Jurisprudência Mineira

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Jurisprudência Mineira Órgão Oficial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Repositório autorizado de jurisprudência do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Registro nº 16, Portaria nº 12/90. Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do STJ.

Repositório autorizado de jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a partir do dia 17.02.2000, conforme Inscrição nº 27/00, no Livro de Publicações Autorizadas daquela Corte. Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias obtidas na Secretaria de Documentação do STF.

Jurisprudência Mineira

Belo Horizonte

a. 61

v. 192

p. 1-404

jan./mar. 2010


Escola Judicial Des. Edésio Fernandes Superintendente Des. Joaquim Herculano Rodrigues Superintendente Adjunta Des.ª Jane Ribeiro Silva Coordenador do Centro de Estudos Jurídicos Juiz Ronaldo Cunha Campos Des. Fernando Caldeira Brant Diretora Executiva de Desenvolvimento de Pessoas Mônica Alexandra de Mendonça Terra e Almeida Sá Diretor Executivo de Gestão da Informação Documental Paulo Eduardo Figueiredo e Silva Gerente de Jurisprudência e Publicações Técnicas Rosane Brandão Bastos Sales Coordenação de Publicação e Divulgação de Informação Técnica Lúcia Maria de Oliveira Mudrik - Coordenadora

Adriana Lucia Mendonça Doehler Alexandre Silva Habib Ana Márcia Macedo Rezende Cecília Maria Alves Costa Eliana Whately Moreira José Dalmy Silva Gama Karina Carvalho de Rezende

Lúcia de Fátima Capanema Maria Célia da Silveira Maria da Consolação Santos Maria Helena Duarte Mauro Teles Cardoso Tadeu Rodrigo Ribeiro Vera Lúcia Camilo Guimarães Wolney da Cunha Soares

Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes 8766 Rua Guajajaras, 40 - 22º andar - Centro - Ed. Mirafiori - Telefone: (31) 3247-8 30180-1 100 - Belo Horizonte/MG - Brasil www.tjmg.jus.br/ejef - codit@tjmg.jus.br Nota: Os acórdãos deste Tribunal são antecedidos por títulos padronizados, produzidos pela redação da Revista. Fotos da Capa: Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza - Sobrado em Ouro Preto onde funcionou o antigo Tribunal da Relação - Palácio da Justiça Rodrigues Campos, sede do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Sérgio Faria Daian - Montanhas de Minas Gerais Rodrigo Albert - Corte Superior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Projeto Gráfico e Diagramação: ASCOM/CECOV Normalização Bibliográfica: EJEF/GEDOC/COBIB Tiragem: 400 unidades Distribuída em todo o território nacional

Enviamos em permuta - Enviamos en canje - Nous envoyons en échange - Inviamo in cambio - We send in exchange - Wir senden in tausch Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

JURISPRUDÊNCIA MINEIRA, Ano 1 n° 1 1950-2010 Belo Horizonte, Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Trimestral. ISSN 0447-1768 1. Direito - Jurisprudência. 2. Tribunal de Justiça. Periódico. I. Minas Gerais. Tribunal de Justiça. CDU 340.142 (815.1)

ISSN 0447-1 1768


Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Presidente

Desembargador SÉRGIO ANTÔNIO DE RESENDE Primeiro Vice-Presidente

Desembargador MÁRIO LÚCIO CARREIRA MACHADO Segundo Vice-Presidente

Desembargador JOAQUIM HERCULANO RODRIGUES Terceiro Vice-Presidente

Desembargadora MÁRCIA MARIA MILANEZ Corregedor-Geral de Justiça

Desembargador CÉLIO CÉSAR PADUANI Tribunal Pleno Desembargadores (por ordem de antiguidade, em 08.03.2010)

