, contaremos com as críticas feitas por Pierre Furter a respeito da idealização em torno do «ser adulto», e também com dados que colectamos durante a nossa pesquisa de doutoramento a respeito do processo de formação de (i)migrantes. Entendemos o adulto como um ser humano que enfrenta inúmeros percalços durante a sua vida, que apresenta instabilidades na conduta e no seu modo de ser. Finalmente, apresentaremos uma definição de adulto, sobretudo em situação de mudança de vida, respaldada na figura mítica do deus Janus, o deus da Porta, já que este se apresenta como uma eterna passagem de um estado a outro, nunca abandonando o presente, nem mesmo abraçando o futuro, e assim, a idade cronológica de um ser humano e o seu respectivo envelhecimento não conseguem definir por si só o que é um adulto ou uma criança. Podemos falar apenas de «momentos de vida» que são experimentados pelas pessoas, alguns mais próximos do ideal de adulto que é veiculado na nossa sociedade, outros, mais próximos da criança, inclusive do lactente.

Contribuições de Jean Piaget: um diálogo necessário Para dialogarmos com Piaget, teórico consagrado mundialmente por suas descobertas e afirmações a respeito do desenvolvimento humano, sobretudo nos seus aspectos cognitivos, recorremos ao livro Seis Estudos de Psicologia, pois o mesmo apresenta claramente as etapas do desenvolvimento do ser humano, a saber: a) Recém-nascido e o lactente; b) A primeira infância; c) A criança: dos 7 aos 12 anos; e finalmente, d) O adolescente. Ao estudarmos as etapas na teoria piagetiana – do lactente até o adolescente – entendemos, em linhas gerais, que as características de cada uma delas não diferem das características que constituem os seres humanos, homens e mulheres dos nossos dias na sociedade ocidental, em situação de mudança de vida, independentemente da idade cronológica que estes possuem. Ou seja, as operações cognitivas, os desejos, as afeições apontadas por Piaget, do recém-nascido ao adolescente, fazem parte do funcionamento mental dos «adultos». Sendo assim, ousamos dizer que a chamada idade adulta, longe de ser um período de gozo da aprendizagem, de equilíbrio e de estabilidade emocional, é composta por inúmeras situações que levam uma pessoa a agir, a pensar, a decidir de diferentes modos que podem ser extremamente parecidos

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com o modo de um bebé chorar pela mãe ausente, de uma criança de 6 anos que pensa que a Lua a acompanha, ou ainda com a maneira destemida como um adolescente enfrenta a autoridade. Ou seja, afirmamos que não é o número de anos de uma pessoa que define como ela pensa ou age; é a situação posta pela vida, é a experiência que está a ser vivida, é o modo de conceber a realidade que definirão o modo de ser e fazer de um sujeito.

O recém-nascido e o lactente Neste sentido, com relação ao primeiro período da vida do ser humano, recém-nascido ou lactente, Piaget afirma que ocorre a aquisição da linguagem; a formação de um conjunto de hábitos motores novos; a construção de esquemas de acção e a evolução do espaço prático. Além disso, para ele, o bebé experimenta sentimentos elementares de alegria e tristeza, de sucessos e fracassos etc., em relação às pessoas e às coisas, originando daí os sentimentos interindividuais. Esta construção do «objecto», exterior ao bebé, pois faz parte da realidade, refere-se, primeiramente, à pessoa da mãe, depois ao pai e, em seguida, aos próximos; ou seja, a criança identifica as pessoas como simpáticas e antipáticas neste começo de vida. Obviamente não podemos discordar que estas características se iniciam nos primeiros dias de vida de um bebé, porém as mesmas continuam a existir de modo pleno nas pessoas com 10, 20, 30, 40 anos, tornando-se evidentes em situação de crisis. De acordo com dados que colectamos na nossa pesquisa de campo de doutoramento Falar, Ler e Escrever: Um Estudo sobre o Processo de Formação de Adultos Lusófonos em Situação de Pouca Escolarização, um estudo desenvolvido junto a três grupos de sujeitos (alunos de salas de Educação de Jovens e Adultos na cidade de São Paulo e estudantes brasileiros de pós-graduação em Paris e estudantes lusófonos da língua sueca numa escola para imigrantes em Gotemburgo, como contraponto investigativo), afirmamos que todas estas pessoas, por estarem em situação de inserção numa nova sociedade (que não a sua de origem) encontravam-se em processo de mudança de vida, ou seja, passavam por um «momento-charneira». Estamos falando de: a) aquisição da linguagem falada ou escrita: aprendizagem da variante paulistana da língua portuguesa por migrantes na cidade de São Paulo; aprendizagem do francês e do sueco nas cidades de Paris e Gotemburgo, respectivamente; b) deparavam-se com diferentes equipamentos (domésticos ou não) e para tanto precisavam formar um conjunto de hábitos motores novos; c) construíam esquemas de acção na nova sociedade, evoluindo os seus espaços práticos: aprendiam a mover-se na famosa estação de comboio, metro e autocarro de Paris, a Gard du Nord; aprendiam a andar de bicicleta nas ruas de Gotemburgo; aprendiam a tomar autocarro em São Paulo;

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d) criação de laços afectivos com novas colegas de classe, professores, vizinhos... com pessoas que, diga-se de passagem, demonstram os seus sentimentos básicos de alegria e de tristeza de um modo diferente do seu próprio, ou seja, a forma de demonstrar o afecto re-significava-se; e) reflexão sobre «sucessos e fracassos» na nova sociedade (uma estudante de pós-graduação em Paris, de acordo com o seu depoimento, ao pedir dinheiro para a assistente social do bairro em que morava, pois a bolsa que recebia era insuficiente para se manter, questionava-se ao receber vale-alimentação se tal situação poderia ser vista como fracasso ou sucesso, conforme seu depoimento); f) construção, com relação a pessoas e coisas, de sentimentos interindividuais. E assim, afirmamos que a decisão de (i)migração e os momentos que sucedem a este facto constituem-se como momentos nos quais o modo de actuação se revela extremamente parecido com o primeiro período de vida descrito por Piaget. Ou ainda, analisando, o nascimento de vida de uma criança, desde o nascimento até a idade de 2 anos, afirmamos que ela, tal qual os sujeitos de nossa pesquisa, faz sua primeira (i)migração inserindo-se num mundo desconhecido.

A primeira infância Nesta direcção, em relação à primeira infância (de 2 a 7 anos), a troca e a comunicação entre os indivíduos são a consequência mais evidente do aparecimento da linguagem. Surgem, neste período, segundo Piaget, interessantes fenómenos intrapsíquicos e interpsíquicos. Tal é o caso do «monólogo colectivo» e do «solilóquio» nos quais em lugar de sair do seu próprio ponto de vista para coordená-lo com o dos outros, o indivíduo permanece inconscientemente centralizado em si mesmo. De acordo com o referido pesquisador: «As crianças falam, mas não podemos saber se escutam. Acontece que vários se dedicam ao mesmo trabalho, mas não sabemos se realmente existe ajuda mútua.» (PIAGET, p. 42.) Antes de apresentarmos outras características deste período, colocamos a seguinte questão sobre o «falar para si próprio estando em grupo», e ou o «falar para si, na ausência de outro ser humano»: Não seriam estas atitudes pertinentes à essência do sistema económico da sociedade capitalista em que vivemos? Ou seja, quantas e quantas vezes não somos reconhecidos pelo «outro» e vemo-nos obrigados, tal como inúmeros depoimentos dos participantes da nossa pesquisa indicaram, a conversar connosco e a ouvir como respostas somente aquilo que nos é dito por nossa fala interior? Resgatando uma das situações que presenciamos nas escolas envolvidas na nossa tese, exemplificamos: «Eu falo em sala de aula com ele (o professor) e ele finge que não entende a minha pronúncia» (fragmento de depoimento de uma aluna de pós-graduação em Paris).

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Ainda com relação às características do segundo período de vida do ser humano, segundo o eminente psicólogo suíço, a criança, entre 2 e 7 anos, envolve-se plenamente no «jogo simbólico», categoria que indica o «jogo de casinha» ou «o jogo de bonecas», actividades nas quais se verifica o «faz-de-conta». Neste ponto da exposição, lembramo-nos de uma aluna cabo-verdiana que frequentava a escola sueca para imigrantes em Gotemburgo. Durante as aulas de aprendizagem da língua sueca, ela afirmou-nos que estudava na primeira classe há muitos anos. Ela não fazia a menor questão de aprender, procurava apenas beneficiar da bolsa de estudos concedida pelo governo escandinavo a alunos estrangeiros. Não seria esta situação um jogo de «faz-de-conta», entre tantos outros que conhecemos na vida quotidiana? Outra característica pontuada na obra Seis Estudos de Psicologia, ainda do segundo momento de vida do ser humano é o «animismo infantil». Para as crianças nestas fases de suas vidas, as coisas são vivas e dotadas de intenção. Perguntamo-nos: e os sujeitos da nossa pesquisa não eram adeptos do «animismo adulto»? Respondemos: sim. Recordemo-nos das inúmeras religiões, seitas,, etc., que se disseminam nos dias de hoje, como também mencionemos os amuletos, os fetiches, as superstições e toda a sorte de crendices, cujas práticas têm aumentado significativamente nos dias de hoje. Ressaltamos ainda que, segundo o importante psicólogo suíço, a criança de 2 a 7 anos faz o tempo todo afirmações sem as demonstrar, apresentando rigidez e irreversibilidade do pensamento. Ou seja, constata-se nelas uma intuição pré-lógica. Em sentido semelhante, referimo-nos a uma das mulheres que participaram da nossa pesquisa. Ela fazia pós-doutoramento em Paris e afirmava constantemente, sem o demonstrar, que o seu marido, no Brasil, deveria estar a relacionar-se com outra mulher enquanto ela realizava os seus estudos em Paris. Não estaria esta pessoa pensando e agindo basicamente como uma criança de 4 anos? Finalmente, ainda nesta fase, as crianças utilizam «pseudomentiras», dito de outro modo, mentiras que não são tão mentirosas. Perguntamos: quando Sueli, nome fictício, moradora há dez anos em Gotemburgo, não se lastimava para a sua família pelo incómodo que sentia em relação ao alcoolismo do seu marido, sendo que a família já o conhecia, não estariam, ela e a sua família, compactuando da mesma pseudomentira? Acreditamos que sim.

A segunda infância Ao pensarmos a respeito do terceiro período proposto por Jean Piaget, da infância de 7 a 12 anos, destacamos o nascimento da cooperação e da autonomia pessoal, em oposição à moral intuitiva de heterenomia característica das crianças.

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Ao destacarmos a primeira destas características (cooperação) como elemento para reflectirmos sobre o ideal de «idade adulta» podemos afirmar que, caso ela existisse realmente em alguma etapa do desenvolvimento de muitos seres humanos, eles deixaram-na de lado ao crescerem. Basta observarmos o contexto mundial. Muitos sujeitos da nossa pesquisa constituem-se numa pequena amostra da enorme falta de cooperação existente entre as nações, entre os diversos grupos étnicos. Exemplifico com duas situações nas quais os nossos sujeitos foram testemunhos vivos: a existência de inúmeros angolanos imigrados na Suécia pela ininterrupta guerra civil que destrói este país e, ainda, a situação de miséria que assola boa parte da região nordeste do Brasil, expulsando milhões de pessoas para São Paulo. Questionamos: teriam os homens, ditos adultos, esquecido a cooperação que construíram entre 7 e 12 anos? Assim, em relação à autonomia que os seres humanos adquirem nesta mesma faixa etária, lembramo-nos de dona Aparecida, uma das alunas de ensino supletivo que fez parte do nosso trabalho de doutoramento; ela seguia fielmente as instruções recebidas do pastor da igreja evangélica que frequentava. Perguntamo-nos, onde estaria a sua autonomia?

A adolescência Passemos agora a discutir a adolescência, utilizando mais uma vez as contribuições legadas por Jean Piaget. O autor afirma que neste período da vida, que se inicia por volta dos 12 anos, a criança, ou melhor, o adolescente, crê na omnipotência da sua reflexão. Ele afirma: «Um professor francês, entregando-se à pesquisa discreta e anónima sobre as fantasias dos alunos de uma classe de 15 alunos, encontrou entre os meninos mais tímidos e sérios futuros marechais de França ou presidentes da República, grandes homens de todas as espécies, alguns já vendo as suas estátuas nas praças de Paris, em suma, indivíduos que, se tivessem pensado alto, teriam sido suspeitos de paranóia.» (PIAGET, p. 67.) Seria certo afirmar que, em relação aos «adultos» (i)migrantes da nossa pesquisa, não existem, ou existiram, sonhos grandiosos em suas cabeças? Não chegamos a indagar directamente os sujeitos do nosso trabalho: mesmo assim, sabemos que muito deles, ao emigrarem, tiveram em suas mentes a imagem do Eldorado. Ou ainda, vários deles não sonham com o retorno à sua terra natal numa situação social, com um status muito superior ao da sua partida?

Janus: o símbolo dos «adultos»? Sendo assim, supomos que, em muitas situações da sua vida, classificada inclusivamente como a idade adulta, o ser humano continua a sonhar com o «impossível», mesmo porque o nosso sistema favorece ideologicamente a crença no dom, no mérito e no trabalho permitindo que alguns poucos «vencedores» sobrevivam às armadilhas deste sistema económico e social excludente.

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Segundo Piaget, o adolescente prepara-se para se inserir na vida adulta. Pensamos que com isto ele queira dizer que se prepara para o ingresso na universidade, na busca de profissão, ou ainda na constituição de uma família. Neste ponto da nossa exposição, questionamos: de qual adolescente Piaget nos fala? Com certeza ele não se refere ao menino de 8 anos que trabalha como cortador de cana no Nordeste brasileiro, e muito menos ao supra-escolarizado em língua portuguesa que não consegue o emprego que poderia ter encontrado, tornando-se ama com título universitário nacional em Paris. Feitas estas considerações e na tentativa de alcançar o objectivo deste artigo, perguntamo-nos se existiria de facto um homem adulto, ou seja, um homem que tivesse maturidade, autonomia, cooperação, pensamento lógico... E que não tivesse sonhos extraordinários para o seu futuro, medos inexplicáveis e se considerasse em constante evolução? Respondemos. Não, não existe este homem; existem, sim, fases da vida do ser humano nas quais ele vem a ter o perfil descrito nas quatro etapas do desenvolvimento infantil. Sendo assim, concordamos com Pierre Furter quando ele nos diz na sua obra Reflexão e Educação que o ser humano pode ser definido como um ser inacabado. Assim, acrescentamos que sendo a criança um ser humano, tal como o adulto, o adolescente e o jovem, todos portanto, inacabados, incompletos, em busca da perfeição, não se torna possível denominar, da maneira como tem sido feito, as etapas da vida do Homem do nascimento à morte. Podemos analisar, categorizar, indicar... diversas maneiras de agir, pensar e sentir vivenciadas por qualquer ser humano, isto sem lhes atribuir este ou aquele rótulo que indica apenas um ideal – padrão de normalidade para o adulto e, logo, motivo de discriminações pessoais e neuroses – que nunca vai ser alcançado. Furter afirma também que o homem, por ser inacabado, tende à perfeição. A educação é, portanto, um conjunto de modificações que formam um processo contínuo de formação que só acaba com a morte. Para este pensador, deve-se admitir uma outra concepção de maturidade. Ou seja, não podemos afirmar, como tantos querem e o fazem, que a criança é um ser imaturo que caminha para a maturidade que é alcançada na idade adulta. Podemos dizer que o homem é pré-maturo e que vive em contínuo estado de aprendizagem, de amadurecimento independentemente do tempo biocronológico que não pára. Por isso, a educação de adultos tem sentido. O mesmo continua aprendendo. Não é possível, pois, dividir a vida humana em duas partes distintas: o tempo da aprendizagem (da infância e da adolescência) e o tempo da maturidade, no qual se goza a aprendizagem. Assim, a própria noção de maturidade torna-se indefinida, podendo mesmo desaparecer, segundo certos autores, dando lugar à

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noção de maturação contínua. Sendo assim, ainda segundo Furter, o adulto é, também, um ser aperfeiçoável, perfectível, mesmo dentro dos seus limites e limitações e a capitalização das suas experiências impõem-lhe a possibilidade de modificar o seu futuro em busca do equilíbrio. Sabemos também que, ao longo da história do Homem, tem-se feito uma associação estreita entre o avançar da idade e o declínio das forças. Hoje, esta relação tem sido discutida, pois sabemos que, com o desenvolvimento da Gerontologia, abrem-se perspectivas novas para o homem em cada idade, ou seja, novas possibilidades de realização e aperfeiçoamento. Portanto, a concepção tão comum de «oslerismo», segundo a qual a velhice é forçosamente uma degenerescência, deve ser eliminada por ser uma visão pessimista a priori e não científica do curso da vida humana. Em suma, o homem é um ser que aparece imperfeito e inacabado no mundo. O seu destino, pela sua história pessoal, é ascender à plenitude. Sendo assim, não há possibilidade de definirmos «ser adulto». Podemos apenas falar em «momentos de vida» aos quais respondemos desta ou daquela maneira. Podemos, em contrapartida, recorrer aos nossos sujeitos, migrantes especialmente nordestinos em São Paulo. Eles teriam poucas possibilidades de vida digna nos seus locais de origem. Por isso, ou continuariam explorados em trabalhos insalubres, sem vínculo profissional e de baixa remuneração, os colectadores de sisal no interior da Baía, vendo os seus filhos na mesma situação, ou partiriam em busca de um espaço nesta Terra, emigrando, por exemplo, para São Paulo. Desta forma, não podemos ignorar esta situação, e portanto, apontamos o factor económico como uma das principais causas dos movimentos migratórios, não a única mas a fundamental. Assim, para os migrantes com pouca ou nenhuma escolarização em língua portuguesa, que se casaram com suecos para obterem a permissão de emigrarem, o factor económico, a luta pela sobrevivência no quotidiano, é mola expulsora destas pessoas das suas terras. Já em relação aos brasileiros em Paris, o factor económico, pelo menos entre os nossos entrevistados, não foi o motivo principal que os levou a deixarem o Brasil. Destacamos a ditadura brasileira no final dos anos 70 e, ainda, a possibilidade de estudos no exterior. Sendo assim, recorremos à figura mítica do deus Janus como símbolo da situação vivida por nossos sujeitos, (i)migrantes em situação de inserção. Tal personagem mitológica possui duas faces, uma que olha para o passado com suas perdas e rupturas decorrentes da migração, e outra olhando para o futuro, cheio de riscos e perigos desconhecidos. Acrescentamos ainda à rede de significações que pode ser atribuída a esta imagem que o (i)migrante apresenta na interacção uma face no local onde chega e outra, diferente, para o seu lugar de origem. Na primeira, a expressão facial é de pessoa cordata, submissa; já na segunda, a face é do vencedor, do corajoso; uma face de opressor, outra de oprimido. Sendo assim, a peça de bronze de 9,4 cm de altura que permaneceu na mesa de trabalho de Freud durante os últimos anos da sua vida é essencial para a nossa reflexão. Tratava-se de um balsamário etrusco do século II a. C., composto por uma cabeça de

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duas faces, uma masculina e outra feminina, representando a unidade clivada pela dualidade. Ou ainda a cabeça de Janus feita de pedra que ele possuía em 1899, deus romano representando igualmente a dualidade nas suas mais diversas formas – o belo e o feio, o novo e o velho, e, mais essencialmente, o masculino e o feminino – pode ser considerado um símbolo da constituição do ser humano desde a mais tenra idade até os últimos de dias de sua vida.

BIBLIOGRAFIA FURTER, Pierre, Educação e Reflexão, 5.ª edição, Petrópolis, Editora Vozes Limitada, 1978. PIAGET, Jean, Seis Estudos de Psicologia, 14.ª edição, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1986. SILVA, Nilce da, Falar, Ler e Escrever: Um Estudo sobre o Processo de Formação de Adultos Lusófonos em Situação de Pouca Escolarização, São Paulo, Tese de doutoramento, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo 2002. In www.ipv.pt/millenium/millenium29/35.pdf

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TEXTO 9 MATURIDADE

In www.pnlnet.com/soluciones/personal/etapas/madurez


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Na maturidade, o ser humano alcança o seu momento de máximo desenvolvimento intelectual e emocional. A vida é um processo de maturação constante. De meninos somos uns seres plenamente dependentes de nossos pais, mas conforme vamos crescendo vamos sendo, cada vez mais, independentes em todos os sentidos. Este processo de independência está intimamente ligado à nossa maturidade. Como todos sabemos, chegar a ser um adulto não depende só do passar do tempo. Não é uma questão de idade, já que todos conhecemos pessoas com idade adulta mas que continuam a ser meninos na maioria dos seus comportamentos e, no caso contrário, também conhecemos meninos que, pelas circunstâncias que lhes coube viver, amadureceram prematuramente e têm comportamentos de adulto. Existe uma série de características que distinguem um adulto de um menino. Fundamentalmente trata-se de uma questão de responsabilidade. O adulto é plenamente responsável por todos os seus actos e pelas suas decisões, tanto as erradas como as acertadas. O adulto não deve ter medo dos seus fantasmas, dos seus desejos, dos seus sonhos, dos seus poderes, da sua pessoalidade ou da sua própria sexualidade. A pessoa adulta não se sente em dívida com ninguém, nem pensa que ninguém lhe deva nada. Está cómoda no espaço que os outros lhe reservaram, com os limites que os outros lhe impõem e que impõe aos outros. O ser adulto sente-se livre e satisfeito pelos seus actos. Não lhe importa romper as regras que outros tentaram impor-lhe como unicamente válidas. Sabe transgredir em tudo aquilo que pensa que não é justo ou lícito. Actua livremente, aceitando livremente os limites lógicos da sua liberdade e da dos outros. O adulto valoriza a sua integridade, mas não procura impô-la aos outros. O adulto recusa querelas inúteis porque sabe que não lhe trazem nada, que são uma perda de tempo e energia. É capaz de afrontar qualquer problema com serenidade, porque sabe que o verdadeiro poder está unicamente em suas mãos. Não tenta encontrar desculpas fáceis que lhe permitam escapar às suas responsabilidades. Não espera a ajuda dos outros, ainda que se esta se produz sabe reconhecê-la e agradecê-la.

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TEXTO 9 MATURIDADE


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O adulto pode aceitar o valor de qualquer pensamento que se lhe apresente. Qualquer actividade ou percepção desta vida é flexível, mutável, adaptável. Não é rígido nem inflexível com os outros ou consigo mesmo. Está aberto a novas experiências, a novas opiniões e todas são igualmente respeitáveis, ainda que compartilhem umas e outras não. O ser adulto também vive com benevolência os seus próprios erros. Permite-se uma margem para não ser perfeito, para se equivocar, para rectificar. Sabe que não é perfeito nem competente em todos os campos. Admite seus erros ou equívocos sem que isto lhe cause dor. O adulto deve estar disposto à mudança, no sentido amplo da palavra. A realidade é cambiante e tudo, incluídas as circunstâncias pessoais de cada um, são susceptíveis de ser alteradas. O ser adulto ama a vida, ama os outros e, porque não, também sabe amar-se a si mesmo.

TEXTO 9 MATURIDADE

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TEXTO 10 A VIDA ADULTA: UMA VISÃO DINÂMICA

Rui Manuel Moura (1999)


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A vida adulta é entendida muitas vezes como uma fase de estabilidade, sendo mesmo essa estabilidade apresentada como uma característica de maturidade. No entanto, a literatura mais relevante sobre a vida adulta mostra, ao invés, que esta fase é marcada por várias transições e transformações. Assim, ao longo deste artigo procura-se apresentar uma síntese da investigação sobre esta etapa da vida abordando os ciclos de vida, as perspectivas de desenvolvimento, e o processo de maturação do indivíduo. Assim, procura-se contribuir para um melhor conhecimento desta temática, como também para um maior interesse pela investigação nesta área.

Introdução […] Apesar da situação marginal para que a educação de adultos foi relegada nas diversas políticas educativas, assiste-se hoje em Portugal a um reflorescimento da investigação neste campo (Canário, 1999). Em diversas instituições do ensino superior a integração desta área nas Ciências da Educação é uma realidade, a nível do ensino e investigação aos mais diversos níveis: licenciatura, cursos superiores de estudos especializados, mestrados e doutoramentos. Esta situação concorre para uma maior afirmação da educação de adultos no campo do ensino e da investigação, permitindo o florescimento de núcleos e equipas dedicadas à abordagem deste campo. É nesta linha contributiva, de promoção da investigação e conhecimento da área da educação de adultos, que se insere este artigo. Neste sentido, procura-se apresentar alguns dos estudos mais importantes sobre esta etapa, estudos esses que apresentam uma visão dinâmica desta fase da vida: fases do ciclo de vida, perspectivas de desenvolvimento, processo de maturação. A primeira percepção que se pode ter acerca da vida adulta é de que ela corresponde a uma época estável, sem grandes mudanças. As transformações físicas mais evidentes efectuaram-se no período da adolescência, tendo também nesse mesmo período o indivíduo «construído» a sua própria identidade. Assim, nesta perspectiva, a vida adulta é uma etapa de estabilidade, onde a personalidade do indivíduo não sofre alterações. O adulto é concebido como alguém que sente adversidade pela mudança, onde o ditado português «burro velho não aprende línguas» confirma a ideia generalizada de que este não está disposto a efectuar grandes alterações e, em particular, não está inclinado para novas aprendizagens. No entanto, a literatura tem desde há bastante tempo acentuado que o facto da idade adulta não ser de forma alguma uma etapa de estabilidade e imutabilidade. A nível cognitivo, diversos autores consideram que o pensamento formal não é o último estádio de desenvolvimento cognitivo. Piaget deu bastante ênfase à lógica matemática na resolução de problemas, considerando essa capacidade lógica como necessária e inerente ao pensamento formal. No entanto, verifica-se que a cognição na vida adulta está muito mais ligada a questões pragmáticas da vida real, e que os adultos geralmente procuram aprender de forma a

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resolver problemas da sua vida quotidiana. Assim, é necessário considerar que a cognição na vida adulta «conhece» outro tipo de operações para além das operações formais: as operações pós-formais. A discussão neste campo consiste na exploração do que constitui «as operações pós-formais»; isto é, a actividade cognitiva após o estádio de operações formais identificado por Piaget como o fim do desenvolvimento intelectual na infância e adolescência. O pensamento dialéctico é descrito como a forma de pensamento adulto pós-formal no qual os modos de pensamento universal e relativo coexistem. A sua essência é a contínua exploração das inter-relações entre regras gerais e necessidades contextuais. A exploração das contradições e discrepâncias entre o geral e o particular é visto como uma oportunidade para o desenvolvimento pessoal (Brookfield, 1998, p. 292).

Assim, as operações pós-formais na vida adulta acentuam o pragmatismo na resolução de problemas da vida real, a possibilidade de múltiplas soluções, a coexistência entre a relatividade do pensamento (contextualidade) e a universalidade do mesmo (regras gerais). O raciocínio do adulto não segue a lógica formal, sendo, por isso, contextualizado, apresentando, consequentemente, flexibilidade cognitiva. Desta forma, o raciocínio dialéctico (raciocínio que tem em conta a contextualidade e as regras gerais) é fundamental na interpretação nas experiências do indivíduo adulto dirigindo a sua acção. As mudanças ao longo da vida adulta não se limitam apenas ao nível cognitivo, tornando-se necessário conceber esta etapa como um período evolutivo. A vida adulta é percepcionada como a fase em que o indivíduo atinge a maturidade. No entanto, tal não significa que a maturidade seja algo de estático, sendo «adquirida» mal o indivíduo atinja a idade adulta. Diversas correntes epistemológicas (corrente progressista, corrente behavorista, corrente humanista, corrente crítica, corrente construtivista) têm bastante influência na análise desta etapa, significando tal facto que não existe uma visão unívoca e singular desta. Desta forma, procurar-se-á descrever as diversas perspectivas acerca das transformações que acompanham o indivíduo na fase adulta.

Fases do ciclo de vida Jovem Adulto 1. Entrada no mundo adulto (22-28 anos) 2. Transição dos 30 anos (28-33 anos) 3. Estabilização (33-40 anos) Meia Idade 1. Transição para a meia idade (40-45 anos) 2. Entrada na meia idade (45-50 anos) 3. Transição dos 50 anos (50-55 anos) 4. Culminar da meia idade (55-60 anos) Velhice 1. Transição para a velhice (60-65 anos) 2. Velhice

A investigação ligada ao estudo do ciclo de vida «está interessada nas respostas que as pessoas criam em relação à idade e mudanças das expectativas sociais à medida que avançam através das fases da idade adulta» (Cross, 1984). Não se trata de uma perspectiva de desenvolvimento, pois estas fases do ciclo são concebidas de uma forma horizontal, sucedendo umas às outras, não sendo necessariamente melhores que as anteriores. Assim, esta perspectiva acentua o facto de se poderem identificar períodos de transição e mudança na vida da pessoa, estando esses períodos ligados não só à idade do indivíduo, como também às expectativas sociais que envolvem o mesmo.

Levinson (1974, 1978) considera que a vida adulta é marcada por períodos de estabilidade e transição. Aos períodos de transição sucedem-se momentos de integração, a que correspondem mudanças na estrutura do indivíduo, ou seja, na forma de ele se ver a si próprio, o mundo e os

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outros. Nestes períodos de transição na vida da pessoa, os papéis (casamento, nascimento de filhos, divórcio, viuvez, etc.) que o indivíduo assume têm crucial importância. A relevância dos papéis ou tarefas específicas, prende-se não só com a forma como o indivíduo encara esses mesmos papéis, mas também pelas expectativas sociais acerca dessas mesmas tarefas. Segundo este autor, a vida do indivíduo é constituída por alternância entre estruturas estáveis e momentos de transição, podendo estas estruturas ser representadas por faixas etárias (cf. quadro). […] Weathersby (1978) considera que as diversas fases do ciclo de vida são «despoletadas» por acontecimentos marcantes (casamento, ser pai, entrada dos filhos na escola, etc.) e pelas novas tarefas que o indivíduo tem de assumir (olhar-se como adulto, procura de estabilidade e segurança, confrontar a mortalidade, etc.). A tensão criada pelos papéis e novas tarefas que o indivíduo tem de desempenhar geram uma situação de conflito entre as capacidades do indivíduo e a exigência dos novos papéis/tarefas. McClusky (1986) afirma que a mudança na vida adulta é marcada por períodos críticos: Estes períodos são caracteristicamente produto de experiências decisivamente importantes para as pessoas envolvidas durante as quais podem ocorrer mudanças marcantes nos papéis sociais e no sentido das relações interpessoais. Entrada no mundo do trabalho, progressão na carreira, transferência de trabalho, desemprego podem representar uma categoria destes acontecimentos. Casamento, o nascimento de uma criança, a morte de um dos cônjugues […] ilustram uma outra categoria (p. 161).

Diversos autores acentuam a importância destes acontecimentos como momentos por excelência em que o adulto está mais «disponível» para efectuar novas aprendizagens, pois necessita de dar resposta aos novos problemas que se lhe colocam na sua vida quotidiana. Brookfield (1987) afirma que estes acontecimentos podem ser de duas ordens: positivos ou negativos. Os acontecimentos positivos são aqueles que levam o indivíduo a novas formas de pensamento, em circunstâncias agradáveis. Os acontecimentos negativos obrigam o indivíduo a confrontar-se consigo próprio, sendo eles motivo de novas aprendizagens. Para Smith (1988), estes acontecimentos «permitem aos adultos explorar os seus significados e valores pessoais e transformá-los de forma a torná-los mais congruentes com a realidade». Riverin-Simard (1984) interessou-se pelo estudo do curso da vida profissional dos adultos, utilizando a abordagem dos ciclos de vida. Uma das principais conclusões é a de que, durante a sua vida profissional, o adulto vive estados de permanente questionamento. «Os momentos de questionamento não são momentos de excepção na vida adulta; pelo contrário, situam-se constantemente no centro quotidiano da vida no trabalho.» Assim, são apresentados três grandes períodos durante a vida profissional: 1) o primeiro é o período de entrada e exploração no mundo do trabalho, onde o indivíduo se dá conta da grande distância existente entre as aprendizagens escolares e as que são requeridas para a prática profissional (20-35 anos); 2) o segundo período é caracterizado pelo processo reflexivo do indivíduo acerca do seu percurso profissional ajudando-o a definir o seu próprio caminho pessoal (35-50 anos); 3) no terceiro período o adulto procura criar as condições para uma retirada proveitosa do mundo trabalho.

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Ao longo destes três períodos, o adulto vai atravessando nove etapas que se alternam segundo um ciclo de questionamento e estabilização: a vida adulta é, pois, caracterizada por um constante dinamismo.

Estádios de desenvolvimento Se na perspectiva das fases do ciclo de vida acentua-se uma sequência horizontal, onde as diversas fases não são apresentadas como um crescimento para a maturidade ou sabedoria, a investigação dos estádios de desenvolvimento apresentam uma progressão de níveis numa linha vertical, ou seja, cada estádio é qualitativamente melhor e superior ao que lhe antecede. Esta perspectiva considera que o indivíduo está em crescimento contínuo, desde formas simples de vida até formas mais complexas, ou seja, da imaturidade até à maturidade. Erikson (1963, 1976) dedicou-se ao estudo do desenvolvimento da personalidade, tendo o seu trabalho tido uma grande influência e impacto nos estudos posteriores do desenvolvimento humano. Para este autor o desenvolvimento da personalidade prolonga-se ao longo da 1. Intimidade versus isolamento vida, interessando apenas na abordagem deste trabalho os estádios da personalidade na vida adulta (cf. quadro). Cada uma 2. Generatividade versus estagnação das etapas, ou estádios, «relaciona-se sistematicamente com 3. Integridade versus desespero todos os outros e todos eles dependem do desenvolvimento adequado na sequência própria de cada item». Cada fase é caracterizada por uma crise psicossocial a qual é baseada no crescimento fisiológico, bem como nas exigências colocadas ao indivíduo pelos outros (pais e/ou sociedade): «Cada um chega ao seu ponto de ascendência, enfrenta a sua crise e encontra a sua solução duradoura pelos métodos aqui descritos, ao atingir a parte final das fases mencionadas.» A primeira etapa que marca o início da vida adulta é a crise da intimidade. Intimidade significa capacidade de intimidade sexual, pois agora a genitalidade desenvolve-se com vista à maturidade genital (ou seja, íntima mutualidade sexual), mas significa também «a capacidade para desenvolver uma autêntica e mútua intimidade psicossocial com uma outra pessoa», seja na amizade, em encontros eróticos ou em inspiração conjunta. O perigo desta etapa é o isolamento, que significa a incapacidade de correr riscos para a própria intimidade, muitas vezes devido ao medo das consequências dessa mesma intimidade (filhos, responsabilidades familiares, etc.). A verdadeira intimidade só é possível se o indivíduo já tiver desenvolvido a sua identidade (estádio anterior à intimidade). «Se continuarmos o jogo de formulações “Eu sou”, no caso “para além da identidade” teremos de mudar de linguagem. Pois agora o incremento de identidade baseia-se na fórmula “Nós somos o que amamos”.» A etapa da generatividade é a fase da maturidade da pessoa humana. «A generatividade é, pois, de modo primordial, a preocupação em estabelecer e orientar a geração seguinte.» No entanto, o facto de se ter ou

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querer ter filhos não significa automaticamente generatividade. O conceito de generatividade inclui a capacidade de produtividade e criatividade da pessoa na relação consigo própria e com os que a rodeiam. Generatividade significa, pois, capacidade de ir para além dos interesses pessoais, de ir para além das certezas pessoais. O perigo desta etapa é exactamente esse, a que Erikson denomina de estagnação. «Sempre que tal enriquecimento falha completamente, ocorre uma regressão e uma necessidade obsessiva de pseudo-intimidade, por vezes com um difuso sentimento de estagnação, tédio, depauperamento interpessoal.» Finalmente, a última etapa corresponde ao culminar do progressivo amadurecimento da pessoa humana: a fase da integridade. Este crescimento permite ao indivíduo ser capaz de aceitar o seu ciclo vital e daqueles que se tornaram significantes ao longo desse mesmo ciclo. Na integridade, a pessoa não receia encarar todo o seu «caminho percorrido», levando-o a compreender o percurso das pessoas que acompanharam o seu ciclo de vida, «livre do desejo de que eles fossem diferentes, e uma aceitação do facto de que a vida de cada um é da sua própria responsabilidade». O perigo desta etapa reside no desespero: «A sorte não é aceite como estrutura de vida, a morte não como sua fronteira finita.» Assim, o desespero manifesta o facto de o indivíduo sentir que o tempo é demasiado curto para voltar a recomeçar a sua vida com vista a encontrar rumos alternativos para a integridade […]. Abordando o desenvolvimento intelectual do indivíduo que se efectua ao longo da vida, Perry (1970) apresenta um modelo de nove estádios, existindo fases de transição entre cada um destes nove estádios. Este modelo refere uma evolução de formas concretas para formas abstractas de pensamento, de uma forma simplista e unidimensional para perspectivas multidimensionais e complexas de conhecimento, de uma forma de instância externa de autoridade (existindo um dualismo entre a autoridade que tudo sabe e o indivíduo que pouco ou nada sabe) para uma maior autonomia e comprometimento com os valores pessoais na relação com o conhecimento. Grow (1991) e Kaswrom (1992) mostram nas suas investigações que os adultos, em situação de aprendizagem, apresentam diversos níveis ao nível da autodirecção: desde adultos que vivem numa dependência quase total da autoridade externa (professor, instituição educativa), a adultos que são altamente autodirigidos nas suas aprendizagens e na relação com a autoridade. Nesta linha de abordagem do desenvolvimento cognitivo na vida adulta, King e Kitchener (1994) falam da evolução ao nível do raciocínio reflexivo que, segundo as autoras, é caracterizada por sete estádios de desenvolvimento. Os primeiros três estádios correspondem a uma fase pré-reflexiva, onde o indivíduo assume existir a «resposta correcta» para todos os problemas. Os dois estádios seguintes são considerados quase reflexivos: no quarto estádio o conhecimento já é entendido como incerto, não existindo contudo uma discriminação da qualidade das diferentes opiniões individuais; no quinto estádio o conhecimento é considerado subjectivo, existindo a consciência da existência de diferentes perspectivas. Segundo as autoras, apenas os últimos dois estádios são reconhecidos como pensamento reflexivo. Nestes últimos estádios, o indivíduo vê o conhecimento não como algo adquirido e imutável, mas como algo que deve ser activamente construído pelo sujeito, numa relação muito estreita com o contexto em que esse mesmo conhecimento é gerado. No sexto estádio o indivíduo considera que as crenças podem ser justificadas

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através da análise da evidência dos diferentes pontos de vista ou dos diferentes contextos. No sétimo estádio o indivíduo reconhece que as ideias e pressupostos devem ser confrontados com a realidade, podendo esse processo de inquérito ser falível. O conhecimento resulta, assim, do processo de exame racional, podendo ser sempre alvo do escrutínio e criticismo por parte de outras pessoas. Labouvie-Vief (1984) considera que o desenvolvimento do indivíduo é constituído por duas fases principais. A primeira fase, que abrange a infância e a adolescência, consiste na descodificação por parte da pessoa dos automatismos biológicos e na codificação dos automatismos culturais e sociais. A segunda fase, que abrange o período pós-adolescência, caracteriza-se pela capacidade do indivíduo reexaminar as diversas estruturas assumidas na fase anterior. Não se trata meramente de uma rejeição das interdependências pessoais assumidas anteriormente, mas sim o resultado de uma análise dos diversos constrangimentos que envolvem o indivíduo, seja na sua forma de pensar, seja na sua forma de agir. A perspectiva crítica na área da educação de adultos […] observa a necessidade do indivíduo ser capaz de estar aberto a perspectivas alternativas da realidade, tornando assim possível a mudança interna na consciência psicológica. O sujeito tem de ser capaz de reflectir criticamente sobre a sua realidade, que a maioria das vezes é caracterizada por uma aceitação não questionada de valores, normas e práticas definidas pelos outros. Assim, a reflexão crítica leva a pessoa a dar-se conta das pressuposições hegemónicas, que todos consideram como normais e inquestionáveis. É na inter-relação com os outros que ele acede e valida as visões alternativas da realidade […].

I Estádio 0: estádio prémoral II – Nível pré-convencional Estádio 1 – a orientação da obediência e da punição Estádio 2 – a orientação relativa e instrumental III – Nível Convencional Estádio 3 – a orientação para concordância interpessoal de papéis Estádio 4 – a orientação da lei e da ordem IV – Nível pós-convencional Estádio 5 – a orientação legalista do contrato social Estádio 6 – a orientação por princípios éticos universais

(Desenvolvimento moral do indivíduo) Kohlberg (1971) abordou o desenvolvimento moral do indivíduo, tendo apresentado numa sequência hierárquica de seis estádios distribuídos por três níveis (cf. quadro): 1) nível pré-convencional; 2) nível convencional; 3) nível pós-convencional. Este autor segue a perspectiva de Piaget de que o indivíduo, ao nível do raciocínio moral, evolui de um estádio heterómono (estrita adesão a regras e deveres, obediência à

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autoridade, egocentrismo) para um estádio autónomo (capacidade de reflectir sobre as regras de forma crítica, aplicação selectiva destas regras baseado no objectivo do mútuo respeito e compreensão). Contudo, Kohlberg considera que o processo com vista ao alcance da maturidade moral é mais longo e gradual. Para a compreensão do desenvolvimento moral do adulto interessa analisar o modelo de Kohlberg apenas a partir do nível convencional. No nível convencional inserem-se os indivíduos que têm um conhecimento básico da moralidade convencional, considerando que as convenções existentes na sociedade são necessárias para a manutenção da mesma. A atitude destes indivíduos não é apenas de conformidade em relação à ordem social, mas também de lealdade e justificação dessa mesma ordem, ajudando na identificação das pessoas e grupos inseridos nessa mesma ordem social. Este nível de desenvolvimento moral é constituído por dois estádios (o terceiro e o quarto). As pessoas no terceiro estádio definem o que é correcto a partir das expectativas das pessoas próximas de si, e em termos de papéis estereotipados do que representa agir correctamente. Os indivíduos do quarto estádio vão mais além das expectativas das pessoas que são próximas, definindo o que é certo a partir das leis e normas estabelecidas na sociedade. O nível pós-convencional caracteriza-se pelo claro esforço de definir os valores e princípios morais, e a sua aplicação, para além da autoridade do grupo social e da identificação do próprio indivíduo com esses grupos. Assim, os indivíduos neste nível de raciocínio moral rejeitam uma aplicação uniforme das regras e normas. Este nível é também constituído por dois estádios (o quinto e o sexto). No quinto estádio, a pessoa está ciente do relativismo dos valores e opiniões pessoais, pois a maior parte dessas regras são relativas ao grupo a que o indivíduo pertence, existindo, contudo, alguns valores e direitos que não são relativos (por ex.: vida, liberdade) devendo por isso ser respeitados independentemente da opinião da maioria. No sexto estádio, que não foi verificado empiricamente nos estudos de Kohlberg, o correcto é definido pela decisão de consciência de acordo com princípios éticos auto-escolhidos segundo uma lógica de compreensão, universalidade e consistência. Assim, neste último estádio quando as leis violam os princípios éticos, o indivíduo age de acordo com o princípio […].

O crescimento da pessoa humana

Necessidades de auto-actualização Necessidades de estima Necessidades de Pertença e Amor Necessidades de Segurança Necessidades Fisiológicas

Outra percepção acerca do desenvolvimento/ crescimento da pessoa humana advém da corrente humanista. Trata-se de uma corrente que tem uma visão naturalmente positiva acerca da pessoa humana, para a qual o indivíduo tem uma necessidade inata de auto-actualização, autodesenvolvimento e autodirecção. Assim, na análise da maturidade humana, para além das perspectivas do desenvolvimento e do ciclo de vida, é crucial abordar os autores mais relevantes desta corrente, bem como outros autores que os seguem na descrição da maturidade humana. TEXTO 10 A VIDA ADULTA: UMA VISÃO DINÂMICA

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Maslow (1970) observa a importância da gratificação de necessidades na motivação humana. Para este autor, o ser humano é marcado por uma dinâmica crescente de satisfação de necessidades. Estas diversas necessidades não se encontram todas ao mesmo nível, sendo possível estabelecer uma ordem hierárquica entre elas (cf. quadro.), estabelecendo-se a seguinte ordem: necessidades fisiológicas, necessidades de segurança, necessidades de pertença e amor, necessidades de estima, necessidades de auto-actualização. A dinâmica principal que anima esta organização é a emergência, na pessoa saudável, de necessidades menos poderosas a partir da gratificação de necessidades mais poderosas. As necessidades fisiológicas, quando não satisfeitas, dominam o organismo, pressionando todas as capacidades para o seu serviço e organizando estas capacidades para que possam ser o mais eficientes neste serviço. A relativa gratificação submerge-as e permite que o nível seguinte mais elevado na hierarquia surja, domine e organize a personalidade, de forma a que o ser deixe de estar obsessivamente ligado à comida, para se tornar obsessivamente preocupado com a segurança. O princípio é o mesmo para os outros conjuntos de necessidades na hierarquia, isto é, amor, estima, e auto-actualização (p. 59).

Assim, a motivação humana é orientada pela necessidade de gratificação de necessidades. Enquanto os níveis mais baixos de necessidades não forem assegurados, a pessoa não se preocupa com os níveis seguintes da hierarquia, pois está completamente centrada e motivada para a satisfação das necessidades actuais. Esta teoria da motivação humana concebe a pessoa humana em crescimento contínuo, com vista a ser mais, ou seja, à sua auto-actualização. Trata-se de uma evolução rumo à maturidade, mas que não termina no último nível da hierarquia, pois esse último nível, a auto-actualização, pressupõe um movimento contínuo de crescimento e dinamismo da pessoa. Maslow identifica o nível mais alto da hierarquia, ou seja, o processo de auto-actualização, com a maturidade. A maturação do indivíduo apresenta as seguintes características: 1. Maior eficiência na percepção da realidade e relações mais confortáveis com o mesmo. O indivíduo vê a realidade não com os seus olhos e seus preconceitos, mas procura percepcionar a realidade de uma forma aberta. Por isso, está disponível para a novidade e não se fecha numa capa de segurança e defesa perante o desconhecido. 2. Aceitação (eu, outros, natureza). A aceitação de si próprio significa aceitar a sua natureza mesmo com todas as discrepâncias em relação à imagem ideal que deseja e tem de si próprio: «Os nossos sujeitos vêem a natureza humana como é e não como eles preferiam que fosse.» 3. Espontaneidade, simplicidade, naturalidade. A pessoa madura orienta-se por princípios, «sendo o comportamento baseado em princípios fundamentadamente aceites (os quais são percebidos como verdadeiros)». 4. Focalização em problemas. A pessoa madura geralmente não está preocupada com os seus problemas; ou seja, não está centrada em si. «Estes indivíduos têm geralmente uma missão na vida, alguma tarefa para cumprir, algum problema fora deles que ocupa muito das suas energias.» 5. A necessidade de privacidade. Na sequência do aspecto anterior, a relação com os outros não é de forma alguma possessiva e egoísta. A autonomia do indivíduo é caracterizada por «autodecisão, autogoverno, por ser um ser activo, responsável e decidido em vez de ser um mero peão». Trata-se, pois, de pessoas com capacidade crítica, capazes de se distanciarem das opiniões comuns, modas e propaganda.

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6. Independência da cultura e do ambiente. O indivíduo em processo de auto-actualização «não tem a sua motivação dependente das satisfações principais do mundo real [...], em satisfações extrínsecas». Assim, é capaz de enfrentar com serenidade os problemas e as circunstâncias adversas. 7. Novidade contínua nas apreciações. A pessoa em auto-actualização encara todas as coisas com um espírito de abertura e de novidade, evitando assim a rotina, não se cansando das pessoas, coisas e acontecimentos que o rodeiam. 8. Experiência mística. Bastantes indivíduos apresentam alguma preocupação e interesse acerca da última natureza da realidade. Trata-se, pois, do factor religioso na maturidade humana. 9. Sentimento social. As pessoas em processo de auto-actualização sentem uma ligação profunda em relação à existência humana, apresentando «um profundo sentimento de identificação, simpatia e afeição». 10. Relações interpessoais. Os indivíduos maduros são capazes de relações interpessoais mais profundas com poucas fricções, apesar do círculo das pessoas mais chegadas poder ser pequeno. 11. Carácter de estrutura democrática. O indivíduo maduro sente um respeito por todo e qualquer ser humano, não sentindo qualquer reserva em aprender seja com quem for. Assim, aceita toda e qualquer pessoa independentemente de raça, religião, cultura, etc. 12. Distinção entre meios e fins, entre bem e mal. A pessoa madura rege-se por princípios éticos, indo as suas noções de certo e errado, de bem e mal, para além dos padrões convencionais. Por isso, a sua vida não é inconstante nem confusa. 13. Senso de humor não hostil. A pessoa madura possui um senso de humor diferente do comum, não se pactuando com humor que «fere» a pessoa ou que goza com a sua inferioridade. O seu sentido de humor é espontâneo em vez de planeado, e está intrinsecamente ligado à situação em vez de ser adicionado à mesma. 14. Criatividade. A pessoa em processo de auto-actualização vive muito menos constrangida e inibida, dando largas à sua espontaneidade, tornando-se criativa, fazendo as coisas de maneira diferente. Allport (1963), na sequência da perspectiva de Maslow, considera existirem diversos traços que caracterizam a maturidade da pessoa humana. Em primeiro lugar, encontra-se a extensão do sentido do eu, ou seja, a capacidade para sair de si próprio e alargar a fronteira do seu eu aos outros. «A maturidade avança na proporção da descentração da clamorosa imediatez do corpo e egocentrismo.» Isto significa que o indivíduo maduro deve ter preocupação com os outros. Assim, a maturidade implica sair de uma lógica individualista e sectária dos interesses e preocupações pessoais. A pessoa madura tem de ser capaz de se auto-aceitar, evitando reacções extremadas e desproporcionadas, seja em relação a si, seja em relação aos outros: «Aprendeu a viver com os seus estados emocionais de modo a que eles não o levem a actos impulsivos nem interfiram com o bem-estar dos outros.» Para tal, é necessário superar com sucesso as diversas fases do desenvolvimento. A pessoa madura possui, também, uma percepção realista das suas capacidades e tarefas que tem de desempenhar. Assim, o sentido da responsabilidade é importante, pois «a única forma de continuar a vida é ter uma tarefa para completar». Acresce ainda que a pessoa deve ser capaz de auto-objectivação, de discernimento e de humor. Conhecer-se a si próprio é o lema que acompanha o indivíduo maduro, tornando-o capaz de perceber e de rir com as suas incongruências.