Cláudio Renato dos Santos Costa

José Nepomuceno da Silva

Sérgio Antônio de Resende

Manuel Bravo Saramago

Roney O liveira

Belizário Antônio de L acerda

Reynaldo X imenes C arneiro

José Edgard P enna A morim Pereira

Joaquim Herculano R odrigues

José Carlos Moreira Diniz

Mário Lúcio Carreira M achado

Paulo Cézar Dias

José Tarcízio de Almeida M elo

Vanessa Verdolim Hudson Andrade

José A ntonino B aía B orges

Edilson Olímpio Fernandes

Célio C ésar P aduani

Geraldo José Duarte de Paula

Kildare Gonçalves Carvalho

Maria Beatriz Madureira Pinheiro Costa Caires

Márcia Maria Milanez

Armando Freire

José Altivo Brandão T eixeira

Delmival de Almeida Campos

Jane Ribeiro Silva

Alvimar de Ávila

Antônio Marcos Alvim S oares

Dárcio Lopardi Mendes

Eduardo Guimarães Andrade

Valdez Leite Machado

Antônio C arlos C ruvinel

Alexandre Victor de Carvalho

Edivaldo G eorge dos S antos

Teresa Cristina da Cunha Peixoto

Silas Rodrigues Vieira

Eduardo Mariné da Cunha

Wander Paulo Marotta Moreira

Maria Celeste Porto Teixeira

Maria E lza de Campos Zettel

Alberto Vilas Boas Vieira de Sousa

Geraldo A ugusto de Almeida

José Affonso da Costa Côrtes

Caetano L evi L opes

Antônio Armando dos Anjos

Luiz Audebert D elage Filho

José Geraldo Saldanha da Fonseca

Ernane F idélis dos Santos

Geraldo Domingos Coelho


Osmando Almeida

Antônio Lucas Pereira

Alberto Aluízio Pacheco de Andrade

José Antônio Braga

Francisco Kupidlowski

Maurílio Gabriel Diniz

Antoninho Vieira de Brito

Wagner Wilson Ferreira

Guilherme Luciano Baeta Nunes

Pedro Carlos Bitencourt Marcondes

Maurício Barros Paulo Roberto Pereira da Silva Mauro Soares de Freitas Ediwal José de Morais Dídimo Inocêncio de Paula Eduardo Brum Vieira Chaves Maria das Graças Silva Albergaria dos Santos .... Costa Elias Camilo Sobrinho

Pedro Coelho Vergara Marcelo Guimarães Rodrigues Adilson Lamounier Cláudia Regina Guedes Maia José Nicolau Masselli Judimar Martins Biber Sampaio Antônio Generoso Filho Fernando Alvarenga Starling

Pedro Bernardes de Oliveira

Álvares Cabral da Silva

Antônio Sérvulo dos Santos

Fernando Neto Botelho

Francisco Batista de Abreu

Alberto Henrique Costa de Oliveira

Heloísa Helena de Ruiz Combat

Marcos Lincoln dos Santos

Sebastião Pereira de Souza

Rogério Medeiros Garcia de Lima

Selma Maria Marques de Souza

Carlos Augusto de Barros Levenhagen

José Flávio de Almeida

Electra Maria de Almeida Benevides

Tarcísio José Martins Costa

Eduardo César Fortuna Grion

Evangelina Castilho Duarte

Tibúrcio Marques Rodrigues

Otávio de Abreu Portes Nilo Nívio Lacerda Irmar Ferreira Campos Luciano Pinto Márcia De Paoli Balbino Hélcio Valentim de Andrade Filho Antônio de Pádua Oliveira Fernando Caldeira Brant Hilda Maria Pôrto de Paula Teixeira da Costa

Tiago Pinto Antônio Carlos de Oliveira Bispo Luiz Carlos Gomes da Mata Júlio Cezar Guttierrez Vieira Baptista Doorgal Gustavo Borges de Andrada José Marcos Rodrigues Vieira Gutemberg da Mota e Silva Herbert José Almeida Carneiro

José de Anchieta da Mota e Silva

Arnaldo Maciel Pinto

José Afrânio Vilela

Sandra Alves de Santana e Fonseca

Elpídio Donizetti Nunes

Alberto Deodato Maia Barreto Neto

Fábio Maia Viani

Eduardo Machado Costa

Renato Martins Jacob

André Leite Praça


Composição de Câmaras e Grupos (em 08.03.2010) - Dias de Sessão

Primeira Câmara Cível Terças-feiras

Segunda Câmara Cível Terças-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Eduardo Guimarães Andrade*

Cláudio Renato dos Santos Costa

Geraldo Augusto de Almeida

Roney Oliveira*

Vanessa Verdolim Hudson Andrade

José Altivo Brandão Teixeira

Armando Freire

Caetano Levi Lopes

Alberto Vilas Boas

José Afrânio Vilela

Terceira Câmara Cível Quintas-feiras

Quarta Câmara Cível Quintas-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Kildare Gonçalves Carvalho* Silas Rodrigues Vieira Dídimo Inocêncio de Paula Maria das Graças Silva Albergaria dos Santos Costa