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Finalmente, a maturidade pressupõe uma filosofia unificadora da vida. Esta filosofia unificadora de vida pode ser de diferentes ordens: teórica, económica, estética, social, política, religiosa. Rogers (1965, 1971) considera que o desenvolvimento da pessoa é um processo com vista a torná-la totalmente funcional. Na sequência de Maslow, Rogers considera que a pessoa humana tem uma tendência natural para crescer e para se auto-actualizar, não sendo por isso determinada à partida. Este processo de se tornar pessoa está orientado para a direcção positiva da totalidade, integração, integridade e autonomia. Este caminho para a autonomia implica, por isso, em primeiro lugar liberdade. Ser pessoa totalmente funcionante implica ser capaz de liberdade de escolha, assumindo uma nova perspectiva na relação entre liberdade e determinismo: «A pessoa totalmente funcionante […] utiliza a mais absoluta liberdade quando espontaneamente, livremente e voluntariamente escolhe e deseja o que é também absolutamente determinado». A maturação da pessoa envolve também uma forma de estar criativa e não conformista, «pois o indivíduo continua a evoluir em direcção a tornar-se ele próprio, e a agir de forma a providenciar a máxima satisfação das suas necessidades mais profundas». Assim, o indivíduo maduro não está fechado em si próprio, vivendo de uma forma defensiva, estando aberto a um leque muito mais alargado de necessidades (ambientais, sociais, etc.). Desta forma, ele tem um sentimento de confiança na natureza humana, pois à medida que se torna pessoa mais sente a necessidade de abertura aos outros. Este processo implica, por isso, uma maior riqueza de vida, pois «envolve o aumentar e crescer, tornar-se mais e mais nas suas próprias potencialidades. Envolve coragem de ser. Significa lançar-se completamente na corrente da vida».

Considerações finais Torna-se necessário rever algumas pressuposições aceites de forma não crítica de que a vida adulta corresponde a uma fase de estabilidade, onde todo o desenvolvimento do indivíduo foi efectuado durante a infância e adolescência. O processo de maturação não é um processo estático, mas sim dinâmico, de constante construção, auto-actualização: um processo contínuo de se tornar plenamente funcional. A maturação do indivíduo envolve, também, a evolução de uma visão dualista (regras gerais versus contextualidade) para uma concepção do conhecimento, que tem em conta os diversos paradoxos existentes na análise e explicação da realidade, que é por isso contextualizado, estando por isso aberto a outras perspectivas de interpretação: trata-se da capacidade de pensamento crítico e dialéctico. O dinamismo que se verifica na vida adulta está bem patente na investigação sobre os ciclos de vida, nas diversas perspectivas de desenvolvimento da pessoa, bem como na reflexão sobre o processo de maturação da pessoa. Procurou-se ao longo deste artigo apresentar uma síntese da literatura mais relevante sobre a vida adulta. A vida adulta, e em particular a educação de adultos, tem um lugar muito importante na investigação em Ciências da Educação. Pena é que em Portugal este campo esteja ainda relegado para segundo plano na política educativa nacional. Esperemos que o mesmo dinamismo que acompanha a vida adulta venha a ser acompanhado por um dinamismo semelhante na política educativa nacional para a educação de adultos. In www.members.tripod.com/rmoura/vidaadult.htm

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TEXTO 11 VIDA ADULTA EM FORMAÇÃO PERMANENTE: DA NOÇÃO AO CONCEITO

Jean-Pierre Boutinet (pp. 185-206)


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CAPÍTULO 9 A questão da vida adulta encontra-se posta à luz do dia desde a institucionalização da formação permanente em França nos anos 70. É sem dúvida alguma historicamente a primeira vez que surgem questionamentos explícitos sobre o futuro da vida adulta, pelo intermédio da formação. Até então, a vida adulta era abordada apenas de forma episódica ou sectorial pela família, o trabalho, a saúde, ou de forma comparativa em relação à situação da criança. Mas este interesse sobre as questões adultas permanece ainda bastante discreto nos anos de 1995 a 2000. Assim, esse grande regulador dos nossos conhecimentos, constituído actualmente pela Encyclopaedia Universalis constantemente posta em dia, permanece lacónico sobre os adultos, considerando a vida adulta sob uma única entrada, a educação dos adultos, como se a compreensão destes pudesse ser reduzida unicamente à sua educação. Em compensação, na mesma enciclopédia, a infância, a adolescência, a juventude e a velhice são idades da vida muito mais bem tratadas através de diversas entradas. Devemos portanto reconhecer o défice de reflexão ainda actual em torno da vida adulta.

1. A emergência de preocupações em torno da vida adulta É pela actualização da formação permanente durante estes últimos trinta anos que as preocupações em torno da vida adulta vão realizar um aumento progressivo da sua importância. Contrariamente àquilo que havia ocorrido na Alemanha, na Inglaterra e na América do Norte, todos eles países que há vários decénios trouxeram contribuições muito esclarecedoras e variadas sobre uma psicologia da vida adulta1, a literatura científica francesa preocupou-se muito pouco com uma reflexão sobre este lapso de tempo que separa a adolescência da velhice.

1.1. A vida adulta entre lógica educativa e lógica formadora Quando a formação permanente adquire a sua plena legitimidade em 1971, é apenas por oposição que se qualifica como adulta. Com efeito, em vez de situar esta formação em relação aos seus principais destinatários, os adultos, preferiu-se desde o princípio defini-la a partir das formas de temporalidades que devia veicular. A intenção era sem dúvida a de assim evidenciar essa mudança de coordenadas temporais na qual a nossa cultura entrava naquele momento; foi assim que, naqueles anos 70, se preferiu recorrer às expressões formação permanente ou até mesmo contínua em vez de formação para adultos2 para marcar 1

Sobre uma recensão destas diferentes contribuições, cf. entre outros R. Houdé (1986), Les temps de la vie, le développement psychosocial de l'adulte selon la perspective du cycle de vie, Montreal, Gaetan Morin. 2 Uma razão conjuntural desta preferência estava sem dúvida associada à preocupação de não assimilar esta nova formação à instituição AFPA, Associação para a Formação Profissional para Adultos, criada no fim da Segunda Guerra Mundial com preocupações utilitaristas associadas apenas ao mercado de trabalho.

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claramente a oposição com a formação inicial. A utilização destas expressões propunha no entanto colocar uma questão central sobre a ou as lógicas do aprendizado em causa: os adultos aprendem de forma similar ou diferente em relação às crianças? Se esses adultos são assimiláveis nos seus modos de aprendizagem às crianças, então à maneira de B. Schwartz fala-se em educação permanente no sentido de uma educação ao longo de toda a vida, e descuidar-se-á o conceito de formação; se, pelo contrário, se reconhecer uma diferenciação mais ou menos radical nos modos de aprendizagem em função das idades, será mantida então a expressão formação permanente específica da vida adulta do aprendizado que se irá opor à educação inicial das crianças; por esta oposição semântica pretende-se afirmar que os adultos, com o seu capital de experiências já constituído, que podem evocar e reflectir, utilizam lógicas de aprendizado bem específicas. Mas além destes debates metodológicos sobre o acto de aprender, sobre a sua natureza em função de uma mobilização ou não da experiência constituída, existe no fim de contas pouca preocupação quanto a esses destinatários muito singulares que são os adultos. Foi necessária esta progressiva desestabilização da vida adulta gerada pela mutação cultural à qual assistimos há já dois decénios e o surgimento daquilo que, por falta de melhor denominação, podemos chamar de cultura pós-moderna, para que se produza uma reflexão de fundo sobre esta idade vivida a partir de agora como fragilizada. A curta história da formação permanente diurna3 iria aliás mostrar-nos como a instituição formação permanente contribuiu amplamente, de um certo ponto de vista por razões que iremos citar, para este aumento das fragilizações associadas à vida adulta.

1.2. A idade de todas as incertezas Um terço de século depois da institucionalização da educação/formação para adultos, o que podemos dizer deste período da existência de delimitações mal definidas? Embora as produções que lhe estão associadas, em especial no nosso contexto francófono, permaneçam ainda demasiadamente escassas, podemos no entanto reconhecer que hoje em dia a expressão da vida adulta é uma noção que se enriqueceu significativamente em relação àquilo que evocava nos anos 70. De facto, reflectindo sobre o assunto, uma tal noção, uma vez postas de lado as evidências que a fundamentam e que é suposto incarnar, mostra ser de uma grande fecundidade de compreensão. Para justificar esta fecundidade, iremos abordar a vida adulta através de diversas entradas. Essas entradas pelos esclarecimentos complementares proporcionados e os problemas colocados não poderiam deixar as práticas de formação indiferentes aos estagiários concretos aos quais se destinam; esses estagiários deixaram os caminhos da infância, da adolescência e da juventude demarcados por algumas certezas; abordaram através dos seus itinerários adultos regiões inseguras, até mesmo inóspitas, e têm agora como único enquadramento disponível para a sua autonomia uma ou outra

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Retomamos aqui a oposição feita por Gaston Pineau entre formação permanente nocturna, ainda não reconhecida de pleno direito e frequentemente dispensada em cursos à noite, e formação permanente diurna, plenamente institucionalizada pelas leis de Julho de 1971 e que ocorrem doravante em pleno dia. Sobre esta oposição entre estas duas formas de temporalidades, cf. entre outros do autor, Produire sa vie, autoformation et autobiographie, Paris, Édilig, 1983.

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forma de inserção, podendo chegar ao ponto de serem deixados por conta própria sem nenhuma inserção bem identificável. De qualquer forma, devem fazer para o melhor e para o pior uma experiência que devem elucidar para tentarem incessantemente reorientá-la. É neste contexto que passaremos então em revista sucessivamente as questões que nos parecem mais marcantes da situação do adulto hoje em dia.

1.3. Da noção ao conceito de falta: raridade e abundância lexicais O que dizer de uma noção até ainda há pouco em desuso na medida em que evocava espontaneamente a maturidade, a norma, a referência, o modelo, em uma palavra, a idade da evidência, ou seja, uma ou outra forma de tédio? Cada vez que falamos de adulto, estamos na presença de um termo que nos é com certeza duplamente familiar, referindo-se, por um lado, a uma experiência que nos é dado viver por nós mesmos e, por outro lado, a todos esses adultos que evoluem à nossa volta. Adulto, este termo banal, tem na nossa língua o estatuto de qualificativo mas com bastante frequência é complacentemente utilizado como substantivo; originalmente portanto, não nomeia um objecto mas designa um estado, o facto de haver terminado o seu crescimento. Isto permite compreender a razão pela qual faz parte do vocabulário dos biólogos que ao o utilizarem querem caracterizar qualquer organismo, vegetal, animal ou humano, tendo concluído o seu crescimento; adulto opõe-se então a jovem ou infantil (Boutinet, 1998). Só recentemente, por conveniência verbal, quando adulto vai ser aplicado mais especialmente a grupos humanos é que a forma qualificativa se substantivou. Categorizar os adultos permitia, pela utilização de um termo bem identificado, suprir um vazio semântico inquietante; com efeito, as outras idades da vida tinham a sua própria denominação: o bebé, a infância, a adolescência, a juventude, a velhice. Única etapa mediana, a mais longa da existência, aquela que separa a juventude da velhice não tinha termo correspondente para a designar, até ao começo do nosso século xx. O questionamento sobre uma psicossociologia da vida adulta, para além da educação permanente, tão-somente é recente; foi preciso que os psicólogos se libertassem do domínio sobre eles exercido pela infância, a adolescência e depois a velhice para que descobrissem este entre-dois dito da segunda idade; face aos desajustes que afectam a vida adulta, começam a levar a sua atenção sobre esta idade intermediária e bem específica que separa a adolescência da reforma. A idade adulta, tornada subitamente em alguns anos problemática, suscitou aliás uma criação linguística bastante excepcional que buscava preencher um atraso semântico através de neologismos de andragogia, de maturescência, de adultescência, de adultidade, de adultado4, de carreirologia sem falar de antropolescência e de maturidade vocacional. Através de uma tal riqueza lexical súbita, estamos realmente na presença de uma preocupação muito actual: uma desinstitucionalização do curso da vida que podemos observar nomeadamente no desaparecimento dos ritos de passagem e no nivelamento dos patamares de idade vai em alguns decénios conseguir estratificar estatutos, referências, papéis, práticas de iniciação. 4

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Uma armadilha semântica poderia assimilar adultado e adultério pois este último termo refere-se a um comportamento próprio da vida adulta, a violação da fidelidade conjugal; não é este o caso, em absoluto: porque adultério, contracção de ad alter, significa alterar.

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Estamos portanto face a uma efectiva mutação social e cultural do estatuto do adulto, confrontado com uma crise da inserção e da mobilidade, a uma ausência de referências, a um alongamento da existência, a um questionamento da sua identidade. Um tal campo semântico tão prolixo em relação de um único conceito de adulto constitui, apesar das perdas de identidade das quais é o sintoma, um real enriquecimento para caracterizar o indivíduo que atingiu a maior idade.

2. Metamorfoses históricas da vida adulta Consideremos portanto que a noção de adulto conheceu muitas vicissitudes e flutuações: pouco empregada até ao fim do século passado, preferiam-se locuções mais expressivas como idade madura, idade viril, formulando-se assim o carácter profundamente machista da sociedade adulta da época. Durante todo o século XIX, o termo adulto será reservado de facto ao período da pós-adolescência, aquele que correspondia ao fim do crescimento5. Em seguida o ideal puritano e o ideal republicano, apesar das suas aparentes oposições, vão mostrar convergências secretas até ao fim dos anos 50 para conceber o adulto então identificado com a idade da maioridade como a norma de referência; é o referencial a partir do qual as outras idades da vida são apreciadas. Pois bem, no começo dos anos 60, o sociólogo G. Lapassade convida-nos a destruir esta idade-padrão, interrogando-nos sobre a norma adulta (1963). Face às diferentes mudanças sociotécnicas que não cessam de atacar o adulto daquela época, um novo modelo tende a impor-se, centrado já não mais num conceito de acabamento e de completamento, incarnado pelo adulto-padrão, mas sim sobre um conceito do inacabamento e da autonomia. Surge assim um novo adulto, o adulto em perspectiva. A uma lógica unitária, G. Lapassade pretende substituir uma lógica plural. Prefigura um novo período, o da pós-modernidade feito do fim das evidências e do crescimento das interrogações em torno dos adultos. Doravante, o adulto define-se sobre um modo dinâmico através das suas próprias realizações tais como os psicólogos americanos as consignarão no Vocational Development6. Esta perspectiva basicamente optimista do desenvolvimento adulto vai marcar o apogeu da nossa sociedade industrial de produção com o aparecimento nos anos 70 do fosso das gerações tão caro à etnóloga M. Mead (1971): numa sociedade que conhece os seus primeiros sinais de desregulação, os filhos prefigurativos e antecipadores opõem-se aos pais co-figurativos que, eles próprios presos entre duas gerações, se chocam com os seus próprios pais pós-figurativos; este fosso das gerações vai expressar-se 5

Em conformidade com a etimologia do particípio passado adultus, que deixou de crescer, por oposição com o particípio presente adolescens, que está em crescimento, do mesmo verbo adolesco, crescer. 6 Cf. John O. Crites (1969), Vocational Psychology, Nova Iorque, McGraw Hill.

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através de inúmeras perturbações familiares e escolares da época: estará no centro dos trabalhos do sociólogo G. Mendel7. Nos anos 80 vai desaparecer essa oposição entre jovens reformistas e visionários de um lado, adultos preocupados em se adaptarem às novas exigências do tempo presente do outro, antigos guardiães da tradição de um terceiro lado; este desaparecimento ocorrerá com o advento da cultura pós-moderna, que vê a passagem de uma sociedade centrada nos processos de produção para uma sociedade preocupada em valorizar os intercâmbios comunicacionais; esta nova sociedade, através das suas múltiplas informações, dos seus códigos, das suas redes, tende a gerar uma incerteza radical no adulto sobre o seu futuro, uma confusão dos referenciais de identidade; preso num redemoinho de mudanças, sem solução facilmente identificável, o adulto é deixado só face a si mesmo, tendo de enfrentar conflitos, crises, transições. O adulto com problemas vai portanto impor-se cada vez mais no lugar do adulto em perspectiva. Desta forma, em menos de meio século passámos sucessivamente por três representações dominantes da vida adulta: do ano 1950 ao ano 1965, o adulto-padrão associado a uma ou outra forma de maturidade bem identificada dominou; desse ano 1965 até ao ano 1980 constitui-se progressivamente um novo modelo de vida adulta, o do adulto em perspectiva centrado sobre a sua própria maturação e as suas potencialidades; a partir do ano 1980 desenvolve-se sob os nossos olhos uma espécie de antimodelo, o adulto com problemas caracterizado por um sentimento de imaturidade.

3. A vida adulta como constituição de uma história pessoal Uma das dimensões constitutivas da vida adulta que hoje suscita numerosos trabalhos é aquela da história pessoal. Esta na sua dinâmica substitui o conceito mais estático de personalidade próprio a uma representação do adulto-padrão. Além do desenvolvimento mais ou menos caótico de um itinerário de vida adulta, além das transições vividas de forma mais ou menos desordenada, esta história pessoal a ser identificada fornece uma possível lógica susceptível de presidir ao ordenamento das diferentes sequências. Expressa uma forte significação reunindo através das suas duas palavras que a nomeiam, um substantivo e um qualificativo, aquilo que faz simultaneamente a universalidade e a singularidade de uma experiência adulta.

3.1. Ser adulto, uma história A experiência através do itinerário que a constitui sempre evocará uma amostra significativa, por mais modesta que seja, da condição humana na diversidade extrema das suas manifestações. Trata-se, com efeito, de uma história que ocorre na sua temporalidade simultaneamente como antecipação e memória,

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Cf. La crise des générations, Paris, Payot, 1972.

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integrando num modo dinâmico, mas à sua maneira, uma pluralidade de experiências vividas; estas só adquirem sentido em relação às experiências a serem vividas. Através dos seus sobressaltos, esta história está subentendida por um fio condutor ou um feixe de fios que lhe dá uma certa coerência8. Esta concretiza-se por uma certa maneira de estar no mundo, de ler os acontecimentos e de a eles reagir, de procurar emancipar-se da situação momentânea ou, pelo contrário, de mergulhar em uma ou outra forma de sujeição. Esta história lacunar, como toda história, parcialmente verbalizada, e portanto que está a ser explicada pelo adulto, interroga e interroga-se sobre aquilo que se passou para o compreender melhor e tentar controlar de outra maneira uma forma de futuro. Esta história está marcada pela sua maior ou menor abertura em relação a novas possibilidades. Nunca está acabada mas sim profundamente inacabada, sabendo-se limitada, duplamente limitada, pelas restrições actuais e por um fim inelutável mais ou menos negado.

3.2. Uma história carregada de singularidade Falar da história pessoal é, além disso, evocar uma certa idiossincrasia na maneira pela qual os acontecimentos vividos se enredaram e foram interiorizados: seria necessário a este sujeito evocar com L. Binswanger 9, para além da rede dos acontecimentos, a história interior da vida como constitutiva de uma singularidade destinada para sempre a escapar-nos. Os diários íntimos, os relatos autobiográficos redigidos sob a forma de memórias, as práticas actuais em pleno progresso em volta dos relatos de vida ou histórias de vida são testemunhas de uma singularidade que se tenta dizer através das palavras. A história desenvolvida ao longo das narrativas e os meandros que esta história toma manifestam com efeito uma clara singularidade, aquela que se expõe num espaço e num tempo bem particularizados. Uma tal singularidade expressa a individuação crescente de toda a história pessoal e ao mesmo tempo compõe paradoxalmente com marcas de socialização elas próprias cada vez mais determinantes com o avanço da idade.

3.3. Uma história que pode ser apreendida por paradigmas bem tipificados É portanto difícil caracterizar cada história de vida adulta; não vamos reduzir esta história, conforme foi o caso com os estudos sobre as estruturas de personalidade, a alguns tipos emergentes associados a disposições originais ou a restrições ambientais; o determinismo neste domínio é excessivamente simplificador. Poderemos simplesmente aproximar os percursos observados para tentar classificá-los da melhor maneira possível; distinguiremos então uma rede sequencial feita de regularidade bem identificável, uma rede que expressa uma grande diversificação nas escolhas realizadas em relação a uma rede de fechamento quase irreversível; isolaremos redes estáticas caracterizadas por um processo de estabilização

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Sobre a significação individual e social da história de vida, cf. entre outros F. Ferraroti (1983), Histoire et histoires de vie, Librairie des Méridiens. 9 Cf. do autor em tradução francesa, lntroduction à l'analyse existentielle, Paris, Éditions de Minuit, 1979.

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duradoura em contraste com redes feitas de expansão conquistadora em direcção a espaços sociais cada vez mais amplos a serem dominados, redes divididas em vários centros de interesse em relação a redes em ziguezague feitas de transições contínuas...

4. Etapas, crises, transições durante a vida adulta, a que preço? Falar em rede é evocar um fio condutor em volta do qual oscilam elementos flutuando num ambiente de mobilidade no qual os indivíduos estão a partir de então imersos. Mas, nos seus itinerários de vida, os adultos mantêm uma relação ambivalente com a mobilidade; aprenderam nestes últimos anos a preocuparem-se muito menos com um lugar a conquistar e a preservar, o que foi durante muito tempo a sua principal preocupação, do que a partir de agora com um itinerário a ser construído: isto implica uma mobilidade que devem gerir mas que temem tanto quanto desejam.

4.1. Questões em torno da mobilidade De um certo lado, os ambientes técnicos marcados pela inovação e pela obsolescência com os seus aspectos coercitivos associados a esta tripla tutela dos custos, dos prazos e da qualidade mas também os seus aspectos fugidios e evolutivos levam os adultos à mudança e à renovação contínua; porque as escolhas já não podem suportar uma permanência no tempo; tornam-se constantemente revisáveis e reactualizáveis. Por outro lado, nos contextos de crise larvar característicos da nossa pós-modernidade, esta mobilidade exigida torna-se mais difícil com um mercado de trabalho muito caprichoso e deprimido: as mudanças de posto, as reconversões profissionais, permanecem problemáticas, as ofertas de emprego estão fechadas num número restrito de oportunidades. O adulto vive portanto a ambivalência da mobilidade: mobilidade desejada face a uma organização do trabalho cujo carácter repetitivo parece cada vez mais insuportável a um adulto escolarizado, mobilidade temida suscitada por uma ferramenta de trabalho susceptível de ser actualizada no dia seguinte sob a pressão das mutações económicas. É nesta ambivalência que os adultos terão que criar por si próprios, com a ajuda de estratégias voluntariosas, um itinerário possível de mudança, com a ajuda da formação e das medidas que lhe estão associadas: balanço individual das competências, férias individuais de formação, crédito de formação individualizado...

4.2. Ciclos de vida e crises da vida adulta Estas facetas opostas da mobilidade tanto objectiva quanto subjectiva geram, mais do que no passado, períodos caóticos de desenvolvimento; a experiência adulta torna-se tributária de crises, de escolha, desestabilizadoras, de reconversões mais ou menos forçadas, de transições para se lançar numa nova experiência ou mergulhar na inactividade. A vida adulta organiza-se assim, talvez aliás cada vez mais, em

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volta de fases de ajustamento, de expansão, de apogeu, de questionamento, de fechamento, de nova distribuição esquematizando aquilo que o psicólogo americano D. Levinson denominou os ciclos de vida10. Com o desaparecimento dos ritos que balizavam até hoje o curso de uma existência, encontramo-nos em presença de uma perda de automaticidade, de regularidade e de uniformidade das etapas que planificavam até então a vida adulta; essas etapas são doravante tributárias de escolhas, de perspectivas a serem continuamente reactualizadas, de acidentes a conjurar ou a assumir; os ciclos de vida tornam-se cada vez mais irregulares e imprevisíveis. Órfãos de uma maturidade própria que lhes escapa agora, os adultos devem afrontar crises que, no melhor dos casos, tornam o seu desenvolvimento psicológico mais um desenvolvimento em espiral do que um desenvolvimento linear; este desenvolvimento passa por momentos de estruturação da experiência, momentos de desestabilização, momentos de ruptura e de crise, momentos de recomposição possível, o que poderia ser comparado a um modelo em escada (Riverin-Simard, 1993).

4.3. O ajustamento de transições: transições antecipadas, transições não antecipadas O fenómeno de crise expressa uma incerteza existencial a ser gerida no seio de uma zona intermediária de experiência que denominamos transição. Esta transição na sua dupla dimensão espacial e temporal é vivida como uma passagem entre duas etapas; visa gerir uma experiência de descontinuidade num trajecto. Esta experiência, pela separação que inclui entre o momento actual e a etapa precedente, implica um afastamento, uma depreciação, em suma, um luto necessário para se transpor um novo patamar existencial. As transições durante a vida adulta são vividas por um modo muito diferente conforme sejam antecipadas ou não. A transição imposta pelos acontecimentos, ou seja, não antecipada, surpreende o indivíduo; está mais próxima da crise pela irrupção de um imprevisto que incomoda e com o qual será necessário compor para encontrar uma saída oportuna. Pelo cenário de catástrofe em que implica, uma tal transição vai deixar o indivíduo numa posição vulnerável. Encontrar uma saída para a crise é dar a si mesmo novos referenciais sem os quais a transição irá fracassar, estando então o adulto transposto a uma situação de espera, de trânsito mais ou menos prolongado, uma espécie de vazio antes de ser enviado para um estatuto mais precário. O caso de transições antecipadas corresponde a situações de vigilância e de espera activa que não poderiam surpreender o indivíduo; este já inventariou as respostas possíveis; estamos neste caso numa transição voluntária que compreende pouco efeito de crise; podemos no entanto distinguir dois tipos de transições antecipadas: uma transição antecipada, entrevista e aceite mas não desejada; este caso assemelha-se a uma prevenção fracassada; necessita por parte do adulto estratégias alternativas para conjurar o indesejável ocorrido e poderá estar acompanhada por formas larvares de crise; uma transição antecipada desejada, em alguns casos preparada: tal transição corresponde à imagem antecipadora do projecto em busca por diferentes caminhos de realizar um futuro desejado; pode assemelhar-se à previsão se a transição desejada é simplesmente desperdiçada porque se mostra demasiado hipotética. 10

Cf. o seu trabalho, The Seasons of a Man’s Life, Nova Iorque, Ballantine Books, 1978.

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5. Temporalidades significativas na vida adulta Uma outra forma de captar a dinâmica da vida adulta é a de considerá-la em um momento identificável do seu desenvolvimento; mais do que um momento bem preciso, e portanto um tanto ilusório, seria mais adequado, aliás, falar-se em período. Distinguiremos então três períodos absolutamente contrastados: o do jovem adulto, o do meio tempo da vida, o do adulto realizado.

5.1. O jovem adulto Ao sair da sua formação inicial, o jovem nos anos 70 depressa adquiria um estatuto de adulto aos 20-25 anos de idade, através de uma inserção profissional quase imediata. Actualmente, a formação inicial cada vez mais longa é frequentemente seguida por um período de espera, na câmara de descompressão ou adaptação que é constituída por uma espera podendo atingir vários meses ou mesmo mais de um ano; durante este período, inserções parciais, provisórias, podem dar lugar às primeiras experiências; é nestas flutuações que o estatuto de adulto vai progressivamente emergir à medida que para ele se concretizará a sua dupla inserção social e profissional: construção de uma vida de casal e de uma famí1ia, empenho num trabalho profissional, dois locais tradicionais de realização do jovem adulto questionados em parte há uma geração. Quando o questionamento não é demasiado forte, o jovem adulto pode mobilizar-se através daquilo que faz para valorizar na sua impaciência uma criação apressada levando a uma ou outra forma de maturidade vocacional. O processo de maturação e de actualização das potencialidades será desta forma facilitado se houver resolução da indecisão, adaptação a novos papéis, aquisição de novas competências, aceitação positiva da incerteza, todos processos favorecidos pela duração de experiências estruturantes que ultrapassam as temporalidades do imediato hoje em dia demasiado presentes. Vale dizer que a constituição de uma experiência para o jovem adulto se encontra dificultada nos ambientes demasiado restritivos e instáveis da nossa sociedade pós-industrial.

5.2. O meio tempo da vida O meio tempo da vida evoca referências frequentemente imaginárias e compreende portanto um carácter algo mítico com a sua ambivalência própria a todos os espaços sacros; o meio da vida é com efeito um sentimento de maturidade mas também o demónio do meio-dia; é o momento existencial, aproximado nas suas delimitações cronológicas, a partir do qual no adulto ocorre um deslocamento da percepção do tempo indo do tempo já vivido para o tempo que resta para viver. Além do mito, podemos identificar um sentimento próprio nas pessoas que tendo ultrapassado vários decénios da sua vida sentem então ao mesmo tempo experiência e lassidão. Estas pessoas podem, apesar

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disso, estar prontas para um novo começo com a esperança de terem ainda à sua frente vários decénios para viver. Este sentimento evanescente depende amplamente das histórias pessoais e dos contextos culturais; não pode ser enclausurado numa abordagem demasiado determinista e redutora. O meio tempo da vida é muito mais um meio tempo psicológico do que aritmético, sistematicamente deslocado para a segunda metade da existência, hoje em dia por volta dos 45 a 55 anos de idade. As pessoas que estimam estarem no meio tempo da sua vida reavaliam-se a si mesmas examinando as suas realizações e os valores susceptíveis de as legitimar. Apreciam os seus diferentes percursos, aquilo que foi feito até ao presente mas também tudo aquilo que não pôde ser feito e agora nunca o será, a evocação de uma reforma cuja data não está muito longe e, através desta, a eventualidade da morte. Tomam consciência, muito mais do que antes, do tempo limitado: esse tempo é-lhes agora contado e já não poderão fazer tudo aquilo que queriam. Estas diferentes evocações conforme as circunstâncias serão susceptíveis de levar a uma forte apreensão, ou até mesmo a um sentimento de angústia. Por isso, para alguns, o meio tempo assumirá a forma de uma transição, para outros a forma de uma crise. Esta será tanto mais forte e determinante se estiver associada a problemas de identidade não resolvidos na adolescência que em determinados adultos vão reemergir bruscamente nesta ocasião, dando ao itinerário de vida adulta um carácter então basicamente cíclico.

5.3. O adulto realizado Falar em adulto realizado é recorrer a uma formulação próxima do eufemismo se esta postula que todo o adulto de alguma idade pode mostrar uma certa forma de realização pessoal; mas a realização assume aqui um sentido absolutamente apropriado se considerarmos o adulto além do meio tempo da vida como já amplamente estruturado pelos trajectos anteriormente realizados, trajectos que irão pesar nas suas determinações para o tempo que resta de vida. O adulto além do meio tempo pôde realizar-se através de situações vividas muito contrastadas que deram lugar, para uns, a uma satisfação intensa e a entusiasmo, e para outros, a remorsos, penas, nostalgia e mesmo resignação e tédio. O adulto realizado conheceu certamente rupturas existenciais mas pôde operar uma nova distribuição das suas energias e potencialidade, que o levou ao auge, comummente denominado a força da idade. Em oposição à criatividade apressada do jovem adulto, o acme favorece no adulto realizado uma outra forma de criatividade, denominada neste caso esculpida11 porque preocupada com o domínio e com a perfeição. O adulto realizado, ou seja, realizado pelas trajectórias que estruturaram até então a sua história, 11

Estas duas formas de criação, a criação apressada do jovem adulto, a criação esculpida do adulto realizado, foram postas em valor por E. Jacques; cf. em tradução francesa «Mort et crise du milieu de Ia vie», in D. Anzieu (1974), Psychanalyse du génie créateur, Paris, Dunod.

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é ao mesmo tempo aquele adulto que começa a entrever no seu horizonte temporal um possível desinteresse em direcção à reforma e ao espaço da terceira idade; este implica a antecipação de uma outra temporalidade menos planificadora, mais lábil ou até incerta; conforme a antecipação desta temporalidade seja ou não efectiva, as modalidades de desinteresse irão modificar-se. Este período da vida adulta realizada é hoje em dia um período paradoxalmente atormentado; no momento em que o adulto começa a fazer um primeiro balanço das suas aquisições, a chegada mais ou menos imprevista de uma pré-reforma ou de uma reforma antecipada, a perspectiva de uma reforma temida vão de forma brutal operar requestionamentos, reorganizações através de uma inactividade forçada já percebida que se deve reconverter em inactividade escolhida; existe assim o sentimento de um afastamento profissional fonte de isolamento social, com a término a perspectiva da morte que pode suscitar desespero e resignação. O adulto realizado pode, pelo contrário, virar as costas a estes tormentos e viver a sua reforma como uma forma de libertação existencial, permitindo-lhe considerar este novo período de inactividade como um novo tempo de iniciativa oferecido e com ele a entrada numa forma de serenidade que humaniza os limites que o adulto que está a envelhecer percebe.

6. Os invariantes da idade adulta O adulto peregrina levando consigo durante todo o seu itinerário um certo sentimento daquilo que ele é, da maneira como percebe a si mesmo, se estima, se detesta, se reconhece, foge de si mesmo... Este sentimento, conforme o seu conteúdo, mais intelectual em determinados casos, mais afectivo em outros, tomará a denominação de conceito de si ou imagem de si12. Tal sentimento forma a base da construção da identidade. O sentimento de identidade evolui lentamente porque se apoia em elementos permanentes que constituem o quadro estrutural da vida adulta; esses elementos podem ser dispostos em dois conjuntos, um conjunto de elementos externos que contribuem para definição dos quadros de referência, um conjunto de elementos internos organizadores da subjectividade.

6.1. Os quadros de referência e o seu desaparecimento As estruturas da vida quotidiana que fornecem as referências a partir das quais o adulto vai orientar-se persistem mas são maltratadas; essas estruturas mais ou menos desorganizadas são ameaçadas por um desaparecimento progressivo, sem que se saiba com o que substituí-las; evoquemos quatro conjuntos estruturais reguladores da vida adulta em vias de desaparecimento ou pelo menos de recomposição: – os quadros de referência fornecidos pela família mantêm toda a sua importância visto que a família em diferentes inquéritos europeus continua a ser considerada o primeiro valor no qual os adultos se reconhecem; mas esta família está submetida a inúmeras reorganizações, da família monoparental ou 12

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Sobre o conceito de si, cf. os trabalhos de R. Écuyer, especialmente a sua última obra, Le développement du concept de soi, de l'enfance à la vieillesse, Les Presses de l'Université, Montreal, 1994.

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unipessoal à família recomposta, passando pela separação, uma coabitação mais ou menos temporária, irmãos de vários pais diferentes. Apesar destas metamorfoses e graças à ligação que favorece, a família é vivida pelo adulto como um local de socialização essencial através do ciclo de vida familiar que a maioria dos indivíduos que envelhece acompanha de forma mais ou menos regular. Este ciclo passa pela experiência de filho ou filha para abrir-se naquela do casal, casado ou não, gerando uma nova experiência, a dos pais, e depois de avós. Mas o problema principal que a família põe ao adulto de hoje é contudo aquele do paradoxo entre a permanência da ligação ao valor-família e o carácter provisório e flutuante deliberadamente atribuído a certos compromissos familiares; – os quadros de referência estruturados pelas iniciações escolares através dos tipos de formação propostos já não garantem um posicionamento duradouro, não são reguladores para toda a vida, apesar dos diplomas sobre os quais se apoiam. A escola deve compor com a diversificação dos saberes e dos conhecimentos. As iniciações são agora parciais e provisórias, a formação permanente vem, além da escola, completar os primeiros quadros referenciais fornecidos; a formação na diversidade dos seus dispositivos constitui então o meio para que o adulto garanta transições no seio de um percurso individual; – os quadros de referência ligados à vida activa do trabalho, da profissão e do ofício encontram-se cada vez mais desorganizados; ofício e profissão continuam a ser indispensáveis para uma estruturação de identidade do adulto; no entanto, apagam-se, desfazem-se, perdendo aquilo que constituía a sua estabilidade; cedem frequentemente o lugar a uma realidade mais modesta e imaterial, aquela das actividades profissionais compostas mais ou menos desqualificadas. Face a uma mudança da significação do trabalho, torna-se necessário deixar de assimilar a actividade adulta apenas à actividade profissional. Desta forma o trabalho deve conquistar a sua autonomia de actividade psicológica em relação às formas profissionais instituídas que até hoje a canalizaram mas que se encontram obsoletas. Voltar a dar sentido ao trabalho torna-se uma exigência para tentar repensar no seu seio a articulação das três esferas do emprego, da profissão e da carreira; assim se poderão articular as três finalidades associadas ao trabalho, o envolvimento psicológico, o reconhecimento social, a remuneração económica; – os quadros de referência ideológico-religiosos, apesar da sua persistência discreta, manifestam um declínio e até um desaparecimento dos ideais instituídos, pelo menos sob a forma que deles até hoje conhecíamos. O adulto numa sociedade pós-moderna está confrontado ao silêncio dos valores e dos ideais caídos em descrédito; na ausência de ideologias de referência estruturadas, de instituições com vocação religiosa bem assentes e globalizantes, são agora os ideais parciais e transitórios que parecem mobilizar o adulto: ideais ligados à felicidade familiar, à autonomia libertadora, a uma ou outra forma de envolvimento, associado a uma causa bem delimitada. Estes ideais pontuais e revisáveis constituem o sintoma de uma crise das transcendências […].

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7.4. O adulto face à obsolescência dos seus saberes em aprendizagem permanente Confrontado com uma obsolescência generalizada dos seus saberes, uma renovação permanente das redes informacionais, o adulto sente-se em metamorfose cognitiva, procurando reactualizar-se, prolongar, reorientar as suas aprendizagens anteriores. Mais do que ontem, o adulto só pode sobreviver a esta sociedade da informação firmando-se numa posição de perpétuo aprendiz preocupado em digerir as mudanças incessantes que lhe são apresentadas. É-lhe portanto necessário reconsiderar as suas referências cognitivas. Esta reconsideração vai ser feita principalmente através da formação contínua; esta, ao acompanhar durante os últimos 30 anos o adulto através das suas peregrinações cognitivas, nele instalou fragilizações e precaridades; por isso, a formação permanente mudou a sua natureza; era suposto promover o estagiário na sua autonomia; a partir de agora enquadra as situações de precaridade deste mesmo estagiário tornando-se frequentemente paliativa e ocupacional, visto que quis tornar-se o remédio para todos os nossos males. Além disso, face a adultos em busca de referências, confrontados com o domínio de novos códigos e linguagens, a formação oferecida deixa de lado o aperfeiçoamento estrito ou a aquisição de novas competências; assemelha-se mais a uma educação permanente destinada a promover as condições existenciais de autonomia dos estagiários.

7.5. O adulto voluntarioso face à tirania das suas decisões Numa cultura do actor, o adulto está na obrigação cada vez mais frequente de ter de decidir por si mesmo, de determinar-se nas suas responsabilidades, nos seus projectos, nas suas escolhas, precisando incessantemente as suas intenções à guisa de legitimação, num ambiente que lhe pede contas continuamente. A cultura pós-moderna é uma cultura voluntariosa (Boutinet, 1999) a um nível sem dúvida nunca alcançado até agora por nenhuma outra. É assim que se pede a cada adulto que se justifique através de uma multiplicidade de projectos individualizantes, emergentes, estruturantes... para qualquer acção por menor que seja. Esta obrigação é fonte de esgotamento e de desamparo (Ehrenberg, 1998). A subida dos voluntarismos faz-se sob uma forma pronominal que impõe o projectar-se, o inserir-se, o orientar-se, o formar-se; esta pronominalização passa pela declinação de projectos diversos: projecto profissional, projecto de carreira, projecto familiar, projecto de formação... que ilustram o lugar tomado pela individualização dos comportamentos mas também pelos riscos que lhe estão associados: risco de se iludir, de mergulhar no activismo, de se deixar enganar...

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8. Rumo a um desperdício da vida adulta presa entre uma juventude interminável e uma velhice precoce A vida adulta é uma mistura de experiências: umas são marcadas por uma maturidade comportamental numa lógica de homeostasia; outras favorecem uma maturação das competências numa perspectiva de crescimento; outras, por fim, são tributárias de um contexto carregado de imaturidade, de crise e de crispação conforme um cenário de catástrofe. O adulto parece cobrar de si mesmo, hoje principalmente, através do terceiro modelo, aquele de aumento das imaturidades e dos bloqueios que se torna o modelo dominante. Poderíamos inventariar estas formas de imaturidade que actualmente caracterizam um adulto continuamente confrontado com a sua própria reconstrução. Ao indicar que nada é evidente, que as condições actuais de existência colocam mais questões do que aquelas que resolvem, que o essencial está sempre para ser feito, a imaturidade abre paradoxalmente o jogo dos possíveis, mas com o risco que esses possíveis levem ao fracasso e submetam o adulto a um universo bastante moroso e depressivo; jogos abertos e ambiente depressivo são sem dúvida os dois dados que caracterizam presentemente o aumento dessas imaturidades. Estas podemos identificá-las através das restrições de situações tornadas existencialmente desestruturantes, um nível de complexidade dos nossos ambientes demasiado puxado, a mutação das temporalidades que tendem cada vez mais a recentrar-se no imediato e no urgente, a grande diversidade das informações que devem ser assimiladas em oposição à indiferenciação dos nossos modos de vida, enfim um défice generalizado de acção. Assim sendo, estas formas de imaturidade são o prelúdio de um desperdício de uma vida adulta cada vez mais presa entre uma juventude interminável e uma velhice precoce? O poder crescente das inactividades nas duas extremidades do ciclo de vida irá reduzir as autonomias adultas a serem apenas uma passagem temporal mais ou menos longa? Esta tendência social em direcção a uma recomposição num modo dicotómico das idades da vida parece pelo menos encontrar resposta naqueles que desejam para si mesmos um bom número de adultos inquiridos: uma juventude prolongada terminando numa velhice tranquila.

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Gérard Vergnaud (pp. 207-220)


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CAPÍTULO 10 1. Introdução Durante muito tempo a perspectiva desenvolvimentista só foi considerada como pertinente para as crianças e para os adolescentes. Ainda hoje em dia, os trabalhos sobre o adulto são de uma extrema raridade. As razões desta restrição devem ser procuradas em duas vertentes ideológicas, que ainda não cessaram de produzir os seus desastres: – a primeira é que a perspectiva desenvolvimentista foi duradouramente marcada pela hipótese maturacionista, ou seja, pela crença de que o factor principal do desenvolvimento é a maturação sui generis das vias nervosas e do cérebro, que desempenha visivelmente um papel importante em muitas espécies animais e no bebé. Evidentemente, a maturação nunca intervém sozinha e não é o único processo determinante no ser bebé humano, mas é aquele que se reconhece mais facilmente. Como os processos de maturação biológica exercem restrições visíveis e fortes sobre o desenvolvimento das competências do bebé, nomeadamente das suas competências gestuais e de linguagem, parece natural generalizar esta espécie de equivalência entre desenvolvimento e maturação biológica às crianças e aos adolescentes. A eclosão da sexualidade, depois a interrupção do crescimento, não estão elas presentes para nos lembrarem que os adolescentes são o objecto de profundas transformações biológicas? Estas transformações são muito menos visíveis e principalmente menos rápidas no adulto; parece desde logo ser evidente que o desenvolvimento-maturação não lhes diga respeito: – a segunda vertente é a de que, durante decénios, o desenvolvimento psicológico foi medido pelo padrão das competências elementares que são os tempos de reacção, as capacidades de discriminação sensorial, a atenção, a memória imediata, a capacidade em exercer uma tarefa sob o efeito perturbador de outra, ou em exercer várias tarefas complementares ao mesmo tempo. Esta visão restritiva do psicológico e do cognitivo levou irremediavelmente à constatação de que determinadas capacidades deixavam de se desenvolver depois da idade de 13 ou 14 anos, e começavam a declinar bastante cedo: a partir dos 25 anos, às vezes antes. Para adoptar uma perspectiva desenvolvimentista no estudo dos adultos, temos de nos interessar por competências mais complexas, cuja avaliação escapa amplamente às medidas clássicas dos tempos de reacção, da atenção ou da memória; e também considerar que a experiência, na sua duração e na sua riqueza, é um factor muito importante de desenvolvimento. Isto parece óbvio, mas é preciso, para convencer a comunidade dos psicólogos científicos, propor exemplos e resultados empíricos incontestáveis, e dissociar o conceito de desenvolvimento das duas vertentes que acabam de ser evocadas.

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O presente capítulo está organizado de tal forma que o leitor possa obter uma representação do desenvolvimento cognitivo dos adultos baseada, em primeiro lugar, em exemplos e, depois, numa análise teórica do conceito de experiência, finalmente em investigações empíricas mais analíticas.

2. Alguns exemplos A ideia de que os adultos se desenvolvem é uma ideia banal: a vida profissional e a vida simplesmente oferecem-nos numerosos exemplos de evolução e de enriquecimento das competências, das concepções, dos saber-fazer sociais, dos meios de expressão, da cultura, dos indivíduos. Mas esta ideia é antagónica de outra ideia banal, a saber, que os adultos perdem certas habilidades desportivas e corporais, vêem a sua memória diminuir, bem com as suas capacidades de discriminação visual e auditiva. Não é portanto inútil procurar exemplos cruciais que mostrem que os adultos aprendem, mas que determinadas aprendizagens dizem respeito ao longo prazo e chamam por uma perspectiva desenvolvimentista. A categoria mais pertinente para esta demonstração é aquela das competências críticas; são as competências adquiridas pelo indivíduo durante a sua experiência, e que fazem dele alguém de insubstituível em determinadas tarefas. Eis vários exemplos, tomados na vida profissional visto que é a esta questão que é consagrada este livro. Poderíamos encontrar exemplos na vida não profissional.

2.1. O reparador da bomba de água Numa empresa de fabricação de cimento, as máquinas que transportam o cimento até aos estaleiros de construção, munidas de uma roda giratória que permite garantir a mistura adequada em diversos momentos do processo, possuem bombas de água relativamente sofisticadas. Claro está, acontece que estas bombas se avariam; uma oficina de manutenção, na qual várias pessoas trabalham nas bombas de água, está encarregada das reparações. Um desses operários da manutenção adoece durante várias semanas; durante todo o período da sua doença os seus colegas menos experimentados não conseguem reparar as bombas de água. É enviada uma pequena delegação ao hospital para dele obter as explicações necessárias. Nada a fazer: ou os gestos que tinha por hábito fazer e os diagnósticos que tinha por hábito organizar sobre as diferentes possibilidades de avarias podiam dificilmente ser explicados por ele, ou então as suas explicações podiam dificilmente ser interpretadas pelos seus colegas. Provavelmente os dois fenómenos intervinham conjuntamente. Existem numerosos exemplos no mundo operário e no mundo camponês destes saber-fazer adquiridos durante a experiência, cuja transmissão constitui um problema. Um outro exemplo é aquele de uma equipa nocturna encarregada de limpar e fazer a manutenção de uma linha de produção na indústria alimentar. O chefe da equipa adoece. É uma equipa de várias pessoas que está a cargo das operações de limpeza e desinfecção; mas, na ausência do chefe, a equipa não consegue livrar-se de uma estirpe microbiana; a linha tem de parar.

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Em que consiste então esta competência crítica? Como foi adquirida? Como partilhá-la com outros? Qual formação?

2.2. Os especialistas em concepção tecnológica Há alguns anos, aceitava-se comummente a ideia de que esta dificuldade em transmitir verbalmente saber-fazer adquiridos durante a experiência era própria das pessoas tendo recebido uma formação inicial curta e pouco elaborada: era portanto algo próprio aos trabalhadores manuais. Os exemplos seguintes vão mostrar que os quadros superiores não estão ao abrigo desta dificuldade. Num departamento de concepção de lançadores espaciais, pede-se aos engenheiros mais especializados que redijam guias metodológicos nos quais devem restabelecer o seu saber-fazer como especialistas (aerodinâmica, propulsão, dimensionamento, etc.). Primeira constatação, só é possível tornar-se especialista, quando isso acontece, depois de vários anos de experiência (7 anos, 10 anos, 15 anos às vezes), e muitos jovens engenheiros brilhantes nunca se tornam especialistas. O longo prazo diz portanto respeito à formação das competências dos engenheiros. Segunda constatação, a leitura dos guias metodológicos revela estranhas disparidades e estranhas lacunas. Embora o contrato seja o mesmo para todos (restabelecer o seu saber-fazer específico, e não soluções académicas e técnicas que se encontram normalmente nos manuais) os guias metodológicos são de uma variedade inesperada, e mostram que os especialistas não têm de forma alguma a mesma representação daquilo que faz com que sejam especialistas. Além disso, encontram-se nesses guias muitas receitas linearmente expostas (faz-se isto, depois aquilo, depois mais aquilo) e muito poucos raciocínios condicionais (se tais e tais condições estão reunidas, então há que tomar tal iniciativa; mas se as condições são diferentes, então há que tomar outra iniciativa). Pois é precisamente esta adaptabilidade às circunstâncias, aos objectivos e subobjectivos e às condições, que faz a competência crítica do especialista, e a fiabilidade do seu julgamento e do seu raciocínio. Uma outra lacuna frequente dos guias metodológicos diz respeito à explicitação dos critérios de avaliação das soluções técnicas: a comparação das vantagens e dos inconvenientes de cada solução é no entanto um elemento decisivo da adaptação aos clientes e ao mercado. Por exemplo, as relações entre o custo relativo e a qualidade relativa das soluções que podem ser consideradas. Conhecem-se empresas de alta tecnologia para as quais a procura da melhor solução técnica sem suficiente consideração em relação ao custo levou à falência.

2.3. O Sr. Silva e a sua rede de relações Um último exemplo vai mostrar que a competência profissional não é apenas de ordem técnica. Trata-se mais uma vez de um especialista, o Sr. Silva, desta vez um projectista de satélites. Já reformado, é procurado porque o escritório de estudo se deu repentinamente conta de que não sabia resolver um dos problemas presentes no caderno de encargos. Sabendo que o Sr. Silva havia tratado um problema semelhante alguns anos atrás, decide-se então chamá-lo.

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Ele oferece de boa vontade a sua ajuda aos antigos colegas mas, surpresa, confessa também não saber resolver o problema colocado. No entanto, é capaz de evocar vários interlocutores do passado (quer em organismos nacionais de investigação ou em empresas) que podem ajudar o escritório de estudo a resolver o problema. Assim é feito, e com sucesso! A intervenção do Sr. Silva é sem dúvida técnica, mas a competência social, e provavelmente até afectiva, do Sr. Silva foi decisiva. Isto também faz parte da competência profissional, tecer os fios de uma rede de relações tanto profissionais como de amizade à qual se pode recorrer em caso de necessidade. Estes diferentes exemplos permitem apresentar um quadro teórico com o qual podemos esperar entender melhor o papel da experiência no desenvolvimento cognitivo dos adultos.