José Tarcízio de Almeida Melo* Luiz Audebert Delage Filho José Carlos Moreira Diniz Dárcio Lopardi Mendes

Primeiro Grupo de Câmaras Cíveis 1ª quarta-feira do mês (Primeira e Segunda Câmaras, sob a Presidência do Des. Cláudio Costa) - Horário: 13 horas * Presidente da Câmara

Segundo Grupo de Câmaras Cíveis 1ª quarta-feira do mês (Terceira e Quarta Câmaras, sob a Presidência do Des. Almeida Melo) - Horário: 13 horas -

Heloísa Helena de Ruiz Combat

Elias C amilo Sobrinho

* Presidente da Câmara

Quinta Câmara Cível Quintas-feiras

Sexta Câmara Cível Terças-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Maria Elza de Campos Zettel

Ernane Fidélis dos Santos*

José Nepomuceno da Silva*

Edilson Olímpio Fernandes

Manuel Bravo Saramago

Maurício Barros

Mauro Soares de Freitas

Antônio Sérvulo dos Santos

Carlos Augusto de Barros Levenhagen

Sandra Alves de Santana e Fonseca

Sétima Câmara Cível Terças-feiras

Oitava Câmara Cível Quintas-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Antônio Marcos Alvim Soares*

José Edgard Penna Amorim Pereira*

Edivaldo George dos Santos

Teresa Cristina da Cunha Peixoto

Wander Paulo Marotta Moreira

Antoninho Vieira de Brito

Belizário Antônio de Lacerda

Pedro Carlos Bitencourt Marcondes

André Leite Praça

Fernando Neto Botelho

Terceiro Grupo de Câmaras Cíveis 3ª quarta-feira do mês (Quinta e Sexta Câmaras, sob a Presidência da Des.a Maria Elza) - Horário: 13 horas * Presidente da Câmara

Quarto Grupo de Câmaras Cíveis 3ª quarta-feira do mês (Sétima e Oitava Câmaras, sob a Presidência do Des. Alvim Soares) - Horário: 13 horas * Presidente da Câmara


Nona Câmara Cível Terças-feiras

Décima Câmara Cível Terças-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Osmando Almeida*

Alberto Aluízio Pacheco de Andrade

Pedro Bernardes de Oliveira

Paulo Roberto Pereira da Silva*

Quinto Grupo de Câmaras Cíveis 2ª terça-feira do mês (Nona e Décima Câmaras, sob a Presidência do Des. Osmando Almeida)

Tarcísio José Martins Costa

Álvares Cabral da Silva

José Antônio Braga

Electra Maria de Almeida Benevides

Antônio Generoso Filho

Gutemberg da Mota e Silva

* Presidente da Câmara

Décima Primeira Câmara Cível Quartas-feiras

Décima Segunda Câmara Cível Quartas-feiras

Sexto Grupo de Câmaras Cíveis

Desembargadores

Desembargadores

Geraldo José Duarte de Paula*

Alvimar de Ávila*

Selma Maria Marques de Souza

José Geraldo Saldanha da Fonseca

Fernando Caldeira Brant

Geraldo Domingos Coelho

Marcelo Guimarães Rodrigues

José Flávio de Almeida

Marcos Lincoln dos Santos

Nilo Nívio Lacerda

Décima Terceira Câmara Cível Quintas-feiras

Décima Quarta Câmara Cível Quintas-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Francisco Kupidlowski*

Valdez Leite Machado*

Cláudia Regina Guedes Maia

Evangelina Castilho Duarte

José Nicolau Masselli

Antônio de Pádua Oliveira

Alberto Henrique Costa de Oliveira

Hilda Maria Pôrto de Paula Teixeira da Costa

Luiz Carlos Gomes da Mata

Rogério Medeiros Garcia de Lima

Décima Quinta Câmara Cível Quintas-feiras

Décima Sexta Câmara Cível Quartas-feiras

Desembargadores

Desembargadores

José Affonso da Costa Côrtes*

Francisco Batista de Abreu*

Maurílio Gabriel Diniz

Sebastião Pereira de Souza

Tibúrcio Marques Rodrigues

Otávio de Abreu Portes

Tiago Pinto

Wagner Wilson Ferreira

Antônio Carlos de Oliveira Bispo

José Marcos Rodrigues Vieira

- Horário: 13 horas -

3ª quarta-feira do mês (Décima Primeira e Décima Segunda Câmaras, sob a Presidência do Des. Duarte de Paula) - Horário: 13 horas * Presidente da Câmara