3. Competência, actividade, conceptualização De que é feita a experiência? O sentido comum faz da experiência uma primeira ideia relativamente simples: sabe-se fazer melhor, quando se tem experiência, porque se teve a ocasião de fazer e refazer mil vezes os mesmos gestos ou os mesmos raciocínios. Trata-se de um ponto útil mas que é insuficiente: não permite compreender porque e como uma pessoa mais experiente pode enfrentar com uma maior probabilidade de sucesso uma situação nunca encontrada antes. Se a experiência consistisse apenas no maior domínio da mesma actividade, graças ao exercício, não haveria nenhuma razão para se falar em desenvolvimento cognitivo. Devemos portanto levar a análise mais adiante, de maneira a compreender como a experiência pode contribuir para desenvolver o saber-fazer e saber justos inclusivamente para tratar situações novas. As ideias de competência e de aumento das competências estão estreitamente associadas àquela do desenvolvimento cognitivo. Eis três definições sucessivas, a partir das quais é possível chegar a conceitos mais analíticos. Definição 1: A é mais competente do que B se sabe fazer algo que B não sabe fazer. Definição 2: A é mais competente do que B se utiliza um método melhor ou mais rápido, ou mais fiável, ou mais económico, ou mais geral, ou mais bem adaptado à actividade de outra pessoa, ou mais facilmente entendido por outra pessoa. Esta segunda definição supõe critérios que, de maneira geral, não podem ser satisfeitos ao mesmo tempo. Principalmente, pede a análise da actividade, enquanto a definição 1 permite decidir sobre a competência só a partir do resultado da actividade. Definição 3: A é mais competente do que B se dispõe de um maior leque de métodos que lhe permite adaptar-se a diferentes casos e escolher seja uma maneira de fazer, seja outra. A riqueza e a plasticidade dos recursos cognitivos que podem ser mobilizados é um ingrediente essencial da competência. É provavelmente o ponto mais crucial para que se ultrapasse o taylorismo hoje em dia.

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A definição 3, mais ainda do que a definição 2, pede a análise da actividade. O conceito de competência não basta portanto a si próprio; precisamos de uma teoria da actividade e da organização da actividade. Podemos dizer, para começar, que aquilo que se desenvolve durante a experiência são as formas de organização da actividade. Estas formas de organização dizem respeito a todos os registos da actividade: – os gestos, – as actividades intelectuais e técnicas, – a enunciação e o diálogo, – a interacção social e a afectividade. O desenvolvimento cognitivo do adulto diz respeito aos gestos: aqueles do desportista, da dançarina, do artesão, do soldador e de vários outros profissionais. Diz respeito às actividades técnicas do reparador de bombas de água ou do especialista em satélites, do correspondente comercial tanto quanto do investigador científico. Diz respeito à enunciação ou, ainda, à verbalização das ideias concernentes aos objectos, às suas propriedades, relações, transformações. A enunciação é uma actividade específica, que evidentemente não é independente da maneira pela qual são dominados os conhecimentos que devem ser enunciados, nem da maneira pela qual são representados no locutor, os destinatários da mensagem. O exemplo dos guias metodológicos e aquele do reparador de bombas mostram que a forma predicativa do conhecimento, aquela que consiste em formular esse conhecimento na linguagem natural (ou eventualmente num outro sistema simbólico), está quase sempre em atraso em relação à forma operatória do conhecimento, aquela que consiste em executar esse conhecimento na acção e na percepção. Mais adiante questionaremos este ponto. O desenvolvimento cognitivo diz respeito finalmente à interacção social e à afectividade como podemos ver na adaptação progressiva de um recém-chegado a um meio que não conhecia. As competências afectivas podem, como a outras competências, desenvolver-se e degradar-se; apresar da sua ligação evidente com a personalidade, começamos a reconhecer este domínio de competências como capaz de aprendizagem e de formação, principalmente em razão dos problemas de comunicação que são abertamente colocados hoje em dia nas empresas. As duas escolas de pensamento em psicologia que mais insistiram na actividade são a escola de Genebra e a escola russa: Piaget e Vygotski para ser breve. Existem diferenças importantes entre estas duas correntes teóricas, também convergências e complementaridades. A brevidade deste capítulo não permite de forma alguma analisar essas diferenças. Vamos portanto ao essencial.

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É Piaget quem, com o conceito de esquema, nos fornece o conceito mais directamente útil para analisar a actividade. Piaget utiliza este conceito em primeiro lugar para as actividades gestuais do bebé, e a seguir para determinados raciocínios como as séries, as classificações, a proporcionalidade. No entanto as suas definições permanecem um pouco vagas; é por esse motivo que propomos a seguir duas definições mais rigorosas. Definição 1: um esquema é uma forma de organização invariante da actividade para uma dada classe de situações. Definição 2: um esquema é composto necessariamente por quatro tipos de elementos: – um objectivo, que se pode declinar em subobjectivos e em antecipações; – regras de acção, de tomada de informação e de controlo; – conceitos-em-acto e teoremas-em-acto, que permitem ao sujeito recolher a informação pertinente e tratá-la; – possibilidades de inferência na situação. Estas definições fazem do conceito de esquema um conceito teórico muito forte, que permite em princípio analisar todos os registos de actividade, em todos os níveis de complexidade. Tomemos exemplos no registo da expressão oral: os discursos de um homem político em campanha eleitoral, as exposições de um cientista sobre o mesmo assunto diante de públicos diferentes. A competência do orador resulta de um conjunto estruturado de esquemas fonológicos, de esquemas sintácticos, de esquemas lexicais, de esquemas de interacção com outros, de esquemas retóricos e de esquemas argumentativos... que juntos contribuem para a formação do esquema da exposição oral política ou da apresentação científica. Esta organização hierárquica e sequencial de esquemas de diferentes categorias e de diferentes níveis são constitutivos do esquema do orador. Existe de facto um esquema visto que o orador fornece aproximadamente o mesmo tipo de discurso, de demonstração e de explicação frente à mesma classe de situações. Contudo, a exposição nunca é exactamente a mesma; pode ser mais longa ou mais curta, mais analítica ou mais lacónica. Existem de qualquer forma duas qualidades: a familiaridade e a repetição, de um lado, a inovação e a adaptação, de outro, quando o orador deve reagir hic et nunc a uma pergunta imprevista. O esquema dirige-se de facto a uma classe de situações; é portanto um universal e a sua função é ao mesmo tempo da ordem da acção e da conceptualização. O que é invariante não é a actividade, nem a conduta observável, mas sim a organização da actividade. Existem objectivos e subobjectivos. E a actividade do orador é gerada gradualmente por regras que permitem planificar as etapas da exposição levando em conta as reacções do auditório.

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Os invariantes operatórios (conceitos-em-acto e teoremas-em-acto) dizem respeito a várias ordens de processos, todos finalmente implicados na sua actividade: os conhecimentos relativos à língua, já mencionados anteriormente, e os conhecimentos relativos à interacção social, que são necessários à enunciação e ao diálogo, os conhecimentos relativos ao conteúdo daquilo que é dito, que são evidentemente essenciais para convencer e argumentar. Todos estes conhecimentos, eventualmente explícitos, frequentemente implícitos, formam a base cognitiva da actividade. Finalmente a adaptação a diferentes auditórios seria impossível se o esquema não comportasse possibilidades de inferência na situação. São uma pedra angular do funcionamento do esquema, em razão justamente do carácter fundamentalmente adaptativo da actividade. Mas deve-se compreender ao mesmo tempo que são as conceptualizações contidas nos esquemas sob a forma de invariantes operatórias que permitem essas inferências: por descombinação, recombinação e eventualmente descoberta. Nunca há-de ser suficientemente entendido que a adaptação seria impossível se o esquema resultasse simplesmente da repetição da mesma actividade frente a situações muito próximas umas das outras. O esquema não é um estereótipo, embora os estereótipos sejam esquemas. A mesma pessoa pode muito bem executar uma forma de actividade relativamente estereotipada na maioria das ocasiões que tem de encontrar um determinado tipo de situações, e ao mesmo tempo ser capaz de se afastar totalmente desse estereótipo para tratar uma situação à margem ou uma situação totalmente nova. De forma análoga, devemos considerar que os gestos profissionais que são regidos por regras e por normas estritas, na condução de máquinas perigosas ou na utilização de determinados produtos, constituem apenas a parte visível da actividade e não mostram o trabalho subjacente da representação, que pode produzir em determinadas ocasiões condutas muito afastadas das normas. Os pilotos de avião, os condutores de centrais nucleares, os técnicos de laboratórios farmacológicos que operam sobre micróbios, vírus e outras gentis moléculas, respeitam, é verdade, um determinado número de normas: mas delas se afastam sem rodeios em caso de necessidade; muitos estudos o mostram. Do lado das matemáticas e do cálculo científico e técnico, observam-se também formas de organização da actividade bem estabilizadas que se denominam algoritmos, que mantêm laços de necessidade com a estrutura dos problemas a tratar. Os algoritmos são fortemente socializados visto serem supostamente utilizados da mesma maneira por todos os professores da mesma comunidade; além disso, a sua eficácia (consecução do resultado num número finito de passos) baseia-se em laços de necessidade que unem as propriedades das operações efectuadas e aquelas dos objectos sobre os quais se opera. Os algoritmos são esquemas, mas nem todos os esquemas são algoritmos. Em última análise, o esquema é uma forma de organização da actividade, invariante na sua organização, mas que permite a maior plasticidade no decurso temporal da actividade em situação. O conceito de esquema diz respeito a todos os registos da actividade humana, não só os gestos, nem apenas os raciocínios

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e os cálculos mentais sobre processos físicos e sociais complexos, nem só a actividade associada à língua, nem apenas as relações com os outros. Como é difícil estudar tudo de uma só vez, os investigadores dividem o seu objecto nesse tecido vivo que é a actividade em situação. Mas a competência de uma pessoa diz respeito ao conjunto da sua actividade, e a sua evolução diz respeito a toda a vida: desenvolvimento e tendências.

4. Dois estudos empíricos recentes 4.1. O controlo de qualidade na siderurgia Numa tese recentemente defendida, V. Pueyo estuda técnicos cuja função é a de controlar bobinas de aço à saída de um laminador; a tese compara indivíduos com mais idade a outros mais jovens, interessa-se pelo declínio de determinadas funções fisiológicas e pelo desenvolvimento de algumas outras, nomeadamente as regulações da actividade. Um dos seus subtítulos resume bem o seu propósito: do «declínio do olho» ao «golpe de vista». Com a idade, a sensibilidade à luz diminui, a intensidade dos clarões aumenta, o poder de acomodação declina, determinados desempenhos no trabalho declinam. Vê-se, por outro lado, o desenvolvimento das formas mais sintéticas e mais eficazes de recolha de informação, uma melhor selecção da informação pertinente, a identificação mais rápida de casos problemáticos, uma melhor capacidade em situar os acontecimentos no seu campo temporal. A antecipação de circunstâncias de risco, que supõe uma boa representação das evoluções possíveis de uma situação, permite regularizações interessantes da actividade. É provavelmente do lado das antecipações que se devem procurar as compensações, nos trabalhadores de mais idade, dos declínios da atenção, da memória e da sensibilidade perceptiva. É assim que a análise da actividade dos operadores encarregados de verificar a qualidade das bobinas fabricadas por um laminador revela um campo temporal de regulação mais extenso nos antigos, uma gestão menos circunstancial, centrada mais sobre o processo contínuo, um trabalho sobre um número superior de bobinas além da bobina que está a ser fabricada, nomeadamente quando parece estar a preparar-se um incidente. Os antigos são mais prudentes do que os jovens, e esperam que uma maior proporção de bobinas seja eventualmente defeituosa. Consultam mais completamente o programa durante o tratamento da bobina, duvidando do computador e da sua própria memória. Os antigos usam mais a exploração táctil do aço do que os jovens, todavia igualmente experientes. Esta exploração não é frequente e além disso leva a um certo cansaço, mas a procura de defeitos precisos, vinda depois da recolha de outras informações, parece ser vantajosa. Uma outra diferença interessante entre operadores antigos e jovens diz respeito à gestão das máquinas-ferramentas: em prevenção mais do que em recuperação depois de disfunções. Encontra-se a mesma diferença quando, ocasionalmente, um operador deve gerir uma outra máquina-ferramenta, o laminador nomeadamente. Os mais jovens são aliás pouco chamados para o fazerem.

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O controlo do sistema técnico de produção parece portanto ser uma competência em favor dos mais antigos. Uma variável interessante é estudada por V. Pueyo: os deslocamentos dos operadores para procurar tal ou tal informação, gerir o processo, informar outros operadores ou responder ao seu chamado. Estes deslocamentos são penosos para todos, mas os antigos conseguem melhor do que os jovens limitá-las em número. Finalmente, os antigos comunicam mais frequentemente, até duas vezes mais para determinadas ocasiões de comunicação. Gerem o tempo da produção pela comunicação e fazem da comunicação uma estratégia multifuncional, com uma rede mais alargada de pessoas. A análise qualitativa da actividade dos operadores em determinados casos bem localizados de defeituosidade (deriva da rugosidade, solda defeituosa, falha e quebra) mostra que os antigos efectuam controlos mais numerosos e mais aprofundados, afastando-se em vários pontos do trabalho prescrito. Finalmente inscrevem melhor a sua própria actividade no colectivo. Em resumo, para esta categoria de operadores industriais cuja função é delimitada e relativamente repetitiva, observa-se um efeito positivo da experiência (aqui avaliada pela idade e pelo tempo no posto de trabalho). Este efeito não é tão espectacular como aquele que vamos agora evocar, mas é mais sensível e bem demonstrado. Tendo perdido algumas competências elementares, os operadores mais antigos compensam-nas amplamente, graças a regulações e antecipações, a um melhor conhecimento das eventualidades a considerar, a um melhor domínio do sistema técnico de conjunto e do colectivo encarregado de o gerir. […]

À guisa de conclusão O desenvolvimento das competências diz respeito a toda a vida e baseia-se em três fontes principais: a formação inicial, a experiência, a formação contínua. A experiência é incontornável: não se domina um campo de actividade e não é possível tornar-se especialista sem experiência directa dessa actividade. Mas a formação inicial fornece meios importantes para tirar o melhor proveito da experiência, interpretá-la e traduzir em forma predicativa a forma operatória do conhecimento oriundo da experiência no trabalho. Pelo seu lado, a formação contínua tira proveito da experiência, no sentido em que aquele que participa de uma formação pode apoiar-se na sua experiência própria para dar sentido àquilo que lhe é então ensinado. Reciprocamente, a formação contribui utilmente para a formação das competências, e permite economizar muito na duração da aprendizagem que resultaria unicamente da experiência no trabalho A formação contínua desenvolveu-se muito, por razões associadas tanto à evolução das técnicas e das formas de trabalho como à elevação rápida, em alguns anos, do nível de formação requerido para exercer uma profissão e para encontrar um emprego.

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O desenvolvimento cognitivo diz respeito evidentemente aos adultos, e não apenas às crianças. Para medi-lo, é necessário entrar com um certo pormenor na análise das actividades complexas que são aquelas do homem e da mulher no trabalho hoje em dia.

Leituras recomendadas AMALBERTI, R., DE MONTMOLUN, M., THEREAU, J. (eds.) (1991), Modèles en analyse du travail, Liêge, Mardaga. BALTES, P., BALTES, M. (eds.) (1990), Successful Aging, Cambridge, Cambridge University Press. BARBIER, J.-M. (ed.) (1996), Savoirs théoriques et savoirs d'action, Paris, PUF. DE TERSSAC, G. (1992), Autonomie dans le travail, Paris, PUF. LEPLAT, J., CUNY, X. (1994), lntroduction à la psychologie du travail, Paris, PUF. MARQUIÉ, J.-C., PAUM, D., VOLKOFF, S. (eds.) (1995), Le travail au fil de l'âge, Toulouse, Octares. PUEYO, V. (1999), Régulation de l'efficience en fonction de I'âge et de I'expérience professionnelle dans la gestion de contr6le de qualité de la sidérurgie, tese de doutoramento, Paris, École pratique des hautes études. RUBIN, WILSON, B. A. (eds.) (1989), Every Day Cognition in Adulthood and Old Age, Nova Iorque, Cambridge University Press. SALTHOUSE, T. A. (1985), A Theory of Cognitive, Aging, Amesterdão, Elsevier Science Publishers. VILAR DE MELO, M.-F. (1999), Le développement de la conceptualisation et de I'argumentation chez des syndicalistes de faible niveau de formation de base, tese de doutoramento, Paris, Université Paris 5.

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TEXTO 12 O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DO ADULTO


TEXTO 13 EDUCAÇÃO DE ADULTOS: UM CAMPO E UMA PROBLEMÁTICA

Rui Canário, 2000, pp. 20-22 e 109-117


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O texto de António Nóvoa é uma reflexão sistematizada sobre um projecto inovador de formação, tendo como destinatários profissionais da saúde (Projecto Prosalus) e que tem como principal referência teórica as histórias de vida. Na conclusão do texto, o autor enuncia seis princípios, susceptíveis de servir de orientação a qualquer projecto de formação de adultos. São eles (pp.128-130): 1.º princípio: «O adulto em situação de formação é portador de uma história de vida e de uma experiência profissional […]. Mais importante do que pensar em formar este adulto é reflectir sobre o modo como ele próprio se forma, isto é, o modo como ele se apropria do seu património vivencial através de uma dinâmica de compreensão retrospectiva.» 2.º princípio: «A formação é sempre um processo de transformação individual, na tripla dimensão do saber (conhecimentos), do saber fazer (capacidades) e do saber ser (atitudes).» Concretizar este objectivo supõe «uma grande implicação do sujeito em formação, de modo a ser estimulada uma estratégia de autoformação», bem como «uma participação alargada dos formandos na concepção e implementação do projecto de formação». 3.º princípio: «A formação é sempre um processo de mudança institucional, devendo, por isso estar intimamente articulada com as instituições onde os formandos exercem a sua actividade profissional.» A consecução deste objectivo apela «a uma grande implicação das instituições», à celebração de um «contrato de formação entre as três partes interessadas (equipa de formação, formandos e instituições)» e à adopção de «uma estratégia de formação em alternância, que viabilize uma ligação estrutural entre os espaços de formação e de trabalho». 4.º princípio: «Formar não é ensinar às pessoas determinados conteúdos, mas sim trabalhar colectivamente em torno da resolução de problemas. A formação faz-se na “produção” e não no “consumo” do saber. Este objectivo implica que se procurem levar à prática três conceitos fundamentais da formação de adultos: formação-acção (…), formação-investigação (...) e formação-inovação.» Ou seja: «A formação deve organizar-se numa tensão permanente entre a reflexão e a intervenção», «a formação deve basear-se no desenvolvimento de um processo de investigação», «a formação deve ser encarada como uma função integradora institucionalmente ligada à mudança». 5.º princípio: «A formação deve ter um cariz essencialmente estratégico, preocupando-se em desenvolver nos formandos as competências necessárias para mobilizarem em situações concretas os recursos teóricos e técnicos adquiridos durante a formação.» 6.º princípio: «E não nos esqueçamos nunca que, como dizia Sartre, o homem caracteriza-se, sobretudo, pela capacidade de ultrapassar as situações pelo que consegue fazer com que os outros fizeram dele. A formação tem de passar por aqui.» […]

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CAPÍTULO III Formação de adultos e experiência Da formação de natureza escolar, característica dos processos de formação inicial, marcados pelo formalismo e pelo seu carácter centrípeto, estão, tendencialmente, ausentes pontos de referência experienciais. Contudo, numa perspectiva de educação permanente, os processos de aprendizagem aparecem, sobretudo, como a estruturação articulada de diferentes momentos experienciais do sujeito que permitem formalizar saberes implícitos e não sistematizados. É esta valorização da experiência que conduz, também, a valorizar a heterogeneidade e a adequação contextualizada dos processos e ofertas formativas. A experiência de quem aprende torna-se o ponto de partida e o ponto de chegada dos processos de aprendizagem, estruturados, segundo Malglaive (1990), por um ciclo recursivo entre uma via simbólica e uma via material de aprendizagem. Uma lógica de ruptura com a experiência (forma escolar) dá assim lugar a uma lógica de confronto e articulação permanentes entre a teoria e a acção.

Aprendizagem e experiência O reconhecimento da importância da experiência nos processos de aprendizagem supõe que esta é encarada como um processo interno ao sujeito e que corresponde, ao longo da sua vida, ao processo da sua autoconstrução como pessoa. Neste sentido, o processo de formação permanente é indissociável de uma concepção inacabada do ser humano que, como afirma Bernard Charlot, está sujeito, desde que nasce, à «obrigação de aprender», e em que a educação é entendida como uma «produção de si, por si», ou seja: «Aprender para se construir, segundo um triplo processo de hominização (tornar-se homem), de singularização (tornar-se um exemplar único de homem), de socialização (tornar-se membro de uma comunidade, da qual se partilham os valores e em que se ocupa um lugar). Aprender para viver com outros, homens com os quais se partilha o mundo» (1997, p. 60). A centralidade do sujeito, no quadro desta maneira de conceber a aprendizagem, decorre de dois aspectos fundamentais: O primeiro consiste na criação do sentido, uma vez que o conhecimento não é o resultado de um processo cumulativo de informação, mas sim de um processo de selecção, organização e interpretação da informação a que estamos expostos e que, segundo os contextos e segundo as pessoas, pode dar origem a perspectivas muito diferentes. Deste ponto de vista, segundo Barth (1996, p. 25), aprender significa «atribuir sentido a uma realidade complexa» e essa construção de sentido é feita a partir da história «cognitiva, afectiva e social» de cada sujeito.

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Por outro lado, a mobilização do sujeito para autoproduzir a sua vida (Pineau, 1983) faz apelo a que ele «se utilize a si próprio como um recurso» (Charlot, 1997, p. 62). Esta mobilização tem um carácter intrínseco ao sujeito que se contrapõe ao carácter «artificial» e «externo» para que remete o conceito de motivação, associado ao paradigma escolar. É esta mobilização do sujeito que sustenta o processo recursivo entre a acção e a teoria, de que nos fala Gérard Malglaive, ou o ciclo que, segundo Kolb (1984), corresponde ao processo de formação experiencial: da experiência concreta à observação reflectida, desta à conceptualização abstracta e à experimentação activa. Estamos perante uma concepção do conhecimento que diverge, no essencial, da concepção cumulativa, molecular e transmissiva própria da forma escolar tradicional, supondo também um outro papel e uma outra postura por parte de quem está investido da qualidade de formador, a quem se exige que esteja atento e «à escuta» do que sabe o aprendente, ajudando-o a formalizar saberes tácitos adquiridos na acção. Donald Schön, referindo-se ao sistema escolar, descreve assim esta nova perspectiva do processo de aprendizagem, do papel do sujeito e da importância dos saberes de que ele é portador: «É possível ilustrar uma segunda visão do conhecimento e do ensino através dos professores que deram razão ao aluno. Os professores reconheceram nas crianças uma capacidade que o filósofo Michael Polany designa de conhecimento tácito: espontâneo, intuitivo, experimental, conhecimento quotidiano, do tipo revelado pela criança que faz um bom jogo de basquetebol, que arranja uma bicicleta ou uma motocicleta ou que toca ritmos complicados no tambor, apesar de não saber fazer operações aritméticas elementares. Tal como um aluno meu me dizia, falando de um seu aluno: “ele sabe fazer trocos mas não sabe somar números”. Se o professor quiser familiarizar-se com este tipo de saber, tem de lhe prestar atenção, ser curioso, ouvi-lo, surpreender-se e actuar como uma espécie de detective que procura descobrir as razões que levam as crianças a dizer certas coisas» (1992, p. 82).

A articulação dialéctica entre os saberes adquiridos na acção e os saberes formalizados, de natureza teórica, proposta pelos autores que, como Schön, enfatizam a reflexão na acção como processo de conhecimento, representa o aspecto principal da evolução teórica e epistemológica que consistiu em estabelecer uma ruptura com uma epistemologia da prática que a reduz a um estatuto de «aplicação» da teoria. Esta ruptura implica o reequacionamento do papel (na produção de novos conhecimentos) dos saberes, prévios a uma situação de aprendizagem. A aprendizagem, enquanto actividade do sujeito de construção de uma visão do mundo (isto é, de si próprio, das relações com os outros e da relação com a realidade social), consubstancia-se num sistema de representações que funciona, simultaneamente, para «ler» a realidade de um modo confirmatório, ou como ponto de referência para construir novas «visões do mundo» (ou seja, «aprender»). A desvalorização da experiência do aprendente e, portanto dos seus conhecimentos prévios, é tributária de uma concepção de ruptura com o senso comum, de raiz bachelardiana, que identifica a experiência, essencialmente, como um

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obstáculo ao conhecimento. Em contraposição, uma perspectiva, algo ingénua, encara a aprendizagem como uma dinâmica que seria espontânea, «natural», decorrendo linearmente das experiências anteriores do sujeito. A ideia que hoje tende a ser prevalecente, no campo das teorias da formação, nomeadamente da formação de adultos, conferindo uma importância decisiva aos saberes adquiridos por via experiencial, e ao seu papel de «âncora» na produção de novos saberes, procura articular uma lógica de continuidade (sem a referência à experiência anterior não há aprendizagem) com uma lógica de ruptura (a experiência só é formadora se passar pelo crivo da reflexão crítica). É esta articulação entre a experiência e a reflexão que permite, segundo a expressão de Dominicé (1985), «fazer da necessidade virtude». De um ponto de vista próximo do construtivismo proposto por Piaget, a experiência anterior do sujeito funciona como uma matriz de acolhimento de informações segundo um duplo processo, por um lado, de assimilação (integram-se informações, sem pôr em causa a estabilidade do sistema) e, por outro lado, de acomodação (as novas informações são conflituais com o sistema e provocam mudança). É nesta perspectiva que, segundo Bourgeois e Nizet (1997): «não pode haver aprendizagem se não com e ao mesmo tempo contra os conhecimentos prévios do sujeito, na medida em que a aprendizagem (a acomodação de uma estrutura de acolhimento) supõe, no mínimo, que haja, ao mesmo tempo, assimilação de uma informação nova por uma estrutura de acolhimento e conflito entre ambas» (p. 30).

[…]

Do ensinar ao aprender As ciências da educação, nomeadamente na sua vertente de «pedagogia científica», têm vindo a perseguir uma resposta para a questão de saber como ensinar. Perguntar «como se formam os adultos?» corresponde a uma mudança radical de paradigma que corresponde a uma revalorização epistemológica da experiência (Desmarrais e Pilon, 1996, p. 12), no centro da qual se inscreve a corrente das histórias de vida, entendidas, em simultâneo, como instrumentos de investigação, de formação e de intervenção. A prática biográfica, transposta para o campo da formação de adultos, estabelece uma ruptura na medida em que, como refere Dominicé (1996), apreende o adulto na globalidade daquilo que a sua vida lhe permitiu aprender. A prática das histórias de vida institui-se, deste ponto de vista, como uma maneira «outra» de pensar o processo educativo: «Já não se trata de aproximar a educação da vida, como nas perspectivas da educação nova ou da pedagogia activa, mas de considerar a vida como o espaço da educação. A história de vida passa pela família. É marcada pela escola. Orienta-se para uma formação profissional, e em consequência beneficia de tempos de formação contínua. A educação é, assim, feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida» (Dominicé, 1988, p. 140).

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Entendida como um ciclo vital no decurso do qual se produz uma autonomização da pessoa que produz a sua própria forma, a formação pode ser lida como um processo tripolar (Pineau, 1983, 1991) em que a dimensão autodesempenha o papel articulador fundamental entre os «três mestres» da educação de cada um de nós: o eu (autoformação), os outros (heteroformação), as coisas (ecoformação). A autoformação corresponde então a uma visão larga que enfatiza a sua dimensão existencial, correspondendo a uma abordagem que Gaston Pineau (citado por Galvani, 1991, p. 24) qualificou de «bioepistemológica»: bio porque «encara a formação como o processo vital que define a “forma” de todo o ser vivo», epistemológica porque a acção autoformadora é sempre reflexiva. Nesta visão larga, a autoformação permanente (Carré, 1992) emerge como sinónimo de um processo de educação permanente, globalizado em termos cronológicos e em termos institucionais, na medida em que atravessa todos os tempos e todos os lugares.

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TEXTO 14 A DIMENSÃO HISTÓRICA DO SUJEITO NA FORMAÇÃO DOCENTE

Maria da Conceição Passeggi www.ccsa.ufrn.br/ccsa/docente/conceicaoartpub3.pdf


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A partir dos anos 70, o paradigma interpretativo, nas ciências sociais e humanas, reintroduz o sujeito no centro da investigação científica. Considerado como actor social, o sujeito dispõe de uma certa autonomia, ele não é nem integralmente submetido ao inconsciente psicológico, nem prisioneiro das estruturas sociais, «o actor possui competências, uma reflexividade (capacidade de analisar uma situação) e margens de acção». Esse novo paradigma, que se consolida nos anos 80, preocupa-se com as representações do sujeito e a maneira como ele constrói a realidade, interessa-se sobre os seus esforços cognitivos e a maneira como utiliza estratégias para analisar uma situação e agir em consequência, com o outro e sobre o outro. Reabilitam-se, assim, a dimensão histórica do sujeito, as suas experiências e a sua temporalidade frequentemente negligenciadas pela história. De facto, essa dimensão só é pressentida em casos extremos de despersonalização, como nos lembram Pineau e Le Grand (1999, p. 5), retomando as palavras de Solijénitsyne: «Não temos sequer a certeza de ter o direito de contar os acontecimentos de nossa própria vida.» Trata-se então de dar voz ao sujeito, evidenciar o quotidiano, restabelecer o valor do conhecimento do senso comum, considerar o homem comum para melhor entender os seres humanos. No âmbito da formação permanente, e aqui referimo-nos também à formação profissional do adulto, essa renovação encontra na abordagem (auto)biográfica (Dominicé, 2000) um terreno fértil para o enraizamento de novas práticas de formação e de pesquisa. Essa abordagem leva em conta a subjectividade do actor e postula que as histórias de vida, contadas oralmente ou por escrito, mobilizam, na pessoa que narra, a capacidade de transformar as representações de sua trajectória e o modo como elas interferem na sua forma de agir e de estar no mundo (Delory-Momberger, 2000; Pineau, 1996). Nesse sentido, a narrativa autobiográfica é, para o narrador, lugar de reconstrução de saberes profissionais e identitários e torna-se, por essa mesma razão, um método privilegiado para o pesquisador ter acesso ao universo da formação e à subjectividade do adulto. É a partir dos anos 90, sob a influência dos estudos desenvolvidos por Nóvoa (1988, 1992), que a abordagem autobiográfica recupera no âmbito da formação docente a dimensão histórica do adulto, nos estudos e pesquisas realizados em Portugal e em seguida no Brasil. Até então, a imagem dos adultos nos estudos educacionais era apresentada como a de meros receptores e repetidores de conhecimentos. Em decorrência dessa representação, subestimavam-se as suas experiências e seu papel enquanto sujeitos históricos. Pouca importância era dada à sua voz e à história de sua vida pessoal e profissional. A historicidade e a temporalidade dos processos políticos e educacionais não podiam pautar-se em experiências indizíveis, social e historicamente irrelevantes. A revalorização actual da experiência do adulto, como estratégia para a sua formação, dentro do «programa reflexivo» (Libâneo, 2002), inspirado nos estudos de Donald Shön, nós encontramo-la na

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abordagem autobiográfica, utilizada desde os anos 80 na formação do adulto, mesmo se não se falasse explicitamente de «prática reflexiva» (Perrenoud, 2002). Nos nossos estudos, fazemos convergir as nossas análises para a importância da reflexividade do sujeito como caminho para a sua autonomia pessoal e profissional. Inspiramo-nos do pensamento de Paulo Freire e no papel central que desempenhou «na elaboração de uma reflexão sobre a prática educativa» (Dominicé, 2000, p. 31), no domínio da educação de adultos. Fundado numa concepção emancipadora da educação e da aprendizagem, o olhar lançado por Freire sobre o sujeito em formação (re)valoriza as suas referências, valores, experiências e a forma como este dá sentido à existência. Nessa perspectiva, o nosso objectivo é apresentar, a partir da abordagem (auto)biográfica (Dominicé, 1990), interrogações sobre a imagem do adulto como actor social, que empresta a sua voz e o seu olhar a múltiplos personagens, nem sempre consciente dos papéis que desempenha (pessoa, formando, profissional, membro de uma família, amigos, etc.), e a (re)construção de uma imagem do adulto, ainda muito pouco estudada, a de autor/narrador, que recupera a historicidade de seu próprio percurso pessoal, educativo e profissional, ao longo do processo de uma formação continuada, para a partir dessa reflexão se reinventar e reinventar a sua forma de agir e de estar no mundo e com os outros. Colocamos em discussão resultados parciais de pesquisas sobre a (re)constituição das representações identitárias e as suas implicações para o estudo do papel das instituições formadoras como instâncias de (re)socialização e sociabilidade, que detêm o poder de desautorizar e/ou autorizar a palavra do sujeito em situação de formação e contribuir ou não para a sua autonomia pessoal e profissional. Os dados empíricos estão constituídos por 13 memórias de formação, escritos pelos nossos informantes, e transcrições de 17 horas audiogravadas nas mediações. As memórias de formação e as mediações, adoptados desde 1994 na instituição pesquisada, chamaram a nossa atenção pelo seu carácter estimulador da reflexão crítica na (re)conceitualizacção de saberes conceptuais, práticos e identitários. O estudo sobre esses dois tipos de dados empíricos tem pois como finalidade estabelecer paralelos entre o que o adulto escreve nas suas memórias e o que ele diz nos relatos orais. As transcrições das mediações permitiram-nos acompanhar, através dos relatos dos adultos, as suas vivências na instituição formadora e identificar elementos mobilizadores das transformações das suas representações sobre seu saber-fazer e saber-ser, ao longo do último ano de sua formação. As memórias permitem-nos analisar como o adulto reorganiza fragmentos de sua vida passada, presente e futura na tessitura do enredo para dar à sua história coerência e unidade. A análise dos dados sugere-nos que contrariamente ao que se possa pensar, desenvolver uma reflexão sobre si mesmo não é tarefa fácil, ainda menos quando se trata de socializar dilemas, partilhar conflitos e

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incertezas com seus pares e os formadores, no caso das mediações, ou escrever sobre a vida pessoal e profissional sob a pressão do contexto institucional. Ambas as tarefas exigem daquele que narra uma selecção rigorosa dos factos e bons argumentos para justificar as dificuldades, escolhas, tomadas de posição, (in)decisões... Para Dominicé (1990, p. 167), «o exame dos processos de formação, entendidos como dinâmica de aprendizagem e de mudança, não se pode fazer sem referência explícita à forma como o adulto vivenciou as situações concretas de seu próprio percurso educativo». É de facto a forma como o adulto revive as suas experiências que estas lhe permitem reconstruí-las e reconstruir-se pessoal e profissionalmente. Nesse sentido, retomamos as observações de Pastré (1997) quando distingue dois tipos de experiências: «uma experiência que enclausura o sujeito na automatização da sua conduta; e uma experiência que se abre, mesmo de forma limitada, sobre perspectivas que ultrapassam a simples vivência». Desejamos concentrar nossas análises nas vozes dos adultos, através das quais expressam as suas crenças, valores, interesses, enquanto verdades míticas ou não. A ênfase nos saberes do senso comum será entendida como forma de aproximação à subjectividade do adulto. Como nos sugere Piaget, as operações de pensamento não são directamente acessíveis ao sujeito, cabe ao pesquisador fazer as inferências necessárias para bem descrever e compreender, o que o leva a agir como age. É sobre esse material verbalizado que pretendemos exercer a actividade de análise adoptando uma óptica teorizante das situações analisadas. Acercamo-nos das memórias e das mediações, considerando essencialmente que as experiências narradas ou relatadas são acções de linguagem (Bronckart, 1999). Por essa razão, apoiamo-nos em correntes teóricas que enfatizam a dimensão interaccional da linguagem e permitem analisar o conteúdo e as condições de produção dos enunciados, orais e escritos. Observamos que as reflexões conduzidas nas memórias e nas mediações constituem desde o início um processo de desconstrução das representações que tem o adulto de si mesmo e do processo de formação. É sem dúvida por essa razão que provocam desequilíbrios afectivo e cognitivo, diante dos quais o adulto toma consciência de que não pode escapar à necessidade de tomar-se como sujeito e objecto de sua própria reflexão. A originalidade da situação analisada é que essa reflexão se realiza simultaneamente em três tipos de espaços institucionais. Um espaço institucional privado, representado pela escrita da memória, onde o adulto é levado a verbalizar e a sistematizar uma reflexão crítica sobre os seus saberes conceptuais, práticos e identitários em processo de transformação. E dois espaços institucionais, o primeiro é o das mediações na instituição de formação, onde as interacções sociais, baseadas num contrato de ajuda mútua, conduzem o adulto a sair do solilóquio e a partilhar com o grupo suas dúvidas, angústias mas também suas conquistas. O segundo é o espaço institucional de aprendizagem, ou seja, sua própria sala de formação,

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onde o adulto, com o grupo, busca pôr em prática a reflexão conduzida nas memórias e nas mediações. Sob o impacto dessas actividades reflexivas simultâneas, o adulto coloca em questão os seus saber ser, fazer e dizer docentes e compreende a necessidade de reconstruí-los, ao longo da sua formação e depois desta. A análise das memórias e das mediações permitiu-nos teorizar a evolução das representações de si mesmo, que se realizam na confluência desses espaços institucionais, a partir de três movimentos, sugeridos pela estrutura textual das memórias e a evolução das representações que se configuram na análise das interacções sociais. A partir de olhares retrospectivos e projectivos, o adulto vai transformando as representações de si mesmo e das suas atitudes e práticas de formação dentro de três movimentos. O primeiro é o da tomada de consciência de si e do fazer pedagógico; o segundo é o da conscientização dos papéis sociais e da sua acção na formação; e o terceiro é o da responsabilização pelo processo permanente de sua autoformação e da formação do outro. Essa evolução pode ser representada sobre um continum onde se pode imaginar que os três movimentos se encadeiam ao longo do processo formativo. Eles sinalizam as «mutações» identitárias que se realizam na narrativa e através da narrativa. Identificamos que, por sua vez, cada movimento compreende três etapas: a escalada da crise identitária, que se configura pela dificuldade para se (re)definir a si mesmo; a busca da solução para os problemas, através da mobilização de estratégias para a apropriação de uma nova identidade; e o desfecho do movimento que se dá pela assunção de estados de consciência, resultantes dos efeitos da acção reflexiva. A tomada de consciência (Piaget, 1974) desencadeia-se, a partir das primeiras sessões de mediação, sob o impacto dos conflitos sociocognitivos, provocados sobretudo pela tarefa da escrita da memória e a necessidade da mudança no imaginário do adulto. Ela caracteriza-se, principalmente, por um retorno ao passado e um olhar egocêntrico sobre os discursos que dele emanam, sinalizando resistências à mudança e dificuldades de descentração. O adulto, a partir dos conhecimentos adquiridos na instituição formadora, procura razões para justificar suas dificuldades presentes e suas tomadas de posição no passado. Entre o abandono da «antiga identidade» e a construção de uma nova identidade, existe um vazio onde o «eu não é mais nada» (Dubar, 2001). O adulto deve dar-se razões para redefinir suas acções e buscar soluções para os impasses vividos na instituição e na sala de formação. O desfecho desse movimento efectua-se pela conquista do que chamamos de «identidade resgatada», adquirida pela consciência do esforço a ser realizado para ressignificar os saberes conceptuais e as aprendizagens. O segundo movimento, o da conscientização, coincide com o momento da reescrita das primeiras versões das memórias. Para Paulo Freire (1997), a conscientização representa «um aprofundamento da “tomada de consciência”». É através da reflexão conduzida nas mediações e pela memória, que o adulto parece afastar-se

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da curiosidade ingénua sobre ele mesmo, sobre seu saber e saber-fazer, para exercer uma «curiosidade epistemológica» (ib) e interrogar-se sobre o «valor dos valores» (Hadji, 2001, p. 117), construir crenças sobre suas crenças, representações sobre suas representações. Mas, como insiste Paulo Freire, a conscientização não se dá fora da acção. É chegado o momento para o adulto ultrapassar os desafios colocados pela reflexão, através da sua acção no contexto de formação. Para ele, torna-se imperativo criar, inventar, (re)inventar-se. Se no primeiro movimento o adulto se refugiava no passado, ele busca agora libertar-se de uma cegueira cognitiva que o impedia de se situar como sujeito no processo histórico da sua formação e de fazer ouvir a sua voz por entre os discursos produzidos. O desfecho desse segundo movimento realiza-se pela conquista da «identidade reflexiva» (Dubar, 2001), que permite ao adulto aderir ou recusar modelos identitários, colocados em circulação pelos discursos predominantes. O último movimento, o da responsabilização, surge nas últimas sessões das mediações e nas últimas páginas das memórias. Ao longo do processo formativo, o adulto, através da prática reflexiva da narrativa autobiográfica e dos seus relatos orais, vai exercitando a capacidade de se envolver em projectos futuros, de se reinventar e de contribuir para a reinvenção do outro e da entidade onde se insere, no sentido de exercer o controlo sobre «a aspiração, a confiança, o optimismo e seus opostos». Ao longo da trajectória da sua formação, o adulto pode oscilar entre a permanência ou a transformação das suas representações iniciais. As tarefas colocadas no início do curso, a escrita das suas memórias e a necessidade de inovar as suas atitudes e práticas de aprendizagem, emergem no seu imaginário como desafios insuperáveis. No final do percurso, reconhecer que ambos foram ultrapassados toca profundamente sua auto-estima e indica-lhe um novo caminho para a conquista da autonomia pela possibilidade de saber vencer outras dificuldades no seu percurso pessoal e profissional. O desfecho desse último movimento realiza-se pelo que chamamos com Dubar (2001) da «conversão identitária» de actor em autor, marcada pela consciência da incompletude e o comprometimento ético e político do adulto na construção da sua história e da história de sua formação. Os resultados mostram-nos que as narrativas produzidas na interacção social com colegas e formadores, e consigo mesmo, na escrita das suas memórias, cumprem os rituais de desconstrução da representação de si mesmo como actor vivenciando papéis sem ter consciência das suas palavras, dos seus actos e das situações que experienciou. Mas, é na última sessão de mediação que podemos observar a assunção de si mesmo como autor de sua própria história. Considerando que a produção dessas narrativas se realiza em contexto institucional, poderíamos insistir na incidência de normas coercivas e inibidoras, tanto na interacção social do grupo como no processo de autoria das memórias, como elementos bloqueadores do movimento emancipador, subjacente à prática da abordagem autobiográfica, em situação de formação. É evidente que não podemos esquecer que toda a

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situação de formação se sustenta num projecto voluntarista da instituição formadora, pressupondo transformações úteis e desejáveis para o sujeito. Sabemos também que o sujeito, conduzido pelas suas representações, pode aderir ou oferecer resistências ao processo. De modo que, segundo as suas crenças, preferências e valores, ele reconstrói, adapta os saberes circulantes nos discursos, resistindo ou aderindo. Os resultados das nossas análises sobre os dados empíricos colectados parecem sinalizar que as transformações representacionais dos saberes práticos e identitários, identificadas nas vozes dos nossos informantes, demonstraram que se as restrições normativas da instituição podem, eventualmente, cercear enunciados, parecem não bloquear os efeitos benéficos da reflexão conduzida através da enunciação. Parece evidente que essa dimensão auto-reflexiva permite, ao menos na situação de formação, o abandono de estereótipos recebidos e a reinvenção de novos papéis, evitando o enclausuramento em experiências passadas. Para concluir admitimos que as histórias de vida, como fragmentos históricos, constituem fontes significativas para a permanente reconstrução da história da formação e das instituições educativas como instâncias de sociabilidade do sujeito.

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TEXTO 15 EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM E HISTÓRIAS DE VIDA

Gaston Pineau


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CAPÍTULO 16 A abordagem das histórias de vida faz entrar em formação vidas comuns em contenda – para a sua sobrevivência – com a aprendizagem de conjugar no singular múltiplos tempos e contratempos. Estas aprendizagens já começaram. Os seres vivos chegam com uma bagagem de experiências de tentativas e erros, de condicionamento, de reflexão, de desenquadramento/reenquadramento. Bagagem mais ou menos pesada, mais ou menos surda, feita de aprendizagens formais e informais que se misturam, se entrechocam, se perdem nas falhas de memória, rupturas de vida, pântanos de vivências julgados insignificantes. Por isso essa bagagem teima em não se abrir, em se formular, em se formalizar. Para quê? Para que há-de servir? A quem? Assim sendo, a abordagem das histórias de vida não é uma abordagem fácil. É uma abordagem difícil; até mesmo contestada por representantes disciplinares clássicos. Em 1986, Bourdieu, em L'illusion biographique, desprezava-a como sendo uma noção do saber comum entrada por contrabando no universo da ciência. Tara congénita de uma origem popular pouco distinta que nenhum trabalho científico pode lavar? Ou, pelo contrário, pressão heurística de um movimento social em busca – construção de novas abordagens, reencontrando aliás em profundidade tradições biográficas e bioética pré-disciplinares (Pineau, Le Grand, 1996)? A sua presença neste primeiro Tratado das ciências e técnicas da formação, depois da sua introdução na segunda edição do Dictionnaire encyclopédique de l' éducation et de la formation, mostra que esta abordagem se constrói apesar de e com as suas dificuldades, reatando laços com temporalidades de longa data.

1. Como abordar a bagagem experiencial de aprendizagem dos adultos? Na formação de adultos, o termo «aprendizagem» refere-se tanto aos sistemas herdados de formações profissionais curtas para as profissões com dominante manual quanto ao acto de aprender isolado pelos psicólogos e os pedagogos. Trabalhar com esta dupla referência é necessário para abordar a bagagem experiencial de aprendizagens acumuladas que carrega e até mesmo representa qualquer adulto. Com efeito, estes dois sentidos, instituídos em dois campos diferentes, dizem respeito a dois pólos que, para além da sua forma social actual, parecem de facto estruturar o trajecto da formação humana: os pólos manual/intelectual, sensível/inteligível, prático/teórico, informal/formal, acção/reflexão e até vida/cognição. As variações, durante os séculos e em diferentes escolas, das denominações destes dois pólos em pares opostos não devem esconder esta estrutura antropogenética em acção. Levar em conta estes dois pólos atractivos/repulsivos com a sua dinâmica interactiva tensiva é complexo. Esta consideração parece no entanto necessária para abordar nem que seja apenas um pouco daquilo que as histórias mesmo que embrionárias das experiências de aprendizagem durante a vida nos dão.

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1.1. Acto cognitivo em situação de formação? A obra Apprentissage et formation des adultes quer «abordar a problemática da aprendizagem em formação de adultos em referência a uma teoria geral da aprendizagem e do ensino» (p. 16). Esta teoria é uma extensão à aprendizagem adulta do modelo construtivista de conhecimentos de Piaget. A aprendizagem é vista como um processo de construção de conhecimentos que se articula em torno de dois mecanismos-chave de assimilação e de acomodação. A pujança do modelo de Piaget, o número e a precisão analítica das investigações de psicologia social cognitiva enriquecem incontestavelmente a compreensão das aprendizagens cognitivas em situação de ensino e de formação, quer seja de adultos, de crianças, de velhos, de mulheres, de operários. Mas, ao restringir a aprendizagem a situações de ensino e de formação, privilegiados em razão do carácter sistemático, intencional e sequencial (p. 36) que está mais próximo daquilo que se conhece da aprendizagem não adulta, não ficam prisioneiros do paradigma escolar e disciplinar herdado? E esta herança não nos faz passar ao lado daquilo que é essencial na aprendizagem adulta? Esta não opera principalmente in vivo, nas difíceis, progressivas e nunca definitivas situações em que se assume a vida, em situações de trabalho e de vida quotidiana, para ganhar a vida sem a perder, conforme uma expressão popular que concentra muito sentido. Generalizar aquilo que se sabe da aprendizagem cognitiva em situação de ensino in vitro ao conjunto da aprendizagem adulta in vivo é uma assimilação abusiva, ocultadora. É como se reduzíssemos a aprendizagem animal àquilo que se aprendeu com o estudo dos seus comportamentos em jaula. As mesmas jaulas impõem uma mesma situação que cada animal, mesmo numa idade diferente, deve assimilar e acomodar. Existem constantes. Mas essas observações em situação provocada nada ensinam sobre a especificidade das aprendizagens vitais desenvolvidas fora da jaula, em liberdade, para sobreviver. É numa jaula que saberemos como um animal selvagem aprende a caçar e a fazer amor para sobreviver? O desenvolvimento de seres vivos autónomos não se faz apenas pela adaptação homeostática mas também pela transformação morfogenética. A especificidade da aprendizagem adulta não reside nas auto-eco-aprendizagens provenientes da transformação de situações herdadas, «enjauladas», para formar as suas próprias aprendizagens? Abordar este desenquadramento situacional da aprendizagem adulta na vida quotidiana e no trabalho para produzir a sua vida necessita, na nossa opinião, de desenquadramentos paradigmáticos fundamentais, entre outros do positivismo, que desde há um século estruturou tanto o acto de ensinar quanto a sua abordagem atomizadora.

1.2. Modo operatório de formação prática? A palavra aprendizagem terá sentido nos estabelecimentos de ensino fora dos centros de formação de aprendizes (CFA)? Esta dura mas lúcida interrogação dos autores de L' acte d' apprendre (1992) lembra que, ao lado dos dados experimentais disciplinares sobre as dimensões psicocognitivas da aprendizagem, flutua

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uma representação muito mais massiva e popular que liga a aprendizagem aos modos operatórios muito concretos de formação nas profissões manuais. A. Geay lembra com força que «a aprendizagem é o mais antigo dos sistemas de educação técnica. Enraíza-se no desejo de todo homem e de toda a sociedade em transmitir aos seus filhos a sua experiência e o seu saber-fazer, condição de sobrevivência da espécie. É talvez porque tem raízes tão profundas na história individual e colectiva dos homens que a aprendizagem é o objecto de apreciações muito contraditórias» (p. 15). E retraça rapidamente a sua história desde a Idade Média com o modelo tanto cultural quanto profissional do compagnonnage. A obra de A. Guédez, Compagnonnage et apprentissage (1994), reactualiza com muito sucesso as suas grandes linhas. Essas formas tradicionais estão em crise desde o final do século XVI. A Revolução Francesa suprime-as em 1791. A partir da segunda metade do século XIX surgem novas formas, mas na dependência escolar da clivagem positivista entre teoria e prática, que marca o nascimento das escolas técnicas: O tempo da escola opõe-se ao tempo da aprendizagem? Cada coisa em seu tempo, diz Alain. O tempo do estudo e do espírito opõe-se ao tempo da acção e da produção (p. 18).