Sétimo Grupo de Câmaras Cíveis 2ª quinta-feira do mês (Décima Terceira e Décima Quarta Câmaras, sob a Presidência do Des. Valdez Leite Machado) - Horário: 13 horas * Presidente da Câmara

Oitavo Grupo de Câmaras Cíveis 3ª quinta-feira do mês (Décima Quinta e Décima Sexta Câmaras, sob a Presidência do Des. José Affonso da Costa Côrtes) - Horário: 13 horas * Presidente da Câmara


Décima Oitava Câmara Cível Terças-feiras

Décima Sétima Câmara Cível Quintas-feiras Desembargadores

Desembargadores

Eduardo Mariné da Cunha*

Guilherme Luciano Baeta Nunes*

Irmar Ferreira Campos

José de Anchieta da Mota e Silva

Luciano Pinto

Elpídio Donizetti Nunes

Márcia De Paoli Balbino

Fábio Maia Viani

Antônio Lucas Pereira

Arnaldo Maciel Pinto

Primeira Câmara Criminal Terças-feiras

Nono Grupo de Câmaras Cíveis 1ª Quinta-feira do mês (Décima Sétima e Décima Oitava Câmaras, sob a Presidência do Des. Eduardo Mariné da Cunha) - Horário: 13 horas * Presidente da Câmara

Segunda Câmara Criminal Quintas-feiras

Terceira Câmara Criminal Terças-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Desembargadores

Delmival de Almeida Campos*

Reynaldo Ximenes Carneiro

Jane Ribeiro Silva

Ediwal José de Morais

José Antonino Baía Borges

Antônio Carlos Cruvinel

Judimar Martins Biber Sampaio

Maria Beatriz Madureira Pinheiro Costa Caires*

Paulo Cézar Dias*

Alberto Deodato Maia Barreto Neto

Hélcio Valentim de Andrade Filho

Antônio Armando dos Anjos

(...)

Renato Martins Jacob

Eduardo César Fortuna Grion

* Presidente da Câmara

Primeiro Grupo de Câmaras Criminais (2ª segunda-feira do mês) - Horário: 13 horas Primeira, Segunda e Terceira Câmaras, sob a Presidência do Des. Reynaldo Ximenes Carneiro

Quarta Câmara Criminal Quartas-feiras

Quinta Câmara Criminal Terças-feiras

Desembargadores

Desembargadores

Eduardo Brum Vieira Chaves*

Alexandre Victor de Carvalho*

Fernando Alvarenga Starling

Maria Celeste Porto Teixeira

Júlio Cezar Guttierrez Vieira Baptista

Pedro Coelho Vergara

Doorgal Gustavo Borges de Andrada

Adilson Lamounier

Herbert José Almeida Carneiro

Eduardo Machado Costa

* Presidente da Câmara

Segundo Grupo de Câmaras Criminais (1ª terça-feira do mês) - Horário: 13 horas Quarta e Quinta Câmaras, sob a Presidência do Des. Alexandre Victor de Carvalho


Conselho da Magistratura (Sessão na primeira segunda-feira do mês - Horário: 14 horas)

Desembargadores

Sérgio Antônio de Resende

José Edgard P enna A morim Pereira

Joaquim Herculano Rodrigues

José Carlos Moreira D iniz

Presidente

Segundo Vice-Presidente

Mário Lúcio Carreira Machado

Paulo C ézar D ias

Primeiro Vice-Presidente

Célio César Paduani

Vanessa V erdolim H udson A ndrade

Corregedor-Geral de Justiça

Márcia Maria Milanez

Edilson Olímpio Fernandes

Terceiro Vice-Presidente

Corte Superior (Sessões na segunda e na quarta quartas-feiras do mês - Horário: 13 horas)