Nesta divisão do tempo, aquele da aprendizagem é nitidamente inferiorizado. É aquele da acção e da produção que não apenas é diferente mas também contrário ao do estudo e do espírito, visto que a ele se opõe. Esta oposição vai estigmatizar durante muito tempo a aprendizagem ligada à acção e à produção. Será necessária uma crise, por sua vez, do «tudo-escola» dos anos de 1970 para relançar a aprendizagem pela «via da alternância como ramo alternativo ao “tudo-escola” [...] Muito além do efeito de desescolarização benéfica para os jovens em dificuldade, deve-se ver que a alternância permite em primeiro lugar aprender aquilo que não é ensinado na escola» (p. 29). Mas a alternância herda o estatuto minimizado da aprendizagem. A sua construção prática e teórica de novas formas de aprendizagem parece situar-se bem nos movimentos de transições paradigmáticas que se esboçam e que parecem necessárias para abordar a bagagem experiencial das aprendizagens dos adultos.

1.3. Movimentos de transição paradigmática Os adultos chegam portanto com aprendizagens cognitivas ligadas à escola e outras ligadas à acção e à produção. Mas estas aprendizagens em geral não coexistem de forma clara e harmoniosa. O seu peso social e pessoal difere e entrechoca-se, criando conflitos não apenas cognitivos mas também profissionais, existenciais. A bagagem não só não está em ordem mas sequer está reunida. É justamente porque esta bagagem se apresenta em peças separadas que a vida adulta não é uma vida acabada, que está em formação permanente. A vida é para ser apreendida, aprendida. Talvez até seja co-extensiva ao próprio verbo aprender. «A vida é aprender» concluem os autores de L 'Acte d'apprendre (Aumont Mesnier, 1992), que exploram no movimento de formação de adultos aquilo que é este «novo aprender» (p. 267) com o que dele dizem os primeiros interessados, os adultos. TEXTO 15 EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM E HISTÓRIAS DE VIDA

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1.3.1. Em direcção a processos de empreender e de procurar Um dos pioneiros da formação de adulto, H. Desroche, toma o termo de aprendizagem para pontuar regularmente durante 20 anos a construção da sua obra. O título e o subtítulo do seu último livro de síntese, Apprentissage III. Entreprendre d’apprendre. D' une autobiographie raisonnée aux projets d'une recherche action (1990), ligam muito explicitamente a iniciativa pessoal que constitui a aprendizagem àquilo que Desroche denomina a autobiografia pensada, ou seja, um retorno reflexivo sobre o seu trajecto para dele construir um projecto de procura-acção-formação. Frente a um grupo, Desroche tinha o hábito de contabilizar as idades e de começar dizendo que a soma das idades representava o equivalente em anos de experiências de aprendizagem de trabalho. E para permitir esse trabalho, simplesmente, pedia aos adultos para inicialmente contarem esses seus anos de experiências. O tratamento cooperativo desses relatos construiu progressivamente a primeira utilização sistemática das histórias de vida nos cursos universitários de formação de adultos. Lançada a partir da Escola Prática dos Altos Estudos de Paris, nos anos 1979, esta introdução difundiu-se em múltiplas redes. Em França, as redes DHEPS2 (Diploma dos Altos Estudos da Práticas Sociais), DUEPS3 (Diploma Universitário de Estudo da Prática Social) e, mais recentemente, o DURF (Diploma Universitário de Responsável de Formação) desenvolvem esta autoformação assistida pela produção de saberes nos quais a história de vida constitui uma base importante de exploração e de integração pessoal das aprendizagens. Esta autoformação diplomadora quer fundar uma «antropoformação» vista como um processo de formação-acção-investigação em que o desafio da formação é o de transformar os problemas vividos em projectos de investigação. Os autores de L' Acte d' apprendre retomam duplamente esta pista. De um lado, ao emancipar o acto de aprender do acto de ensinar e ligando-o ao acto de empreender e de procurar: o que é que se aprende empreendendo e procurando? Do outro lado, tentando responder a essas questões a partir daquilo que dizem esses empreendedores e esses investigadores. A sua abordagem baseia-se numa utilização temática do método dos relatos de vida que eles consideram próximos dos relatos de aprendizagens (p. 52). Pediram a dez empreendedores e a sete investigadores as aprendizagens que o exercício da sua profissão provocava. Surgiu então a alegria de aprender, uma alegria vital, profunda, permanente. Aprender é uma constante, aprender faz-se com fervor e intensidade, aprender constrói saberes, dos mais práticos aos mais teóricos. Os processos estão abertos, à ordem do desenvolvimento e do ser vivo (p. 12).

A noção de acto, pontual, atomiza. Faz estourar o processo em momentos separados e isolados, que correm o risco de perder muito do seu sentido ao deixarem de estar ligados. É o efeito perverso de uma abordagem analítica que ao querer recortar em unidades simples mata a unidade viva e o seu desenvolvimento. Por isso, estas abordagens devem ser completadas com abordagens mais sistémicas, dialécticas e ecológicas. Uma obra norte-americana recente ousa associar Apprentissage et développement des adultes (Danis, Solar, 1998) trabalhando assim na pista mencionada: «É num desenvolvimento que aprender se constitui» (p. 136).

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1.3.2. Rumo a uma associação estrutural com o desenvolvimento dos adultos? Há uns 20 anos, a associação entre aprendizagem e formação de adultos também se trabalha fora de França. Por exemplo, nos Estados Unidos, depois de uma comissão sobre os estudos não tradicionais nos anos 70, construiu-se progressivamente, teórica e praticamente, o conceito de «experiential learning». Kolb dele fornece uma das modelizações mais trabalhadas. Foi necessário esperar pelos anos 90 para que o neologismo de formação e/ou aprendizagem experiencial fosse reconhecido em França (Courtois, Pineau, 1991). E que os dispositivos de reconhecimento e de validação de adquiridos se desenvolvessem para se tentar ligar estruturalmente essas aprendizagens às aprendizagens formais. Na América do Norte, esses desenvolvimentos práticos geraram o nascimento de uma disciplina – a andragogia, a conduta de adultos – que não é sério ignorar nem científica nem profissionalmente quando se pretende abordar a aprendizagem de adultos. A obra de C. Danis e C. Solar já citada refere-se ao estudo das ligações entre aprendizagem e desenvolvimento dos adultos num paradigma andragógico renovado: Posto de lado por comodidade de análise segundo os paradigmas de investigação que isolam os objectos, ou por tautologia visto que aprendizagem e desenvolvimento se integram na noção de mudança, ou por complexidade de investigação tanto da aprendizagem quanto do desenvolvimento, estes laços podem ser restabelecidos, ou melhor, tornados ainda mais visíveis se a análise procurar detectá-los, explicitá-los e nomeá-los (p. 305).

Deste livro de referência, podemos aqui apenas apresentar as conclusões resumidas: – A ligação entre aprendizagem e desenvolvimento do adulto é bidireccional, «a aprendizagem alimentando o desenvolvimento e o desenvolvimento favorecendo a aprendizagem [...] No cerne dessa ligação encontram-se os conhecimentos e o saber» (p. 306). Mas de forma complexa e ambígua, como meio de construção de identidade mas também de desconstrução: «O ângulo de aquisição dos saberes estende-se da construção em continuidade à desconstrução em ruptura» (p. 308). Não se trata portanto de uma simples acumulação. Experiência e metacognição pessoais desempenham um papel principal de auto-regulação, de autoconstrução. – A aprendizagem numa perspectiva desenvolvimentista levanta o problema dos conteúdos e dos processos: Para que haja desenvolvimento, os conteúdos devem ser significativos para os adultos. A questão do sentido é primordial (p. 314). O processo refere-se às modalidades que permitem essa aprendizagem. Dentre as modalidades consideradas, note-se em primeiro lugar a experiência. A par com a expressão, a reflexão é uma segunda modalidade utilizada... (p. 315).

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1.3.3. Uma reviravolta de perspectiva Essas conclusões sobre os laços entre aprendizagem e desenvolvimento descentram portanto a acção dos professores e formadores em situação instituída para centrar-se naquela – contínua – do adulto ocupado com a vida a apreender, a aprender, para se desenvolver. É esta acção singular que constitui o fundamento da aprendizagem e que constrói em «última instância» esses laços com os adornos oferecidos que têm sempre o duplo estatuto de ajuda e de obstáculo. Esta centragem sobre a acção própria do sujeito não o isola necessariamente do ambiente. Tomaria raízes num movimento de criação de autonomia do sujeito começado no Renascimento. Actualmente, um patamar crítico seria atingido, fazendo oscilar – quantitativa e ideologicamente – as relações de poder entre sujeitos e instituições. A revolução formadora escondida diagnosticada por J. Dumazedier em 1980 assumiria as características de um facto social total, aquele da emergência de um sujeito social que aprende. O desenvolvimento das histórias de vida em formação iria inserir-se nesta emergência de um sujeito que aprende em formação permanente. Este desenvolvimento com efeito rompe com uma tradição autobiográfica antiga que reservava esta operação aos notáveis, tendo uma vida plena e os poderes de o dizer e de o escrever. De bem ou de força, uma democratização desta operação realiza-se fazendo-a surgir não mais como um género cultural apanágio de uma classe social privilegiada mas como uma prática antropológica fundamental, uma arte formadora da existência a ser apropriada. Em última instância, já não são mais os sujeitos formados que fazem a história de vida. É a história de vida que forma os sujeitos. Esta revolução em operação centraliza portanto aprendizagens e abordagens muito marginalizadas no paradigma pedagógico-positivista precedente, privilegiando a acção das instituições. Neste movimento de transição paradigmática, um dos pioneiros do desenvolvimento da abordagem (Dominicé, 1990) das histórias de vida para explorar as experiências da aprendizagem adulta chega ao ponto de escrever: Acrescento, sem modéstia, que esta abordagem parece-me ser o único método de investigação pertinente, porque oferece um acesso directo ao conhecimento vivido pelos adultos eles próprios, bem como aos seus modos quotidianos de formalização (p. 89).

Exagero ou clarividência de pioneiro? É necessário ter acompanhado longamente a discrição abrasiva e a prudência audaciosa deste suíço americano para avaliar bem este género de declaração. Nada tem de leviana. Que ponto – retrospectivo e prospectivo – podemos fazer desta contribuição, dez anos depois desta declaração?

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2. Mapas de exploração em grande escala Para fazer a síntese do esforço das histórias de vida no tratamento da bagagem experiencial das aprendizagens dos adultos neste movimento de transição paradigmático centrado na emergência do sujeito social que aprende, vamos utilizar dois mapas em grande escala de exploração dos novos territórios entre-vistos: um mapa de uma teoria tripolar, em «dois tempos, três movimentos», que se construiu em grande parte com a contribuição das histórias de vida; e um segundo vindo mais da dinâmica das aprendizagens para situar as histórias de vida.

2.1. O mapa da teoria tripolar em dois tempos, três movimentos Este mapa um pouco desconcertante construiu-se progressivamente a partir da contribuição das histórias de vida para a exploração das minhas experiências de aprendizagem. Pessoalmente, foi a pergunta de um jornalista, que fazia um inquérito sobre a formação por alternância, o que me fez voltar ao meu trajecto de vida e fez ressurgir uma experiência que se revelou em seguida fonte de aprendizagem principal mas que na época me apareceu como experiência de desaprendizagem. Esta experiência ambivalente que me havia marcado bastante para ressurgir subitamente dez anos depois, por ocasião deste primeiro retorno reflexivo, é comum à maioria dos jovens adultos em fase de inserção profissional... É aquela de uma assincronia gigantesca entre as aprendizagens escolares e aquelas requeridas na vida profissional e quotidiana, conforme o analisou finamente, entre outros, D. Riverin-Simard. Dolorosa e desconcertante experiência de descontinuidade, que faz mergulhar numa zona cinzenta plena de incertezas, na qual desaparecem as referências anteriores sem que novas referências apareçam. Todas as formas claras aprendidas se desvanecem: sujeitos, objectos, objectivos, meios. Um fundo nocturno sobe, indiferenciando as formas, mesmo a distinção entre si e o ambiente. Esta experiência de desaprendizagem formal nos contactos directos das coisas e dos outros representa uma experiência opaca de passagem em vazio. De passagem que esvazia... de passos que já não são sensatos, de passos que param, esvaziam esse substantivo das significações de mobilidade e de verticalidade para o transformar em advérbio de negação: não vale a pena. Estas passagens em vazio são pouco exploradas pela reflexão educativa. Mesmo a educação chamada negativa fica nas suas margens, na primeira injunção de não acção directa, de não intervenção sistemática dos educadores socialmente aceites: pais, professores, formadores. Feliz injunção que deixa lugar livre ao

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sujeito. Mas lugar vazio temível. O trabalho do vazio, do negativo, no negativo, é um dos mais duros que possam existir. Isola no seio de uma nebulosa em que nada é claro – principalmente para si – e onde tudo deve ser reconstruído, as palavras, as coisas, os instrumentos, as relações. Na conclusão do livro Apprentissage et développement des adultes (Danis, Solar, 1998, p. 312), os autores sublinham também que os textos científicos contemporâneos falam mais de continuidade do que de ruptura quando numerosas passagens da vida adulta se operam mais de forma caótica do que claramente controlada. «Ao lado do estudo da aprendizagem, haveria igualmente o estudo da desaprendizagem» (p. 313). Nesta perspectiva, operam as novas investigações de D. Riverin-Simard sobre as descontinuidades profissionais em várias idades para ir mais longe no estudo do seu conceito de caos vocacional que coloca como passo teórico possível importante nas vésperas do século XXI. A emergência do sujeito social que aprende não é portanto uma simples actualização natural de potencialidades inatas. Parece encontrar tempos e contratempos e movimentos múltiplos de aprendizagens, de desaprendizagens e de reaprendizagens diferentes. Abordá-la necessita revisitar as teorias educativas e, entre outros, levar em conta as passagens em vazio dos actores e da maneira pela qual delas saem: o que aprendem e como aprendem nestas passagens que paradoxalmente em seguida se tornam frequentemente tempos fortes de referência? O mapa seguinte da formação em «dois tempos, três movimentos» mostra as principais coordenadas desse trabalho de tomada em consideração das diferentes aprendizagens que retraçam histórias de vida. 2.1.1. Uma definição ecológica da aprendizagem No prolongamento dos construtivistas e das construções formuladas pelos sujeitos sociais em aprendizagem emergente, trabalhamos desde os anos 80 com uma definição ecológica da aprendizagem fortemente inspirada pelos trabalhos de G. Bateson. Vemos a aprendizagem como a conduta de base de qualquer organismo vivo, a conduta de construção dos laços biocognitivos adequados entre o organismo e o ambiente. Esta definição admite que a unidade vivente não é assegurada apenas pelo organismo mas também pelas suas transacções com o ambiente. As suas transacções tecem laços mistos compostos, em dose variável de vida e de cognição, ou seja, de automovimentos inconscientes e de unidades formais de tomada de consciência permutáveis. A articulação entre as duas é um objectivo principal de aprendizagem. A rede é co-construída mas conforme uma dialéctica complexa de alternância de poderes entre três pólos, pessoal, social e material (três movimentos), agindo de forma directa e mediatizada (dois tempos).

2.1.2. Tempos e contratempos das aprendizagens formal e experiencial Conforme tentei mostrar, a experiência heurística ressurgida da minha primeira história de vida, aprender com a experiência, ou seja, através de contactos directos consigo mesmo, com os outros ou as coisas, não

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parece de forma alguma o mesmo processo de aprender na escola ou através de contactos mediatizados por uma forma, um profissional, um discurso, um livro, um ecrã. O processo não processa nem as mesmas matérias, nem da mesma maneira. É um fundo que recobre em primeiro lugar as formas e descobre em seguida âmagos de um mundo vivido polarizado. A escola da experiência é uma contra-escola que faz passar o exame antes e dá as lições a seguir. Assim sendo, mais do que dois tempos diferentes justapostos, é mais correcto falar em dois tempos contrários – um tempo e um contratempo a ser articulado –, tanto opostos quanto ligados como estão o dia e a noite. A utilização destes dois tempos muito contrastados, diurno e nocturno, para simbolizar os dois processos de aprendizagem, confunde as referências dominantes de um tempo habitualmente uniforme da formação: a hora de aula, o dia de estágio. Foi necessário muito tempo para que emergissem os tempos plurais e até contrários da emergência do sujeito social que aprende. Este surgimento progressivo em vão provém da crise dos modelos formais que obriga a levar em consideração as lições, mesmo que brutas, da experiência dos actores. Devem ser construídas articulações com estas aprendizagens experienciais paralelas. Não só pontualmente mas também estruturalmente. Esta estrutura temporal noite/dia impôs-se portanto progressivamente. Ela constitui com efeito uma estrutura temporal de base, não apenas cósmica mas também psicobiológica e sociológica. Esta estrutura ritma a vida quotidiana das sociedades e dos actores. É um dos sincronizadores ecológicos mais poderosos e pujantes. No prolongamento das grandes tradições culturais da Humanidade e de G. Bachelard, G. Durand (1969) dela fez a sua estrutura antropológica articuladora estruturando simbolicamente o trajecto humano. Torná-la estrutura de referência das aprendizagens também não é inédito. É reatar com uma das primeiras grandes modelizações ao mesmo tempo sistémica, simbólica e dialéctica do longo circuito educativo em todas as idades da vida: aquele de Platão no mito da caverna. Esta referência permite pensar em Penser la formation (Fabre, 1994) como pensamento daquilo que está para ser. A exploração, pela abordagem das histórias de vida, daquilo que os sujeitos emergentes formulam das experiências de aprendizagem da formação do seu futuro, obrigou progressivamente a cruzar esta abordagem temporal com dois regimes de três movimentos interferentes: os movimentos de subjectivação, de socialização e de ecologização. Donde o segundo pano da fórmula: três movimentos.

2.1.3. Aprender três movimentos Quer seja de forma directa ou mediatizada, a conduta de construção de laços biocognitivos adequados entre o organismo e o ambiente tem aquilo que podemos denominar três movimentos de base a aprender, mais do que três objectos.

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Porque se trata de aprender laços, relações, ligações, transacções entre o seu organismo, os outros e as coisas, vistos como polaridades que condicionam a emergência de um sujeito social autónomo. Esta emergência não se faz a partir do nada, faz-se como «movimento organizacional com uma retroacção sobre as suas condições de emergência». A retomada, após J. J. Rousseau em Émile, da estrutura temária organismo, natureza, sociedade como pólos condicionadores da educação; neste caso também se impôs progressivamente para abordar a natureza das aprendizagens que retraçam as histórias de vida: – a aprendizagem de si na base do movimento de subjectivação; – aprendizagem dos outros como movimento de socialização; – aprendizagem das coisas como movimento de ecologização. Estas aprendizagens misturam-se em anéis estranhos nos quais o objecto de aprendizagem pode tornar-se meio e fim: o cruzamento das preposições de, por, para com os pólos si/os outros/as coisas dá uma matriz complexa que abre um amplo leque de condutas de construção possível. Este mapa em grande escala não é o território das experiências de aprendizagem que podem reaparecer durante uma vida. Mas parece ao mesmo tempo bastante simples e complexo para ajudar à sua exploração.

2.2. O mapa da dinâmica das quatro aprendizagens O segundo mapa de exploração do esforço das histórias de vida no tratamento da bagagem experiencial das aprendizagens dos adultos é construído mais directamente com uma tipologia das aprendizagens proveniente de outras fontes que não as correntes biográficas. Estas fontes mais epistemológicas, que dizem respeito à natureza dos saberes, constroem no entanto um mapa com as mesmas coordenadas bipolares entre a acção e a intelecção. Mas, ao aplicá-las mais directamente à interacção actor/organizador, fornecem um enquadramento mais preciso para situar a contribuição das histórias de vida. Este mapa é retirado de A. Moisan (in Courtois, Prévost, 1998, p. 127), que o constrói retomando a distinção entre saberes tácitos e explícitos trabalhados pelos Americanos e particularmente Nonaka.

2.2.1. Os conhecimentos tácitos O conhecimento tácito designa mais frequentemente o saber-fazer. Corresponde aproximadamente à theory-in-use de Argyris e Sch'dn [...] Segtmdo Nonaka, induz ao mesmo tempo elementos cognitivos, esquemas, crenças, modelos mentais [...] elementos técnicos correspondentes a um saber-fazer enraizado em contextos específicos de acções (p. 127).

Segundo a trilogia conhecimento/saber/informação, o conhecimento tácito corresponde ao conhecimento, unidade biocognitiva tão incorporada que no limite é incomunicável explicitamente. Sente-se, ressente-se, cheira-se. É a situação biocognitiva sensível da caverna de Platão, da acção-terreno incompreensível logicamente de maneira completa.

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2.2.2. Os saberes explícitos

Estes saberes correspondem àquilo que é formalizado: modos operatórios formalmente descritos [...], bases de dados (p. 127). Na trilogia, corresponderiam, ao mesmo tempo, à informação, unidade cognitiva autónoma, independente do seu suporte e do saber, laços biocognitivos explícitos estabelecidos entre a pessoa e o seu meio. Esta simples dicotomia lógica torna-se mais complexa quando a dinâmica da aprendizagem desses saberes entra em jogo (cf. Tabela 16.1).

Tabela 16.1 Tipologia e dinâmica das aprendizagens segundo a natureza tácita ou explícita dos saberes (inspirado em Moisan, in Courtois, Prévost, 1998) 1 Aprendizagens experienciais pela acção

4 Aprendizagens de interiorização por aplicação

SABERES TÁCITOS

3 Aprendizagens formais por transmissão articulada SABERES EXPLÍCITOS

2 Aprendizagens de expressão por explicitação

(1) Aprendizagem experiencial pela acção: Em termos genéticos, a aprendizagem experiencial pela acção (I) é o primeiro estádio sensorial-motor estudado por Piaget. Mas não se reduz aos primeiros anos da vida. É co-extensivo a esta vida, sendo esta a auto-regulação de um equilíbrio frágil e instável entre o organismo e o ambiente. Nas novas abordagens dos saberes profissionais, D. Schôn é talvez aquele que explicita melhor a mudança de paradigma que se opera. Para ele, esses saberes constroem-se mais pela reflexão dos profissionais do que pela aplicação das ciências. E, com aquilo que denomina «a mudança reflexiva», trabalha para passar do paradigma da ciência aplicada, que segundo ele «constitui a epistemologia positivista da prática», àquele do agir profissional. Nas conclusões da sua obra, os autores de Apprentissage et développement des adultes retêm que «a pista dos saberes de acção é nesse sentido promissora porque renova a abordagem do saber situando-o no agir contextualizado do adulto» (Danis, Solar, 1998, p. 315). (2) Aprendizagem de expressão por explicitação: Esta pista de exploração dos saberes tácitos necessita de desenvolver o segundo tipo de aprendizagem que nós denominamos de expressão por explicitação. É, na nossa opinião, principalmente este tipo de aprendizagem que desenvolve a abordagem das histórias de vida. TEXTO 15 EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM E HISTÓRIAS DE VIDA

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Não apenas ela, porque o filão experiencial é tão considerável que determinados meios emergem, relançando uma renovação da fenomenologia. Nesta panóplia, «as entrevistas de explicitação» de Vermersch são as mais explícitas. Em Le tournant réflexif toda uma parte incide sobre a narração do trabalho como meio de explicitação maior do saber incorporado no agir profissional. Contar a sua história é um meio poderoso de primeira formulação do saber sem se saber que produz. Voltar a esta primeira narrativa, reflecti-la, fazer operar um segundo anel de aprendizagem que implica a pessoa falante como objecto de formação por ela mesma. Esta reflexão sobre a narração profissional é portanto um meio poderoso de aprendizagem de expressão. As histórias de vida, incluindo as profissionais, sustentam esta aprendizagem de expressão com um recuo temporal. Se são reflexões sobre a acção, é menos durante a acção do que depois. Operam portanto com um intervalo mais ou menos longo que filtra a reflexão de forma específica. Podem perder-se pormenores no esquecimento, mas outros, pelo contrário, podem voltar com o recuo do tempo. Esta desfasagem/decapagem temporal, ao destacar do fundo vivido emoções cognitivas pessoais, na fronteira do pré-consciente, permite por uma segunda tomada de consciência reflexiva explicitá-las melhor ao tentar denominá-las e articulá-las. As histórias de vida podem portanto ser vividas como uma abordagem metacognitiva que apoiaria fortemente uma lei de desenvolvimento formulada por Vigotsky. Segundo ele, o desenvolvimento das funções psíquicas principais far-se-ia em dois tempos: um tempo de interacção externa organismo/ambiente e um tempo de apropriação psíquica interna por interiorização. É isto que faria das histórias de vida uma abordagem de autoformação biocognitiva principal. A autoformação biocognitiva começaria por uma experiência pessoal compacta que só encontraria a sua conceptualização depois por uma observação reflectida. Este retorno de reflexão interpessoal sobre experiências interactivas pessoais explicaria a pertinência das histórias de vida como meio de autoformação. (3) e (4) Aprendizagens formais por transmissão articulada e aprendizagens de interiorização por aplicação: São as aprendizagens ligadas às situações de ensino e de formação, «de carácter sistemático, intencional e sequencial» (Bourgeois, Nizet, op. cit., p. 36). Estas aprendizagens formais não são completamente estranhas às histórias de vida vistas como arte de comunicação social. Esta função de transmissão social entre as gerações pelo intermédio de suporte de vida singular, de saberes vistos como exemplares, é sem dúvida aquela que operou mais fortemente nas origens. Os Gregos construíram a sua sociedade inventando o bios, histórias de vida ilustradas como arte de comunicação de modelos exemplares a aprender. As histórias de vida de pessoas ilustres constituíram um meio principal de ensino dos saberes nacionais, religiosos, culturais, a serem aprendidos por aprendizagens formais (3) e de interiorização (4). E esta função de transmissão social ainda opera com qualquer história de vida formulada, ofertada, a um público mais ou menos grande. Por esta dupla função de autoformação pessoal por explicitação dos saberes tácitos e de comunicação social por transmissão mais ou menos aplicada, as histórias de vida contribuem portanto fortemente para dinamizar as aprendizagens pessoais e sociais. Esta cobertura/abertura faz delas um meio central de

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aprendizagens metacognitivas múltiplas à procura das suas formas. Começam a diferenciar-se e a precisar-se. É aquilo que apresentaremos na última parte.

3. Começos de diferenciação Entradas por contrabando no campo das ciências humanas e da formação no começo dos anos 80, as histórias de vida são hoje em dia presentes nas encruzilhadas da investigação, da formação e da intervenção. As encruzilhadas são espaços estratégicos «de agir comunicacional» que expõem a colisões mas também a vias possíveis. Diferentes nomes aparecem desenvolvendo mais ou menos diferentes tipos de aprendizagem, de explicitação, de transmissão e até de recomendação. Esta abordagem é utilizada tanto na orientação e em formação profissional para explicitar os saber-fazer adquiridos pelo trabalho (histórias de vida profissionais) quanto em formação pessoal para retirar benefício de todos os saber-viver implícitos da vida quotidiana (histórias de vida existenciais). Como não se perder nessas diferenças? E, além disso, existem condições comuns de exercício?

3.1. As diferenciações terminológicas Uma análise de uma primeira encruzilhada das 50 práticas no final dos anos 80 havia mostrado que, embora o termo história de vida fosse maioritário (dezoito), nove utilizavam o termo autobiografia, quatro, relatos de vida, e dois, biografias. O exame rápido das produções actuais a partir dessas categorias, que têm em comum o facto de entrarem pela vida e não pelo íntimo (confissão...) ou pelo tempo (memórias, lembranças...) (Pineau, Le Grand, 1996, pp. 33-36), deve cruzar-se com os tipos de vida abordados para fazer justiça à sua diversidade (cf. Tabela 16.2 seguinte). A biografia – escrito da vida de outro – é considerada como título de uma abordagem, a abordagem biográfica, por M. Legrand (1993). Constitui com efeito não apenas um género literário mas também uma abordagem que se situa no prolongamento das disciplinas clássicas sobre uma metodologia e uma epistemologia de distanciação heurística entre investigador e actor. Neste sentido, constitui mais uma abordagem de investigação do que de formação e de intervenção. P. Dominicé fala em biografia educativa «para indicar a centralização sobre o percurso educativo» (in Desmarais e Pilon, op. cit., p. 139). Ch. Josso aplica-se audaciosamente ela própria em pioneira em Cheminer Verssai (1991). Ch. Leray utiliza o termo de biografia formativa para trabalhar a hipótese que, por exemplo, os professores «não podem perceber o que significa autoformarem-se se trabalham na sua trajectória educativa tomando consciência de que durante esta foram eles próprios confrontados com as lógicas de apropriação dos saberes que rompem com as lógicas de transmissão» (in Courtois, Prévost, 1998, p. 137). Finalmente, J. Y Robin especializa-se nas biografias profissionais (1994 e 1997). A autobiografia – escrito da sua própria vida – tem o seu investigador, promotor da Associação para o Património Autobiográfico, Ph. Lejeune. Em oposição da biografia, constitui um modelo em que em última análise actor e autor se sobrepõem sem um mediador explícito. O prefixo auto aparenta-a aos outros TEXTO 15 EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM E HISTÓRIAS DE VIDA

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processos que utilizam esse prefixo com o problema do lugar do outro nesta utilização. Utilizei em primeiro lugar este termo no intitulado da minha primeira investigação sobre a autoformação, Produire sa vie: autobiographie e autoformation (1983). Bonvalot e Courtois associaram-no ao projecto na vida profissional (1984). E Desroche denomina autobiografia raciocinada a sua aplicação à formação. O seu peso etimológico, que privilegia a escrita e um investimento pessoal que pode ser exclusivo, fizeram com que eu o abandonasse pelo conceito mais novo de história de vida, dirigindo a construção de um sentido temporal sem privilegiar o meio social e material de construção. O relato de vida, quanto a ele, insiste sobre «o enunciado de uma intriga» sem privilegiar o escrito ou o oral. G. De Villers desenvolve-o como abordagem de investigação-formação (in Desmarais, Pilon, 1996, pp. 107-134). H. Dionne utiliza o relato colectivo como investigação-intervenção (1996, pp. 178-199). E P. Leguy, depois de A. Chéné, quer desenvolver o relato de formação no prolongamento da tradição alemã do Bildungsroman do qual o Wilhelm Meister, de Goethe, coloca as bases (in Courtois, Prévost, 1998, p. 34). O relato de vida tem o seu teórico, D. Bertaux (1997), introdutor da abordagem em ciências humanas em França.

Tabela 16.2 Diferenciação terminológica das abordagens entrando pela vida segundo os tipos de vida abordados TIPOS DE VIDA PRIVILEGIADOS ABORDAGENS ENTRANDO PELA VIDA

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VIDA VIDA EM EDUCAÇÃO

A EXISTÊNCIA GLOBAL SINGULAR

Biografia

Abordagem biográfica (Le Grand, 1993)

Autobiografia

Associação para o Património Autobiográfico (Lejeune, 1991)

VIDA PROFISSIONAL

PLURAL Biografia educativa (Josso, 1991) (Dominicé, 1996)

Relato de vida

Relato de vida (Villers, 1996) (Bertaux, 1997)

Relato colectivo (Dionne, 1996)

História de vida

Histórias de vidas: Histórias - existenciais de vidas: (Pineau, 1998) - de mulheres (Dominicé, 1990) (Couceiro, 1998); - de jovens (Radet, 1998) - de crianças (Abels, 1998)

Histórias de vidas: - em colectividades (Brun, 1999); - genealógica (Lani, 1997)

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VIDA EM FORMAÇÃO

Relato de aprendizagem

Biografia formativa (Leray, 1998)

Biografia profissional (Robin, 1994, 1997)

Autobiografia raciocinada (Desroche, 1991)

Autobiografia -projecto (Bonvalot, 1984; Courtois, 1984)

Relato de formação (Leguy, 1998; Chéné, 1989) As histórias Histórias de vidas: de vida em - no trabalho (Riverin-Simard, formação (Lainé, 1984); 1998) - no ensino (Mallet, 1998); - de formadores (Vassileff, 1992).


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Em razão da sua abertura à construção de um sentido temporal sem julgar os meios, a expressão história de vida tende a tornar-se a denominação genérica em formação de adultos (Lainé, 1998). P. Dominicé dá-lhe o título da sua obra, L 'histoire de vie comme processus de formation (1990), assim como G. Pineau e J. L. Le Grand o seu livro da colecção «Que sais-je?» (op. cit.). Serve para denominar a colecção «História de vida e formação» (L'Harmattan), que visa reunir as suas diversas utilizações, vistas como meio de investigação-formação de uma nova antropologia a partir da palavra dos actores sobre: – uma vida singular: aquela das mulheres, dos jovens, de crianças (Couceiro; Radet; Christine Abels, in Courtois, Prévost, 1998); – vidas plurais: história de vida em colectividade (Brun, 1999), de colectividade (Le Grand, 1999) ou genealógica (Lani, 1997); – das vidas profissionais em geral: (Riverin-Simard,1984), de ensino (Mallet, 1998) ou de formadores (Vassileff, 1992).

3.2. Diferenciações de modelo Conforme acaba de ser assinalado, estas diferenciações terminológicas indicam etimologicamente objectivos e meios diferentes. Em referência ao lugar que o profissional do sentido (investigadores-formadores) pode ocupar em relação à utilização da abordagem com a emergência de um sujeito social que aprende, três modelos podem ser extraídos (Pineau, Le Grand, 1996, pp. 99-102): – o modelo biográfico, que prolonga a relação de lugar disciplinar separando nitidamente o profissional do sujeito segundo uma epistemologia da distanciação do sujeito para construir um saber objectivo. O sujeito é um fornecedor de informações mas o tratamento objectivo destas é obra quase exclusiva do profissional; – o modelo autobiográfico, em oposição, elimina em última análise o profissional. A expressão e a construção de sentido são a obra exclusiva do sujeito. O outro está reduzido a um papel de auditor ou de leitor que deve mostrar-se bom público. O outro é eliminado como interlocutor; – finalmente, o modelo interactivo ou dialógico, que trabalha uma nova relação de lugar entre profissionais e sujeitos para uma co-construção de sentido. O sentido não é redutível à consciência que dela têm os actores, não mais do que à análise pelos investigadores. É quase supérfluo mencionar que em formações de adultos, para associar a aprendizagem ao desenvolvimento, é este modelo que mais desenvolve os processos de envolvimento e de procura do sujeito emergente. E portanto este que é mais trabalhado entre outros pela Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação (ASIHVIF), que foi fundada no começo dos anos 90.

3.3. Quatro condições de utilização óptima para desenvolver as aprendizagens Conforme assinalado na introdução, a história de vida não é uma abordagem fácil. É uma abordagem de alto risco que o inacabado da vida adulta introduziu por contrabando nas ciências sociais e na formação de

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adultos. É portanto uma abordagem de teorização recente e polémica, porque coloca questões de fundo, epistemológica, metodológica e deontológica. Para alguns, esta abordagem é anticientífica. Está demasiado próxima da ideologia do ser vivo, valorizando o sentido corrente dos actores, enganando-os nas suas tentativas dramáticas de encontrar um sentido para a sua vida. Estas tentativas – quase espontâneas – enraízam-se na ilusão biográfica de um sentido preexistente que a expressão da vida desenvolveria naturalmente. A sua introdução no campo profissional – sem ruptura nem crítica epistemológica suficiente – prolongaria portanto práticas pré e até anticientíficas de educação popular ou humanista. Esta entrada por contrabando seria acompanhada de uma epistemologia ingénua que não teria sofrido a catarse dos mestres consagrados da dúvida (Marx, Freud, Nietzche) ou o exame dos agentes de alfândega disciplinares em exercício. Para outros, menos determinados cientificamente, a abordagem seria pelo menos antipedagógica: demasiado subjectiva para permitir a distância necessária a um trabalho objectivo. Seria nociva à necessária distinção dos sujeitos e das matérias que acompanha uma boa metodologia. Finalmente, mesmo para aqueles que se situam nas correntes científicas e metodológicas amplamente abertas, o seu carácter vital iria torná-la demasiado arriscada, demasiado perigosa para ser utilizada; até aonde se pode intervir na vida de alguém? A dimensão bioética impõe-se. Estas questões indicam problemas fundamentais cuja amplitude significa pelo menos que não se trata da chegada de um simples instrumento pedagógico suplementar. Esta abordagem provoca agitações de fundo na medida de vidas que faz entrar, de forma pouco filtrada, pouco disciplinada, na linguagem comum de sujeitos sociais emergentes em aprendizagem de si mesmos, da sociedade e do mundo. Estas entradas forçadas condenam à audácia, à tomada de riscos e à aprendizagem profissional e científica de novos problemas a tratar de novas formas. Da aprendizagem de investigação-formação em redes destes últimos anos, quatro condições podem ser extraídas para uma utilização óptima do modelo interactivo que desenvolve mais longamente a obra colectiva Accompagnemets et histoire de vie (Pineau, ed., 1998).

3.3.1. Ter feito a sua história de vida antes de acompanhar outros a fazê-lo Esta condição, que retoma uma condição primeira da formação e da prática psicanalítica, responde, conforme o desenvolve P. Galvani (1997, p. 59), a um princípio iniciático que implica uma aprendizagem

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experiencial pessoal para começar e conduzir uma abordagem de tipo maiêutica e não apenas uma aprendizagem formal como para as abordagens didácticas. Apenas um frente a frente com a sua própria vida permite abordar o frente a frente com os outros e efectuar um caminho formador com eles.

3.3.2. Estabelecer um contrato com a(s) pessoa(s) Esta operação prévia de contratualização dos objectivos, meios e contexto da abordagem, é também fundamental porque institui os sujeitos sociais que aprendem em parceiros conceptuais e responsáveis. Por outro lado, ao antecipar, permite explicitar da melhor forma os recursos e as restrições latentes e portanto entrever a situação mais adaptada. A abordagem pode ser proposta, nunca imposta.

3.3.3. A produção permanece propriedade do produtor A produção sob as suas formas materiais (texto, gravação, dossiers...) pertence em primeiro à pessoa que a produziu. Esta propriedade não é exclusiva. Pode ser partilhada. Mas a decisão é dela, não do profissional.

3.3.4. A interpretação visa ser mais instaurativa que redutora Esta condição é menos materialmente observável e situável que as outras. Mas ela não é por isso menos importante, porque determina o sentido do trabalho. Diz respeito à perspectiva adoptada: é uma prospectiva à procura do porquê, para que efeito, qual construção de projecto, tal coisa dita. Ou, pelo contrário, uma retrospectiva que se interessa ao porquê, por qual razão, por qual causa esta mesma coisa é dita. A primeira perspectiva projecta e está mais voltada para um futuro a ser construído, a segunda mais para um passado explicativo. Esta distinção de interpretação toma raízes nos trabalhos de G. Durand. Constitui uma atitude e uma perspectiva determinante para diferenciar a formação da terapia, o símbolo do sintoma. Para responder à pergunta de partida, «Como abordar a bagagem experiencial de aprendizagem dos adultos com a abordagem das histórias de vida», tentar encontrar estas quatro condições parece-nos oferecer mais garantias que uma série de técnicas e de procedimentos. Estes existem e não devem ser negligenciados mas só adquirem o seu sentido na redefinição conjunta e livre de uma nova situação socioprofissional de construção de sentido a partir das experiências pessoais.

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Leituras recomendadas AUMONT, B., MFSNJER, P. M. (1992), L’acte d'apprendre, Paris, PUF. COURTOIS, B., PINEAU, G. (coords.) (1991), La formation expérientielle des adultes, Paris, La Documentation Française. COURTOIS, B., PREVOST, H. (coords.) (1998), Autonomie et formation au cours de la vie, Lyon, Chronique Sociale. DANIS, C., Solar, C. (coords.) (1998), Apprentissage et développement des adultes, Montréal, Éditions Logiques. DESROCHE, H. (1990), Entreprendre d'apprendre. D'une autobiographie raisonnée au projet d'une recherche-action, Paris, Éditions Ouvrieres. DOMINIC, P. (1990), L’histoire de vie comme processus de formation, Paris, L’Harmattan. GALVANJ, P. (1997), Quête de sens et formation. Anthropologie du blason et de l'auto formation, Paris, L’Harmattan. LAINÉ, A. (1998), Faire de sa vie une histoire, Paris, Desclée de Brouwer. PINEAU, G., LE GRAND, J. L. (1996), Les histoires de vie, Paris, PUF, colecção «Que sais-je?». PINEAU, G. (coordenador) (1998), Accompagnements et histoire de vie, Paris, L’Harmattan.

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TEXTO 16 A COMPETÊNCIA

Sandra Bellier (pp. 241-257)


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1. Introdução O termo «competência» apareceu de forma recente no mundo da formação dos adultos, mas com tal sucesso que é impossível não indagar de onde vem esse entusiasmo. Respondeu a questões em suspenso? Ou pelo contrário permitiu evitar estas questões dando a ilusão de novidade? Finalmente, estabeleceu novos posicionamentos, tanto do lado do formador como do estagiário, sem que com isso modificasse as práticas? A grande força do termo competência está sem dúvida na sua capacidade em expressar uma outra «maneira de ver os problemas» de formação, de gestão dos recursos humanos ou de management. Em matéria de formação, esta mudança de óptica permitiu ao mesmo tempo redescobrir um «velho» sujeito – o adulto que aprende – em interacções profissionais novas. Durante muito tempo afirmou-se que a competência consistia em reintroduzir o homem na organização. Pensamos, além disso, que reintroduziu a organização nas práticas centradas no indivíduo. A formação é um excelente exemplo. Mas, antes de considerarmos o desenvolvimento destas ideias e das grandes questões que hoje em dia alimentam os debates sobre a competência, devemos entender melhor porquê e como esta noção se desenvolveu, bem como o lugar original que ocupa na evolução da psicologia do trabalho. A exploração do «porquê a competência?» irá permitir-nos insistir sobre as características comuns às diferentes abordagens da competência, enquanto a resposta ao «como se manifesta a competência» nos permitirá insistir sobre as diferenças que caracterizam estas abordagens. Uma vez realizados estes esclarecimentos, teremos os meios de colocar as grandes questões que subsistem: a competência substitui a qualificação? As competências transversais existem? O saber-estar é uma competência? Para finalmente voltar em conclusão à competência como uma ligação entre o indivíduo e a organização.

2. Porquê a competência?

2.1. As condições de emergência da noção estão nas mudanças de organização Numa organização tayloriana, é inútil falar-se em competência. Basta descrever a organização do trabalho e o papel que se espera que os homens nela tenham. Os gestos esperados são analisados com precisão; são prescritos em pormenor. A única questão é portanto aquela de verificar que os homens sejam realmente capazes de fazer o gesto, o movimento, a vigilância esperada. Estando feita esta verificação, é inútil colocar

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mais questões sobre os homens na organização. Aquilo que se espera deles é a conformidade com o que foi prescrito e principalmente que nenhuma iniciativa possa vir a perturbar o sistema. É portanto perfeitamente inútil falar-se em competência neste quadro como também é inútil falar-se em sujeito ou indivíduo. Hoje em dia sabemos bem que o taylorismo é uma visão totalmente utópica e irreal da organização humana do trabalho. As situações profissionais nunca são tão simples conforme pensavam os engenheiros dos métodos e é simplesmente impossível abstraírem-se da iniciativa humana, mesmo que esta tenha de se camuflar. Sem as micro-regulações que cada operador efectua permanentemente, os objectivos de produção nunca seriam alcançados. Os ergónomos mostraram-nos que, embora o sejam na maioria dos casos, isto é porque o trabalho consiste justamente em assegurar a regulação, fonte do bom funcionamento do aparelho produtivo. Esta análise do trabalho realizada pelos investigadores e pelos psicólogos do trabalho não se fez em um dia. Na verdade, são inicialmente as transformações nas organizações do trabalho que vão fazer evoluir o conceito do homem no trabalho. Produzir mais depressa, sem defeito e, principalmente, de forma mais flexível é pedir aos homens que façam coisas diferentes, das quais uma parte não está perfeitamente prevista, e sem que seja possível contentarmo-nos com prescrições mais ou menos precisas. A polivalência, a necessidade de mudar de profissão ou, dentro de uma mesma profissão, de evoluir incessantemente, a flexibilidade dos ambientes de produção, são exemplos que expressam principalmente mudanças de organização do trabalho. Finalmente, um outro elemento vai determinar fortemente a emergência da noção de competência: a terceirização da economia. Os serviços tornam-se o principal sector de produção e, pela mesma ocasião, as dimensões relacionais vão ultrapassar as qualificações técnicas. E esta terceirização vai invadir igualmente o sector secundário: o «cliente» aparece na fábrica. Não é a partir dele que se organiza o sistema de produção? Pois bem, o cliente é muito mais imprevisível do que uma máquina; tem exigências sem relação com os modos de organização anteriores: diminuição dos prazos e dos custos/inovação, personalização dos produtos/qualidade... Pela mesma ocasião, a óptica muda: não é em primeiro lugar a organização que se analisa mas sim o homem no trabalho. Aquilo que se deve dominar é aquilo que se deve pedir a um trabalhador para que este alcance os resultados. O processo de produção está antes nas mãos daqueles que o operam do que nas máquinas. E o que se deve produzir são competências. Estas operam num emprego e já não mais num posto. E o próprio perímetro deste emprego vai variar até ao emprego tipo que é um agregado de empregos com competências contíguas. E quanto mais se aceitam indefinições na descrição da organização, mais é mister entender aquilo que diz respeito ao indivíduo.

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2.2. Definições Eis-nos portanto no cerne da questão: como descrever estas famosas competências que permitem o trabalho? Em primeiro lugar, coloca-se uma questão de definição. Porque, embora estejamos rapidamente de acordo sobre o objecto que queremos examinar, em compensação não sabemos muito bem como distinguir aquilo que o torna diferente das noções mais antigas como a qualificação ou as aptidões. Mas, progressivamente, podemos constatar que, mesmo que sejam abundantes as definições da competência, estas não são em última análise assim tão díspares. Parece haver-se instalado pouco a pouco um certo consenso, numa dezena de anos, que permite estar de acordo quanto a determinadas características: – o primeiro ponto diz respeito à ligação existente entre a competência e a acção. A competência permite agir e é nesse ponto que a podemos localizar. Não existe de per si, independentemente da actividade, do problema a ser resolvido, do uso que dela se faz; – o segundo ponto sobre o qual estamos de acordo relaciona-se com o facto de que a competência é contextual; está associada a uma determinada situação profissional e corresponde portanto a um contexto; – o terceiro ponto diz respeito às «rubricas» constitutivas das competências: mesmo que as categorias sejam divergentes, todos estão no fim de contas de acordo em nelas incluir um pouco de saber, muito de saber-fazer e frequentemente – mas não sempre – de saber-estar. Da mesma forma, encontramos com muita frequência a noção de «competência cognitiva» com acepções diversas; – o quarto ponto diz respeito à noção de integração desses conteúdos. Não se trata de uma «soma» através da qual como que por um milagre resultaria a acção bem sucedida, mas sim de capacidades integradas, estruturadas, combinadas, construídas... Isto subentende que existe «algo mais» nas capacidades que lhes permite justamente transformarem-se, juntas, em competência. Com muita frequência reapareceram neste ponto noções de psicologia cognitiva como a distinção clássica entre saber declarativo e saber procedente. Este último seria uma pista interessante para compreender como se faz esta famosa integração. Da mesma forma, o conceito de «iniciativa intelectual» (Michel, Ledru, 1991) está bastante próximo desta ideia, bem como aquela de «competências metodológicas»» (Gilbert, Parlier, 19911; Le Boterf, 1995) ou, para Vergnaud, a diferença entre «conceito-em-acto» e «teorema-em-acto». Manteremos portanto a ideia de que a competência permite agir e/ou resolver problemas: profissionais de forma satisfatória num contexto particular ao mobilizar diversas capacidades de maneira integrada.

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P. Gilbert, M. Parlier (1991), La gestion des compétences: la notion de compétence et ses usages en gestion des ressources humaines, Paris, Entreprise et Personnel, Développement et Emploi.

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Citemos, para completar, quatro definições que ilustram este aspecto consensual: – a de Montmollin (1984)2: «Conjunto estabilizado de saberes e de saber-fazer, de condutas-tipo, de procedimentos padrão, de tipos de raciocínio que se podem utilizar sem uma aprendizagem nova»; – a de Malglaive (1990)3: «Saber em uso e formalização são os dois aspectos complementares da competência que [...] se apresenta portanto como uma estrutura dinâmica cujo motor não é nada mais do que a actividade»; – e a de Leplat (in Montmollin, 1991)4 , que distingue os conceitos behaviorista e cognitivista. O primeiro está associado a uma lista de actividades que o indivíduo sabe executar; o segundo vê a competência como uma estratégia subjacente à acção. Leplat fornece quatro traços característicos das competências: são finalizadas, aprendidas, organizadas em unidades coordenadas. Finalmente, sendo a competência uma noção abstracta e hipotética, podemos apenas observar as suas manifestações; – citemos como quarto exemplo a lista fornecida por Le Boterf (1995) dos «saberes mobilizáveis»: os saberes teóricos, os saberes procedentes, os saber-fazer procedentes, os saber-fazer experenciais e os saber-fazer sociais.

2.3. Impacte sobre a questão da formação A partir de agora, podemos salientar que a construção desta noção de competência vai modificar o conceito de formação. Porque, através dos pontos de acordo que acabámos de apresentar, vemos perfeitamente que se coloca de forma muito diferente a questão da aquisição e do desenvolvimento destas famosas competências. Indicámos com efeito que as competências se adquirem na acção. É necessário então continuar a mandar os assalariados para estágios de formação? Os jovens devem ser formados nos bancos da escola? Há que ensinar conhecimentos sem nos interrogarmos em que condições serão utilizados? Por trás destas perguntas coloca-se aquela, muito especial, da transferibilidade das competências. Se a competência está ligada a um contexto particular, podemos imaginar que nada é transferível de um contexto a outro? Nesse caso toda a formação fora de um contexto preciso não tem qualquer interesse e apenas a formação pelo trabalho permite adquirir competências para o contexto preciso no qual é dispensada. Há que convir que a definição de competência que insiste na relação com a acção e no contexto conduz a considerações um pouco desesperadoras para a formação profissional.

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M. de Montmollin (1984), L 'intellígence de la tâche. Éléments d'ergonomie cognitive, Berna, Peter Lang. G. Malglaive (1990), Enseigner à des adultes, Paris, PUF. 4 J. Leplat (1991), «Compétences et ergonomie», in Modeles en analyse du travail, M. de Montmollin (dir.), Bruxelas, Mardaga, pp. 263-278. 3

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E se a abordagem da competência revalorizou fortemente as «formações acções», a utilização de situações reais, da experiência como local formador e a ideia de «organização que aprende», trouxe também questões teóricas e práticas que estão longe de serem resolvidas. Finalmente, o interesse manifestado pelas competências caminha ao lado de um requestionamento da formação clássica – seja ela contínua ou profissional – construída sobre o modelo escolar. E assiste-se pelo contrário a uma valorização das formações pelo trabalho e daquilo que ocorre nas empresas em situação real. Não obstante, este interesse raramente vai até ao ponto de se repensarem as práticas!

3. A competência, como? Concretamente, como analisar as competências? Como descrevê-las, como utilizá-las? Porque entre o debate sobre as definições e aquele sobre a utilização de uma «iniciativa de competência» existem algumas diferenças que devemos agora apresentar. Definir a competência em geral é uma coisa, descrever as competências em particular é outra coisa. Diferenciaremos cinco abordagens: – a abordagem pelos saberes; – a abordagem pelos saber-fazer; – a abordagem comportamental; – a abordagem mista (saber, saber-fazer, «saber-estar»); – a abordagem pelas competências cognitivas.

3.1. A abordagem pelos saberes Uma das abordagens dominantes das competências consiste em associá-las a saberes. Aquilo que é explicativo da acção bem sucedida, da competência, é o facto de possuir saberes. Na verdade, não se trata de negar que a competência possa ser outra coisa do que saber, mas antes de considerar que esta «outra coisa» se baseia intimamente no facto de possuir saberes. A competência tornar-se-ia então «saberes em acção», sabendo que o controlo da execução desaparece em benefício do controlo dos conhecimentos. Completa-se habitualmente a localização dos saberes pela distinção de níveis de domínio, que são graduados conforme o caso entre três (fraco/médio/forte) e nove (ou mais) graus que se inscrevem então numa soma de pormenores inspirados das taxionomias mais comuns em pedagogias.5

5

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Ver por exemplo a taxonomia de S. Bloom (1969), Taxonomie des objectifs pédagogiques, Montreal, Presses de l'Université du Québec, ou aquela de R. Gagné, L. Briggs (1979), Principies of lnstructional Design, Nova Iorque, Holt, Rinehart and Winston.

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Esta abordagem apresenta uma vantagem incontestável. Pode muito facilmente ser associada a modos de aprendizagem... pelos saberes. Desde que se considere que a formação se interessa essencialmente pela aquisição de saberes que permitirão em seguida agir, é então indispensável identificar esses saberes uso por uso, ou inclusivamente actividade por actividade. Trabalho eminentemente analítico, baseado sobre a ideia de que tudo deve ser aprendido de uma determinada maneira, esta abordagem é igualmente ideológica. Veicula com efeito a ideia de que é o saber que permite ter sucesso. Quanto mais sei, mais sou competente visto que se trata na verdade da mesma coisa. Isto significa portanto também que aqueles que mais sabem são os mais competentes. Torna-se portanto possível criar uma hierarquia das competências: podemos facilmente detectar aqueles que sabem mais e aqueles que sabem menos. Por trás disto, é evidentemente o diploma que fornece a prova da competência. Embora a apresentação que aqui se faz leve voluntariamente à crítica desta abordagem, deve-se mesmo assim saber que, de forma explícita ou implícita, um grande número de práticas de formação baseia-se sobre este conceito das competências. A crítica essencial que se pode fazer a esta abordagem não é aquela de ser errada, mas de ser incompleta e simplista. Certamente, os saberes fazem parte da competência, mas eles não são a competência. Por outro lado, seria conveniente precisar o que se entende por «saber». Muitas vezes o conceito é claro enquanto se fala de emprego de nível técnico ou de quadros, e que corresponde nesse caso a níveis da Éducation nationale; por outro lado, quando se pretende falar de saberes detidos por pessoas de «baixos níveis de qualificação» enfrenta-se o dilema seguinte: em toda a coerência, não têm saberes, portanto, não têm competências. Mas é evidentemente necessário encontrar um instrumento de descrição que seja homogéneo com a forma de apreender a competência das outras populações. Se não quisermos cair no erro que consiste em utilizar saber-fazer, faremos então referência a «saberes de base» do tipo «saber contar» «saber escrever», «saber falar»... Ora não somente estes saberes são muito pouco discriminatórios mas também não conseguem demonstrar aquilo que é realmente feito pelos indivíduos. Outra advertência: é impossível estar seguro de que o conhecimento de um saber seja suficiente para a competência. Ouve-se inclusivamente dizer que não são aqueles que sabem melhor como fazer que são os melhores na acção. Em suma, existe uma diferença entre saber e acção. Um não pode ser o sinónimo do outro. Podemos até ir mais longe e perguntar se é possível separar nos saberes aquilo que é realmente utilizado na acção, inclusivamente na acção intelectual. Se olharmos por exemplo para os trabalhos em psicologia cognitiva, constatamos que é extremamente delicado atribuir a proeminência ao conceito de saber.

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Os cognitivistas6 diferenciam classicamente os conhecimentos procedentes que são da ordem do método, do como fazer, do raciocínio, dos conhecimentos declarativos, que dizem respeito ao saber teórico e académico. Os primeiros constroem-se pela acção, os segundos podem ser aprendidos numa sala de aula ou num livro. Os conhecimentos procedentes são muito mais facilmente armazenados na memória a longo prazo do que os conhecimentos declarativos. Mas constata-se que estes últimos se inscrevem de forma muito mais profunda se acompanharem uma resolução de um problema num campo preciso. Notam-se portanto dois fenómenos: – os conhecimentos procedentes adquirem-se na acção e por ela, e marcam profundamente o indivíduo visto que é a partir dessa «reserva» que irá abordar situações futuras – e em particular as novas – para agir; – os conhecimentos declarativos são efémeros e frágeis enquanto não tiverem sido associados a conhecimentos procedentes. Mas, a partir desse momento, torna-se cada vez mais difícil distingui-los dos primeiros porque de certa forma assimilaram-se a processos de resolução de problema. Estas rápidas considerações levam-nos a uma interrogação de fundo no que diz respeito à assimilação das competências aos saberes. Porque, se falamos dos conhecimentos procedentes, estamos bem longe do sentido mais comum e, se falamos em conhecimentos declarativos, estamos muito longe daquilo que explica o sucesso na acção. E, se falamos dos dois simultaneamente, então porque utilizar o termo de saberes e a referência cultural aos níveis da Éducation nationale, que implica quase automaticamente?

3.2. A abordagem pelos saber-fazer Já que finalmente todos reconhecem que a competência está em relação directa com a acção bem sucedida, então porque não a assimilar ao saber-fazer? A definição mais simples não seria a de dizer que a competência é saber agir, saber trabalhar ou ainda saber fazer? Esta abordagem é aquela que foi considerada por exemplo no acordo ACAP 20007 assinado em 1990 ao nível do ramo siderúrgico pelos parceiros sociais e que, de forma muito inovadora, declara querer gerir pelas competências e já não mais pelos postos e pelo tempo de trabalho. Nesse texto, a competência define-se como «um saber-fazer operacional validado». Insiste-se portanto pesadamente na dimensão de execução, sobre o facto de que o saber-fazer deve ser praticado, que está ligado à acção e a uma acção visível e verificável. Introduz-se também a ideia de que a competência se prova, se mede, se verifica e que não pode ser apenas uma declaração de fé ou de boas intenções. Esta definição tem o mérito da clareza: as referências subjacentes são nitidamente a busca do concreto, da objectividade e de um consenso não teórico mas sim prático. Aquilo que a empresa recompensa e gere é exactamente a acção útil, aquela que se vê e que faz as coisas

6

Ver por exemplo R. Ghiglione, c. Bonnet, J.-F. Richard (1986), Traité de psychologie cognitive, Dunod, ou J.-F. Le Moigne, Intelligence des mécanismes, mécanisme de l'intelligence, Paris, Fayard. 7 ACAP 2000, acordo assinado na siderurgia francesa no dia 17 de Dezembro de 1990.

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irem para a frente e, efectivamente, compreende-se bem que de maneira operatória, quando a definição da competência está na base de um sistema de promoção, de remuneração e de formação, se tente dar-lhe um sentido concreto e verificável. A noção de validação permite aliás introduzir o papel da hierarquia que tem o papel de garantir esta avaliação sem a qual não existe competência reconhecida. Vemos claramente que esta ideia de validação é de outra ordem do que os dois outros termos da definição (saber-fazer operacional): intervém para definir não a competência mas sim o processo de tomada de decisão que a acompanha. A competência é portanto, neste caso, considerada como sendo a acção bem sucedida, e este sucesso é apreciado em função das escolhas da organização. Qual o limite que pode ter uma tal abordagem, para além do ACAP 2000 que já citámos como ilustração? O problema-chave é aquele da descrição das competências: porque assimiladas à acção, na maior parte das vezes, são descritas como sendo a acção. Na verdade, existem, nestes casos, muito poucas diferenças entre um referencial de competências e um referencial de actividades. No primeiro, apenas se acrescentou o verbo «saber» diante de um determinado número de acções e é assim que se obtém a ideia de saber-fazer. Quais são as principais actividades de uma secretária? Ela mantém em dia a agenda do seu patrão; bate à máquina e organiza reuniões. Quais são as competências necessárias para se manter um emprego de secretária?

Saber manter em dia a agenda de um patrão: saber bater à máquina e saber organizar reuniões. Há que convir que o valor acrescido é aproximadamente nulo e que a introdução da noção de «competência» nada trouxe nem para a gestão dos recursos humanos nem para o indivíduo. Isto deve-se à própria definição que foi dada: ao querer ficar muito perto da actividade, do «fazer», não se consegue explicar aquilo que permite agir e ter sucesso. Fica-se puramente descritivo daquilo que é feito. Isto explica que frequentemente, e em particular aquando da aplicação do ACAP 2000, sejam feitos esforços para completar a noção de saber-fazer por outros aspectos. Se estes são simplesmente uma lista de saberes, então voltamos aos obstáculos acima sublinhados.

3.3. A abordagem pelos comportamentos e pelo saber-estar Em paralelo à abordagem pelos saberes, outras escolas conferem um peso determinante ao comportamento.

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Este termo poderia englobar duas acepções: – por um lado, o comportamento opõe-se aos saberes e aos saber-fazer que são conceitos mais abstractos, que têm como principal ambição serem explicativos da acção. O comportamento é a acção. Desta forma, quando se fala de «balanço comportamental» faz-se referência a métodos voltados para a situação real de trabalho quase directa8; – por outro lado, raciocina-se mais sobre aquilo que pertence como próprio ao indivíduo, aquilo que diz respeito às suas atitudes, e que permite distingui-lo dos outros. O comportamento está então directamente ligado à personalidade no sentido em que para predizer o primeiro basta descrever a segunda e que para conhecer a segunda há que descrever o primeiro. A personalidade revela-se através de comportamentos que são eles próprios explicados pela personalidade. É esta segunda abordagem que iremos aqui reter quando nos referirmos a comportamento. O comportamento inclui necessariamente saber-fazer e saberes, mas um lugar privilegiado é deixado à equação pessoal que permite pôr em operação saber ou saber-fazer e de com eles «fazer competência». De certa forma, é o procedimento seguido pelo escritório Hay9 que constrói as suas intervenções em torno da localização e da análise dos melhores, dos «heróis» num domínio em particular. Não existe portanto referencial a priori, mas este elabora-se à medida das análises que permitem explicar porque tal indivíduo é mais competente do que outro. Mesmo assim, fortes redundâncias permitem propor uma grelha de categorias de seis competências «genéricas»: – as competências de acção e de realização (motivação de realização, iniciativa, procura de informações...); – as competências de assistência e de serviço (compreensão interpessoal); – as competências de influência (impacto e influência, sentido da organização, estabelecimento de relacionamentos...); – as competências de gestão (o desenvolvimento dos outros, a directividade, a direcção da equipa...); – as competências cognitivas (o raciocínio analítico, a especialidade técnica); – as competências de eficácia pessoal (o domínio de si próprio, a confiança em si, a adaptabilidade, a adesão à organização...)10. O limite deste tipo de abordagem está em dois pontos: – ao situar-se exclusivamente do ponto de vista da psicologia, utilizam-se conceitos frequentemente vagos para os não especialistas mesmo que cada um acredite dominar o seu sentido: desta forma, a intuição, o bom senso, as capacidades relacionais, o sentido estratégico, a prudência... são termos difíceis a manipular correctamente porque cada um está persuadido de que sabe o que isso engloba e como pode ser identificado no outro;

8

Ver por exemplo V. Emoult, J.-P. Gruere, F. Pezeu (1986), Le bilan comportamental dans l`entreprise, Paris, PUF. A. Mitrani e colaboradores (1992), Des compétences et des hommes, Paris, Éditions d'Organisation. 10 A. Mitrani e colaboradores, op. cit., pp. 63-65. 9

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– ao dar um lugar explicativo à dimensão pessoal, não permite criar referências operatórias capazes de ajudar a desenvolver os recursos humanos; com efeito, se considerarmos que o carisma é explicativo da competência, somos obrigados a admitir que, para além do recrutamento, existem poucos meios de agir sobre os recursos humanos. Estas questões levam-nos a um problema mais geral e mais pernicioso, aquele das relações entre saber-estar e competência (Bellier, 1998). Por um lado, não se pode negar que, na competência, isto é, no facto de se agir com êxito, há participação de saberes comportamentais que não são nem saberes teóricos, nem saberes cognitivos, nem saberes práticos. Saber estimular, saber estabelecer um contacto positivo, saber acalmar a atmosfera, saber escutar, saber tranquilizar, saber persuadir... A lista podia ser longa! Por outro lado, conforme dizíamos anteriormente para o comportamento, todos estes saberes levam a noções muito subjectivas, difíceis de delimitar de maneira fina e que pertencem mais à linguagem comum que a categorias precisas. Para conseguir chegar a um acordo sobre aquilo que torna um contacto positivo, falar-se-á de escuta e de abertura. Mas o que é a escuta? O que é a abertura? Como delas fornecer uma definição partilhada por todos e fiável? Justamente porque consideramos conceitos não científicos, torna-se quase impossível torná-los operacionais... A menos que se faça referência a categorias psicológicas bem descritas, que são os traços de personalidade tal como são utilizados nos testes. Mas isto supõe que se tenham três certezas: – a personalidade pode explicar-se através de uma série de traços; – a maioria desses traços são estáveis e independentes do contexto; – podem ser localizados a partir do exterior, ou seja, independentemente do discurso da própria pessoa. Todas estas afirmações são questionadas tanto pela corrente interaccionista com autores como J. Nuttin, como pelos psicossociólogos, que voltam a atribuir ao ambiente um lugar privilegiado para explicar os comportamentos individuais11.

3.4. A abordagem pelos saberes, saber-fazer e saber-estar Diferenciámos voluntariamente os diferentes componentes em torno dos quais gira a discussão sobre a melhor maneira de apreender a competência. E é verdade que uma dessa dimensões toma frequentemente mais peso do que outra. Mas o reflexo clássico consiste em combinar essas diferentes abordagens sob a forma de uma triologia cuja soma forneceria o conjunto das competências necessárias para manter um emprego ou para caracterizar um indivíduo. E parece tratar-se mais de uma constatação de «bom senso» sobre a qual cada um está de acordo e que permite uma comunicação fácil dentro das empresas.

11

Em França, ver os trabalhos de Beauvois, Dubois, Joule.

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Mas, mais uma vez, habitualmente esta abordagem acumula os inconvenientes que assinalámos anteriormente suscitando novamente o facto da justaposição. Desta forma, somos frequentemente levados a colocar problemas de fronteira: – aonde pára o saber e aonde começa o saber-fazer? Saber bater à máquina supõe um saber e, caso positivo, qual? A gestão dos recursos humanos é um saber? – aonde pára o saber-fazer e aonde começa o saber-estar? A animação de equipa é um saber-estar ou um saber-fazer? E as competências comerciais? A gestão faz apelo a saberes, a saber-fazer ou a saber-estar? A estas questões vêm acrescentar-se problemas de homogeneidade: – é por vezes fácil portanto tentar entrar em pormenores para os saberes e os saber-fazer. Como obter algo de comparável em termos de saber-estar? – até onde se deve ir? Estamos à procura da exaustividade ou não? E, se não, como definir o limite entre aquilo que se decide dizer e aquilo que não se diz? – é necessário ou não construir um referencial geral de competências? Quando o fazemos, consiste em estabelecer a lista do conjunto dos saberes, saber-fazer e saber-estar existentes numa empresa: chegamos portanto a instrumentos muito pesados e que são mais um listing do que uma referência. Quando não o fazemos, aumentamos a tendência para a heterogeneidade na organização, descrevendo cada um conforme a sua própria cultura, a sua própria tecnicidade, a sua própria estratégia e a sua visão da competência. Mas, mais profundamente, as duas críticas essenciais que podemos fazer a esta abordagem são as seguintes: – é praticamente impossível fazer comparações fiáveis entre empregos em sectores diferentes. Chegamos portanto a um instrumento útil em termos de comunicação, ou até de gestão local, mas inútil em termos de mobilidade; – não obtemos, com esta abordagem, resposta à pergunta: o que explica que ajamos com sucesso? A acumulação de saberes (dos quais não sabemos se são e como são mobilizados), de saber-fazer (que são apenas uma lista de actividades) e de saber-estar (que não sabemos o que são) não permite explicar por si própria a acção bem sucedida. A própria noção de acumulação parece-nos inadequada para compreender a competência. Não é pelo acréscimo de camadas sucessivas de saberes ou de saber-estar que se desenvolve a competência. Isto parece-nos revelador do facto de que por trás desta abordagem não existe uma verdadeira teoria daquilo que é a competência. Chegamos portanto necessariamente à justaposição de hipóteses esparsas das quais acumulamos os obstáculos.

3.5. A abordagem pelas competências cognitivas A última abordagem que escolhemos apresentar baseia-se numa definição muito prosaica da competência (Michel, Ledru, 1991): é a capacidade em resolver problemas de maneira eficaz num dado contexto. Isto significa que a eficácia não existe em si mas é determinada, entre outros, pelo contexto.

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Partindo desse ponto, aquilo que procuramos não diz respeito aos problemas – que podem ser traduzidos por actividades – mas ao como se resolvem os problemas. A competência não é aquilo que se faz mas como se consegue fazê-lo de maneira satisfatória. É portanto aquilo que está subjacente à acção e não a própria acção. Em outras palavras, a questão é a seguinte: como é que as pessoas resolvem problemas em contextos particulares? Isto leva-nos a um questionamento sobre as estratégias de resolução de problemas que são utilizadas para agir. Pois bem, estas estratégias estão no centro da competência, são explicativas do como se consegue agir. Estes «procedimentos intelectuais» são de ordem cognitiva; estão próximos daquilo que os cognitivistas denominam «conhecimentos procedentes». Desempenham um papel de guia da acção, são finalmente aquilo que permite integrar outras competências em função do contexto. Assim sendo: – a competência não existe de per si, deve sempre estar situada em relação a um problema particular num contexto específico. Partimos portanto de uma posição muito afastada das abordagens baseadas nas noções de aptidões ou de traço de personalidade. Estamos mais perto daquelas orientadas para o saber-fazer tentando denominar não a acção mas aquilo que está subjacente à acção e a torna possível; – a competência não pode ser compreendida como uma sucessão ou uma soma ou ainda uma acumulação de competências particulares. É a combinação original num dado contexto de vários aspectos cognitivos, entre outros; – existe uma competência particular que desempenha um papel de integração em relação às outras e que guia a acção: são os procedimentos intelectuais. O postulado é o seguinte: quando ocorre resolução de um problema, um procedimento intelectual está presente, inclusivamente no caso de se tratar de um problema de ordem relacional ou material. Não levamos em conta o facto que essas iniciativas sejam conscientes ou não mas apenas o facto que são eficazes para atingir o desempenho. O desempenho é relativo: é definido pela organização, o ambiente, o contexto e não é estudado em si. A hipótese retida é que esses procedimentos intelectuais são espontaneamente transferidos no caso de uma mobilidade ou de uma mudança de contexto. Isto por dois motivos: – são em grande parte inconscientes e automatizadas, o que faz com que nem se coloque a questão: é desta forma que temos o reflexo de considerar o problema; – foram a garantia do sucesso e são construídos na acção pela experiência: em caso de mudança e de ruptura, aparecem portanto ainda como sendo mais importantes, dada a dose de desconhecido enfrentada. O emprego pode ser visto como uma série de problemas a serem solucionados. Ora determinados procedimentos de resolução de problemas mostram-se mais eficazes, mais adaptados do que outros; são, com efeito, mobilizados mais frequentemente.

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Tentemos localizar e qualificar esses procedimentos intelectuais dominantes. Vemos portanto o interesse em termos de mobilidade: fazer passar um assalariado de um emprego X, que pede um determinado procedimento a um emprego Y, que pede o mesmo procedimento é uma garantia de sucesso, mesmo se os contextos profissionais são diferentes. Bem entendido, o procedimento intelectual não basta para explicar toda a competência. Este é um ponto-chave desta abordagem: não pretende ser exaustiva. Procura principalmente aquilo que é discriminativo, explicativo, aquilo que faz a diferença ou a proximidade entre dois empregos, entre duas pessoas. É uma abordagem eficaz principalmente em termos de mobilidade e de orientação mas muito menos em termos de avaliação ou de hierarquização dos empregos. A competência cognitiva analisa-se com a ajuda de três critérios integrados e mobilizados pelo «chefe de orquestra» que é o procedimento intelectual e cuja combinação forma configurações originais, particulares e explicativas do sucesso na acção. Há que distinguir: – os saberes-referências; – a relação com o espaço e com o tempo; – a interacção relacional.

3.5.1. Os saberes-referências Correspondem em parte àquilo que os cognitivistas denominam os conhecimentos declarativos, mas unicamente do ângulo daqueles que foram conservados na memória de longo prazo. Não nos interessamos pelos conhecimentos declarativos que desaparecem assim que o contexto do problema muda porque, por definição, não são transferíveis em caso de mobilidade. Conforme o tipo de problema, este quadro de referência será mais ou menos abstracto e teórico: as representações do contexto para um investigador, para um condutor de linha automatizada ou para um operador de trabalhos públicos não são do mesmo tipo; mas, nos três casos, trata-se na verdade de descrever o quadro das informações que condicionam o sucesso da acção.

3.5.2. A relação com o espaço Faz referência à noção de «espaço-problema», ao número de elementos a ter em consideração aquando da abordagem de resolução do problema. Dado que não é possível «contar» esses elementos, analisaremos o espaço quase geográfico que está em causa aquando da resolução do problema (equipa ou escritório, vários serviços, conjunto da sociedade...).

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3.5.3. A relação com o tempo Diz respeito ao termo ao qual o actor deve projectar-se no momento em que age. Diz respeito à(s) perspectiva(s) temporal (ou temporais) na qual nos situamos aquando de um procedimento de resolução de problema. Não se trata necessariamente da duração do projecto no qual se trabalha, nem dos prazos fixados por um calendário geral, mas sim daquilo que a pessoa interioriza espontaneamente no momento da acção, do seu próprio calendário, do ritmo pessoal que está ligado à divisão da acção no tempo (curto prazo, médio prazo, longo prazo...). Este último critério diz respeito ao tipo de relações necessárias para resolver os problemas que se põem aquando da actividade dominante. Apesar do aspecto relacional evidente, não se procura através deste critério levar em conta uma dimensão psico-afectiva particular, nem sequer uma aptidão social que pensamos ser extremamente difícil a avaliar. Estamos sempre situados na esfera cognitiva e procuramos apreender um procedimento intelectual e aquilo que é necessário para agir e resolver os problemas. A interacção relacional é analisada através de dois indicadores: a frequência (raro ou frequente) e a natureza da interacção (ao lado, em frente ou com). Este procedimento cognitivo das competências tem, também ele, os seus limites: – como foi notado, é principalmente útil para comparar de forma qualitativa empregos a priori diferentes entre si; em compensação, quando se trata de avaliar e de classificar, não apresenta grande interesse; – é mais difícil para comunicar do que as outras abordagens visto que descreve automatismos inconscientes, não percebidos espontaneamente pelos indivíduos. No que diz respeito à formação, permite insistir sobre objectivos pedagógicos raramente salientados e que no entanto podem facilitar a apropriação mas evidentemente não permite construir um módulo de formação clássica. Sendo as competências cognitivas construídas na acção, é em primeiro lugar no terreno que a formação deve ser realizada. As realizações de situações reais são então o método pedagógico por excelência.

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TEXTO 17 A TEORIA DA COMPETÊNCIA E DA AUTODETERMINAÇÃO

Deci e Ryan (pp. 297-306)


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Assim como a teoria de J. Nuttin em psicologia de língua francesa, a psicologia humanista anglófona diz que o indivíduo procura optimizar o seu desenvolvimento, tornar-se «plenamente funcional» (C. Rogers), «auto-actualizar-se» (A. Maslow). Estaria animado por uma necessidade de competência ou «efectância» (R. White) e quereria ser «a origem» dos seus comportamentos e não um «peão» da acção dos outros R. de Charms). A partir destes postulados humanistas, E. Deci e R. Ryan desenvolveram uma teoria integrada da motivação, que a vê como a resultante de duas necessidades humanas: percepção de competência e sentimento de autodeterminação (Vallerand, Thill, 1993): – as percepções de competência (conceito correlacionado com a expectativa e com o sentimento de auto-eficácia já apresentados) representam a impressão sentida pelo sujeito de ser capaz de produzir determinados acontecimentos desejáveis ou de realizar determinados desempenhos; o inverso da percepção de competência é a resignação; – o sentimento de autodeterminação (ou de autonomia) traduz a impressão do sujeito de ser a origem das suas acções, de poder escolher, de se sentir livre dos seus comportamentos; o inverso da autodeterminação seria a conformidade ou a desconfiança como reacções às acções dos outros. A partir desta dupla necessidade, postulada como inerente ao funcionamento humano, E. Deci e R. Ryan desenvolveram uma teoria que leva a distinguir vários tipos de motivação, desde a motivação (próxima da situação de resignação) à motivação intrínseca (em que a acção é levada a cabo por si mesma),12 passando por diferentes classes de motivação extrínseca (em que se age para obter um resultado exterior à acção em si). Esta teoria deu lugar à construção de um «modelo hierárquico da motivação» adaptado às situações educativas (Vallerand in Carré e colaboradores, 1998).

3.5. Três implicações para a formação de adultos No quadro limitado deste capítulo vamos restringir-nos a indicar três noções especialmente salientes, comuns a várias das teorias e directamente pertinentes para a formação. A noção de representação do futuro está implícita no conjunto dessas teorias, sob diferentes formas: projecto, perspectiva futura, horizonte temporal, espera de resultado, etc. Esta dimensão está praticamente ausente nas teorias precedentes (behaviorismo, psicanálise, etc.), mais envolvidas pelos efeitos da situação presente ou o peso do passado. A especificidade ao mesmo tempo da motivação humana e dos seus modelos cognitivos é a de privilegiar, nos estudos dos dinamismos do comportamento, a construção, pelo sujeito, à medida que se desenvolve, representações daquilo que o futuro será ou poderia ser para ele. Esta característica da motivação humana adquire todo o seu sentido no domínio da formação, vista como instrumento de gestão do seu futuro.

12

A. Bandura (1977), Sef-Efficacy. The Exercice of Control, Nova Iorque, Freeman.

TEXTO 17 A TEORIA DA COMPETÊNCIA E DA AUTODETERMINAÇÃO

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O conceito de percepção de competência atravessa a maioria das teorias sob diferentes etiquetas (efectância, auto-eficácia, expectativa...), ilustrando o facto de que o sujeito social está tanto mais inclinado a agir quanto mais capaz se sente capaz de atingir os desempenhos visados no domínio em questão. Ao contrário, uma percepção de incompetência radical levará à resignação, ou até mesmo à inibição da acção, que se pode frequentemente observar nos casos infelizmente comuns de públicos ditos «em grande dificuldade». As implicações deste factor de motivação para a prática pedagógica serão numerosas, especialmente nos registos da avaliação e da relação pedagógica. Finalmente, o conceito de autodeterminação, mais específico dos trabalhos de E. Deci, completa o panorama dos componentes de base do processo de motivação humana, sublinhando o papel da livre escolha, da autonomia e do exercício da liberdade na optimização das condutas humanas. Os trabalhos experimentais realizados sobre este conceito forneceram resultados convergentes em diferentes domínios (gestão, educação, lazer, etc.). Segundo estes trabalhos, quanto mais o indivíduo se percebe como actor das suas escolhas mais a sua motivação a agir aumenta. Em matéria de educação de adultos, este ponto fornece, claro está, toda a sua dimensão à noção de autoformação ou, mais precisamente, de autodirecção da formação13.

4. Os motivos de envolvimento em formação 4.1. Orientações motivacionais e motivos de envolvimento Além do estudo dos processos da motivação, que ajudam a compreender os mecanismos que operam na passagem à acção, é interessante analisar os conteúdos, ou seja, os motivos ou as razões de agir dos sujeitos sociais. Aquando de uma investigação sobre o envolvimento em formação (Carré, 1998), foi possível construir um modelo descritivo das orientações e dos motivos de envolvimento educativo dos adultos. Segundo este modelo, os motivos de envolvimento dos adultos em formação são plurais: raramente ocorre um envolvimento na formação por uma única razão, geralmente vários motivos se misturam numa combinação singular. São igualmente contingentes: não são nem «traços» ou características estáveis da personalidade, nem dimensões permanentes da relação individual com a formação, mas sim expressões da relação do sujeito com um determinado projecto de formação, numa determinada situação, a um dado momento da sua vida. São finalmente evolutivos: o seu número, a sua importância, a sua articulação, mudam com o tempo, em função da história da pessoa, da sua «vivência» e da sua relação com o objecto da formação.

13

154

P. Carré, A. Moisan e D. Poisson (1997), L'Autoformation. Psychopédagogie, ingénierie, sociologie, Paris, PUF.

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4.2. Quatro orientações motivacionais Na tradição iniciada por C. Houle a partir de 1961, podemos diferenciar uma orientação intrínseca ou extrínseca da motivação para a formação, por um lado, uma orientação para a aprendizagem ou para a participação, por outro lado. Combinando-se estas orientações, obtemos quatro «quadrantes» específicos, nos quais podemos incluir o conjunto dos motivos de envolvimento em formação.

4.2.1. Orientação intrínseca/extrínseca Separaremos os motivos que encontram a sua resposta no próprio facto de estarem em formação daqueles que encontram a sua satisfação fora da formação em si. Em outros termos, no primeiro caso o resultado esperado confunde-se com a actividade de formação, enquanto no segundo a formação tem como função permitir atingir objectivos que lhe são externos. Conforme a concepção de E. Deci e R. Ryan (in Vallerand, Thill, 1993), denominaremos a primeira série de motivos «intrínsecos», e a segunda de motivos «extrínsecos».

4.2.2. Orientação para a aprendizagem/para a participação Um segundo eixo que cinde as orientações motivacionais reparte os motivos de envolvimento em formação entre aqueles que visam a aquisição de um conteúdo de formação (conhecimentos, habilidades, atitudes), centrados portanto na aprendizagem, e aqueles que visam a participação, ou seja, a inscrição e ou a presença na formação (Houle, 1961). Neste caso, o motivo de inscrição em formação é independente da aprendizagem de conhecimentos. O seguinte esquema (figura 14.1) organiza os dez motivos identificados durante a investigação conforme estas quatro orientações motivacionais. Neste quadro, os motivos postulados de envolvimento dos adultos em formação estão repartidos entre três motivos «intrínsecos» e sete «extrínsecos».

4.3. Três motivos «intrínsecos» 4.3.1. Motivo epistémico Aprender, apropriar-se dos conhecimentos, cultivar-se, etc., são processos que encontram as suas razões de ser (os seus «reforços») em si próprios. O motivo de envolvimento está neste caso ligado ao conhecimento de um determinado conteúdo, uma espécie de «alegria em saber», e a frequentação é uma fonte de prazer por ela mesma.

TEXTO 17 A TEORIA DA COMPETÊNCIA E DA AUTODETERMINAÇÃO

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4.3.2. Motivo socioafectivo Trata-se neste caso de participar em uma formação para beneficiar de contactos sociais. Para responder a este motivo de inscrição, é preciso que a formação forneça ocasiões de intercâmbios com as outras pessoas, permita desenvolver relações novas, integrar-se a um grupo, comunicar, estabelecer ou reforçar laços sociais.

4.3.3 Motivo hedónico Trata-se neste caso de participar pelo prazer ligado às condições práticas e ao ambiente em que se desenvolve a formação, independentemente da aprendizagem de conteúdos precisos. O «clima» e o conforto dos locais de formação, o gosto pelos utensílios, materiais ou documentos (desde o «bibliófilo» até ao «ciberfan») formam a base deste motivo.

FIGURA 14.1 Quatro orientações e dez motivos de envolvimento em formação Aprendizagem

4

1

Operacional profissional Epistémico

Operacional pessoal

Extrínseco

Intrínseco

Vocacional identitário

Derivativo Socioafectivo Prescrito Hedónico Económico

3

Participação

2

4.4. Sete motivos «extrínsecos» 4.4.1. Motivo económico As razões de participação são neste caso de ordem explicitamente material; o facto de participar numa acção de formação irá trazer vantagens de tipo económico. Estas podem ser directas (como por exemplo

156

TEXTO 17 A TEORIA DA COMPETÊNCIA E DA AUTODETERMINAÇÃO


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prémios ou subsídios de desemprego) ou indirectas, através de vantagens materiais obtidas depois da formação.

4.4.2. Motivo prescrito Sob formas discretas (a pressão da conformidade social, o «conselho» de um superior hierárquico, a intervenção de uma pessoa influente, etc.) ou explícitas (a obrigação à inscrição, prevista pela lei), o envolvimento na formação é o resultado de uma injunção de outra pessoa, evocando as dimensões mais extrínsecas à formação.

4.4.3. Motivo derivativo É neste caso para evitar situações ou actividades vividas como desagradáveis que se faz a inscrição na formação. A título de exemplo, podemos citar um mau ambiente de trabalho, tarefas rotineiras, falta de interesse profissional ou, num outro registo, uma vida afectiva ou social pobre, conflitos familiares, etc.

4.4.4. Motivo operacional profissional Trata-se neste caso de adquirir as competências (conhecimentos, habilidades, atitudes) percebidas como sendo necessárias à realização de actividades específicas no domínio do trabalho, para antecipar ou adaptar-se a mudanças técnicas, descobrir ou aperfeiçoar práticas, com um objectivo de desempenho preciso.

4.4.5. Motivo operacional pessoal Trata-se de adquirir competências (conhecimentos, habilidades, atitudes) percebidas como sendo necessárias à realização de actividades específicas fora do domínio do trabalho (lazer, vida familiar, responsabilidades associativas, etc.), aqui também com um objectivo de acção concreto e bem identificado.

4.4.6. Motivo identitário Adquirir as competências (conhecimentos, habilidades, atitudes) e/ou o reconhecimento simbólico necessários a uma transformação (ou a uma preservação) das suas características de identidade como tal, graças à manutenção ou à transformação do estatuto social, profissional ou familiar, da função, do nível de qualificação, do título, etc. Este motivo está portanto centrado no reconhecimento do ambiente e da imagem social de si mesmo, fora (ou ao lado) de qualquer motivo económico.

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4.4.7. Motivo vocacional Neste caso, trata-se de adquirir as competências (conhecimentos, habilidades, atitudes) e/ou o reconhecimento simbólico necessários à obtenção de um emprego, à sua preservação, à sua evolução ou à sua transformação. A razão do envolvimento em formação está aqui centrada numa lógica de orientação profissional, de gestão de carreira ou de procura de emprego (em prioridade ou em paralelo à sua caracterização económica, operacional ou de identidade).

5. Motivação e pedagogia 5.1. Impacte da motivação na relação com a formação O processo e o conteúdo da motivação regem a relação individual com a formação sob pelo menos três aspectos: o envolvimento, a aprendizagem e a persistência. A combinação de motivos de envolvimento, o seu carácter extrínseco ou intrínseco, a sua centragem na aprendizagem ou na participação, determinam, com os outros aspectos do processo (percepção de competência, sentimento de autodeterminação, representações do futuro), as disposições daquele que aprende no início da formação. Estas disposições, quer sejam elas afectivas (prazer/desprazer em estar presente), cognitivas (representações e concepções do conteúdo) ou conotativas (intenções e projectos no quadro da formação), irão pesar fortemente, conforme bem sabe o prático, no desenvolvimento pedagógico da acção de formação. No que diz respeito à aprendizagem em si, conhecemos hoje em dia o efeito dos factores motivacionais sobre a atenção, a concentração e a memória (Lieury, Fenouillet, 1996). Estes efeitos afectam directamente os desempenhos, conforme foi provado em contexto escolar (Viau, 1994)14. Finalmente, a motivação age evidentemente na persistência ou no abandono da formação. A intensidade e a direcção do processo motivacional serão traduzidas, durante a formação, por tipos de implicação (ou de desimplicação) específicos no processo pedagógico proposto. A desmotivação poderá assumir várias formas bem analisadas por D. Chartier (in Carré e colaboradores, 1998): condutas de auto-handicap para justificar uma estratégia de fracasso, comportamentos de inércia social (social loafing) em situação de trabalho em grupo, manifestações de resignação aprendida podendo levar à inibição da acção.

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A demonstração não foi realizada de forma sistemática para a formação de adultos. Está em curso uma investigação neste sentido (Carré, 1998).

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Mais geralmente, e de forma transversa às condutas de envolvimento, de aprendizagem e de persistência, a motivação rege em permanência a relação do sujeito com a formação, o que se traduz por diferentes «posturas» mais ou menos aptas para aprender, da inactividade à proactividade 15.

5.2. Alcance e limites da intervenção pedagógica Mesmo que não tenha nenhuma influência sobre as disposições do formando aquando do seu envolvimento em formação, o pedagogo vai no entanto entrar em interacção com o sistema motivacional deste desde o início das actividades pedagógicas, através da relação e do clima que irá construir, da metodologia e dos utensílios que irá propor. Podemos indicar vários exemplos daquilo que poderia ser uma gestão pedagógica das motivações (Chartier, in Carré e colaboradores, 1998; Viau, 1994): – a preparação e a animação pedagógica podem basear-se na análise dos motivos de envolvimento dos participantes. Conforme escreve J. P. Boutinet (in Carré e colaboradores, 1998), tal pedagogia dos motivos «constitui, para o estagiário, uma garantia segura de maior autonomia e de melhor implicação motivacional»; – embora dificilmente possa agir sobre a valência (positiva ou negativa) para o participante do projecto global no qual a sua formação se insere, o formador é suposto, em determinadas ocasiões, ter peso sobre a sua instrumentalidade, ou seja, sobre o papel e o alcance do sucesso na formação em vista de uma finalidade externa. Poderá, por exemplo, explorar o seu conhecimento do mercado de trabalho para valorizar determinadas competências em termos de futuras utilizações no trabalho; – a qualidade das técnicas, ferramentas e suportes utilizados pelo formador pode agir a três níveis nas disposições motivacionais do formando sobre as percepções de competências (facilitando a consecução dos objectivos), sobre a motivação intrínseca (pelo seu carácter convivial e agradável) e pela modelização (fixando o nível de exigência); – a relação pedagógica pode, através do desenvolvimento da motivação intrínseca, agir sobre a implicação do formando. Devem-se no entanto sublinhar os riscos inerentes a esta postura, de uma deriva para uma «pedagogia da sedução» cujos efeitos sobre a aprendizagem permanecem por enquanto amplamente por demonstrar. Em compensação, a atitude do formador e a tonalidade da relação pedagógica serão traduzidas nas práticas de avaliação e de feedback. A qualidade, a sinceridade e o apuro das apreciações do formador agirão directamente sobre a evolução das percepções de competência do formando, do qual se sabe a que ponto regem a dinâmica motivacional global; – uma pedagogia das escolhas, permitindo a negociação e o desenvolvimento das situações de livre escolha e, mais amplamente, uma abordagem que forneça uma grande parte de autodirecção dos formandos, deve favorecer, além do desenvolvimento da autonomia, a motivação e a qualidade das aprendizagens, através dos sentimentos de autodeterminação;

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P. Carré, D. Poisson, A. Moisan, ibid.

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– uma pedagogia do sucesso irá favorecer a motivação e as aprendizagens, desde que esta não se transforme numa pedagogia da facilidade. Será necessário, por um lado, propor objectivos difíceis, mas acessíveis e precisos, e, por outro lado, insistir na análise dos erros controláveis, e não sobre os factores independentes da margem de acção do formando; – um trabalho individualizado de «reaprendizagem das atribuições» pode permitir uma tomada de consciência, pelo formando, das causas das suas dificuldades, e dos meios de agir sobre aqueles que estão sob o seu controlo 16; – finalmente, já pôde ser dito que «não se sabe como motivar» mas que «sabe-se como desmotivar». A lista seria longa e trivial e reuniria os actos pedagógicos «matematicidas» e criadores de desmotivação, e o primeiro dever do formador é sem dúvida de se interrogar sem complacência sobre aquilo que, na sua prática, pode levar à desmotivação... para corrigi-lo!

5.3. Motivação e relação com a formação A motivação, porque rege as disposições dos adultos no envolvimento educativo, porque determina o grau de implicação (e portanto de persistência) do formando e que contribui para explicar os desempenhos de aprendizagem, é um mediador determinante da relação com a formação. Dá-lhe a sua dinâmica e o seu sentido, e dela representa uma variável de síntese sólida e fiável, quando correctamente apreendida. Por isso, a problemática da relação com a formação não poderia ser reduzida ao exame das motivações individuais expressas antes ou durante a acção. Os parâmetros sociodemográficos (idade, sexo, categoria socioeconómica, qualificações, estatuto social e familiar, etc.) determinam habitus e lógicas sociais de acção das diferentes categorias de públicos. Além disso, os dados biográficos (experiências de aprendizagem, história educativa) fornecem aos percursos dos sujeitos as suas singularidades existenciais irredutíveis à racionalidade sociológica. Em seguida, a relação com o saber e com as instituições e a relação pedagógica são regidas por factores afectivos relativamente independentes dos determinismos sociais e das intenções do actor. Finalmente, last but not least, as disposições e os desempenhos em formação são, conforme sabemos, fortemente dependentes das capacidades cognitivas adquiridas antes da entrada em formação. Variável de síntese, a motivação não funciona portanto como um automatismo «agido» pelo conjunto destes determinantes, nem como uma força autónoma que os transcenderia, mas sim como o seu ponto de encontro, de arbitragem e de decisão. Neste sentido, e para retomar as metáforas de B. Weiner (1992), a motivação parece contribuir para a acção à maneira de um «juiz» mais do que como uma «máquina» ou um «deus». O formador pode trazer uma contribuição à dinâmica individual e colectiva da relação com a formação através de determinadas práticas. Esta acção é no entanto limitada pelas fronteiras do quadro pedagógico,

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D. Chartier, J. Lautrey (1992), «Peut-on apprendre à connaitre et à contrôler son propre fonctionnement cognitif?», L’orientation scolaire et professionnelle, n.º 21-1, pp. 27-46.

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por um lado, e pelo carácter intencional da motivação adulta, pelo outro. Esta dupla restrição leva-nos a perguntar «como motivar as pessoas?», a colocar a questão «como criar as condições propícias à automotivação?». O projecto de agir sobre a motivação dos adultos que aprendem pode de facto conduzir a erros metodológicos, desilusões pedagógicas e a derivas éticas 17. Excluindo-se a violência, o condicionamento ou a manipulação, nunca se motiva um adulto a partir do exterior, pelo menos de forma duradoura.

Leituras recomendadas BEILLEROT, J., BLANCHARD-LA VILLE, C, Moscovici, N. (1996), Pour une clinique du rapport au savoir, Paris, L’Harmattan. CARRÉ, P., e colaboradores (1998), «Motivation et engagement en formation», Éducation permanente, n.º 136.

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Pode-se ler a este respeito o formidável panfleto de Ph. Meirieu (1996), Frankenstein pédagogue, Paris, ESF Éditions.

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Philippe Perrenoud Entrevista de Paola Gentile e Roberta Bencini In Nova Escola (Brasil), Setembro de 2000, pp. 19-31


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[...] É preciso parar de pensar a escola básica como uma preparação para os estudos longos. Deve-se vê-la, ao contrário, como uma preparação de todos para a vida, compreendida a vida da criança e do adolescente, que não é simples...

Phillippe Perrenoud Universidade de Genebra

1. O que é competência? Poderia dar-me alguns exemplos? Phillippe Perrenoud – Competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações. Três exemplos: – Saber orientar-se numa cidade desconhecida mobiliza as capacidades de ler um mapa, localizar-se, pedir informações ou conselhos; e os seguintes saberes: ter noção de escala, elementos da topografia ou referências geográficas. – Saber curar uma criança doente mobiliza as capacidades de observar sinais fisiológicos, medir a temperatura, administrar um medicamento; e os seguintes saberes: identificar patologias e sintomas, primeiros socorros, terapias, os riscos, os remédios, os serviços médicos e farmacêuticos. – Saber votar de acordo com seus interesses mobiliza as capacidades de saber se informar, preencher a cédula; e os seguintes saberes: instituições políticas, processo de eleição, candidatos, partidos, programas políticos, políticas democráticas, etc. Esses são exemplos banais. Outras competências estão ligadas a contextos culturais, profissionais e condições sociais. Os seres humanos não vivem todos as mesmas situações. Eles desenvolvem competências adaptadas ao seu mundo. A selva das cidades exige competências diferentes da floresta virgem, os pobres têm problemas diferentes dos ricos para resolver. Algumas competências desenvolvem-se em grande parte na escola. Outras não.

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2. De onde vem a ideia de competência na educação? Quando começou a ser empregada? P.P – Quando a escola se preocupa em formar competências, em geral dá prioridade a recursos. De qualquer modo, a escola preocupa-se mais com ingredientes de certas competências, e bem menos em colocá-las em sinergia nas situações complexas. Durante a escolaridade básica aprende-se a ler, a escrever, a contar, mas também a raciocinar, explicar, resumir, observar, comparar, desenhar e dúzias de outras capacidades gerais. Assimilam-se conhecimentos disciplinares, como matemática, história, ciências, geografia, etc. Mas a escola não tem a preocupação de ligar esses recursos a certas situações da vida. Quando se pergunta porque se ensina isto ou aquilo, a justificação é geralmente baseada nas exigências da sequência do curso: ensina-se a contar para resolver problemas; aprende-se gramática para redigir um texto. Quando se faz referência à vida, apresenta-se um lado muito global: aprende-se para se tornar um cidadão, para se ter sucesso na vida, ter um bom trabalho, cuidar da saúde. A onda actual de competências está ancorada em duas constatações: – A transferência e a mobilização das capacidades e dos conhecimentos não caem do céu. É preciso trabalhá-las e treiná-las. Isso exige tempo, etapas didácticas e situações apropriadas. – Na escola não se trabalha suficientemente a transferência e a mobilização; não se dá tanta importância a essa prática. O treinamento, então, é insuficiente. Os alunos acumulam saberes, passam nos exames, mas não conseguem mobilizar o que aprenderam em situações reais, no trabalho e fora dele (família, cidade, lazer, etc.) Isso não é dramático para quem faz estudos longos. É mais grave para quem frequenta a escola somente por alguns anos. Formulando-se mais explicitamente os objectivos da formação em termos de competência, luta-se abertamente contra a tentação da escola: – de ensinar por ensinar, de marginalizar as referências às situações da vida; – e de não perder tempo treinando a mobilização dos saberes para situações complexas. A abordagem por competências é uma maneira de levar a sério, em outras palavras, uma problemática antiga, aquela de transferir conhecimentos.

3. Quais as competências que os alunos devem ter adquirido ao terminar a escola? P.P – É uma escolha da sociedade, que deve ser baseada num conhecimento amplo e actualizado das práticas sociais. Para elaborar um conjunto de competências, não basta nomear uma comissão de redacção. Certos países contentaram-se em reformular os programas tradicionais, colocando um verbo de acção na frente dos saberes disciplinares. Onde se lia «ensinar o teorema de Pitágoras», agora lê-se «servir-se do teorema de Pitágoras para resolver problemas de geometria». Isso é maquilhagem.

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A descrição de competências deve partir da análise de situações, da acção, e disso derivar conhecimentos. Há uma tendência para ir rápido demais em todos os países que se lançam na elaboração de programas sem dedicar tempo a observar as práticas sociais, identificando situações com as quais as pessoas são e serão verdadeiramente confrontadas. O que sabemos verdadeiramente das competências que têm necessidade, no dia-a-dia, um desempregado, um imigrante, um portador de deficiência, uma mãe solteira, um dissidente, um jovem da periferia? Se o sistema educativo não perder tempo reconstruindo a transposição didáctica, ele não questionará as finalidades da escola e contentar-se-á em verter antigos conteúdos dentro de um novo recipiente. Na formação profissional, estabelece-se uma profissão referencial na análise de situações de trabalho, depois elaborou-se um referencial de competências, que fixa os objectivos da formação. Nada disso acontece na formação geral. Por isso, sob a capa de competências, dá-se ênfase a capacidades sem contexto. Resultado: conserva-se o essencial dos saberes necessários aos estudos longos, e os «lobbies» disciplinares ficam satisfeitos.

4. E o que é preciso fazer? P.P – Eu tentei um exercício para identificar as competências fundamentais para a autonomia das pessoas. Cheguei a oito grandes categorias: – saber identificar, avaliar e valorizar as suas possibilidades, os seus direitos, os seus limites e as suas necessidades; – saber formar e conduzir projectos e desenvolver estratégias, individualmente ou em grupo; – saber analisar situações, relações e campos de força de forma sistémica; – saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma actividade colectiva e partilhar liderança; – saber construir e estimular organizações e sistemas de acção colectiva do tipo democrático; – saber gerir e superar conflitos; – saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las; – saber construir normas negociadas de convivência que superem diferenças culturais. Em cada uma dessas grandes categorias, deveria ainda especificar concretamente grupos de situações. Por exemplo: saber desenvolver estratégias para manter o emprego em situações de reestruturação de uma empresa. A formulação de competências afasta-se, então, das abstracções ideologicamente neutras. Assim, a unanimidade está ameaçada e reaparece a ideia de que os objectivos da escolaridade dependem de uma escolha da sociedade.

5. A Unesco fez ou seguiu alguma experiência antes de recomendar essas mudanças dentro dos currículos e nas práticas da educação? P.P – Eu não tenho uma resposta precisa. O movimento é internacional. Nos países em desenvolvimento as metas não são as mesmas que nos países hiper-escolarizados. A Unesco observa que, de entre as crianças que têm hipótese de ir à escola somente alguns anos, uma grande parte sai sem saber utilizar as coisas que aprendeu.

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É preciso parar de pensar a escola básica como uma preparação para os estudos longos. Deve-se vê-la, ao contrário, como uma preparação de todos para a vida, aí compreendida a vida da criança e do adolescente, que não é simples.