Desembargadores

Cláudio Renato dos Santos Costa Sérgio Antônio de Resende

Jane Ribeiro Silva Antônio Marcos Alvim S oares Vice-Corregedor-Geral de Justiça

Presidente

Roney Oliveira

Edivaldo G eorge d os S antos

Reynaldo Ximenes Carneiro

Wander Paulo Marotta Moreira

Joaquim Herculano Rodrigues

Geraldo A ugusto de Almeida

Segundo Vice-Presidente

Mário Lúcio Carreira Machado

Caetano L evi L opes

Primeiro Vice-Presidente

Luiz Audebert D elage Filho

José Tarcízio de Almeida Melo

Ernane F idélis dos Santos

José Antonino Baía Borges Presidente do TRE

Célio César Paduani Corregedor-Geral de Justiça

Kildare Gonçalves Carvalho Vice-Presidente e Corregedor do TRE

José Altivo Brandão T eixeira

José Nepomuceno da Silva Manuel Bravo Saramago Belizário Antônio de L acerda Alexandre V ictor d e C arvalho Alberto Deodato Maria Barreto Neto (...)

Procurador-Geral de Justiça: Dr. Alceu José Torres Marques


Comissão de Divulgação e Jurisprudência (em 22.04.2010) Desembargadores Joaquim Herculano Rodrigues - Presidente Dárcio Lopardi Mendes - 1ª, 2ª e 3ª Cíveis Armando Freire - 4ª, 5ª e 6ª Cíveis Selma Maria Marques de Souza - 7ª e 8ª Cíveis Maurício Barros - 9ª, 10ª e 11ª Cíveis Rogério Medeiros Garcia de Lima - 12ª, 13ª e 14ª Cíveis José Nicolau Masselli - 15ª, 16ª, 17ª e 18ª Cíveis Adilson Lamounier - 1ª, 2ª e 3ª Criminais Ediwal José de Morais - 4ª e 5ª Criminais



SUMÁRIO MEMÓRIA DO JUDICIÁRIO MINEIRO Desembargador José Domingues Ferreira Esteves - Nota biográfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 Primórdios da Justiça Portuguesa no Brasil Colonial - Nota histórica - Des. Luiz Carlos Biasutti . . . . . . . .16

DOUTRINA Juiz e ética - Saulo Versiani Penna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 Municípios e a regularização fundiária - Armando Ghedini Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28 A atribuição regulamentar do Conselho Nacional de Justiça e seus limites: alguns apontamentos sobre o ato administrativo regulamentar e a vinculação da Administração Pública ao princípio da juridicidade - Christiane Vieira Soares Pedersoli . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 Crimes de perigo abstrato como meio para proteção de bens jurídicos - Lucimara Aparecida Silva Antunes de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50 Interpretação constitucional e compreensiva da caução do art. 835 do Código de Processo Civil na dicção da Lei 11.382, de 06.12.2006, e do Protocolo de Las Leñas (Decreto nº 2.067, de 12.11.1996) - Sérgio Álvares Contagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .55 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS Corte Superior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65 Jurisprudência Cível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .113 Jurisprudência Criminal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .309 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .363 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .375 ÍNDICE NUMÉRICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .383 ÍNDICE ALFABÉTICO E REMISSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .387



Juiz e ética Saulo Versiani Penna* Sumário: 1 Notas introdutórias. 2 (In)segurança e (in) justiça na sociedade de consumo. 3 Da ética como fator de segurança e justiça. 4 A contribuição de Emmanuel Kant para uma ciência da ética. 5 Ações éticas no exercício da atividade jurisdicional. 6 Conclusão. 7. Referências bibliográficas.