6. Nesse contexto, quais são as mudanças no papel do professor? P.P – É inútil exigir esforços sobre-humanos aos professores se o sistema educativo não faz nada além de adoptar a linguagem das competências, sem nada mudar de fundamental. O mais profundo indício de uma mudança em profundidade é a diminuição de peso dos conteúdos disciplinares e uma avaliação formativa e certificativa orientada claramente para as competências. Como eu disse, as competências não viram as costas aos saberes, mas não se pode pretender desenvolvê-las sem dedicar o tempo necessário para as colocar em prática. Não basta juntar uma situação de transferência no final de cada capítulo de um curso convencional. Se o sistema muda reformulando não só os programas, em termos de desenvolvimento de competências verdadeiras, mas libertando disciplinas, introduzindo os ciclos de aprendizagem plurianuais ao longo do curso, apelando para a cooperação profissional, convidando para uma pedagogia diferenciada; então o professor deve mudar a sua representação e a sua prática.

7. O que é que o professor deve fazer para modificar a sua prática? P.P – Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por problemas e por projectos, propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar seus conhecimentos e, em certa medida, completá-los. Isso pressupõe uma pedagogia activa, cooperativa, aberta para a cidade ou para o bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de pensar que dar o curso é o cerne da profissão. Ensinar, hoje, deveria consistir em conceber, encaixar e regular situações de aprendizagem, seguindo os princípios pedagógicos activos construtivistas. Para os adeptos da visão construtivista e interactiva da aprendizagem, trabalhar no desenvolvimento de competências não é uma ruptura. O obstáculo está mais acima: como levar os professores habituados a cumprir rotinas a repensar sua profissão? Eles não desenvolverão competências se não se perceberem como organizadores de situações didácticas e de actividades que têm sentido para os alunos, envolvendo-os e, ao mesmo tempo, gerando aprendizagens fundamentais.

8. Quais são as qualidades profissionais que o professor deve ter para ajudar os alunos a desenvolver competências? P.P – Antes de ter competências técnicas, ele deveria ser capaz de identificar e de valorizar suas próprias competências, dentro de sua profissão e dentro de outras práticas sociais. Isso exige um trabalho sobre a sua própria relação com o saber. Muitas vezes, um professor é alguém que ama o saber pelo saber, que é bem sucedido na escola, que tem uma identidade disciplinar forte desde o ensino secundário. Se ele se

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coloca no lugar dos alunos que não são e não querem ser como ele, ele começará a procurar meios de interessar a sua turma por saberes, não como algo em si mesmo, mas como ferramentas para compreender o mundo e agir sobre ele. O principal recurso do professor é a postura reflexiva, a sua capacidade de observar, de regular, de inovar, de aprender com os outros, com os alunos, com a experiência. Mas, com certeza, existem capacidades mais precisas: – saber gerir a classe como uma comunidade educativa; – saber organizar o trabalho no meio dos mais vastos espaços-tempos de formação (ciclos, projectos da escola); – saber cooperar com os colegas, os pais e outros adultos; – saber conceber e dar vida aos dispositivos pedagógicos complexos; – saber suscitar e animar as etapas de um projecto como modo de trabalho regular; – saber identificar e modificar aquilo que dá ou tira o sentido aos saberes e às actividades escolares; – saber criar e gerir situações problemas, identificar os obstáculos, analisar e reordenar as tarefas; – saber observar os alunos nos trabalhos; – saber avaliar as competências em construção.

9. O que é que o professor pode fazer com as disciplinas? Como empregá-las dentro deste novo conceito? P.P – Não se trata de renunciar às disciplinas, que são os campos do saber estruturados e estruturantes. Existem competências para dominantes disciplinares, para se trabalhar nesse quadro. No ensino primário, é preciso, entretanto, preservar a polivalência dos professores, não «secundarizar» a escola primária. No ensino secundário, pode-se desejar a não compartimentação precoce e estanque, professores menos especializados, menos fechados dentro de uma só disciplina, que dizem ignorar as outras disciplinas. É importante ainda não repartir todo o tempo escolar entre as disciplinas, deixar espaços que favoreçam as etapas do projecto, as encruzilhadas interdisciplinares ou as actividades de integração.

10. Como fazer uma avaliação numa escola orientada para o desenvolvimento de competências? P.P – Não se formarão competências na escolaridade básica a menos que se exijam competências no momento da certificação. A avaliação é o verdadeiro programa, ela indica aquilo que conta. É preciso, portanto, avaliar seriamente as competências. Mas isso não pode ser feito com testes com lápis e papel. Pode-se inspirar nos princípios de avaliação autêntica elaborada por Wiggins. Para ele a avaliação: – não inclui nada além das tarefas contextualizadas; – diz respeito a problemas complexos; – deve contribuir para que os estudantes desenvolvam ainda mais as suas competências; – exige a utilização funcional dos conhecimentos disciplinares; – não deve haver nenhum constrangimento de tempo fixo quando da avaliação das competências;

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– a tarefa e suas exigências são conhecidas antes da situação de avaliação; – exige uma certa forma de colaboração entre os pares; – leva em consideração as estratégias cognitivas e metacognitivas utilizadas pelos estudantes; – a correcção não deve levar em conta o que não sejam erros importantes na óptica da construção de competências.

11. Em quanto tempo se podem ver os resultados dessas mudanças no sistema de ensino? P.P – Antes de avaliar as mudanças, é melhor colocá-las em operação, não somente nos textos, mas no espírito e nas práticas. Isso levará anos se for um trabalho sério. Pior seria acreditar que as práticas de ensino e aprendizagem mudam por decreto. As mudanças exigidas passarão por uma espécie de revolução cultural, que será vivida primeiro pelos professores, mas também pelos alunos e seus pais. Quando as práticas forem mudadas em larga escala, a mudança exigirá ainda anos para dar frutos visíveis, pois será preciso esperar mais de uma geração de estudantes que tenha passado por todos os ciclos. Enquanto se espera, é melhor implementar e acompanhar as mudanças do que procurar provas prematuras de sucesso.

12. O que é que uma reforma como esta no ensino pode fazer por um país como o Brasil? P.P – O seu país confronta-se com o desafio de escolarização de crianças e adolescentes e da formação de professores qualificados em todas as regiões. E também uma desigualdade frente à escola, com a reprovação e o abandono. A abordagem por competências não vai resolver magicamente esses problemas. Mais grave seria, já que os programas estão a ser reformados, tirar recursos de outras frentes. Somente as estratégias sistémicas são defensáveis. Entretanto, não vamos negligenciar três suportes da abordagem por competências, caso ela atenda suas ambições: ela pode aumentar o sentido de trabalho escolar e modificar a relação com o saber dos alunos em dificuldade; favorecer as aproximações construtuvistas, a avaliação formativa, a pedagogia diferenciada, que pode facilitar a assimilação activa dos saberes; pode colocar os professores em movimento, incitá-los a falar de pedagogia e a cooperar no quadro de equipas ou de projectos do estabelecimento escolar. Por isso, é sensato integrar desde já as abordagens por competências à formação inicial e contínua e à identidade profissional dos professores. Não nos esqueçamos que, no final das contas, o objectivo principal é democratizar o acesso ao saber e às competências. Todo o resto não é senão um meio de atingir esse objectivo.

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Para saber mais Perrenoud, Ph. (1994), Práticas Pedagógicas, Profissão Docente e Formação: Perspectivas Sociológicas, Lisboa, D. Quixote. Perrenoud, Ph. (1995), Ofício de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar, Porto, Porto Editora (resumo em francês). Perrenoud, Ph. (1999), Avaliação. Da Excelência à Regulação das Aprendizagens, Porto Alegre, Artmed Editora (resumo em francês). Perrenoud, Ph. (1999), Construir as Competências desde a Escola, Porto Alegre, Artmed Editora (resumo em francês). Perrenoud, Ph. (1999), Pedagogia Diferenciada, Porto Alegre, Artmed Editora (resumo em francês). Perrenoud, Ph. (2000), Dez Novas Competências para Ensinar, Porto Alegre, Artmed Editora (resumo em francês).

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TEXTO 19 CONSTRUIR COMPETÊNCIAS É VIRAR AS COSTAS AOS SABERES?*

In, Perrenoud, P. (2001), Porquê Construir Competências a partir da Escola?, Porto, Asa Editores, pp. 29, 35


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Numerosos países orientam-se para a redacção de «conjuntos de competências» associados às principais etapas da escolaridade. Ao longo dos anos 90, a noção de competência inspirou uma reescrita dos programas, mais ou menos radical, no Quebeque, em França e na Bélgica. Na Suíça francesa, a questão começa a ser debatida, porque a revisão dos planos de estudos está na ordem do dia e porque a transição de ciclos de aprendizagem exige a definição de objectivos nucleares ou de objectivos de fim de ciclo, muitas vezes concebidos em termos de competências. Àqueles que defendem que a escola deve desenvolver as competências, os cépticos contrapõem uma objecção clássica: mas não será em detrimento dos saberes? Não nos arriscamos a reduzi-los à porção mais ínfima, já que a missão da escola é, antes de mais, instruir, transmitir conhecimentos? Esta oposição entre saberes e competências é, simultaneamente, fundamentada e injustificada: – ela é injustificada, porque a maior parte das competências mobiliza certos saberes; desenvolver competências não implica virar as costas aos saberes, antes pelo contrário; – ela é fundamentada, porque não podemos desenvolver competências na escola sem limitar o tempo devolvido à pura assimilação de saberes sem questionar a sua organização em disciplinas compartimentadas. O verdadeiro debate deveria assentar sobre as finalidades prioritárias da escola e sobre os equilíbrios a respeitar na redacção e na implementação dos programas.

Não há competências sem saberes Para alguns, a noção de competências remete para as práticas do quotidiano, que mobilizam apenas saberes do senso comum, saberes de experiência. Eles concluem que desenvolver competências na escola prejudicará a aquisição dos saberes disciplinares que ela tem a vocação de transmitir. Esta caricatura da noção de competência não deixa de esconder uma boa dose de ironia, afirmando que não se vai à escola para aprender a elaborar um pequeno anúncio, escolher um itinerário de férias, diagnosticar sarampo, preencher a declaração de impostos, compreender um contrato, redigir uma carta, fazer palavras cruzadas ou calcular o orçamento familiar. Ou ainda para obter informações por telefone, orientar-se numa cidade, pintar a cozinha, reparar uma bicicleta ou desembaraçar-se na utilização de uma moeda estrangeira. Poderíamos responder que se trata aqui de vulgares «saber-fazer», diferentes das verdadeiras competências. Esta argumentação não é muito sólida: não é possível reservar os saber-fazer para o quotidiano e as

* Publicado originalmente: Perrenoud, Ph. (199B). «Construire des compétences, est-ce tourner le dos aux savoirs?», Résonances. Mensuel de l'École valaisanne, n.º 3, dossier «Savoirs et compétences», Novembre, pp. 3-7.

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competências para as tarefas mais nobres. O uso habituou-nos certamente a falar de saber-fazer para designar as capacidades concretas, enquanto que a noção de competência parece mais ampla e mais «intelectual». Na realidade, referimo-nos, em ambos os casos, ao domínio prático de um determinado tipo de tarefas e de situações. Não tentemos reabilitar a noção de competência reservando-a para tarefas mais nobres. Recusemos ao mesmo tempo a amálgama entre competências e tarefas práticas: – Comecemos por afirmar, antes de mais, que as competências necessárias para se desembaraçar na vida quotidiana não são totalmente negligenciáveis. Grande parte dos adultos, mesmo os que seguiram uma escolaridade de base completa, ficam desarmados perante as tecnologias e as regras das quais depende a sua vida quotidiana. Sem limitar o papel da escola a essas aprendizagens tão terra a terra, podemos questionar: para que serve escolarizar alguém durante dez a quinze anos da sua vida, se ele fica desarmado perante um contrato de seguros ou uma bula farmacêutica? – As competências elementares evocadas têm uma estreita ligação com os programas escolares e os saberes disciplinares; elas exigem noções e conhecimentos de matemática, geografia, biologia, física, economia, psicologia; elas supõem um domínio da língua e das operações matemáticas básicas; elas apelam a uma forma de cultura geral que se adquire também na escola. Mesmo quando a escolaridade não está organizada para exercer essas competências enquanto tal, ela permite apropriar-se de certos conhecimentos necessários. Uma parte das competências que se desenvolvem na escola apela aos saberes escolares de base (a noção de mapa, dinheiro, ângulo recto, juro, jornal, itinerário, etc.) e aos saber-fazer fundamentais (ler, escrever, contar). Não existe, portanto, uma contradição fatal entre os programas escolares e as competências mais simples. – Finalmente, estas últimas não esgotam a gama de competências humanas; a noção de competência remete para situações nas quais é preciso tomar decisões e resolver problemas. Por que motivo se limitaram as decisões e os problemas, seja na esfera profissional, seja na vida quotidiana? São necessárias competências para escolher a melhor tradução de um texto latino, colocar e resolver um problema com a ajuda de um sistema de equações, para muitos desconhecidas, verificar o princípio de Arquimedes, cultivar uma bactéria, identificar as premissas de uma revolução ou calcular a data do próximo eclipse solar.

Uma competência mobiliza saberes Resumindo, é muito mais proveitoso descrever e organizar a diversidade de competências do que tentar estabelecer uma distinção entre saber-fazer e competências. Decidir se temperar um prato, apresentar condolências, reler um texto ou organizar uma festa são saber-fazer ou competências teria sentido se tal remetesse para funcionamentos mentais bastante diferentes. Mas não é assim. Concreta ou abstracta, comum ou especializada, de acesso fácil ou difícil, uma competência permite enfrentar, regular adequadamente um grupo de tarefas e de situações, apelando a noções, conhecimentos,

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informações, procedimentos, métodos, técnicas, bem como outras competências mais específicas. Le Boterf agrega a competência a um «saber-mobilizar»: Possuir conhecimentos ou capacidades não significa ser competente. Podemos conhecer as técnicas ou as regras de gestão contabilística e não saber aplicá-las no momento oportuno. Podemos conhecer o direito comercial e redigir mal contratos. Todos os dias, a experiência mostra que as pessoas que estão na posse de conhecimentos ou de capacidades não sabem mobilizá-los de maneira pertinente e no momento oportuno, numa situação de trabalho. A actualização daquilo que sabemos num contexto singular (marcado por relações de trabalho, uma cultura institucional, imponderáveis, imposições temporais, recursos...) é reveladora da «passagem» à competência. Esta realiza-se na acção (Le Boterf, 1994, p. 16). Se a competência se manifesta na acção, no mesmo instante ela não é inventada: – se os recursos a mobilizar falham, não há competência; – se os recursos estão presentes, mas não são mobilizados em tempo útil e com conhecimento de causa, tudo se passa como se eles não existissem. Evoca-se frequentemente a transferência de conhecimentos para realçar que esta não se produz de forma totalmente adequada: um estudante que dominava uma teoria para um exame revela-se incapaz de se servir dela na prática porque nunca se exercitou. Sabemos hoje em dia que a transferência de conhecimentos não é automática, adquire-se pelo exercício e por uma prática reflexiva, nas situações que permitem mobilizar, transpor e combinar os saberes, bem como inventar uma estratégia original a partir dos recursos que não a contêm, nem a ditam. A mobilização exercita-se nas situações complexas, que obrigam a colocar o problema antes de o resolver, a determinar os conhecimentos pertinentes, a reorganizá-los em função da situação, a extrapolar ou tapar os vazios. Entre conhecer a noção de juro e compreender a evolução da taxa hipotecária vai um grande passo. Os exercícios escolares clássicos permitem a consolidação da noção e dos algoritmos de cálculo; não trabalham a transferência. Neste sentido, seria necessário colocarmo-nos perante situações complexas: obrigações, hipotecas, crédito pessoal, leasing. Não basta encontrar estas palavras nos dados de um problema de matemática para que estas noções sejam compreendidas, muito menos para que a mobilização dos conhecimentos seja exercida. Entre saber o que é um vírus e proteger-se razoavelmente das doenças virais, o passo não é mais pequeno. O mesmo se passa entre conhecer as leis da física e construir uma jangada, fazer voar um modelo reduzido, fazer o isolamento de uma casa ou instalar correctamente um interruptor. A transferência é igualmente enfraquecida quando se trata de enfrentar situações em que importa compreender o valor de uma opinião (por exemplo sobre a engenharia genética, nuclear, o défice orçamental ou as normas de poluição) ou de uma decisão financeira ou jurídica (por exemplo, em matéria

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de naturalização, regime matrimonial, fiscalidade, poupança, herança, aumento do aluguer, acesso à propriedade, etc.). Por vezes, os conhecimentos de base escasseiam, especialmente no campo do direito ou da economia. Frequentemente, as noções fundamentais foram estudadas na escola, mas fora de qualquer contexto. Elas são então «letra morta», como capitais imobilizados que não sabemos investir com conhecimento de causa. É por este motivo – e não pela negação dos saberes – que interessa desenvolver competências na escola, ou seja, ligar constantemente os saberes e a sua aplicação perante situações complexas. E isto é válido tanto dentro de cada disciplina como no cruzamento entre disciplinas. Ora isto não é totalmente líquido. A escolaridade funciona com base numa espécie de «divisão do trabalho»: a escola fornece os recursos (saberes e saber-fazer de base), a vida ou a sequência de formação profissional desenvolvem as competências. Esta divisão do trabalho assenta sobre uma ficção. A maioria dos conhecimentos acumulados na escola revela-se inútil na vida quotidiana, não porque lhes falte pertinência, mas porque os alunos não são exercitados para se servirem deles em situações concretas. A escola sempre desejou que as aprendizagens fossem úteis, mas ela própria chega, com frequência, a perder de vista esta ambição global, deixando-se prender numa lógica de adição de saberes, idealizando uma hipótese optimista de que eles acabarão por servir para qualquer coisa. Desenvolver as competências a partir da escola não é uma moda nova, mas um retorno às origens, às razões de ser da instituição escolar.

Que competências privilegiar? Se pensarmos que a formação de competências não é totalmente evidente e que ela decorre, em parte, da escolaridade de base, resta-nos decidir quais as competências que ela deveria desenvolver prioritariamente. Ninguém sustenta que todo o saber deve ser aprendido na escola. Uma boa parte dos saberes humanos são adquiridos por outras vias. Então por que motivo seria de outra forma com as competências? Dizer que cabe à escola desenvolver as competências não lhe confere o direito do monopólio. Quais as competências que devem ser privilegiadas pela escola? Quem defende acerrimamente os saberes escolares e disciplinares tradicionais dirá imediatamente que não convém que nada mude, excepto as aparências. Se os programas prevêem o estudo da lei de Ohm, então é provável que proponham acrescentar um verbo de acção («saber servir-se com conhecimento de causa da lei de Ohm») para definir uma competência. Para ir além deste passe de magia, é indispensável explorar as relações entre competências e programas escolares actuais. Uma parte dos saberes disciplinares ensinados na escola fora de qualquer contexto de acção será, sem dúvida e no fim de contas, mobilizada sem competências. Ou, mais exactamente, esses saberes servirão de base aos aprofundamentos determinados no quadro de certas formações profissionais.

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O piloto alargará os seus conhecimentos geográficos e tecnológicos, a enfermeira os seus conhecimentos biológicos, o técnico os seus conhecimentos físicos, o técnico de laboratório os seus conhecimentos químicos, o guia os seus conhecimentos históricos, o gestor os seus conhecimentos comerciais, etc. Do mesmo modo, professores e investigadores desenvolverão conhecimentos na disciplina que escolheram ensinar ou desenvolver. As línguas e as matemáticas serão úteis em inúmeras profissões. Podemos, então, afirmar que as competências são um horizonte, especialmente para quem se orientar para as profissões científicas e técnicas, usar línguas na sua profissão ou se dedicar à investigação. Muito bem. Mas com excepção destes usos profissionais limitados a uma ou duas disciplinas de base, às matemáticas e às línguas, para que lhes servirão os restantes conhecimentos, acumulados durante a escolaridade, se não aprenderam a servir-se deles para resolver os problemas? Podemos responder que a escola é um local onde todos acumulam conhecimentos, dos quais alguns terão, mais tarde, necessidade em função da sua orientação. Para conseguirmos uma ideia mais precisa, evocaremos a concepção popular segundo a qual ninguém deve ser excluído, sendo necessário dar a cada um oportunidades iguais para se tornar engenheiro, médico ou historiador. Em nome desta «abertura», condenamos a maioria a adquirir um sem-número de saberes, alguns deles totalmente «dispensáveis». Tal não será dramático, ainda que esta acumulação de saberes se pague em anos de vida passados nas carteiras de uma escola. O que aborrece mais é que ao assimilar intensivamente tantos saberes nunca chegamos a ter tempo para aprendermos verdadeiramente a utilizá-los, quando, mais tarde, tivermos absoluta necessidade deles, na vida quotidiana, familiar, associativa ou política. Por conseguinte, quem estudou Biologia na escolaridade obrigatória ficará exposto à transmissão da SIDA. Quem estudou Física, só na escola, não compreenderá nada das tecnologias que o rodeiam. Quem estudou Geografia ficará aflito ao ler um mapa ou ao tentar situar o Afeganistão, quem aprendeu Geometria não saberá desenhar um plano à escala, quem passou horas a aprender línguas será incapaz de indicar o caminho a um turista estrangeiro. A acumulação de saberes descontextualizados só serve verdadeiramente àqueles que tiverem o privilégio de os aprofundar em estudos superiores ou numa formação profissional, de contextualizar alguns deles e de os exercitar para resolver problemas e tomar decisões. É esta fatalidade que a abordagem por competências questiona, em nome dos interesses de uma maioria.

Assumir o reverso da medalha Toda a escolha coerente tem o seu reverso: o desenvolvimento de competências na escola implicará um aligeiramento dos programas nacionais, com o fim de libertar o tempo necessário para exercer a transferência e exercitar a mobilização de saberes. Isto é grave? Será verdadeiramente necessário que, na escolaridade obrigatória, se aprenda o máximo de Matemática, Física, Biologia para que os programas pós-obrigatórios possam ir ainda mais longe? Aliviar a TEXTO 19 CONSTRUIR COMPETÊNCIAS É VIRAR AS COSTAS AOS SABERES?

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carga dos programas e trabalhar um número mais limitado de noções disciplinares para permitir a sua aplicação não prejudicará muito aqueles que fizerem estudos especializados nos domínios correspondentes, mas dará melhores oportunidades a todos os restantes. Não só àqueles que deixem a escola com quinze anos, cujo número vem a diminuir nas sociedades desenvolvidas, mas àqueles que, com um doutoramento em História, não compreendem nada de questões nucleares, enquanto que os engenheiros do mesmo nível ficarão igualmente perplexos diante das evoluções culturais e políticas do planeta. A questão é tão velha como a escola: para quem são feitos os programas? Como sempre, os favorecidos quererão ser cada vez mais e dar aos seus filhos, prometidos para estudos superiores, melhores oportunidades na selecção. Infelizmente, isso será feito em detrimento daqueles para quem a escola não desempenha hoje em dia o seu papel essencial: dar ferramentas para dominar a sua vida e compreender o mundo. Há ainda outro tipo de resistências latentes, neste caso provenientes de um nível interno. A abordagem por competências colide com a relação com o saber de uma parte dos professores. Ela também exige considerar uma evolução sensível das pedagogias e modos de avaliação (Perrenoud, 1998). Construir competências desde o início da escolaridade não se afasta – se ultrapassarmos os mal-entendidos e os julgamentos incisivos e apressados — das finalidades fundamentais da escola, bem pelo contrário. Em contrapartida, isso passará por uma transformação importante do seu funcionamento. Daremos neste quadro uma atenção prioritária a todos quantos não aprendem sozinhos! Os jovens que têm êxito nos estudos superiores acumulam saberes e constroem competências. Não é por eles que é preciso mudar a escola, mas por aqueles que, ainda hoje, são desprovidos de numerosas competências indispensáveis para viver nos princípios do século XXI. A trilogia dos saber-fazer-ler, escrever, contar – em que assentou a escolaridade obrigatória no século XIX – já não está à altura das exigências da nossa época. A abordagem por competências procura simplesmente actualizá-la.

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TEXTO 20 ENGENHARIA PEDAGÓGICA E FORMAÇÕES ABERTAS

Philippe Carré, Jean Clénet, Chantal d'Halluin, Daniel Poisson (pp. 339-409)


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1. Introdução 1.1. Engenharia e novos dispositivos pedagógicos A noção de engenharia, recordamos, engloba «o estudo global de um projecto industrial sob todos os seus aspectos (técnicos, financeiros, sociais), coordenando os estudos particulares de várias equipas de especialistas1». Além disso, os procedimentos de engenharia são finalizados pela procura da eficácia: para a Afnor, no domínio da formação, este «conjunto de procedimentos metodológicos articulados» aplica-se à concepção de sistemas de acção, ou de dispositivos de formação, para alcançar eficazmente o objectivo fixado2». Finalmente, a noção de engenharia, em formação bem como em outros campos, está estritamente ligada à de investimento, tanto no sector privado quanto no sector público. Se, segundo A. Poncheler3, enquanto a engenharia de formação cobre «um conjunto de actividades de concepção, de estudo e de coordenação de diversas disciplinas para realizar e pilotar um processo que visa optimizar o investimento formação», a engenharia pedagógica diz respeito às próprias práticas pedagógicas. As preocupações de engenharia pedagógica aparecem de forma restritamente contemporânea com o crescimento dos «novos dispositivos de formação», sejam eles ditos «à distância», «flexíveis», «abertos», «individualizados», «mediatizados», etc. Estes dispositivos novos, que surgem como alternativas ou como complementos às formações convencionais «estágio», «curso», «seminário», têm quatro características principais: – utilizam geralmente as tecnologias da informação e da comunicação (Linard, 1996); – utilizam a autoformação individual e colectiva (Carré, Moisan, Poisson, 1997); – visam o aumento da produtividade pedagógica, ou seja, a optimização da relação entre os resultados obtidos e o conjunto dos custos gerados pela acção de formação (Albertini, 1992), no contexto de uma «nova economia da formação» (DFP, 1992); – implicam a colaboração de actores múltiplos, frequentemente num contexto de redes ou de parcerias de acção (Clénet, 1998). O carácter inovador desses dispositivos em emergência explica que se possam identificar dois tipos de engenharia neste domínio (Simon, 1991): – a primeira diria respeito ao modelo da aplicação de um método, de um procedimento, convindo melhor esta abordagem clássica às situações já estruturadas, e cujos parâmetros da encomenda e os objectivos de resultado estão já em grande parte elucidados;

1

Dicionário Le Robert, 1992. Afnor, Norma X50-750/4.92. 3 A. Ponchelet (1990), «Ingénierie ou ingénieries?», Actualité da la formation permanente, n.º 107, Julho-Agosto. 2

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TEXTO 20 ENGENHARIA PEDAGÓGICA E FORMAÇÕES ABERTAS


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– a segunda, que se poderia qualificar de engenharia «de inovação», diria mais respeito ao modelo da invenção, da procura de solução para problemas cujos parâmetros são os mais aleatórios. Quando se trata, a partir das intenções iniciais, de chegar a construções novas e em parte inicialmente imprevisíveis, o procedimento far-se-á por interacções sucessivas e será legitimado pela sua adequação a um dado ambiente. Na verdade, se os teóricos da concepção apresentam dois modelos de engenharia, verifica-se que nas práticas do engenheiro, em formação como em outra situação, determinadas etapas surgem como sendo incontornáveis (identificação de objectivos ou de intenções, mobilização de recursos, formalização de dados, controlo da adequação de resultados para o ambiente...). Contudo, no campo pedagógico, convém evitar uma aplicação excessivamente estrita de um procedimento para desenvolver ou melhorar um dispositivo. Neste domínio, o excesso de rigor metodológico faz correr o risco de levar ao inverso efeitos esperados se os princípios de ajuste, de negociação e de adequação pensados pela engenharia da «inovação» não estão activados em vista de resultados mais «satisfatórios» (satisficing) do que óptimos (Simon, 1991). Se considerarmos a concepção e a inovação como estando no âmago da construção de novos dispositivos pedagógicos, então não poderíamos reduzir a engenharia a um conjunto de procedimentos, de métodos ou de técnicas pré-construídas. Em matéria de formação como em todos os domínios da engenharia dos sistemas artificiais, a necessidade de responder simultaneamente a demandas múltiplas e evolutivas de actores diferentes leva portanto a adoptar simultaneamente uma postura de aplicação de métodos e de procedimentos, e uma postura aberta de procura permanente de adequação do dispositivo e do seu ambiente. A engenharia pode então ser concebida como um sistema em tensão entre o domínio dos procedimentos a serem aplicados e a animação dos processos de inovação.

1.2. Engenharia pedagógica e formação aberta: duas noções solidárias Segundo a Delegação para a Formação Profissional (1992), o termo de «formação aberta», que parece agrupar hoje essas formas pedagógicas em emergência, engloba «acções de formação que se apoiam, no todo ou em parte, em aprendizagens “não presenciais”, em autoformação ou com tutorado, no domicílio, na empresa ou em centro de formação».

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A noção de formação aberta surge hoje como uma consequência ligada àquela da engenharia pedagógica, tanto no plano lógico quanto no plano cronológico. Em França, as duas noções desenvolveram-se conjuntamente no começo dos anos 904, em torno do mesmo objectivo: a renovação dos dispositivos pedagógicos em formação de adultos. No contexto da formação presencial «clássica», a função de engenharia pedagógica resume-se na maioria das vezes a uma programação didáctica que, por mais sofisticada que seja, não implica em procedimentos de engenharia no sentido estrito definido anteriormente, embora utilize a «engenharia» pedagógica do formador. É a partir do momento em que se «abre» o dispositivo, modificando conjuntamente os espaços, os tempos e os modos da acção pedagógica, que a noção de engenharia assume a sua dimensão e a sua utilidade no campo pedagógico. Por isso, aos olhos de numerosos autores, a noção de engenharia pedagógica deve o seu surgimento ao desenvolvimento simultâneo de várias orientações em formação de adultos: individualização dos percursos e dos instrumentos, desenvolvimento da utilização das tecnologias da informação e da comunicação, formação à distância multimédia, organização dita «capaz de aprender», dispositivos em alternância, etc. Estes novos modos de formação articulam meios tecnológicos, humanos, logísticos dos mais numerosos, em configurações de espaço e de tempo e equações económicas mais complexas do que os dispositivos habituais. Além disso, a observação das práticas mostra que só se recorrem a procedimentos de engenharia pedagógica propriamente dita no caso de inovações ou de transformação de dispositivos com a ajuda de novos media (ensino à distância, centro de recursos, etc.). Esta concomitância leva alguns a associar sistematicamente a noção de engenharia pedagógica ao questionamento das formas clássicas, presenciais de formação. Assim, para Ponchelet5, a engenharia pedagógica «visa a adaptação, ou até a criação, de métodos e de instrumentos pedagógicos numa lógica de optimização dos itinerários e dos custos, que questiona a noção de estágio […] A engenharia pedagógica consiste nomeadamente em procurar e em criar este tipo de instrumento favorecendo aquilo que se estabeleceu denominar a autoformação assistida (ou acompanhada)». Examinaremos portanto neste capítulo as noções de engenharia pedagógica e de formação aberta como dois aspectos da mesma realidade: a transformação dos dispositivos pedagógicos em formação de adultos com base em novos conceitos. Depois de um apanhado geral da noção de engenharia pedagógica e das práticas que reúne, examinaremos três dos novos conceitos neste capítulo: distância, alternância, autoformação.

4

… embora práticas muito próximas se desenvolvessem anteriormente sob outras denominações (individualização, pedagogia diferenciada, formação multimédia, etc.). 5 A. Ponchelet, ibid.

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2. A engenharia pedagógica 2.1. Um método de gestão de projectos pedagógicos A engenharia pedagógica é um método de gestão dos projectos pedagógicos, ou seja, um método racional que permite alcançar um objectivo expresso em termos pedagógicos, numa lógica de eficácia. Deverá satisfazer três critérios: levar em conta o conjunto dos parâmetros da construção pedagógica (critério de globalidade), partir de uma finalidade expressa em termos de objectivos de formação (critério de finalização), procurando a optimização da relação entre os resultados obtidos e os custos do conjunto do projecto (critério de produtividade). A engenharia, enquanto método, baseia-se numa tecnologia que engloba ao mesmo tempo uma teoria geral dos procedimentos técnicos e o estudo específico de instrumentos, máquinas, procedimentos, relativos a um determinado domínio de actividade. Neste contexto pedagógico, a engenharia será baseada numa teorização das técnicas pedagógicas, ou seja, dos procedimentos e «maneiras de fazer» para obter um certo resultado expresso em termos de competências a alcançar ou de objectivos de formação. Basear-se-á em seguida na análise dos meios humanos disponíveis ou a serem encontrados, e naquela dos instrumentos pedagógicos, ou seja, o conjunto dos objectos, instrumentos ou máquinas que intervêm na realização do trabalho pedagógico. Contudo, à medida que as problemáticas de formação de adultos se tornam mais complexas, que as tensões orçamentárias aumentam e que as tecnologias da informação e da comunicação se aperfeiçoam, o trabalho de diagnóstico, de concepção, de preparação, de acompanhamento e de avaliação da acção atinge uma nova dimensão. Passamos da simples programação didáctica a um verdadeiro trabalho de coordenação entre os dados não somente técnicos e pedagógicos mas também económicos, sociais e logísticos, inclusivamente arquitecturais (Caspar e colaboradores, 1998). Vale dizer que a montante e a jusante das fases de construção e de condução da própria acção deveremos mobilizar informações e métodos de análise que ultrapassarão o contexto pedagógico no sentido estrito.

2.2. A engenharia pedagógica, entre sistema de formação e formando A engenharia pedagógica tem por missão criar ou melhorar um dispositivo pedagógico optimizando a articulação dos recursos humanos, técnicos, financeiros e logísticos disponíveis em função das especificações gerais de um caderno de encargos de formação. A engenharia pedagógica, para cumprir esta missão, encontra-se entre dois campos constrangidos em tensão, por vezes contraditórios: o campo da engenharia de formação, que lhe passa ordens através do instrumento formal (caderno de encargos de formação) ou informal (instruções orais, concursos), e o campo da psicopedagogia, que rege as regras do funcionamento da aprendizagem no triplo plano afectivo, cognitivo e motivacional.

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Em função de funcionalidades sociais ou económicas, que dizem respeito à engenharia social ou à engenharia dos recursos humanos, produtoras de objectivos de evolução, o responsável do sistema de formação constrói objectivos de formação, em termos de competências visadas para uma determinada população. Esses objectivos de formação são os dados principais de «input» da engenharia pedagógica, junto à análise dos públicos, por um lado, e à análise dos recursos e restrições, por outro lado. Em função desta triologia «objectivos-públicos-recursos/restrições», a missão da engenharia pedagógica vai poder desenvolver-se, e produzir, entre outros resultados, os objectivos pedagógicos da acção. A tabela 19.1 situa esse «meso-nível» da intervenção pedagógica, tomada entre o seu «montante» (o «macro»-sistema global de formação) e o seu «jusante» (o «micro»-nível do funcionamento cognitivo do formando).

TABELA 19.1 Os três níveis da organização da formação NÍVEL DE ORGANIZAÇÃO

MACRO: SISTEMA DE FORMAÇÃO

MESO: DISPOSITIVO PEDAGÓGICO

MICRO: FORMANDO

Finalidade

Mudança social e ou económica

Desenvolvimento das competências

Aprendizagem de conhecimentos, de capacidade, de atitudes

Metodologia

Engenharia de formação

Engenharia pedagógica

Psicopedagogia

Montante

Objectivos de evolução

Objectivos de formação

Objectivos pedagógicos

Jusante

Objectivos de formação

Objectivos pedagógicos

Aquisições

Campo

Política de formação

Estratégia pedagógica

Funcionamento cognitivo

Actor-chave

Responsável pela formação Responsável pedagógico

Formando

2.3. As cinco etapas da engenharia pedagógica A engenharia pedagógica tem como função transformar os dados de «input» da formação (objectivos de formação, características do público, restrições e recursos do projecto) em dados de «output» para a organização pedagógica, capazes de serem organizados em especificações do caderno de encargos pedagógicos. Podemos dividir o desenvolvimento de uma operação de engenharia pedagógica em cinco fases, desde o diagnóstico inicial até à avaliação dos resultados e dos custos.

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FIGURA 19.1 Função da engenharia pedagógica Objectivos pedagógicos Objectivos de formação Expressos em termos de competências a atingir Dispositivo

Análise do público Características socioeconómicas e psicopedagógicas

Engenharia pedagógica

Método

Técnicas Recursos e restrições Humanos, financeiros, logísticos, tecnológicos, sociais

Instrumentos e suportes

2.3.1. O diagnóstico: análise preliminar da situação de formação

Os objectivos de formação (e os modos de avaliação) Decorrem das análises preliminares da engenharia de formação (análise do trabalho ou do emprego visado e das necessidades de competências). Se não foram transmitidos de forma unívoca por uma via formal (convenção, concursos, acordo de subcontratação, etc.), será conveniente esclarecer, com o decisor, os resultados esperados da acção considerada, em termos de competências visadas pela formação, bem como as modalidades da sua avaliação final (estas duas etapas apresentam interesse em serem tratadas conjuntamente).

A análise do público Uma tabela descritiva das características socioeconómicas da população visada será estabelecida, acrescida com as indicações disponíveis sobre as configurações de motivações que caracterizam o envolvimento deste público.

Os recursos e as restrições do projecto O intervalo orçamentário, as possibilidades em termos de locais disponíveis, os equipamentos (audiovisual, informático, projector de diapositivos, fotocopiadora, etc.) bem como as possibilidades de visitas e saídas ou

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pelo contrário de intervenções externas serão sistematicamente inventariados em função dos dois parâmetros precedentes: objectivos e públicos.

2.3.2. O design: concepção e formalização do projecto pedagógico A fase dita de design permite transformar os dados de diagnóstico numa primeira formalização, seja sob a forma de projecto pedagógico ou, por uma acção de maior amplitude, sob a forma de um verdadeiro caderno de encargos. O caderno de encargos pedagógico é um documento de natureza contratual entre o decisor e o chefe de projecto pedagógico, que reúne os dados de planificação do projecto sob forma de especificações técnicas e pedagógicas. Qualquer que seja o grau de formalização do design pedagógico escolhido, os quatro elementos seguintes deverão estar presentes, depois da recapitulação das conclusões do diagnóstico preliminar.

Os objectivos pedagógicos Trata-se de uma transformação dos objectivos gerais de formação (expressos em termos de competências) em objectivos específicos, pertencentes ao domínio das aquisições em situação pedagógica. Existe geralmente um acordo quanto às quatro qualidades seguintes de um bom objectivo pedagógico: deve poder ser enunciado de maneira unívoca, descrever um resultado observável (expresso com a ajuda de um verbo de acção), acompanhado das condições desta observação e do nível de exigência dos critérios da sua avaliação. Todavia, a utilização dos objectivos implica precauções e uma grande flexibilidade: foi de facto constatado que uma prática demasiado «processual» da construção dos objectivos pedagógicos leva a uma deriva que esvazia esta iniciativa do seu sentido.

A escolha do dispositivo Embora frequentemente determinada pelas restrições do ambiente do projecto (orçamento, locais, «hábitos», restrições de segurança ou de transporte, etc.), a gestão do dispositivo deverá ser objecto de uma reflexão específica importante. Numa época de «formações abertas» e das tecnologias da informação e da comunicação, esta etapa do trabalho de engenharia pedagógica poderá ser determinante.

O método e as técnicas Em função do dispositivo escolhido, um procedimento pedagógico global (método) e maneiras de fazer específicas (técnicas) serão previstos nas suas grandes linhas. Distinguem-se habitualmente, de forma um

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pouco caricatural, os métodos «clássicos» (expositivo, interrogativo, demonstrativo) e «activos» (trabalho de grupo, individualizado, em situação de trabalho). A cada uma dessas categorias correspondem, em princípio, técnicas e instrumentos privilegiados. Mas esta repartição permanece amplamente teórica, sendo mais provável uma mistura dos métodos, das técnicas e dos instrumentos, e com certeza mais desejável na prática pedagógica real do que uma escolha demasiado exclusiva de uma determinada série de meios. A finalidade da diferenciação pedagógica pela desmultiplicação das escolhas dos meios conforme os perfis e os projectos dos formandos é uma importante dimensão da engenharia das formações abertas.

Os instrumentos e os suportes Irão depender tanto das restrições e dos recursos do projecto, dos hábitos de trabalho dos formadores e do design escolhido. Do quadro negro à projecção informatizada de diapositivos, passando pelos recursos do vídeo e dos multimédia, a panóplia dos instrumentos e suportes disponíveis para a formação dos adultos enriquece-se dia após dia. Mas os instrumentos não são mais do que isso, e a primeira precaução a ser tomada neste estádio é de relativizar o seu alcance em função do projecto pedagógico global (Peretti, 1991).

2.3.3. A construção: identificação e preparação dos instrumentos e suportes de formação A etapa de construção dos instrumentos e suportes poderá ser reduzida à sua mais simples expressão no caso em que a preparação (ou a revisão) do plano de intervenção pelo formador venha a ser feita com a ajuda dos seus instrumentos habituais. Poderá, pelo contrário, ser o objecto de uma fase complexa, onerosa e longa de criação e fabricação, no caso de um grande projecto de formação utilizando os instrumentos multimédia. Voltaremos a este assunto mais adiante.

2.3.4. A condução: animação e acompanhamento da acção pedagógica A condução da acção irá desenvolver-se em dois planos de importâncias respectivas variáveis conforme a posição do actor concernido (formador, responsável pedagógico, idealizador, etc.). De um lado, a animação directa diz respeito principalmente à comunicação e à relação pedagógicas «directas», frente a frente com os estagiários6. De um outro, a condução poderá ser centrada no acompanhamento da acção de um ponto de vista «externo»: contactos com os intervenientes, logística, gestão da acção, acompanhamento das presenças, etc.

6

Consultar o cap. 21 («A comunicação e a relação pedagógicas», de G. Leclerq) neste Tratado, pp. 432-457.

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TABELA 19.2 Os meios pedagógicos TIPO DE MÉTODO

EXEMPLOS DE TÉCNICAS ASSOCIADAS

EXEMPLOS DE MATERIAIS E SUPORTES ASSOCIADOS

Expositivo

Conferências, exposições, discursos

Fotocopiadoras, manuais, livros, transparências, cassetes vídeo

Demonstrativo

Experiências, demonstrações

Audiovisuais, diapositivos, simuladores, experiências

Interrogativo

Questionamentos maiêuticos, debates

Videoconferências, cursos em linha

Em trabalho de grupo

Exposições, projectos de grupo, centros de interesse, inquéritos, discussões-debates, estudos de casos, binómios, brainstorming, representações de papéis, simulações, jogos de empresa, Metaplano, Balint, T: Group...

Dossiers, recursos vários, quadros murais, fichas de papel, jeu, trabalho de grupo assistido por computadores, fórum de discussões

Individualizado

Exercícios, projectos individuais, exposições, inquéritos, EAO, ensinos programados, drill, autoscopias

Dossiers, manuais, cassetes áudio e vídeo, fichas autocorrectivas, didacticiels, emissões TV

Em situação de trabalho

Compagnonnage, tutorados, coaching, formações no trabalho, dobragens, formações-acções

Documentos e equipamentos profissionais «reais»

2.3.5. A avaliação: apreciação da produtividade pedagógica do dispositivo Na concepção aqui proposta, a engenharia pedagógica, recordemos, visa a optimização da relação entre resultados e custos exaustivos da formação. Tratar-se-á portanto de reunir numa fórmula única, mas simples, os indicadores de uma ou outra série de dados, para eventualmente os aproximar de forma a apreciar as diferenças de produtividade no tempo, entre dispositivos, ou até entre prestatários. Procuraremos portanto apreciar simultaneamente:

• Os factores de resultado São as grandes categorias da avaliação de uma acção de formação, que se resumem classicamente na participação (índices de presença ou de assiduidade), na satisfação dos usuários (representações, imagens), nas aquisições (aprendizagens realizadas), na transferência (aplicação dos conhecimentos adquiridos em situação real) e nos efeitos globais da formação (Meignant, 1993). Posto à parte este último parâmetro, os quatro factores precedentes devem poder ser apreciados ao término da acção pedagógica ou aproximadamente.

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TEXTO 20 ENGENHARIA PEDAGÓGICA E FORMAÇÕES ABERTAS


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• Os factores de custo Neste caso, trata-se de considerar a exaustividade dos custos ligados à formação, visíveis ou mascarados, internos e externos, pedagógicos e administrativos, que permita uma boa apreensão da produtividade. Citaremos, por exemplo, além dos custos directos (facturas ou salários dos formadores, equipamento e material dos estagiários), os salários e as compensações dos participantes (gastos com deslocamentos, alojamento, indemnizações, etc.), os custos de estrutura (locais e salários administrativos imputáveis, parte dos gastos gerais), etc. A aproximação dos factores de resultados, afectados pelas suas ponderações respectivas, e da totalidade dos factores de custo directos e indirectos irá permitir a apreciação da produtividade pedagógica da acção. Escusado dizer que essas operações complexas só serão justificadas – e indispensáveis – no caso de projectos de formação de grande amplitude. Contudo, o espírito, se não a forma, da avaliação da produtividade pedagógica vai sem dúvida impor-se na maioria das acções de formação7.

7

Ver por exemplo: DGEFP/Interface (1998), Les organismes privés de formation. Enjeux et perspectives des emplois et des compétences, Paris, La Documentation française.

TEXTO 20 ENGENHARIA PEDAGÓGICA E FORMAÇÕES ABERTAS

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TEXTO 21 ENGENHARIA DIDテ,TICA PROFISSIONAL

Pierre Pastrテゥ (pp. 423-437)


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2. Aprendizagem e simulação 2.1. Simulações e situações Não existe provavelmente nada mais difícil de aprender e de ensinar do que uma situação, pelo menos de forma metódica e formal. Dois procedimentos são normalmente utilizados para tanto: – a decomposição de uma acção numa série de etapas sucessivas; – a decomposição de uma noção em elementos mais simples. Ora as situações resistem às tentativas de decomposição deste género, quer sejam temporais ou conceptuais, conforme a ordem da sucessão ou conforme a ordem das razões. Uma situação forma um todo, e um todo relativamente indivisível. Veremos que, no contexto dos simuladores, podemos utilizar expedientes. Mesmo assim, por exemplo, um futuro operador de central nuclear que vive a primeira sessão do primeiro módulo da sua formação num simulador em escala real encontra-se confrontado de imediato a todas as dimensões, portanto a todas as dificuldades da situação. Porque uma situação não é reduzível ao problema que eventualmente traz em si. Uma situação não é de apenas objectos e relações entre objectos, a partir dos quais se poderá colocar o problema a ser resolvido. Uma situação é também de actores, desafios entre esses actores, uma inserção num local, que dela faz algo de absolutamente singular e concreto, pertencente ao real e não a um modo idealizado. É uma temporalidade, feita de acontecimentos que se concatenam de forma por vezes surpreendente, mas que de qualquer maneira se concatenam, ou seja, formam intriga, conforme diz Ricoeur8, adquirem a forma de um drama ou de uma história. Quanto ao actor principal, antes de dizer que domina a situação ou que consegue conhecê-la, seria necessário dizer que ele está envolvido na situação: está dentro dela, antes dela se tomar o espectador e ou o senhor. Faz corpo com ela: a relação de um actor com uma situação diz respeito àquilo que Heidegger denominou o ser no mundo, uma relação com o real mais primitiva do que a relação de conhecimento (a questão epistemológica) ou a relação de utilidade (a questão técnica). É por isso que a inteligência das situações não é inteiramente reduzível à inteligência conceptual. Isto não significa que existiria no cerne das situações um núcleo irredutível que resistiria a qualquer inteligibilidade. Se, como diz Dejours (1995, p. 42), «o real é a parte da realidade que resiste à simbolização», compreenderemos esta fórmula da seguinte maneira: a tarefa que consiste em tomar o real inteligível não apresenta termo atribuível. Mas, por outro lado, não existe um «lugar» que seria, por natureza e definitivamente, destinado a permanecer irracional.

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P. Ricoeur (1986), Essais d'herméneutique, 2 volumes, volume 1: Du texte à l'action, Paris, Le Seuil.

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Quando um actor está envolvido numa situação, três características podem resumir a sua postura: está confrontado com a complexidade, com a incerteza e com a interactividade. A complexidade designa, para além do número de elementos postos em interacção, o facto de que uma situação é uma totalidade dinâmica indivisível. A incerteza indica a dimensão circunstancial da situação, o seu lado não programável, aquilo em que, como sublinha Zarifian (1995), ela não pode ser decomposta numa série atomizada de operações. A interacção designa o facto de que, ao agir, o actor certamente transforma a situação, mas também em retomo a situação transforma o actor: pode aprender com ela. É a razão pela qual o principal meio que se utiliza para ensinar as situações é a aprendizagem no trabalho, ou aprendizagem por imersão, o learning by doing, que é ao mesmo tempo uma aprendizagem pelos resultados da sua própria acção e uma aprendizagem pela imitação de outros (profissionais, especialistas). Tocamos neste ponto numa certa opacidade da acção humana: quando um sujeito possui as competências incorporadas, podemos pensar que essas competências fazem de tal forma corpo com o seu agir que é incapaz de as pôr a uma distância suficiente de si mesmo, para poder formulá-las, transmiti-las pela palavra, e as compreender.

2.1.1. A simulação, entre mimese e treino A tese que pretendemos defender é que a prática dos simuladores em formação relança a questão fazendo emergir um novo tipo de pedagogia, que poderíamos denominar a pedagogia das situações, e que se constitui ao mesmo tempo em prolongamento e em ruptura com a aprendizagem por imersão. Partiremos de um comentário feito por Nossulenko9: existem em russo dois termos que correspondem à nossa palavra «simulador»: imitador e treinador. De facto, uma simulação é em primeiro lugar a imitação, mais ou menos fiel, de uma situação profissional de referência. A prática dos simuladores desenvolveu-se nas actividades profissionais de alto risco (pilotagem de aviões, condução de centrais nucleares) em que não era possível deixar os futuros operadores realizar a sua formação prática por uma aprendizagem no trabalho. Os simuladores foram concebidos como substitutos do real, permitindo uma construção da experiência sem riscos. São ditos «em escala real», no sentido em que devem em todos os pontos imitar a situação real, excepto naquilo que poderíamos denominar o efeito do real. Mas assim arriscamo-nos a voltar a encontrar as mesmas características do que na aprendizagem por imersão, nomeadamente a opacidade do sujeito em relação aos processos que mobiliza, o carácter incorporado das competências que constrói, o difícil acesso a um procedimento de reflexibilidade e de análise: a situação simulada apresenta-se ela também como uma realidade dinâmica relativamente indivisível, e consequentemente rebelde a qualquer procedimento metódico de aprendizagem. Mas um simulador é também um treinador. E neste ponto entramos numa nova perspectiva: o simulador toma-se um instrumento para gerar a complexidade da situação e permitir aos operadores uma entrada progressiva na aprendizagem. Chamemos didactização o processo pelo qual se toma acessível à aprendizagem um conjunto de saberes e as situações que lhes correspondem.

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Comunicação oral num seminário, citada por Leplat (1997), p. 180.

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Nesta perspectiva, podemos analisar a maneira pela qual, graças à simulação, se tornam didácticas as situações profissionais; por um lado, procedendo ao estabelecimento de uma relação específica entre teoria e prática; por outro lado, procedendo a uma decomposição/recomposição da situação para torná-la progressivamente acessível à aprendizagem. A relação entre teoria e prática assume uma forma especial. Assim que estamos diante de situações dinâmicas complexas, já não é possível aceder à manipulação em simulador sem ter adquirido previamente os conhecimentos essenciais, científicos e técnicos, referentes ao funcionamento do sistema. Mas principalmente a prática é seguida por uma análise desta actuação, o debriefing: os alunos, guiados pelo instrutor, constroem uma interpretação da sua acção passada. Vimos, na primeira parte deste capítulo, que os conceitos mobilizados na acção mantinham dois tipos de relações: – relações de determinação, de tipo científico, que se expressam por laços de causalidade entre variáveis; – relações de significação, nas quais uma variável é tratada como a imagem, o indicador, de uma variável funcional inacessível, o que permite ao operador estabelecer a partir desses indicadores um diagnóstico sobre o regime de funcionamento da sua instalação. Este vaivém entre relações de determinação e de significação, entre variáveis e indicadores, expressa a actividade de conceptualização que se opera em situação de simulação, englobando a sessão prática e o debriefing. De uma maneira geral, os sujeitos adquiriram os conhecimentos teóricos e técnicos (as relações de determinação). Devem construir as relações de significação, transformar os seus conhecimentos em organizadores da actividade. E, neste ponto, a sessão de debriefing desempenha um papel decisivo. A actividade de decomposição/recomposição da prática para torná-la progressivamente acessível é também particular no caso da simulação. Porque, evidentemente, a situação, mesmo simulada, resiste a todos os cortes. Vai-se portanto utilizar um certo número de expedientes, que vão permitir simplificar a situação, mas de forma simplesmente relativa, evitando desnaturá-la. Podemos identificar pelo menos três procedimentos que permitem uma entrada progressiva na complexidade: – o primeiro incide sobre o tempo. Em simulação como em qualquer outra situação, é irreversível. Mas esta irreversibilidade é reproduzível: é aquilo que se denomina o representar. Além disso, mesmo conservando a ordem de sucessão, podemos fazer variar o tempo, neutralizar determinados períodos sem interesse; efectuar uma «imobilização na imagem» em outros momentos, para dar aos actores o tempo da reflexão; – o segundo procedimento consiste em regular, sempre de forma relativa, a dificuldade do problema10. Mas esta redução da complexidade é apenas relativa, porque não pode levar em conta as dificuldades geradas pelo próprio operador, na sua falta de jeito; uma estratégia errónea, por exemplo, pode transformar um problema simples num problema complexo;

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Por exemplo, na formação dos condutores de centrais nucleares, o primeiro módulo sobre simulador põe em cena cenários de funcionamento normal, o segundo módulo funcionamentos incidentais, o terceiro módulo funcionamentos acidentais.

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– o terceiro procedimento para gerar a complexidade consiste em neutralizar mais ou menos o ambiente: pode-se, por exemplo, isolar uma parte da instalação para evitar que os sujeitos estejam envolvidos com o conjunto das interacções em jogo. Também se pode diminuir o impacto daquilo que se pode denominar o ambiente interno, ou seja, o conjunto das tarefas que um operador deve gerir simultaneamente. Neste caso, é o instrutor que se encarrega, por exemplo, de determinados elementos da condução, para permitir ao operador concentrar-se naquilo que é considerado essencial. Podemos portanto dizer que com a prática pedagógica em simuladores podemos descrever um processo de didactização que é bastante específico. A situação (simulada) dela constitui o núcleo central: é de facto uma aprendizagem da prática. Mas a situação torna-se um objecto que se manipula, até determinado ponto. E as modificações às quais a submetemos são ordenadas numa intenção didáctica: a entrada progressiva do sujeito na complexidade.

2.2. Simulação e simuladores Existe um quarto procedimento para se fazer uma entrada progressiva na complexidade da situação. Mas começa a adquirir uma tal importância que mereceria um capítulo inteiro. É a multiplicação dos instrumentos de simulação, em referência a uma mesma situação. Aquilo que é interessante de um ponto de vista didáctico, é que podemos fazer funcionar em complementaridade duas grandes categorias de simuladores, que trazem, cada um, uma ajuda específica. Por um lado, temos os simuladores em escala real, que são uma imitação muito fiel da situação profissional de referência. Em relação à dialéctica existente entre a situação na sua complexidade e o problema que foi modelado a partir desta, estão mais do lado da situação, e não do lado do problema. Por outro lado, encontram-se simuladores de fraca fidelidade, que se contentam em pôr em cena a estrutura conceptual da situação, os princípios de base que definem a lógica de funcionamento do sistema. Eliminam todos os outros aspectos concretos da situação: reprodução fiel da instalação técnica, respeito das temporalidades, dos procedimentos, da habilidade gestual. Estes simuladores são claramente orientados para o «problema». Podem até propor variantes sobre as modalidades de acção ou de recolha de informação. Por isso, podem constituir uma ajuda eficaz para que os operadores construam as relações de significação que lhes permitirão expor os seus diagnósticos de funcionamento do sistema. A utilização conjunta destes dois tipos de simuladores permite instalar bem a dialéctica que vai operar entre a complexidade da situação, de um lado, e a modelização sob forma de problema, por outro lado11.

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Estamos muito próximos do núcleo central de uma pedagogia da alternância. Além disso, quando a situação profissional não é de alto risco, portanto quando se podem dispensar os simuladores de escala real para a aprendizagem, a própria situação profissional toma o lugar de um dos termos da alternativa, o outro termo pode ser um simulador de fraca fidelidade.

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Conclusão […] Existe finalmente o aparecimento dos multimédia, que, ao nos fazer entrar na era do virtual, tornando acessível a criação de mundos possíveis e manipuláveis, permite não apenas repensar as abordagens baseadas na resolução de problemas mas de renovar a aprendizagem das situações. Como tornar as situações profissionais acessíveis à aprendizagem? E isto sem as desnaturar por uma fragmentação excessiva. Vimos que se assistia a uma multiplicação dos instrumentos, uns orientados para a situação, outros orientados para os problemas, mas com uma preocupação de complementaridade, porque é necessário ao mesmo tempo enfrentar a complexidade da situação e aceder à sua estruturação conceptual. Mas o mais importante está provavelmente além desta proliferação tecnológica: as simulações constituem notáveis observatórios para procurar entender melhor como um actor constrói a sua experiência dela fazendo uma história, a sua história. Aquilo que da acção habitualmente permanece opaco, a ponto de alguns a julgarem definitivamente incompreensível, pode nela tornar-se mais claro; a compreensão de si passa por um momento incontornável de rebaixamento e de distanciamento. E é neste movimento que conduz o sujeito do vivido ao relato, e do relato à história, que se enraíza o processo de conceptualização.

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TEXTO 22 O MEU PROFESSOR IDEAL

Loek van Veldhüyzen e K. Vreugdenhil APS – Centro Nacional pelo Aperfeiçoamento das Escolas (Utrecht – Holanda)


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Os professores ensinam todos os dias. Preparam aulas. Explicam o que tem de ser aprendido. Supervisionam os exercícios dos alunos. Verificam-se os resultados. Aprendem a conviver com a sua classe. Modelam e influenciam comportamentos, ensinando às crianças e aos jovens a consciência dos seus deveres, formas de convívio social, valores e normas. Isso não acontece no vácuo. A educação faz-se na escola, onde muitas outras coisas acontecem. Há reuniões de professores. Há o Plano Director para se levar em conta. Há o contacto com os pais. Para executar a contento todas essas actividades, os professores devem possuir características muito especiais. Num perfil profissional, essas características são definidas numa certa ordem, permitindo que se construa uma imagem coerente da profissão. Mas o ensino não pára de mudar e, com ele, muda a imagem do professor. Um perfil profissional é sempre o produto de um lugar e de um tempo determinados. Deveria ser revisto a cada cinco anos, aproximadamente. Um perfil profissional também se volta, em certa medida, para o futuro. Inclui características que, embora ainda não sejam universais, serão exigidas daqui a alguns anos. Resumindo, o perfil profissional de um professor: – consiste em grupos de características, descritos numa certa ordem; – está ligado a um lugar e a uma época; – olha para o amanhã, mencionando características que podem ser exigidas num futuro próximo. Este texto apresenta um perfil profissional de professor desenvolvido na Holanda. Seu formato original é bem mais complexo e foi elaborado a partir de pesquisa conduzida pela equipa do APS – Centro Nacional pelo Aperfeiçoamento das Escolas. Centenas de professores e de representantes de conselhos, sindicatos, autoridades locais e nacionais estiveram envolvidos na criação deste modelo. O perfil resultante, cujas linhas gerais vamos mostrar, não pode ser tomado como padrão para professores brasileiros, americanos, alemães ou japoneses, já que emerge da realidade holandesa. Ele pode, no entanto, inspirar qualquer escola, no Brasil ou em outro lugar do mundo, a construir o seu próprio perfil do professor. Professores e directores podem fazer isso, descrevendo o que consideram ser as características de um bom professor para a sua escola. Em um formato mais simples, essas características podem ser agrupadas em quatro dimensões: educativa, didáctica, organizacional e relativa a valores. Se a equipa escolar estiver de acordo quanto ao perfil que considera desejável para os seus docentes, esse tornar-se-á um poderoso instrumento a serviço do aperfeiçoamento profissional dos professores. Afinal, todos saberão que características são valorizadas e precisam ser desenvolvidas com o esforço individual e a formação continuada em serviço. O perfil de docente ideal holandês que iremos mostrar em seguida apresenta características relativas às seguintes dimensões: – professor enquanto profissional; – professor enquanto educador; – professor enquanto especialista em didáctica; – professor enquanto membro de uma equipa.

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1. Professor enquanto profissional 1.1. Está em contínuo aperfeiçoamento O comportamento dos seres humanos na sociedade é altamente influenciado pelas suas biografias e pela subcultura em que vivem. Todas as pessoas são diferentes; isso é inegável. Por isso, a comunicação entre professor e alunos, entre professor e seus pares e comunidade não envolve apenas técnicas; tem de ocorrer a partir de uma atitude determinada por valores que focalizem, por exemplo, cooperação, respeito e tolerância, oferecendo oportunidades uns aos outros. Ao comunicar-se, é necessário que os professores estejam conscientes dos valores em jogo e saibam lidar com as diferenças. É necessário que o professor esteja por dentro do que se passa na sociedade e se mantenha actualizado em relação aos avanços nos campos da sociedade e da cultura, da ciência e da técnica, da saúde e do meio ambiente, da política e da filosofia de vida. Deve saber definir a sua posição quanto a cada um desses avanços, consciente de que é um modelo importante para os seus alunos. Espera-se do professor que: – mantenha em bom nível os seus conhecimentos sobre os avanços aqui mencionados, através de diferentes meios, inclusive por sua participação na vida social; – aguce a compreensão sobre a tensão e a conexão entre características valiosas e relativamente estáveis da sociedade e novas modas e tendências; – reflicta sobre suas próprias experiências como participante na vida social, dentro e fora das fronteiras de seu país, transformando-as em dados que sejam úteis ao exercício de sua profissão; – traduza suas afinidades ou o seu envolvimento com fenómenos sociais específicos em desenvolvimento contínuo das suas próprias preferências e do seu interesse pela profissão.

1.2. Desenvolve capacidades cognitivas dirigidas para a resolução de problemas O professor deve saber lidar com problemas, reconhecendo-os, analisando-os e resolvendo-os. Ele está habituado a agir com independência, a liderar e a assumir responsabilidades, e aceita que os outros façam o mesmo. O professor deve ser capaz de assegurar que as aptidões cognitivas já dominadas durante a sua formação possam aperfeiçoar-se constantemente. Para isso, transitará entre experiências adquiridas dentro e fora de sua prática profissional e levará em conta os contributos e sugestões que lhes são oferecidos. Espera-se do professor que: – continue a desenvolver suas aptidões iniciais relacionadas com a reflexão, resolução de problemas, processamento de informação, pensamento e acção estratégicos, planeamento, gestão do tempo e avaliação, com o uso consciente e sistemático dessas aptidões no seu trabalho e, eventualmente, fora dele;

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– considere as opiniões de outras pessoas sobre fenómenos e acontecimentos socioculturais e apliquem os resultados desta reflexão no seu trabalho.

1.3. Forma um conceito sobre seu trabalho Um professor profissional possui um conceito sobre seu trabalho. Isso significa que está consciente dos valores e das normas que considera importantes na sua actividade quotidiana. Também está consciente dos preconceitos que possa ter desenvolvido. Ele pode associar os conhecimentos adquiridos durante a sua formação a novas informações adquiridas, por exemplo, nas capacitações em serviço. É capaz de fazer a autocrítica de opiniões, ideias e convicções sobre o seu trabalho quotidiano e também de as sujeitar à crítica do outro, por meio do diálogo. Conhece os seus pontos fortes na profissão que exerce. Sabe como desenvolver as suas qualidades, sem cair no simplismo. É capaz de analisar as suas próprias acções e de modificar, se necessário, padrões e rotinas. O conceito que esse professor profissional forma sobre o seu trabalho é coerente e dirige as suas acções. Pode ser ajustado e complementado, se as circunstâncias assim exigirem. Isso demanda uma atitude aberta em relação a novos conhecimentos e mudanças, que podem originar novas perguntas e objectivos de aprendizagem. Esse conceito contém uma imagem da sua actividade profissional capaz de lhe provocar entusiasmo – é como se fosse o tempero do seu trabalho. Tal imagem leva em conta necessidades humanas gerais como obter reconhecimento, experimentar sucesso, estabelecer relações positivas, poder ser aquilo que realmente somos, ter controlo sobre o que fazemos e sobre o que acontece e ser levado em conta. Espera-se do professor que: – reflicta regularmente sobre o conteúdo do conceito que faz sobre seu trabalho, para fixar suas experiências e traduzi-las em escolhas e prioridades em relação à sua actividade profissional; – compreenda, por meio da auto-avaliação, o que está a ir bem e o que está a falhar; – formule, a partir de reflexão e da auto-avaliação, as suas próprias perguntas e objectivos de aprendizagem e se aperfeiçoe com base nisso; – saiba quais as ideias, os princípios e os comportamentos que deseja absolutamente manter e porquê; – lide conscientemente com o conceito que faz sobre o seu trabalho, em caso de mudanças e reformas; – ajuste e complemente o seu conceito de trabalho com novos conhecimentos e ideias.

1.4. Tem consciência dos seus valores e normas O professor deve saber lidar conscientemente com as normas e os valores que inspiram as suas acções, dentro e fora da escola. Ele esforça-se por detectar e eliminar preconceitos; procura emitir julgamentos

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equilibrados e bem fundamentados; conhece as filosofias e visões do mundo que influenciam as pessoas com as quais convive; sabe construir pontes entre suas posições morais e essas visões do mundo. O professor deve ser capaz de justificar as suas escolhas, se possível empreendendo uma reflexão crítica sobre a filosofia ou a visão de mundo que as sustentam. Espera-se do professor que: – esteja consciente dos valores e das normas que desempenham um papel na sua vida e profissão e das mudanças que eles sofrem; – identifique os preconceitos em si próprio e nos outros; – promova conscientemente, a partir de valores, compreensão e conhecimento, a emancipação das pessoas marginalizadas e desfavorecidas na sociedade em que actua; – compreenda que a informação (conhecimento, conteúdos curriculares) está sempre relacionada com valores e os aplique às suas acções profissionais; – justifique as normas e valores que faz valer no seu trabalho e seja consistente, agindo sempre em conformidade com eles.

1.5. Fundamenta-se em uma concepção de educação O professor baseia o seu trabalho no conceito que forma sobre ele. Se, numa equipa, existe consenso sobre uma determinada visão de educação e de ensino e sobre a forma de a colocar em prática, estamos a falar de uma concepção de educação. Escolhida essa concepção, os membros da equipa devem adequar-lhe suas acções. Constituirá também a base do conceito de trabalho de cada professor. As concepções de educação têm de ser ajustadas em função dos avanços que ocorrem fora da escola e das experiências de trabalho da própria escola. Espera-se do professor que: – conheça a história e o conteúdo actual da concepção de educação escolhida; – tente, colectiva e individualmente, realizar o seu trabalho quotidiano baseando-se em pensamentos, valores e normas, métodos de trabalho e recursos didácticos inspirados na concepção de educação da equipa; – esclareça as pessoas do exterior (pais de alunos e professores de outras instituições) que tipo de concepção de educação defende e que resultados obtém com seus alunos; – aceite aprender e capacitar-se com os seus colegas e com outros profissionais, para garantir uma concretização adequada da concepção de educação; – se esforce sempre para estabelecer relações entre a concepção de educação e a realidade de ensino, criando assim um ambiente pedagógico favorável para os alunos.

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1.6. Comunica eficazmente As actividades do professor implicam uma comunicação eficaz com diferentes pessoas e grupos. Espera-se do professor que: – saiba fazer com que os processos de comunicação ocorram com sucesso e identifique o que os impede de funcionar; – comunique de formas diversificadas, adequando as suas mensagens de acordo com o grupo-alvo, com a sua subcultura e com o contexto em que se realiza o contacto.

2. Professor enquanto educador 2.1. Percebe a relação entre educação familiar e ensino O professor está consciente de que faz parte de uma tradição de trabalho em que a educação, no contexto da família, e o ensino estão inter-relacionados em diferentes aspectos. Compreende a natureza dessas relações e o contexto sociocultural que lhes deu origem. Esse contexto abrange também uma filosofia ou uma visão de mundo. Baseando-se nisso, é capaz de identificar a sua própria posição e de traduzi-la no seu trabalho quotidiano. Espera-se do professor que: – conheça os mais importantes movimentos na história da educação e na actualidade do ensino, bem como o modo pelo qual a educação e o ensino estão ligados entre si no contexto dessas correntes; – compreenda de que modo o seu trabalho quotidiano está ligado aos acontecimentos na sociedade, no que diz respeito a perspectivas culturais e filosóficas; – possua um conceito de trabalho, indicando como concretizar de modo coerente a educação e o ensino em suas acções quotidianas.

2.2. Assume responsabilidade pedagógica pelo que faz Cada vez mais, o professor é chamado a justificar e a prestar contas sobre o seu trabalho pedagógico. Exige-se que a educação aprofunde a sua relação com temas actuais e com problemas. Isso envolve problemas e dilemas no domínio dos valores e normas. O professor deve manifestar o seu ponto de vista sobre esses temas, com base numa visão do mundo específica. Espera-se do professor que: – extraia dos acontecimentos e fenómenos sociais temas actuais no domínio de valores e normas, inserindo-os nos seus programas didácticos;

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– defina em equipa e consultando os envolvidos como lidar com os pais, propiciando uma direcção pedagógica clara e personalizada; – indique quais os limites da sua responsabilidade e onde começa ou continua a responsabilidade dos outros; – esclareça e proteja o seu direito a uma identidade própria como membro activo da sociedade.

2.3. Cria uma atmosfera pedagógica positiva A atitude e a competência do professor desempenham um papel importante na criação de uma atmosfera pedagógica onde todos os alunos possam sentir-se seguros e apreciados. A atmosfera favorável da sala de aula reflecte atitudes positivas do professor, como mostrar-se aberto às necessidades dos alunos, possuir curiosidade intelectual, manifestar interesse e respeito pelos alunos. O professor deve possuir também a competência de construir um bom convívio social entre alunos de diferentes origens socioculturais e monitorar as regras inerentes a essa incumbência. Espera-se do professor que: – seja capaz de levar em conta as necessidades e os desejos dos alunos; – saiba criar uma relação de confiança com os alunos; – mostre que tem expectativas positivas quanto ao comportamento dos alunos; – esteja consciente das causas e consequências de preconceitos e estereótipos ligados a determinados papéis sociais; – compreenda os processos de dinâmica de grupo; – estimule o bom convívio entre os alunos; – seja claro ao estabelecer regras e as formule com declarações positivas; – saiba lidar com as relações interétnicas no grupo.

2.4. Compreende as diferenças socioculturais O professor compreende as diferenças socioculturais entre alunos, levando-as em conta e utilizando-as de forma positiva; evita que se instaure uma atmosfera que leve ao isolamento ou segregação de certos grupos; estimula a solidariedade e a cooperação, com base em objectivos comuns e aptidões compartilhadas. Espera-se do professor que: – esteja consciente da posição social desfavorecida de indivíduos e grupos que fazem parte da vida quotidiana dos alunos, na cidade e no bairro; – compreenda que papéis estereotipados ligados ao género podem prejudicar o desenvolvimento dos alunos; – preocupe-se com as desigualdades na escola causadas por origem e posição sociais desfavorecidas;

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– estimule os alunos a compreender e a respeitar as diferenças que existem entre eles, reforçando essa compreensão e respeito; – tome medidas para combater a discriminação na classe, na escola e, se possível, fora dela; – dê ao ensino um carácter intercultural, utilizando, por exemplo, materiais e estratégias que contemplem a vida de outras culturas e grupos étnicos.

2.5. Identifica necessidades de cuidados sociopedagógicos especiais O professor descobre que as diferenças culturais, materiais e ambientais entre os alunos se manifestam cada vez mais claramente na escola. Espera-se que ele antecipe da melhor maneira possível as consequências disso, que identifique abordagens pedagógicas que têm oportunidade de não funcionar com alguns alunos e saiba como e quando apelar para instâncias de acompanhamento e apoio complementar. Espera-se do professor que: – conheça em linhas gerais as diferenças do passado dos alunos no seu grupo; – tenha alguns conhecimentos sobre as causas, manifestações e consequências de problemas sociopedagógicos, tais como maus-tratos, negligência e incesto, bem como sinais que indicam semelhantes problemas para alguns alunos; – tenha algum conhecimento sobre a organização e o funcionamento das instâncias de apoio destinados à juventude.

2.6. Estimula o trabalho independente O professor oferece aos alunos a oportunidade de trabalhar de forma independente, executando tarefas sem a sua supervisão directa. O trabalho independente tem como objectivo apoiar os alunos a assumir a responsabilidade pelo planeamento das suas próprias actividades. Para que os alunos possam beneficiar ao máximo, é necessário desenvolver sistematicamente essa estratégia, que pode ser utilizada desde os níveis iniciais. Espera-se do professor que: – reconheça que existem diferentes níveis de independência; – ensine os alunos a trabalhar independentemente; – enfatize as aptidões relativas à aquisição autónoma de conhecimentos; à independência na colecta, no processamento e na apresentação de informações, bem como as aptidões relativas ao comportamento social e às interacções; – ofereça aos alunos procedimentos e regras que os orientem, descrevendo o que se espera deles, como devem continuar o trabalho e como devem usar o tempo de forma responsável;

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– estimule a cooperação entre os alunos e o trabalho em equipa; – monitorize o trabalho independente, registe os progressos e verifique se os trabalhos planeados foram realizados.

2.7. Incentiva a cooperação entre os alunos O professor supervisiona os alunos na aquisição das competências sociais de que necessitam, agora e no futuro, para interagir na comunidade onde vivem, trabalham e passam o seu tempo livre. Uma aptidão social importante é saber cooperar com diferentes pessoas. Essa competência não se desenvolve automaticamente. O professor enfatiza o ensino e a aplicação de estratégias de cooperação entre os alunos. O ponto de partida é reconhecer que os estudantes aprendem não apenas com o professor, mas também uns com os outros. Espera-se do professor que: – considere importante que os alunos aprendam uns com os outros; – crie situações que provoquem e estimulem a cooperação, proporcionando experiências que envolvam interacção directa, dependência mútua e responsabilidade individual; – organize o processo de aprendizagem no grupo, de modo a que a cooperação entre os alunos se realize sem perda de tempo e sem perturbações; – enfatize a aprendizagem e o exercício das aptidões indispensáveis à cooperação, como a habilidade de escutar, falar e ajudar-se mutuamente; – observe e supervisione os alunos que cooperam entre si e avalie com eles o processo de cooperação.

3. Professor como especialista em didáctica 3.1. Adapta materiais e metodologias O professor trabalha com objectivos didácticos e pedagógicos, muitas vezes emprestados a uma concepção de educação. Para alcançar tais objectivos, geralmente usam «pacotes» de materiais didácticos ou de metodologias, dirigidos a um aluno médio abstracto. Cada professor tem a tarefa de adaptar esses métodos e materiais, de maneira que satisfaçam as necessidades dos seus alunos concretos. Para isso, os professores adaptam, complementam ou rearticulam os meios disponíveis, por meio de instruções orais, escritas, ou por meio de imagens. Espera-se do professor que: – conheça as necessidades dos seus alunos quanto ao apoio e estímulo à aprendizagem; – estabeleça a relação entre os objectivos didácticos a alcançar e os valores essenciais a que servem;

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– ofereça instruções de apoio, oralmente ou por escrito, para os alunos que devem trabalhar com determinado material didáctico.

3.2. Selecciona, utiliza e desenvolve métodos de ensino O professor deve ser capaz de escolher, usar e eventualmente desenvolver métodos de ensino. Há dois componentes nessa tarefa. Primeiro, o docente deve ser capaz de trabalhar de forma independente com os métodos pedagógicos habituais, abrangendo os seguintes componentes: objectivos, conteúdos, recursos, modos de operar, formas de prover acompanhamento, organização de ensino e avaliação. Segundo, também deve conhecer as diversas formas de conceber um método pedagógico. Espera-se do professor que: – escolha objectivos pedagógicos e didácticos coerentes com a sua própria concepção de trabalho, com a identidade e o programa da escola; – seleccione os conteúdos segundo critérios como: avaliação crítica dos valores subjacentes, necessidades dos alunos, objectivos fixados, o seu carácter ilustrativo em relação à área mais ampla na qual se originam, possibilidade de ser reconhecidos por diferentes etnias e, eventualmente, o seu valor actual; – escolha e manuseie com eficácia as diferentes formas de trabalho e actividades didácticas; – actue de modo preventivo, sinalizando, diagnosticando e remediando os casos de possível abandono da escola pelo aluno; – assegure uma boa gestão da classe; – registe e avalie os processos de aprendizagem e de desenvolvimento dos alunos; – conheça diferentes tipos de métodos pedagógicos (a sua elaboração e função) e os aplique; por exemplo: o trabalho concêntrico, o ensino temático e o ensino por projectos.

3.3. Utiliza o modelo da instrução directa Para ensinar os seus alunos, o professor recorre a diferentes modelos instrucionais. Qualquer que seja o modelo escolhido, o professor deve possuir importantes habilidades como: manejar e organizar a classe, planejar, estruturar e coordenar as actividades dos alunos. A instrução directa é um modelo instrucional eficaz, voltado ao ensino directo das aptidões básicas na resolução de problemas. As experiências de aprendizagem dos alunos são, em grande medida, estruturadas pelo professor. Espera-se do professor que: – adapte os seus modelos de ensino às capacidades dos alunos; – formule claramente os objectivos de aprendizagem; – estruture suas aulas passo a passo, com clareza, e mostre também aos alunos os passos necessários para aplicar com sucesso o que foi aprendido;

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– explique claramente aos alunos o que se espera que eles aprendam; – faça perguntas com alguma regularidade para avaliar o percurso dos alunos, bem como verifique se eles realmente estão a compreender o assunto ensinado; – ofereça tempo suficiente para que os alunos se exercitem e pratiquem o que foi ensinado, encorajando-os e dando feedback regularmente; – incentive os alunos a exercitar algumas habilidades tantas vezes quantas foram necessárias, até que se transformem em automatismo; – supervisione os alunos quando estiverem a trabalhar; – avalie regularmente o trabalho dos alunos, juntamente com eles; – seleccione conteúdos adequados para os alunos com desempenho acima da média.

3.4. Domina a gestão da classe O sucesso do ensino depende muito da forma como o professor organiza sua classe. Para as turmas constituídas por grupos heterogéneos, uma boa organização é ainda mais importante do que para os grupos homogéneos. Um planeamento adequado e uma boa organização didáctica contribuem para que os alunos desenvolvam um comportamento orientado para a execução de tarefas. Espera-se do professor que: – preveja eventuais situações problemáticas, o que lhe permite tomar decisões adequadas diante de tais situações; – recorra a formas diferenciadas de ensino, criando uma atmosfera de trabalho positivo e estimulante; – deixe tudo muito claro para a classe, estabelecendo regras e compromissos com os alunos; – organize o espaço da sala de aula de maneira que este contribua significativamente para uma atmosfera de trabalho produtiva.

3.5. Auxilia os alunos a aproveitar bem o tempo de aprendizagem dedicado à realização das actividades escolares O professor conhece a forma como os alunos utilizam o tempo dedicado ao estudo. Sabe que o tempo de estudo efectivo influencia muito o nível de aproveitamento dos alunos. Assim, organiza esse tempo de tal maneira que ele seja utilizado com o máximo de eficácia. Espera-se do professor que: – saiba como desenvolver nos alunos uma atitude dirigida à execução das actividades e tarefas escolares; – descreva o que significa um «comportamento dirigido à execução das tarefas» e um «comportamento não dirigido à execução das tarefas»;

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– prepare actividades e tarefas que proporcionem aos alunos oportunidades de experimentar o sucesso; – disponha de materiais de apoio em quantidade suficiente e em lugar a que os alunos tenham fácil acesso; – planeie cuidadosamente a organização das actividades escolares; – ajuste as actividades didácticas aos objectivos definidos; – planeie as actividades dos alunos, ajustando-as ao seu nível de desenvolvimento e aos seus interesses; – ofereça instruções claras e abra possibilidades para que trabalhem de forma independente.

3.6. Planeia suas acções À medida que o trabalho se torna mais complexo, aumenta a necessidade de planeamento. Ao desempenhar suas actividades, o professor lida com planos diários, semanais e anuais. Existem as linhas didácticas, os planos didácticos e o Plano Director da escola. Planos de acção especialmente desenhados para as necessidades de cada aluno, em particular, vão-se tornar cada vez mais comuns. O trabalho escolar requer um comportamento muito sistemático. É necessário, no entanto, manter alguma flexibilidade, deixando espaço para o imprevisto e para ocasiões em que os próprios alunos possam planejar. Espera-se do professor que: – elabore planos diários, semanais e um plano anual; – elabore planos de acção específicos para alguns alunos; – trabalhe em equipa para desenvolver uma linha didáctica e implementar componentes do plano da escola; – possua flexibilidade na planificação e se situe entre uma atitude de planeamento e a acção espontânea, intuitiva, abrindo espaço para a improvisação.

4. Professor como membro de uma equipa 4.1. Investe em seu aperfeiçoamento profissional contínuo O professor está cada vez mais envolvido em reuniões onde discute os progressos do ensino e dos alunos. Além disso, a avaliação do ensino, a reflexão sobre as próprias experiências profissionais e a sua capacitação regular são necessárias para que ele possa continuar a trabalhar de modo eficaz num ambiente educacional que muda cada vez mais rapidamente. Espera-se do professor que: – reflicta sistematicamente o seu trabalho, registe e processe regularmente os dados que resultam dessa reflexão, ajustando-os ao seu próprio conceito de trabalho;

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– conheça as formas de auto-avaliação do ensino e saiba aplicar um sistema de acompanhamento dos alunos; – formule, baseando-se na reflexão e avaliação, as suas demandas por uma formação profissional continuada; – se reúna regularmente com os colegas para discutir o seu processo de trabalho e para estabelecer compromissos com a escola; – comunique, nas reuniões, de forma objectiva e orientada para a identificação de soluções, de acordo com os compromissos da política educacional da escola.

4.2. Solicita a consultoria dos colegas e oferece-lhes consultoria O professor esforça-se por melhorar as suas próprias qualidades profissionais, inclusive contando com o apoio de seus colegas. A observação recíproca do trabalho do outro em contexto de aula, seguida de feedback (consultoria directa), permite aos professores aumentar o seu profissionalismo e as suas competências. Mas isso exige que eles estejam dispostos a romper o isolamento. Através do diálogo, os professores formam uma ideia mais precisa de suas próprias competências e das aptidões dos colegas, esclarecem os motivos de certas acções e verificam em conjunto por que acontecem certos incidentes. É possível, também, discutir de maneira estruturada a prática docente, por meio de uma consultoria indirecta, isto é, sem observar o comportamento do colega no contexto de aula. De qualquer modo, supervisionar colegas no aperfeiçoamento de suas qualidades didácticas requer que o docente desenvolva as suas qualidades de consultor. É importante lembrar que resultados positivos serão atingidos apenas se, entre as duas pessoas envolvidas no processo de dar e de receber, existir um clima de compreensão e respeito mútuo e elas sentirem que aspiram ao mesmo objectivo. Espera-se do professor que: – inspire confiança; – faça perguntas, de modo a estimular os colegas a pensar sobre as suas acções e respectivas consequências, sobre os problemas que enfrenta na sala de aula e sobre as soluções possíveis; – reaja às propostas dos colegas, esclarecendo, organizando ideias e resumindo-as; – amplie o repertório de acções dos colegas, apresentando alternativas e estimulando-os a assumir as responsabilidades pelo processo de aprendizagem dos alunos.

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4.3. Procura estabelecer parcerias O professor está cada vez mais envolvido em actividades que exigem contactos fora da escola e extraia daí consequências para o próprio trabalho. Deve considerar os desejos dos pais, as possibilidades financeiras e a relação com outras escolas e instituições. Assim, tarefas escolares de ordem geral tendem a aumentar. Além disso, o professor e a sua equipa devem conhecer e reforçar a identidade da sua escola. Deve, ainda, ser capaz de esclarecer essa identidade junto de terceiros. O professor também precisa de ser capaz de estabelecer uma relação positiva com os pais e com outros parceiros envolvidos. Espera-se do professor que: – em equipa, implemente a política da escola, adequando-a ao seu conceito de trabalho; – dentro da equipa, contribua para a distribuição adequada de tarefas, baseada na quantidade de horas disponíveis, nos interesses e nas qualidades do grupo; – represente, individualmente, a identidade da escola onde trabalha; – encontre um novo equilíbrio entre a concretização da sua tarefa principal, que é ensinar, e as tarefas escolares gerais; – tome conhecimento de grupos, instituições ou empresas que possam cooperar com o desenvolvimento do ensino e saibam como e quando seria eficaz utilizar estes recursos.

4.4. Compartilha informações e diálogo com pais e tutores A responsabilidade pedagógica por um aluno é compartilhada entre os professores e seus pais/tutores. Escola e família têm responsabilidades dificilmente dissociáveis. Um aluno que enfrenta problemas específicos em casa, por exemplo, vai exigir muito do professor. É preciso que exista uma comunicação regular entre o professor e os pais sobre o bem-estar e os progressos do aluno. Só assim ambas as partes podem assumir efectivamente as suas responsabilidades. Isso torna-se mais urgente caso o ambiente familiar e o da escola sejam extremamente distintos. Espera-se do professor que: – possa oferecer regularmente informações sobre o progresso dos alunos, tanto sobre o aproveitamento escolar como sobre o desenvolvimento da sua personalidade; – informe-se sobre o passado dos alunos e dos seus pais; – recorra a formas diversificadas de comunicação, adequando-as à natureza e ao estilo de vida das famílias dos alunos. Fonte: Este texto foi reproduzido da publicação Pequenos Passos Rumo ao Êxito para Todos da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.

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TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO

Madalena Dias


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Temos desenvolvido uma perspectiva de educação de adultos sitiada num espaço de construção pessoal e social que visa promover as condições e possibilidades da produção de um conhecimento emancipatório, através do qual o adulto em formação é capaz de se compreender melhor, assim como é estimulado a tomar parte activa na construção de significados acerca da realidade sociocultural em que está inserido. Este modo de trabalho pedagógico apoia-se fundamentalmente no princípio que designa os contextos significativos de aprendizagens como cruciais para os lugares de construção dos formandos, onde o desenvolvimento da aprendizagem se vai paulatinamente desenrolando, quando se produz no adulto um novo saber, integrado no saber experiencial existente. É assim, a aprendizagem encarada de um modo complexo e dinâmico (a aprendizagem nutre o desenvolvimento e este fomenta a aprendizagem). Mapeado o caminho a seguir, emerge a necessidade de esclarecermos como vamos analisar o processo pedagógico e os seus produtos, isto é, como vamos operacionalizar, metodologicamente, a avaliação. No entanto, não devemos esquecer que a avaliação é uma dimensão intrínseca a qualquer projecto formativo devendo assumir um carácter coerente com o modelo de formação. O conceito de avaliação em educação esteve, tradicionalmente, associado à avaliação de conhecimentos dos alunos. A avaliação era sinónimo de medida. Mediam-se as aprendizagens dos alunos para verificar os seus (in)sucessos, e também os dos programas e dos sistemas educativos. Com a complexificação do campo educativo e formativo, face a novos contextos e exigências, o conceito de avaliação evolui, tal como foram evoluindo os modelos e as práticas, que passaram a incidir sobre os sistemas e programas educativos e formativos. A avaliação da aprendizagem assume, cada vez mais, um sentido regulador e orientador, evidenciando-se que aprender é construir o seu próprio conhecimento, e que a avaliação funciona com um carácter formativo na medida em que permite informações de retorno importantes para a melhoria do processo pedagógico. Evidencia, claramente, uma função estruturante. A metodologia de portefólio inscreve-se nesta linha de entendimento da avaliação, sendo que a sua matriz operativa solicita a produção de uma memória do processo formativo, para a qual o formando vai ao longo do processo gerando um corpo coerente, sistematizado e reflectido de materiais diversificados que dão sentido e significado às aprendizagens realizadas. No final, conceptualizou e elaborou uma narrativa produzindo uma apurada compreensão das experiências formativas vividas, apropriando-se do seu poder de formação. Acompanhando a evolução dos paradigmas e modelos de formação, o conceito de avaliação foi-se modificando de modo a poder integrar a complexificação das práticas pedagógicas. Cabe aqui realçar que avaliar é um acto complexo que tem que ser feito com responsabilidade e comprometimento ético e moral, envolvendo todas as dimensões e intervenientes no processo de formação.

TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO

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1. A elaboração de portefólios: principais vantagens O termo portefólio, emprestado do mundo artístico e usado com o sentido de álbum ou colecção de amostras de trabalhos diversificados, quando utilizado no âmbito da educação/formação adquire uma dimensão específica. O sentido fundamental do portefólio, no contexto da formação, é o de se converter num espaço de reflexão entre formadores e formandos, pela confrontação de perspectivas que uns e outros possuem do seu trabalho. Os formandos aprendem a reflectir sobre as suas experiências de aprendizagem e a avaliá-las, os formadores podem perceber os efeitos do currículo como um todo e, quando necessário, procederem a reestruturações. Ressalta que um portefólio não é somente uma imagem global das aprendizagens de cada formando, mas também um excelente instrumento de avaliação da formação em curso. A sua utilização pode permitir ultrapassar a tendência histórica do acto punitivo (centrada nos défices) da avaliação para a erigir como forma de aprendizagem, base instrumental de um processo emancipatório ao qual subjaz processos contínuos de pesquisa, reconstrução e elaboração. Um aspecto crucial e fecundo da avaliação pensada através da construção do portefólio é a sua potencialidade interdisciplinar, integradora, democrática, dialógica, negociada e criativa. A sua elaboração, o conteúdo e organização, difere de acordo com os propósitos que se pretendem atingir, com a especificidade da acção e com a natureza do projecto formativo. Como metodologia de trabalho de avaliação, realizado individualmente, pede aos formandos a descrição e a reflexão do trabalho desenvolvido durante a formação. O que se pretende explorar é um recurso que implica, além de reflectir, escrever. O desenvolvimento da reflexão exige, por escrito, a sua explicitação num processo de sistematização e apropriação das aprendizagens realizadas, no qual o conhecimento, frequentemente, se modifica e reconstrói. Assim, a avaliação não se estrutura em torno das carências, mas referencia as experiências, o vivido. Destaca-se pelo facto de ser a metodologia que mais implica o formando no desenvolvimento da responsabilidade face à sua formação e demonstração das competências adquiridas. A sua construção exige um trabalho contínuo, aconselhando-se o registo diário de dados e opiniões, que imprime à colectânea de experiências formativas um sentido realista e impregnado de significados, capaz de propor e traduzir uma ideia do contínuo da formação, da sua complexidade e dinâmica. O acto de construir, apresentar e reflectir sobre as evidências da sua aprendizagem, convida a um diálogo constante, entre formadores e formandos, despoletador de uma interacção que é fundamental na ajuda da identificação dos estilos cognitivos de aprendizagem assim como no desenvolvimento metacognitivo. A metacognição implica reflectir sobre o nosso próprio pensamento, sobre o modo como construímos o conhecimento, sobre a nossa aprendizagem, sobre nós como aprendentes.

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TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO


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Muito mais do que o conjunto de trabalhos apresentados pelos formandos durante o período, o portefólio é um processo contínuo que implica a elaboração, reflexão e reelaboração de um dado texto/trabalho/exercício. Por outro lado, por possuir uma elaboração pouco formal, deve incluir notas, comentários, reflexões que permitam conquistar o caminho do saber, identificando problemas, o modo como foram vencidos, as formas utilizadas para enfrentar e superar as dificuldades. Uma outra dimensão que esta metodologia de avaliação permite apreciar é o desenvolvimento de um amplo leque de competências para além daquelas que são esperadas. Podemos sistematizar, nas seguintes ideias, as vantagens do uso portefólio: – Incentiva os formandos a serem criadores activos do conhecimento, em vez de receptores passivos. – Requer formas de registo e de avaliação que optimizam a reflexão sobre a prática e a avaliação dos seus resultados de forma negociada e interactiva. – Designa uma concepção construtivista, interactiva, dialógica e emancipatória da avaliação. – Capta os aspectos humanos, culturais, sociais e éticos envolvidos nos contextos formativos e avaliativos. – Convida ao pensamento reflexivo. – Evidencia estilos e modos de ensino e aprendizagem. – Mostra os contextos práticos de aprendizagem. – Permite desenvolver uma maior autonomia no trabalho do formando. – Promove a co-avaliação1. – Desenvolve a auto-avaliação. – Mostra o carácter complexo e dinâmico da formação, tornando explícito o trajecto formativo. – Incentiva a tomada de decisões. – Como não tem uma estrutura rígida, adequa-se a diversas finalidades (polivalência e flexibilidade). – Fornece informações relevantes ao formador para fundamentar e sustentar decisões para o exercício da diferenciação curricular. – Contraria o pendor teórico da avaliação e distanciamento do quotidiano da formação. – Disponibiliza um manancial de recursos avaliativos que permitem em simultâneo avaliar processos e produtos.

2. Um portefólio não é um dossiê: principais características O portefólio é um documento pessoal, devidamente planeado ao longo de um determinado período de tempo, estruturado pela agregação de instrumentos múltiplos, que tem como função fornecer aos seus 1

Entende-se como co-avaliação o processo comunicacional que permite ao formando, aos seus pares e aos formadores colaborarem e cooperarem na avaliação num sentido dinâmico e interactivo com objectivo de melhorar a aprendizagem. Apresenta-se, também, como um óptimo exercício de desenvolvimento de uma atitude crítica construtiva.

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leitores uma imagem alargada e pormenorizada do desenvolvimento formativo do adulto em que se tornam explícitas as competências adquiridas ao longo do período formativo. Poderá assumir a forma de uma colectânea de produtos significativos. Esta colectânea, constituída por uma ampla diversidade de trabalhos (propostas de trabalho realizadas, relatórios de visitas, descrições de trabalhos colectivos, registos de consultas e pesquisas realizadas, fotografias, esquemas, anotações, registos de observação, fichas de leitura, sínteses, reflexões sobre o seu desempenho…), não terá que integrar apenas os melhores produtos, mas sim aqueles onde o formando reconhece a presença de marcas significativas da sua aprendizagem. Estes são sempre seleccionados em função das finalidades das aprendizagens a realizar na formação, sendo, aliás, nesta etapa crucial esclarecer, de preferência por escrito, os juízos críticos que deverão guiar o processo de selecção dos trabalhos a integrar no portefólio. Este procedimento auxilia os formandos na compreensão dos critérios de avaliação e esclarece os formadores sobre a selecção e priorização de informações de retorno e orientação a dar aos formandos. Os trabalhos seleccionados são apresentados, analisados e comentados pelo formador, pelo próprio formando e pelos seus pares. Esta fase, da reflexão, é a que distingue o portefólio de outros métodos avaliativos mais tradicionais. A reflexão sobre a aprendizagem produz-se quando os formandos se auto-avaliam e avaliam os colegas, o que faz do portefólio um instrumento eficaz de amadurecimento e efectivação da aprendizagem propriamente dita. Acabamos de enunciar as duas componentes básicas e essenciais do portefólio: as demonstrações (descritores) das competências adquiridas e as reflexões sobre as competências demonstradas e sobre a prática. É a dimensão reflexiva o aspecto peculiar do portefólio que mais o distingue do tradicional dossiê do formando. Vamos, sintetizadamente, reunir num quadro as principais características do portefólio e do dossiê.

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TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO


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O portefólio e o dossiê

O QUE É?

PORTEFÓLIO

Documento pessoal constituído por produções pedagógicas significativas, diversificadas, e outros instrumentos, pessoais e colectivos, de reflexão sobre as aprendizagens realizadas e competências adquiridas, ao longo de um determinado percurso formativo.

DOSSIÊ

Arquivo de trabalhos, testes e exercícios individuais realizados durante a formação. Apresenta uma perspectiva linear e estática de trabalhos arquivados.

Apresenta uma perspectiva dinâmica e complexa do trabalho pedagógico.

QUEM E QUANDO SE ORGANIZA?

PARA QUE SERVE?

COMO SE ORGANIZA?

Criativamente com um carácter pouco formal. A sua estruturação dever-se-á oferecer à leitura dos propósitos que serve.

Organiza-se de um modo tacitamente assumido, numa perspectiva disciplinar. A acção de arquivo refere-se a todos os trabalhos realizados, é isolada e inconsequente.

A sua organização deve ser negociada entre o formando, formador e grupo de formação e varia conforme a especificidade da acção e natureza do projecto. Exige um trabalho de análise dos materiais produzidos, sendo seleccionados apenas, os mais significativos. Esta selecção exige uma reflexão crítica, sobre o fundamento e interpretação da decisão tendo em vista os objectivos do portefólio. Sistematiza o processo de formação (evidenciando os esforços empreendidos, os avanços operados, as dificuldades superadas), e constitui-se como objecto de avaliação (formativa e sumativa).

Arquivo que tem como intenção central provar a participação do formando numa determinada acção de formação. Os formandos por vezes utilizam o dossiê como mais um elemento de estudo.

Assume um carácter regulador da formação. O formando, ao longo do percurso formativo, através de um trabalho continuado. Por ser um trabalho individualizado, não há dois portefólios iguais.

O formando durante a formação. Muitas vezes, o formador decide a forma como o dossiê deve ser organizado.

TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO

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3. Fases da construção do portefólio Como já referimos, o tipo e o modo de portefólio que se estrutura depende das finalidades que queremos atingir e das características dos grupos envolvidos. Vamos enunciar uma proposta das fases de construção: 1.ª Fase – Conceptualização do portefólio – Apresentação da metodologia aos formandos. – Análise das suas potencialidades e dificuldades. – Tomada de decisão relativamente às finalidades do portefólio, sua configuração global, o(s) seu(s) suporte(s) e cronograma de desenvolvimento. – Estabelecimento dos critérios de avaliação do portefólio. 2.ª Fase – Elaboração e desenvolvimento – Clarificação do objectivo do portefólio. – Calendarização das reuniões de análise do portefólio entre formador e formandos. – Produção e selecção de evidências (devidamente datadas). – Organização (pode ser temática e cronológica) das evidências. – Reflexão crítica sobre cada evidência. – Partilha e discussão com os pares (sendo que as suas opiniões e/ou constatações devem figurar como novas evidências). – Formulação de juízos de valores sobre a progressão das aprendizagens. – Decisões relativas a melhoramentos a realizar. 3.ª Fase – Avaliação – Apresentação pública ou privada do portefólio (a decisão deve ser negociada, tendo em atenção as singularidades dos adultos envolvidos). – Balanço (vantagens e desvantagens) da organização do portefólio no desenvolvimento das aprendizagens do adulto. – Avaliação sumativa do portefólio por referência aos critérios estabelecidos na 1.ª fase, assumindo a forma de um relatório de cariz qualitativo que permita perceber até que ponto o trabalho desenvolvido pelo formando corresponde às finalidades da formação.

3.1. Algumas pistas para a análise da estruturação do portefólio: – Percebe-se, claramente, qual a finalidade do portefólio? – Inclui informações actualizadas? – Há coerência entre a prática demonstrada e as finalidades esperadas? – Há declarações originais, consistentes e acompanhadas de provas? – O portefólio denota desenvolvimento pessoal e questionamentos reconstrutivos? – A documentação utilizada é pertinente?

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TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO


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– As descrições e explanações são válidas? – São claras as evidências de esforços para aperfeiçoar trabalhos? – Que competências são demonstradas? – Existem contínuas evidências de progresso? – As evidências seleccionadas demonstram claramente os objectivos da formação? – A influência do contexto é significativa para as evidências conseguidas? – Até que ponto se conseguiu cumprir o plano de formação previsto? – Quais deveriam ser os objectivos de aprendizagem seguintes para o formando prosseguir a sua aprendizagem?

3.2. Grelha de reflexão crítica Apesar da singularidade ser uma dimensão intrínseca ao conceito de portefólio há uma característica comum: todos os portefólios contêm elementos descritores das evidências significativas das aprendizagens realizadas e competências adquiridas e quanto mais relevante for a prova maior será a valoração do nível do ganho alcançado. O que propomos de seguida é um instrumento de análise crítica que deverá acompanhar e será realizada após a selecção dos documentos que irão integrar o portefólio permitindo sistematizar a reflexão realizada e documentá-la.

TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO

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GRELHA DE REFLEXÃO CRÍTICA

Designação do trabalho seleccionado Síntese do trabalho

Seleccionei este trabalho porque: – Quero compará-lo com outros trabalhos – Manifesta a aquisição de novas competências – Disponibiliza elementos significativos do meu progresso nas aprendizagens – Sinto grande satisfação na sua realização – Foi um desafio que me surpreendeu – Tive muitas dificuldades na sua concretização – Encoraja-me a realizar trabalhos complexos – –

Depois de realizar esta reflexão o que posso dizer das aprendizagens que realizei?

Nome:

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TEXTO 23 PORTEFÓLIO: A MEMÓRIA DE UM PERCURSO FORMATIVO


TEXTO 24 CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO, CONCEPÇÕES CURRICULARES E MODELOS DE INTERVENÇÃO DIDÁCTICA

Angelina Carvalho e Fernando Diogo


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O nosso esforço será o de tentar mostrar a relação existente entre as práticas educativas e as concepções de educação. Porque é sempre possível que as nossas práticas desmintam o ideal educativo que proclamamos – se não estamos atentos às implicações práticas da concepção de educação que perfilhamos –, vamos fazer a aproximação destes dois pólos: a concepção de educação e os modelos de intervenção didáctica que lhes correspondem.

1. A abordagem tradicional da educação: a visão conservadora, o currículo academicista e o ensino centrado no professor e na matéria. Incluindo tendências e manifestações diversas, a abordagem tradicional parte de uma concepção essencialista e dualista do homem (oposição mente-corpo) e da consideração do espírito humano como tábua rasa na qual são impressas as impressões, imagens e informações vindas do exterior (empirismo). Partindo de uma concepção estática do conhecimento e entendendo a actividade mental como capacidade de armazenar informações, atribui ao sujeito-aprendiz um papel passivo na elaboração e aquisição do conhecimento. A ênfase é, pois, colocada nos elementos externos ao sujeito-aprendiz. Supondo uma teoria do homúnculo, que considera o aluno como «adulto em miniatura», parte-se do princípio de que as experiências e aquisições das gerações adultas são condição de sobrevivência das gerações mais novas. Transformando, deste modo, o passado em modelo a ser imitado, conduz àquilo que Paulo Freire denunciou como «educação bancária» (Freire, 1975). Tendendo a reduzir a educação à instrução e à apresentação de modelos de comportamento, concebe-a como um produto. Assim, a escola transforma-se num espaço dominado pela assimetria do eixo do saber e do poder: face à autoridade intelectual e moral do professor que ensina, o aluno, que nada podendo e nada sabendo, recebe tais ensinamentos. Dando prioridade à disciplina intelectual e aos conhecimentos abstractos e assumindo o papel de agência sistematizadora e transmissora da cultura, a escola desempenha também um importante papel de ajustamento social dos indivíduos. Partindo dos pressupostos da possibilidade de transferência geral das aprendizagens (passado-presente-futuro), e que é o poder do intelecto que permite enfrentar o presente com êxito, tal concepção exprime-se num currículo focado na herança cultural, valorizando mais os estudos abstractos do que a experiência directa, verdadeiro repositório da tradição acumulada de conhecimento organizado, o currículo torna-se, no essencial, num corpo de disciplinas e de conteúdos a serem «cobertos» pelos alunos. A educação física, a educação artística e os estudos vocacionais ou estão ausentes ou surgem no currículo com uma importância tão reduzida que diríamos tratar-se de elementos ornamentais de um currículo academicista onde predomina o conhecimento abstracto, dedutivo e compartimentado (isto é, fragmentado em disciplinas). O currículo ignora, pois, interesses e motivações dos alunos, considerados imaturos e, portanto, incapazes de julgar o que é melhor para eles. Coerente com estas concepções de educação e do currículo, a abordagem tradicional põe em prática um modelo de ensino centrado na matéria e no professor, cujos traços essenciais procuraremos resumir de seguida: 1) redução do espaço educativo à sala de aula; 2) pedagogia uniforme que ignora as diferenças individuais (quanto aos conhecimentos prévios, aos ritmos de aprendizagem, etc.);

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TEXTO 24 CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO, CONCEPÇÕES CURRICULARES E MODELOS DE INTERVENÇÃO DIDÁCTICA


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3) ao verbalismo do professor corresponde a memorização do aluno; 4) papel do professor: transmissão dos conteúdos predefinidos, «dando a lição», servindo assim de intermediário entre os modelos culturais e os alunos; embora detenha o poder decisório quanto às metodologias a seguir, à interacção na sala de aula e às formas de avaliação, não tem poder sobre os conteúdos curriculares, que são decididos antes e acima dele, e cujo cumprimento os manuais e os exames visam garantir; 5) papel do aluno: «tomando a lição», o aluno é um receptor passivo, um ouvinte, a quem se pede apenas que repita fielmente os dados e as informações que lhe foram transmitidas; 6) modelo vertical da relação professor-aluno, marcada pelo distanciamento afectivo, pela dependência da turma em relação ao professor e pela reduzida interacção entre os alunos; 7) a didáctica: tomando a turma como um auditório, o professor expõe a matéria e procede a demonstrações que os alunos escutam e acompanham; 8) a motivação: é extrínseca; manter o aluno interessado e atento fica a depender das características pessoais do professor, uma vez que a relação dos conteúdos com o contexto de aprendizagem e com os interesses dos alunos é, por definição, considerada indesejável porque prejudicial aos objectivos da educação, tal como são entendidos nesta perspectiva.

2. A abordagem comportamentalista da educação: a visão eficientista, o currículo como sistema tecnológico de produção e a pedagogia por objectivos Fruto do cientismo, esta abordagem considera o homem como produto do meio, isto é, uma consequência das influências ou forças que, vindas do seu meio ambiente, sobre ele se exercem. Este «ambiente controlador» (Skinner, 1973) é uma realidade objectiva da qual depende o comportamento humano. Assim, a alteração do comportamento humano exige a alteração prévia das características e elementos do ambiente externo. O conhecimento é, ele próprio, resultado directo da experiência (empirismo). À educação compete fazer a transmissão cultural: de conhecimentos, padrões de comportamento, práticas sociais e habilidades que se consideram básicas para habilitar o indivíduo à manipulação e controlo do seu meio ambiente cultural, social e físico. A decisão acerca de quais devem ser esses conhecimentos, padrões, práticas e habilidades não pode nem deve ser tomada pelos agentes directos das situações particulares de ensino-aprendizagem, uma vez que tal decisão se relaciona com o planeamento social. De facto, a educação deve ser orientada para produzir mudanças nos indivíduos, o que implica a aquisição de comportamentos novos, tanto como a modificação dos comportamentos já existentes. Mas tais mudanças devem ser cientificamente planeadas, no sentido de corresponderem ao que é considerado útil e desejável pela sociedade. Assim, não cabe à escola tomar decisões deste tipo; a escola, como instituição social especializada na educação das jovens gerações, cumpre um mandato com objectivos sociais, decididos pelas agências que detêm o poder de controlo do sistema social. Convém notar que, desta forma, se retira da escola a discussão à volta de «ensinar o quê», reservando-lhe apenas a tarefa de decidir o «como ensinar». Daí que a escola, liberta da problemática essencial da TEXTO 24 CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO, CONCEPÇÕES CURRICULARES E MODELOS DE INTERVENÇÃO DIDÁCTICA

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educação, deveria preocupar-se exclusivamente com a eficiência (o melhor resultado com o menor custo) e a eficácia (grau de consecução dos objectivos perseguidos) da sua acção. O currículo como sistema tecnológico de produção resulta dos esforços de aplicação à escola do «controlo científico», já aplicado à indústria, nomeadamente por Taylor. As correntes behavioristas e a análise sistémica de tipo funcionalista são as representantes desta orientação que, colocando a ênfase na necessidade de eficácia do acto educativo, recomendam um planeamento pormenorizado, a definição de metas precisas e o uso preferencial de medidas quantitativas. Pedagogia, educação e ensino tendem a ser identificados com métodos e tecnologia educativa. De tais considerações, que apontam para uma racionalidade estrita meios-fins, resulta um modelo de intervenção didáctica centrado nos objectivos cujos traços essenciais resumiríamos da seguinte forma: 1) a planificação assume um papel central: uma vez que a aprendizagem, definida como modificações observáveis do/no comportamento do aluno, resulta da resposta a estímulos observáveis, é fulcral que o professor: a) defina com exactidão os objectivos finais da aprendizagem em termos de resultados esperados e directamente observáveis; b) especifique os objectivos pretendidos numa sequência correcta de objectivos intermédios e «comportamentais»; c) prevê já com exactidão os estímulos a apresentar ao aluno, as reacções deste, as contingências de reforço, etc.; 2) o mais importante no professor é a sua habilidade técnica, a «engenharia comportamental», isto é, um domínio das metodologias e técnicas de ensino tal que garanta a aprendizagem dos alunos com a maior economia de tempo, esforços e custos; 3) o predomínio de muito pequenas unidades de ensino de forma a permitir um melhor condicionamento do aluno; 4) evitar o erro, ignorá-lo ou puni-lo sempre que surja; 5) dar conhecimento aos alunos dos resultados obtidos (reforço); 6) manipular o arsenal de recompensas e punições; 7) a didáctica assenta fundamentalmente nos exercícios de repetição, demonstrações de actividades a imitar pelos alunos, ensino individualizado de tipo programado.

3. A abordagem humanista da educação: as visões romântica e interior, o currículo como conjunto de experiências e o ensino centrado no aluno Remontando a Rousseau, a visão romântica tem como pressupostos básicos as ideias do desenvolvimento natural e da bondade inata da criança que se contrapõe a uma visão da sociedade como conspiração do mal, corrupta e repressiva. A tarefa da educação consiste em favorecer o desenvolvimento livre da criança, cujas necessidades, espontaneidade e actividade não devem ser esmagadas pelo mundo da racionalidade científica, antes devem ser tomadas como propiciadoras de ocasiões para uma aprendizagem eficaz.

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Partindo de críticas inteiramente justificadas à educação tradicional, que acusam de antinatural por recusar à criança o direito de ser criança com os seus métodos coercivos e autoritários. Esta visão acaba por cair num certo anticulturalismo que conduz à preferência pela educação acidental e à defesa da desnecessidade de um currículo formal. Centrado no aluno, o currículo deveria criar uma atmosfera de liberdade propícia ao seu livre crescimento, o que é considerado incompatível com a existência de um currículo planeado por centros de decisão externos ou internos à escola. O professor assumiria um papel de guia ou facilitador da aprendizagem, cujo conteúdo advém das experiências do aluno. A visão interior, filiando-se na filosofia existencialista, define como principal tarefa da educação ajudar o aluno a encontrar-se a si próprio. Ou seja, a educação deve acima de tudo visar o autodesenvolvimento e a auto-realização do aluno. Sendo o homem, como dirá Carl Rogers, «arquitecto de si mesmo», compete à escola respeitar esse primado do sujeito-aluno: a responsabilidade da educação é do próprio educando; à escola e ao professor compete apenas criar as condições que facilitem a auto-aprendizagem do aluno, condição do seu desenvolvimento intelectual e emocional. O desenvolvimento da personalidade do aluno, dos seus processos de construção e organização pessoal da realidade, da sua capacidade de acção, da sua vida emocional, do seu autoconceito, da sua capacidade e relacionamento interpessoal, são os aspectos enfatizados. Tornar os alunos pessoas livres e auto-responsáveis, capazes de tomar decisões e resolver problemas, implica valorizar as relações interpessoais e dar mais importância aos processos que aos produtos. Considerando a experiência pessoal e subjectiva como fundamento do processo de construção do conhecimento, defende-se, pois, que o acesso ao conhecimento é pessoal, pelo que ou o aluno participa activamente na elaboração do conhecimento ou pura e simplesmente não adquire nenhum. Daí que o processo de ensino se centre no aluno e se defenda a não-directividade como método. Tentando conjugar as duas perspectivas expostas, diríamos que o modelo de intervenção didáctica assentaria nos seguintes aspectos: 1) Relacionar os conteúdos do ensino com as necessidades, as experiências e os interesses dos alunos. 2) A actividade investigativa do aluno é o motor da sua aprendizagem. 3) Os aspectos cognitivos da aprendizagem não devem ser dissociados dos aspectos volitivos, afectivos e relacionais. 4) Criar situações de aprendizagem consiste em favorecer a autodescoberta do aluno. 5) A responsabilidade pela aprendizagem pertence ao aluno, o que implica a sua participação nas decisões acerca dos conteúdos a tratar. 6) O professor não «ensina»: é apenas um facilitador da aprendizagem e um recurso à disposição dos alunos. 7) Mais do que de um reportório de estratégias de ensino, o professor deve desenvolver as competências de relacionamento com o aluno: autenticidade, empatia, aceitação e compreensão do aluno, congruência. 8) A relação pedagógica e o clima da sala de aula são os factores decisivos do êxito: a aprendizagem só acontece se na aula existir um clima social favorável ao desenvolvimento e à liberdade para aprender do aluno.

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4. A abordagem sociocrítica da educação: as visões progressivas, o currículo como conjunto de experiências e o ensino centrado nos modos de pensamento Considerando que à educação compete não apenas a transmissão cultural mas também libertar as potencialidades dos alunos e contribuir para uma cidadania esclarecida, as visões progressivas assentam numa visão dinâmica do conhecimento e numa concepção do homem como totalidade bio-psico-social. Neste momento, interessam-nos sobretudo aquelas perspectivas que acentuam as preocupações com o social e que ficaram conhecidas por teorias do Reconstrucionismo Social. Nestas se assume que compete à educação contribuir para a construção de uma nova ordem social que os problemas do mundo contemporâneo (guerras, pobreza, criminalidade, desemprego, etc.) exigem. Sublinhando que qualquer tipo de educação implica imposição ideológica, afirmam que o currículo deve estar directamente ligado às transformações do mundo actual para que as novas gerações adiram aos objectivos do ensino e desenvolvam os meios necessários à reconstrução social. A formação de pessoas críticas, participativas e empenhadas na mudança social é o objectivo central. Estudando as variáveis que incidem na elaboração e na aplicação do currículo, dão particular importância ao currículo oculto e ao contexto da acção educativa. Do ponto de vista da aprendizagem, colocam a ênfase na necessidade de significação do conhecimento e da sua construção por parte do aluno. O conhecimento educativo deve ter um carácter instrumental: servindo para resolver problemas, as suas conclusões são testadas pela sua aplicação. Considera-se o pensamento ligado à acção. Defendendo a necessidade de o professor assumir um compromisso social e político, e do trabalho em equipa de modo a trocarem ideias, problemas e experiências, esta concepção implica um modelo de intervenção didáctica em que: 1) as características do contexto da acção educativa são a chave da estruturação do processo de ensino-aprendizagem, o elemento nuclear em função do qual se definem os restantes elementos e a sua configuração: é o ambiente ecológico que determina os resultados e os processos; 2) o professor é um investigador: investigador social no sentido de compreender e comprometer-se com a realidade; investigador educacional no sentido de reflectir sobre a sua prática e procurar as formas de adaptá-la de forma criativa e crítica às características do contexto da sua acção, de maneira a potenciar a aprendizagem dos alunos e a mudança social; 3) o professor gere, através da negociação, a dinâmica da turma; 4) deve ser criado na turma um clima social positivo em que a cooperação entre os grupos de alunos potencie a aprendizagem de cada um; 5) as actividades da aula devem contribuir para desenvolver a autonomia de pensamento do aluno e o seu sentido de responsabilidade social;

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5. A abordagem cognitivista da educação: as visões progressivas, o currículo como reconstrução do conhecimento e o modelo da aprendizagem significativa A abordagem cognitivista é predominantemente interaccionista: o homem é um sistema aberto, sujeito a reestruturações sucessivas, e o seu processo de desenvolvimento consiste num processo de adaptação ao meio. É ao longo deste processo que o homem, aumentando o seu controlo sobre o meio, modifica o meio e se modifica a si mesmo. O conhecimento é uma construção contínua. Considerando a educação como condição necessária ao desenvolvimento do ser humano, acentua-se que a sua finalidade consiste não na transmissão de verdades e modelos mas sim em desenvolver a autonomia intelectual do aluno levando-o a aprender por si próprio. E porque se considera o desenvolvimento como um processo interno à pessoa, define-se que o fundamental na educação são os processos e não os produtos da aprendizagem. A educação aparece-nos, pois, como articulando os conteúdos culturais com os processos de desenvolvimento individual. Nesta perspectiva se situa Ausubel (1980), que salienta que a organização e sequenciação dos conteúdos deve fazer-se de acordo com os princípios que regem a formação e desenvolvimento da estrutura cognoscitiva: a) organizar os elementos do conteúdo segundo um esquema hierárquico e relacional (dos mais gerais para os mais específicos salientando as suas inter-relações e dando exemplos concretos); b) partir dos conteúdos mais gerais, passar pelos intermédios e chegar aos mais específicos, mas fazendo ciclicamente uma apresentação do conjunto de modo a promover a sua integração e dar relevo às diferentes inter-relações (semelhança, diferença, coordenação, subordinação, etc.). Tal procedimento consiste em seguir as leis da aprendizagem e da retenção significativa que Novak (1988) resume assim: a) todos os alunos podem aprender significativamente um conteúdo desde que a sua estrutura cognoscitiva disponha de conceitos relevantes, amplos, gerais e estáveis (conceitos inclusores); b) os conteúdos ordenam-se dos mais gerais para os específicos, salientando as suas inter-relações e apresentando exemplos concretos. Estabelecem-se assim as hierarquias conceptuais. Quanto à questão dos métodos de ensino é preciso, segundo estes autores, ter em conta: a) o desenvolvimento operatório dos alunos; b) os seus conhecimentos prévios pertinentes; c) que a verdadeira individualização do ensino consiste na individualização dos métodos de ensinar; d) que numa perspectiva cognitivista, os métodos de ensino e a ajuda pedagógica devem respeitar a concepção construtivista da aprendizagem e o princípio da globalização.

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O modelo de intervenção didáctica decorrente desta abordagem estrutura-se em torno das seguintes ideias-chave: 1) o processo de ensino-aprendizagem deve basear-se na actividade do aluno: no ensaio e no erro, na pesquisa, na investigação, na solução de problemas por parte do aluno; 2) a actividade em grupo deve ser incentivada: porque cada membro do grupo apresenta uma faceta diferente da realidade, a actividade em grupo tem um efeito integrador; 3) cabe ao professor criar situações, propor problemas, provocar desequilíbrios, fazer desafios aos alunos e não dar-lhes soluções: orientando o aluno e coordenando as actividades da turma, deve levar o aluno a trabalhar o mais independentemente possível; 4) o aluno deve ter um papel essencialmente activo: observar, experimentar, analisar, comparar, relacionar, levantar hipóteses, argumentar, procurar materiais, etc.

In, Carvalho, Angelina e Diogo, Fernando, Projecto Educativo, Porto, 1994, Ed. Afrontamento, pp. 91- 102

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TEXTO 25 SENTIDO DO PROJECTO*

John Dewey

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John Dewey, Expérience et éducation, Paris, A. Colin, 1968, pp. 117-123.


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É com convicção que identificamos liberdade com o poder de conceber projectos, de os traduzir em actos. Esta liberdade é, por sua vez, idêntica ao autocontrolo, porque a concepção dos fins e a organização dos meios são um trabalho da inteligência. Outrora, Platão definia o escravo por estas palavras: «Aquele que executa os projectos concebidos pelos outros», e, como acabamos de dizer, não é menos escravo a pessoa submetida aos seus próprios desejos se eles forem cegos. Penso que não há, na filosofia de uma educação progressista, disposição mais adequada que a importância atribuída à participação do educando na concepção dos projectos que inspiram as suas actividades, no decurso do ensino que lhes ministramos. E também não há, na educação tradicional, defeito mais grave que tornar o educando incapaz de cooperar activamente na construção dos projectos intelectuais que os seus estudos implicam. Mas a significação dos objectivos e das finalidades não é coisa evidente. Quanto mais insistimos sobre o seu valor educativo mais importante é compreendermos o que é um projecto, como surge no decurso da experiência e como funciona. Um autêntico projecto encontra sempre o seu ponto de partida no impulso do educando. A brusca inibição dum impulso transforma-o em desejo. Todavia, e é preciso insistir nisso, nem o impulso nem o desejo realizam um projecto. O projecto supõe a visão de um fim. Implica uma previsão de consequências que resultariam da acção que se introduz no impulso inicial. A previsão das consequências implica, ela mesma, o jogo da inteligência. Esta exige, em primeiro lugar, a observação objectiva das condições e das circunstâncias. Porque impulso e desejo produzem consequências, não por elas mas pela sua interacção e cooperação com as condições envolventes. O impulso para uma acção tão simples como a marcha não pode exercer-se sem estar em conjunção activa com o chão. Normalmente, não prestamos atenção a isso; mas quando o chão é irregular, é preciso observar atentamente os acidentes do terreno como, por exemplo, ao subirmos uma montanha agreste e escarpada sem indicação de pistas. Para transformar o impulso em projecto, a observação torna-se indispensável. Tal como ao sinal que, na planície, nos adverte da passagem do comboio, é preciso parar, olhar, escutar... Mas só observação não basta. É preciso compreendermos a significação do que se vê, do que se ouve e do que se toca. Esta significação resulta das consequências que decorrem da acção em que nos empenhámos. Um bebé pode ver a luz duma chama e desejar alcançá-la. A verdadeira significação da chama, neste caso, não é a luz, mas o seu poder de queimar o bebé, consequência do contacto que ele procura. Só através de experiências anteriores podemos antecipar prudentemente as consequências. Nos casos que se nos tornaram familiares por numerosas experiências, já não temos necessidade de parar para nos lembrarmos do que foram essas experiências: chama, para nós, significa luz e calor, sem termos necessidade de nos referirmos expressamente a recordações pessoais de queimadura. Mas, em casos excepcionais, é difícil dizer exactamente, a partir das condições observadas, quais poderão ser as consequências, a não ser que se relembrem experiências passadas, que se reflicta nessas experiências, se compreenda a semelhança com a situação presente e que não se formulem juízos sobre o que se pode esperar dela.

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Daí que a formulação de um projecto seja uma operação intelectual bastante complexa. Ela implica: 1.º – A observação das condições oferecidas pelo meio ambiente. 2.º – O conhecimento do que foi possível produzir no passado em situações semelhantes, conhecimento feito pela lembrança e pela informação, os conselhos, as advertências daqueles cuja experiência é mais rica. 3.º – A avaliação que sintetiza observações e recordações para delas se tirar a significação. Um projecto difere dum primeiro impulso e dum desejo pelo trabalho que supõe, trabalho de elaboração segundo um plano e um método de acção baseado na previsão das consequências em dadas condições e numa certa direcção. «Se os desejos fossem cavalos, não faltariam cavaleiros.» O desejo duma coisa pode ser intenso. Pode ser tão intenso que despreze a avaliação das consequências que determinariam a sua realização. Não serão nunca estes movimentos infundados que fornecerão um modelo à educação! O problema crucial consiste em fazer com que a acção, em lugar de seguir imediatamente o desejo, seja diferida até que a observação e a avaliação tenham podido interferir. Salvo erro, este comentário aplica-se exactamente às escolas novas. Se nos contentarmos em dizer que a actividade é, em si, um fim, em lugar de especificar que é uma actividade inteligente, rapidamente se identificará a liberdade com a imediata realização dos impulsos e dos desejos. Esta identificação provém de uma confusão grave entre impulso e projecto; o que não impede, de resto, que não possa haver projecto se a acção não for diferida até que sejam previstas as consequências práticas do impulso – previsão que é impossível sem a observação, informação e avaliação. É claro que a própria previsão, nesta matéria, não basta. A antecipação intelectual, a ideia de consequência, devem misturar-se ao desejo e ao impulso para adquirirem uma força de actualização. É ela que imprime uma direcção lúcida ao que, de outra forma, seria cego, enquanto que o desejo, por sua vez, dá impulso e movimento à ideia. Então a ideia torna-se plano no interior da actividade que se pretende promover. Suponhamos, por exemplo, alguém que, para assegurar a sua habitação, constrói uma casa. Não importa a força do seu desejo, pois este não poderia ser satisfeito imediatamente. É preciso que especifique o tipo de casa que deseja, o número e a disposição dos compartimentos, etc., que faça o esquisso duma planta, que dê todos os pormenores necessários, etc. E tudo isto poderia não passar de um agradável passatempo se não conhecesse as suas condições económicas. É preciso, pois, que se dê conta da relação entre a sua disponibilidade financeira, as suas possibilidades de crédito e a execução do projecto desejado; que procure e observe terrenos, que saiba o preço, a distância em relação ao seu trabalho, a situação na vizinhança, as facilidades escolares para as crianças, etc., etc... Este conjunto de condições corresponde a outros tantos factos objectivos. Não fazem parte do desejo inicial. Mas é indispensável que se tornem objecto de exame e de avaliação antes que o desejo se converta em projecto e o projecto em plano de acção.

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Todos nós temos desejos – a não ser que sejamos completamente apáticos, o que é patológico. Estes desejos são os primeiros motores que põem a acção em movimento. Um homem de negócios tem o desejo de ser bem sucedido, um general tem o desejo de ganhar a batalha, um pai deseja uma casa confortável para a família, uma boa educação para os filhos, etc. A intensidade do desejo mede a intensidade do esforço que poderá ser espontaneamente fornecido. Mas os desejos não passam de castelos no ar se não se traduzirem em acção. A questão dos meios de acção substitui-se, pois, à do fim projectado, ainda completamente imaginário, e como os meios são objectivos, é preciso estudá-los antes de formular um projecto consistente. Uma das tendências da escola tradicional é ignorar o valor do impulso e do desejo pessoais como motores da acção. Mas isso não justifica de forma alguma a confusão que […] se poderia fazer entre o impulso, o desejo e o projecto, e que o indivíduo poderia fazer entre a negligência de toda a observação atenta, de toda a documentação ampla e de toda a avaliação. O aparecimento de um desejo e de um impulso não são nunca o fim supremo de um esquema educativo, mas a ocasião e o recurso dum plano e dum método de acção e o estímulo para os realizar… Ainda uma vez mais: só podemos formar este plano pelo estudo das condições objectivas e pela aquisição de documentação adequada. O educador deve aperceber-se da ocasião e estar atento. Uma vez que na elaboração não há observações e avaliações inteligentes sem o recurso à liberdade, a direcção que o educador imprime à inteligência dos educandos é um instrumento da sua liberdade e não um obstáculo. […] Não é impossível, é certo, que se abuse, e que se oriente a actividade do educando por caminhos que exprimem mais o projecto do educador que o dos educandos. Para não cair neste perigo é preferível abster-se. O verdadeiro método pedagógico consiste, primeiro, em tornarmo-nos inteligentemente atentos às aptidões, às necessidades, às experiências vivenciadas pelos educandos e, em segundo lugar, em desenvolver estas sugestões de base, de tal forma que elas se transformem num plano ou num projecto que, por sua vez, se organize num todo assumido pelo grupo. Por outras palavras, o plano é um empreendimento cooperativo e não ditatorial: a sugestão do educador não deve evocar a ideia de um molde para fundir objectos duros, pesados e inertes, mas a de um ponto de dilatação susceptível de se transformar num todo ordenado pelas contribuições de todos aqueles que se empenham em comum na mesma experiência educativa. É graças a uma troca recíproca do educador e dos educandos que se faz este crescimento, o educador recebe mas não tem medo de dar. O ponto essencial a reter é que o projecto cresce e toma forma graças a um processo de inteligência socializada.

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Carlos Alberto Torres et al., in Educação e Democracia: Paulo Freire, movimentos sociais e reforma educativa (adaptado)


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O processo de apropriação do conhecimento e de aquisição de competências pelo educando deve permitir-lhe aprender a pensar em ordem a formular hipóteses, dominar a informação, transformar e construir conceitos e criar interpretações. Para o conseguir, a formação não pode negligenciar [ou menosprezar] o saber que o formando traz. Pelo contrário, a validação e a consideração da sua experiência social, cognitiva, afectiva e cultural deve constituir o ponto de partida para o trabalho pedagógico, para avançar para além dessa experiência e não para a renegar. Ignorar ou renegar a experiência do educando torna difícil a sua intimidade com o novo conhecimento e resulta na sua reverência pelo formador e pela formação, construindo-se, a partir desse ponto, uma relação de poder na qual o conhecimento e as competências se tornam mais num instrumento de competição do que de cooperação.

Tema gerador de Vida e o currículo No pressuposto do esquema teórico do desenho curricular está o modelo freireano de problematizar a pedagogia e o seu conceito de Tema de Vida (gerador). Freire desenvolveu o conceito de tema gerador no início dos anos 60, durante o seu trabalho com adultos pré-alfabetizados no Nordeste brasileiro rural. Este conceito foi de certo modo reformulado para o sistema urbano, formal e de formação de massas, envolvendo os primeiros graus de ensino. O conceito do tema gerador é apresentado desta forma aos educadores: [...] o tema gerador [...] é um caminho para atingir o saber, compreender e intervir criticamente numa determinada realidade estudada [...] Pressupõe uma metodologia que acredita no crescimento do indivíduo através do trabalho colectivo, da discussão, da problematização, da interrogação, do conflito e da participação na apropriação, construção e reconstrução do saber [...] É o ponto de encontro interdisciplinar para todas as áreas do conhecimento. Os temas geradores baseiam-se em situações da vida real, nos problemas e nas preocupações dos formandos. Na formação, os temas geradores são os tijolos para a construção de um currículo localmente relevante que, ao mesmo tempo, relacione a realidade local com um largo leque de problemas individuais, comunitários e sociais que vão desde o relacionamento dentro da formação aos transportes públicos, passando pela poluição do ar e da água numa cidade industrial. Representa, assim, um esforço para tornar o currículo mais relevante para os formandos com menos recursos, enquanto que trabalha para educar cidadãos críticos e participativos. Ao mesmo tempo, o tema gerador talvez represente um dos mais problemáticos e controversos elementos de um projecto curricular inovador. De facto, desde que se iniciaram as reuniões de delineação política com especialistas das universidades surgiu um intenso debate, que persistiu ao longo de toda a experiência,

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acerca da exequibilidade de se organizar, em torno de um único tema gerador, um currículo para o nível de educação básica. Estas preocupações, juntamente com a posição político-pedagógica assumida pelos responsáveis pela criação do projecto, acabaram por os levar a entrar num processo de reavaliação do currículo e da forma como ele se estava a desenvolver. Com efeito, a reavaliação do currículo, entendida numa perspectiva abrangente, pode possibilitar a selecção e gestão das competências que, em última análise, tem sempre lugar numa formação que resulte de um processo consciente no qual se combinam acção e reflexão [...]. Ao construir e desenvolver o seu próprio currículo, numa perspectiva dialógica que também transforme a comunidade num objecto de investigação, a formação só pode enriquecer o nível operatório da experiência. Elaborou-se, portanto, um processo para identificar os temas geradores que mantivessem a integridade das suas finalidades e objectivos, ao mesmo tempo que não deixassem de responder às preocupações de alguns dos seus executantes. Como passo inicial na implementação do projecto, a comunidade formativa, apoiada por uma equipa de EFA, dedica-se a um levantamento preliminar ou estudo da realidade para encontrar as «situações significativas», isto é, circunstâncias sociais, culturais e políticas da vida diária dos formandos que constituem a sua «experiência de vida». As «situações significativas» resultam das fragmentárias experiências individuais vividas pela comunidade, que realçam o individual sobre o colectivo, e daí oferecerem explicações ou soluções circunscritas para os fenómenos sociais a que fazem referência. As «situações significativas» são as que frequentemente surgem no discurso da comunidade e, portanto, representam uma dimensão colectiva, em contraste com a experiência estritamente individual. Podem mesmo reflectir um certo grau de sistematização e organização ao nível do «conhecimento popular», permitindo a sua ligação a outros conceitos partilhados que podem não necessariamente aparecer na altura da investigação preliminar. O corpo docente de uma formação colige dados para este Estudo da Realidade de uma comunidade de formação, através de uma variedade de métodos, incluindo observação, entrevistas, conversas informais e inquéritos. A partir destas «situações significativas», os formadores trabalham em conjunto para encontrar um tema gerador diferente em cada ciclo de formação, que todas as áreas utilizarão como base da formulação de um currículo interdisciplinar. Os temas geradores, uma vez encontrados, indicarão o conteúdo académico pertinente. Isto origina uma nova abordagem de selecção da cultura, ditada não pela inércia ou pela tradição, mas com base nas necessidades. Esta fundamentação na realidade dos formandos permite uma abordagem interdisciplinar ao conhecimento universal sistematizado que, tradicionalmente, a formação está encarregue de trabalhar, encorajando, ao mesmo tempo, a construção de novos conhecimentos sobre os interesses dos grupos populares. Assim, o tema gerador é um meio através do qual podem ocorrer tanto a apropriação como a construção do conhecimento. Cada área de conhecimento, por seu turno, contribui

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para o processo de aprendizagem com tópicos específicos que têm a ver com o tema gerador descoberto, fundado no entendimento da realidade pela própria comunidade. Este Estudo da Realidade, portanto, pretende ser um primeiro passo para envolver educadores e educandos num processo de leitura crítica do seu mundo e deve fazer parte de um esforço contínuo no sentido de «estudar e aproximar situações concretas do conhecimento que pode explicar [essas situações] e ajudar a superá-las».

Conhecimento e o currículo interdisciplinar Fulcral para o projecto curricular é o conceito de integração, ou seja, a utilização de uma abordagem interdisciplinar à organização e produção do conhecimento. Este conceito orientador teve importantes ramificações para a reorientação do currículo. O carácter inovador do projecto reside, precisamente, no facto de conter em si a ligação do conceito freireano da construção colectiva do conhecimento – no sentido de uma consciência transformadora através da troca dialógica – com a ideia de que se atinge melhor a compreensão da realidade através de uma abordagem interdisciplinar para a organização do conhecimento no currículo, no contexto formal da formação do ensino básico. A interdisciplinaridade refere-se ao conceito de que o currículo não deve dividir o conhecimento em disciplinas separadas, mas que todo o conhecimento está inter-relacionado. Especificamente no que ao projecto curricular diz respeito, defende-se que um modelo como este de currículo interdisciplinar baseia-se nos fundamentos teóricos da interdisciplinaridade e evoluem sustentados pela experiência prática da formação. O fulcro do currículo interdisciplinar proposto foi uma vez mais fornecido por Freire. O seu conceito de tema gerador como base do desenvolvimento de uma praxis educativa libertadora no contexto da alfabetização de adultos foi repescado e remodelado para a formação/formação, surgindo o currículo interdisciplinar em torno do Tema de Vida/tema gerador. Um dos aspectos que distinguem o Projecto é o facto de propor um processo de planificação curricular que tem por base o seguinte princípio: «as várias ciências devem contribuir para o estudo de certos temas [geradores] que orientam todo o trabalho da formação». Neste aspecto, introduziu-se o currículo interdisciplinar através do tema gerador como factor de mediação deste processo de troca de conhecimentos. Ele fornece uma espécie de fulcro unificador no esforço do educador, no sentido de encontrar nexos com áreas específicas de conhecimento e um equilíbrio entre o geral e o específico num diálogo que de outro modo não teria rumo. Nas palavras de um investigador universitário e especialista do domínio: O projecto de interdisciplinaridade não se fica meramente pela «crítica da formação», mas pressupõe mudanças que têm que ver com uma conceptualização mais lata do ensino, da formação e da relação

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entre as áreas da ciência e o conhecimento. Um dos princípios fundamentais dessa conceptualização consiste em levar o formando a aperceber-se das ligações existentes entre as diversas áreas ou disciplinas do saber. No cerne do projecto está, portanto, a ideia de que a aprendizagem não é um bloco monolítico a distribuir em pedacinhos pelos formandos (conteúdos compartimentados), mas é um todo que se constrói através da contínua interacção professor-formando. Pressupõe uma nova organização epistemológica do conhecimento, colectiva e historicamente construído e reconstruído, nunca encerrado ou acabado. A intenção é criar um currículo que vá para além de uma abordagem enciclopédica da organização do conhecimento, como genérico e especializado, divorciado das formações sociais humanas, da história e da cultura, para uma que facilite a interpretação interdisciplinar da realidade de uma forma que mais adequadamente trate a «complexidade social-natural», trabalhando para aquilo que Faundez considera a «substituição de uma ciência fragmentada por uma ciência unificada.» Esta luta constante para ultrapassar as contradições entre as diversas áreas de conhecimento e de competências permite uma macro-visão dos homens e mulheres no mundo e, em última análise, aponta para uma compreensão ontológica interdisciplinar do estar e actuar no mundo por parte dos homens e mulheres. Uma corrente teórica importante subjacente a esta abordagem interdisciplinar consiste na ideia de um novo paradigma curricular que incorpore a teoria crítica no desenvolvimento de uma «ciência crítica do currículo». Nesta abordagem interdisciplinar, a construção do currículo difere extraordinariamente do conceito-padrão interdisciplinar de minimizar simplesmente as fronteiras rígidas entre as disciplinas; aponta, antes, numa perspectiva crítica, para a forma como se produz o conhecimento na sociedade e como este processo pode contribuir tanto para reproduzir meramente relações de poder, como para a criação de novos conhecimentos e para a transformação da sociedade. Deste modo, embora o projecto tente afastar os formadores da prática tradicional de isolar as disciplinas, não deixa de respeitar a especificidade de cada área de conhecimento. Daí que, de uma perspectiva crítica, as diversas áreas de conhecimento sirvam como pontos de referência num processo de investigação contínuo e colaborativo em torno de um tema particular de relevância histórico-social. Cada área disciplinar específica tem, portanto, um papel importante no processo de planificação do currículo e para contribuir para uma visão «multifacetada» de toda a realidade. Nesta linha, os textos fornecidos aos educadores rejeitam explicitamente o conceito estático de conhecimento. Esse conceito está incorporado naquilo que Freire identificava como o método «bancário», no qual se considera o conhecimento como um objecto definido de transmissão linear de educador para educando. Em vez disso, propõe-se o conceito de conhecimento não como «uma simples cópia ou descrição de uma realidade estática» mas como uma contínua evolução a partir do contexto histórico da vida social quer do educador, quer do educando. A educação é, portanto, «um permanente acto dinâmico de conhecimento centrado na descoberta, análise e transformação da realidade por aqueles que a vivem».

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Para além destes princípios gerais, não se pode pretender uma abordagem definitiva para a criação de um currículo interdisciplinar. Prefere considerar o projecto em constante estado de evolução e procura gradualmente afinar o modelo, com base na actividade educativa da formação que se vai experimentando e no trabalho teórico em curso.

Diálogo como pedagogia As equipas responsáveis têm de desafiar abertamente os formadores para «actos de coragem: trabalhar num projecto de natureza interdisciplinar que pressupõe uma disposição física e intelectual para ler, investigar, ouvir, discutir, ensinar e aprender; e que também pressupõe uma disposição para o diálogo; e que não esconde críticas, autocríticas, tensões, conflitos, mas procura lidar com eles constantemente». O diálogo surge, portanto, como uma característica primordial do esforço de mudança. Estabelecer esta abordagem dialógica para a formação indica a sua preferência pela aprendizagem activa em oposição à passiva, como se exemplifica no conceito freiriano de educação para a consciência crítica. Na verdade, o método dialógico da prática educativa, totalmente definido no corpo teórico da obra de Freire e na história das experiências de abordagens freirianas de alfabetização em todo o mundo, é uma pedra basilar nesta experiência. Neste aspecto, os principais responsáveis políticos promovem firmemente a ideia de que as relações dialógicas deveriam transformar-se no modus operandi do sistema de formação regional, desde os responsáveis até à sala de formação. Ao nível da administração, o diálogo é visto como o meio de desenvolver relações mais democráticas entre os actores educativos envolvidos e como uma metodologia para empenhar dirigentes, mediador, formadores, formandos e comunidade num processo colectivo de troca de conhecimentos e construção de saber. Na sala de formação, «o estabelecimento da dialogicidade (ou uma natureza dialógica) nas relações entre formandos e formadores pode permitir o estabelecimento de ligações e eixos entre o novo conhecimento que se pretende que seja apropriado e aquele que o educando traz como sua bagagem própria». Donde, dentro do modelo freiriano que a formação adopta, o formando é considerado um sujeito, em oposição a um objecto (mero receptor) num processo de saber, e o currículo organizado de tal forma que evite a falsa dicotomia entre teoria e prática e a fragmentação do conhecimento em disciplinas artificialmente distintas. Metodologicamente, portanto, os formadores utilizariam as estratégias pedagógicas da interacção dialógica professor e formando e a aprendizagem cooperativa entre os formandos. Isto representa uma abordagem particularmente complexa da educação, dada a densidade e a diversidade social – cultural – política dos meios populares urbanos ou rurais. O acto de empenhar no diálogo é descrito como «navegar num mar de semelhanças suficientes para estabelecer uma comunicação de suficientes diferenças, num esforço para evitar repetirmo-nos uns aos outros num diálogo que se transforma em monólogo».

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O diálogo como pedagogia requer, nesta perspectiva, uma predisposição da parte do educador para abandonar o seu estatuto de único detentor do conhecimento e reconhecer a validade das posições e percepções dos outros sujeitos envolvidos num determinado contexto educativo. A função do educador é, portanto, assegurar um espaço interactivo para que surjam e se desenvolvam na sala de formação discursos em confronto. Ira Shor descreve correctamente os aspectos práticos de uma pedagogia dialógica numa perspectiva freiriana: O diálogo é simultaneamente estruturado e criativo. É iniciado e conduzido por um professor crítico, mas é democraticamente aberto à intervenção dos formandos. Co-desenvolvido pelo professor e pelos alunos, o diálogo não é nem uma conversa informal nem uma troca de ideias dominada pelo professor. Equilibrar a autoridade do professor e as achegas dos formandos constitui a chave para tornar o processo crítico e democrático. Os educadores dialógicos fornecem aos alunos uma estrutura aberta em que estes se desenvolvem. Esta abertura inclui o seu direito de questionar o conteúdo e o processo do diálogo, e mesmo de o rejeitar.

Consequentemente, isto significou uma mudança radical na relação hierárquica professor/formando. No entanto, tinha também um objectivo pedagógico específico relacionado com a ênfase do Interprojecto na construção social do conhecimento e na desejável intersecção do universo do conhecimento sistematizado com o domínio do conhecimento popular. Como se desenvolverá em próximas secções, o Projecto garantia igualmente oportunidades para os próprios educadores trocarem constantemente experiências de formação, através do diálogo entre eles, aprendendo, portanto, também uns com os outros (i.e., grupos de formação, oficinas, conferências). Com efeito, a «negociação dialógica» foi o principal meio tanto para planificar como para desenvolver um currículo interdisciplinar através do tema gerador.

Construtivismo com sabor freireano Para além dos elementos freireanos apresentados atrás, muitos dos princípios pedagógicos avançados pela Secretaria baseavam-se nas teorias construtivistas do desenvolvimento cognitivo de Ferreiro e Vygotsky, que consideram que a aquisição da linguagem e do conhecimento em geral é mediado por factores afectivos. Emília Ferreiro, em especial, é muito lida por educadores brasileiros e é conhecida pela sua condenação das abordagens mecanicistas tradicionais na alfabetização de crianças, jovens e adultos, desprezando as noções de linguagem que elas trazem consigo quando iniciam a formação/escolaridade. A sua afirmação fundamental é a de que os educandos, ao adquirirem competências de literacia, passam por um processo de desenvolvimento cognitivo (de acordo com as teorias de Piaget) que segue um rumo semelhante ao do processo antropológico e histórico da construção da linguagem escrita: este processo começa com as primeiríssimas experiências de todas com a linguagem oral e escrita. Para Ferreiro, a primeira falácia da maioria das abordagens de ensino é a ideia de que as pessoas só aprendem quando se lhes ensina, e daí o esforço sistemático de controlar esse processo de aprendizagem baseado num segundo pressuposto TEXTO 26 INOVAÇÃO CURRICULAR: O PROJECTO INTERDISCIPLINAR

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errado: a aprendizagem é determinada pelo método de ensino imposto. Consequentemente, Ferreiro defende uma reflexão epistemológica sobre os fundamentos psicopedagógicos das nossas práticas educativas. Esta reflexão tem, necessariamente, como dado adquirido a ideia de que nenhuma pedagogia é neutra, todas se baseiam em ideias preconcebidas sobre conhecimento e os processos através dos quais os formandos adquirem conhecimento. Ela defende a necessidade de procurar abordagens criativas e flexíveis da aprendizagem, permitindo, ao mesmo tempo, que as necessidades naturais e as descobertas instintivas se manifestem e orientem os nossos actos pedagógicos. Do ponto de vista da alfabetização de adultos, Paulo Freire explica a compatibilidade do seu próprio pensamento com o de Ferreiro deste modo: Se antes a alfabetização de adultos era tratada e levada a cabo de uma forma autoritária, centrada na compreensão mágica da palavra, a palavra concedida pelo educador aos iletrados; se antes os textos geralmente apresentados aos formandos para lerem escondiam muito mais do que revelavam sobre a realidade, agora, ao contrário, a alfabetização como acto de conhecimento, como acto criativo e como acto político, é um esforço de ler o mundo e a palavra. Falando a um grupo de alfabetizadores, em 1989, Paulo Freire reflectiu sobre a sua experiência no trabalho de alfabetização de adultos e realçou a natureza política da sua proposta, ao contrário de uma adopção meramente técnica e linguística da sua metodologia. Como tal, defendeu o desenvolvimento de novas pesquisas sobre o processo de alfabetização, no sentido de auxiliar a passagem da teoria à prática e de superar as limitações da experiência. Afirmou: «As chaves para as mais recentes investigações são precisamente as chaves para o domínio da ciência para que possamos facilitar a aprendizagem da leitura da palavra, no sentido em que nos aproximamos do povo, com o maior rigor possível na nossa compreensão do mundo.» Indo mais longe no estabelecimento de uma ligação entre a sua própria filosofia política da educação e as teorias construtivistas do desenvolvimento cognitivo de Ferreiro, Freire insistia em que a obra de Emília Ferreiro fosse considerada uma das chaves para uma nova compreensão do conhecimento. De modo semelhante, os educadores, por detrás do projecto formativo, entendem o conhecimento como uma construção colectiva, acreditam que não deveriam estar isolados das suas salas de formação, mas deveriam trabalhar em colaboração transdisciplinar para criarem um currículo interdisciplinar. Trabalhando em conjunto, os educadores conseguem encontrar formas de ligar tematicamente o conteúdo das diversas áreas de conhecimento a realidade sociocultural dos formandos. Esta abordagem da planificação curricular punha de lado a utilização de manuais de disciplinas individuais e planos de formação rígidos, em prol de um processo mais criativo, embora mais incerto, no qual os educadores continuamente realizam pesquisas, utilizando novas e variadas fontes de conhecimento, trazendo informação para a sala de formação e estruturando as actividades de aprendizagem de tal forma que os formandos também têm oportunidade de contribuir com as suas próprias fontes de informação. Marta Pernambuco esclarece a influência freireana

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nesta abordagem à planificação curricular e à aprendizagem dos formandos, quando se inspira em Paulo Freire, ao demonstrar que o formando é um educando que, em conjunto com o educador, recupera na sala de formação o processo de produção de conhecimento, o que nos encaminha em direcção ao diálogo como o mais excelente dos instrumentos através do qual se produz conhecimento. Partindo sempre do universo do formando, daquilo que para ele tem significado, do seu modo de pensar, do conhecimento que traz do seu grupo social, reside na formação a capacidade de lhe tornar possível ultrapassar a sua visão inicial, dando-lhe acesso a novas formas de pensamento que constituem a base do conhecimento contemporâneo sistematizado. O projecto curricular, seguindo as teorias construtivistas avançadas por Piaget e Vygotsky e como foram mais recentemente aplicadas por Emília Ferreiro à compreensão da alfabetização, opera com base na premissa de que as pessoas aprendem melhor envolvidas em actividades de cooperação em grupo conduzidas por um educador, cuja função consiste em mediar a negociação dialógica entre a estrutura cognitiva e o conhecimento socialmente adquirido pelo formando e o conhecimento histórico, científico e artístico acumulado e que está organizado em diversas disciplinas. Consequentemente, o conhecimento não era um objecto a atingir intelectualmente por cada formando com diferentes graus de precisão, mas era antes concebido como um processo de construção contínua através dos vários estádios do processo de aprendizagem. Dentro do projecto, porém, este processo entende-se como algo altamente estruturado: (i) começa com a fase inicial de problematização da realidade; (ii) segue-se a organização da informação registada na fase inicial, através da referência a várias áreas de conteúdo; e (iii), finalmente, a informação é sintetizada na fase de aplicação do conhecimento, com a realização de actividades concretas que visam demonstrar a compreensão pelos formandos de conteúdos específicos e a construção de novos saberes e novas competências. Estes conceitos pedagógicos constituem a base pedagógica do projecto curricular. São explicados em pormenor e ilustrados com exemplos concretos de programas de currículo e prática dialógica de sala de formação nos dois capítulos que se seguem.

Formação de educadores para a transformação do currículo: o papel das equipas pedagógicas e dos momentos de formação contínua Como preparação dos seus ambiciosos objectivos, desenvolve-se um processo experimental de implementação elaborado e intenso, fortemente centrado na reorientação das atitudes e comportamentos dos educadores e no desenvolvimento de uma nova pedagogia compreensiva. Este processo centrou-se em alguns elementos-chave. O primeiro elemento envolveu uma série de seminários introdutórios, que colocaram em conjunto técnicos da ANEFA, com professores universitários e técnicos especializados (portugueses e europeus), como facilitadores. O segundo elemento concentrou-se na criação de equipas pedagógicas que ofereçam oportunidades regulares de diálogo, de intercâmbio e de leitura para os educadores, através da concessão de horas semanais para reuniões de planificação, avaliação e produção integrada de materiais.

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Uma definição mais alargada do objectivo destas equipas assenta em determinados pressupostos e abre pistas de reflexão. A estrutura de poder existente na formação acaba por expropriar o conhecimento do educador, transformando-o num mero executor de programas e actividades. O espaço [criado na formação pelos grupos de formação] constitui um espaço político-pedagógico, na medida em que o acto de nos distanciarmos da realidade alienante do dia-a-dia da formação é fundamental para reflectir sobre essa prática, possibilitando [aos educadores] regressar a essa realidade com bons olhos. O estabelecimento destas equipas obteve peso e importância reais quando nos debatemos pela disponibilização aos formadores de um número ponderado de horas semanais ou quinzenais para reuniões de grupo. Este tempo concede aos educadores um espaço necessário de reflexão sobre a sua prática e conhecimento [...] e momentos de intercâmbio que validem o ser social, afectivo e cognitivo [...] O elo básico para esta construção é a rotina, mas uma rotina viva e não estática [...]. A observação, o registo, a reflexão, a síntese, a avaliação e a planificação são os instrumentos metodológicos a utilizar nestas equipas.

Esta concessão de horas semanais para formação contínua destina-se a proporcionar aos educadores a oportunidade de se envolverem nos diversos tipos de actividades. Sucintamente, estas actividades incluíam: (1) operacionalização das fases do projecto (i.e., recolha ou análise de dados do Estudo da Realidade, desenvolvimento do tema gerador/de vida, criação dos exercícios de conhecimentos a aplicar, etc.); (2) leitura e discussão de textos teóricos e outros materiais provenientes de jornais, bibliotecas, Internet, etc.; (3) discussão da prática pedagógica e da sua relação com as questões teóricas colocadas pelos textos; e (4) pesquisa pessoal dos educadores em áreas de interesse para a sua formação. Para além da formação contínua em curso, através do trabalho regular as equipas pedagógicas e da concessão de horas para formação contínua, são organizadas oficinas de formação (formação de formadores) sobre diversos tópicos destinados a fazer […] acontecer as linhas pedagógicas e metodológicas da formação.

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