1 Notas introdutórias Percebe-se na atualidade uma intranquilidade da população brasileira no tocante à segurança pessoal e pública. É inegável, o aumento dos índices de violência, os quais, até pouco tempo, tinham relevância apenas no eixo Rio - São Paulo, mas que agora estão, de forma assustadora, adquirindo patamares de elevada preocupação em todo o País. Aliás, a questão da segurança pública atingiu foro de tamanha indignação no cenário nacional que a discussão do tema tem repercutido nas instituições democráticas. Dessarte, no Legislativo, Executivo e Judiciário, a questão aflora permanentemente, fazendo surgir debates acirrados e medidas muitas vezes paliativas, de momento, casuísticas, sem a reflexão devida e isenta, como na verdade sempre deveria pautar-se o Poder Público por intermédio de seus prepostos. Não restam dúvidas de que isso vem ocorrendo em virtude do desejo e pressão do cidadão comum de ver resolvido o problema da “segurança”, ou da sua “insegurança”, rapidamente, e, da sensação, que é natural, de que nada está sendo efetivamente realizado. E, como fator de aumento desse sentimento de “insegurança”, aparece a ausência de referencial ético, que indica a prática de ações de cunho individualista, estratégico, se não contrário ao direito, e, mais ainda, em descompasso com o ideal democrático, visto que sem fundamento no interesse público. Por sinal, essa ânsia do cidadão brasileiro pela busca de soluções rápidas por parte de autoridades públicas, na maioria das vezes, incentivada pela mídia, que hoje dispõe de instrumentos tecnológicos capazes de

mostrar casos de desvios de conduta, violência e insegurança de maneira tanto eficiente quanto, em muitos casos, sensacionalista, não nos permite uma reflexão de cunho moral para a tomada de decisões. Constata-se, ademais, que esses mesmos formadores de opinião não apresentam respostas, seja porque não é de sua competência ou porque inexiste esse interesse frente aos fins lucrativos, ditados para um consumidor, em grande parte, de baixa cultura e educação. E, assim, carece o cidadão comum de informação sobre as possibilidades e ações capazes de resolver, ou pelo menos diminuir, essa sensação de desamparo por parte do Estado e de encontrar, por intermédio de meios concretos e que não venham a servir de instrumento de repressão, tolhendo a sua liberdade individual, e que possam constituir afronta aos princípios do Estado de Direito Democrático, assegurados pela Carta Republicana de 1988, o caminho mais adequado de autoafirmação da cidadania e verdadeiro interesse coletivo. Dentro desse contexto, não restam dúvidas, surge a figura do julgador, que, se de um lado se revela muitas vezes positivista-legalista, isto é, apenas na expressão da la bouche de la loi motesqueniana1, de outro um perigoso “Hércules” descrito por Ronald Dworkin2, já que, por ser dotado de talentos extraordinários e de clarividência interpretativa de situações fáticas numa completude normativa, é único a conseguir encontrar a decisão ética e considerada a mais justa. O maior desafio, portanto, a ser enfrentado pela sociedade e, por conseguinte, pelo Judiciário, que representa o principal canal democrático para as soluções dos conflitos de interesses, é equacionar a dicotomia no estado contemporâneo que se estabelece quando se busca segurança, procurando manter, ao mesmo tempo, ideais de liberdade e justiça. Situação clássica que exemplifica essa árdua empreitada é a que está sendo vivenciada pelos norte-americanos, notadamente após o fatídico ataque de 11 de setembro de 2001. E, aí, pergunta-se, o que fazer com a segurança interna? Criar mecanismos de constante vigilância, opressão e restrição a direitos consolidados em prol da tranquilidade? E as liberdades públicas, sociais, políticas e econômicas como ficam? Como conciliar os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito com a segurança pública exigida pela popula-

_________________________ *

Juiz de Direito Titular da 4ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte, Especialista em Direito Processual pela Fadivale, Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Doutorando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 1 Afirmou Montesquieu: "[...] os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei, são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor" (MONTESQUIEU, 2005, p.175). 2 Ronald Dworkin, desde seu livro chamado Taking rights seriously (Levando os direitos. Trad. Nelson Boeira. São Paulo. Martins, 2002), já criara a figura do juiz Hércules. E, na sua obra O império do direito, afirma: "Devo tentar expor essa complexa estrutura da interpretação jurídica, e para tanto utilizarei um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integralidade. Vamos chamá-lo de Hércules". (DWORKIN, 2003, p. 287). Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

19

Doutrina

DOUTRINA


ção? E qual o papel da moral e da ética para a tomada de decisões, especialmente no âmbito do Judiciário? Essas perguntas aliadas ao dilema da segurança jurídica (pública) com justiça (ética) no campo da atividade jurisdicional é que são tratadas neste trabalho, o qual procura, dentro do limite a ele imposto, fazer reflexões que poderão, quem sabe, representar mais uma semente no campo fértil de discussão do tema. 2 (In) segurança e (in) justiça na sociedade de consumo A primeira questão que nos permite profunda reflexão é aquela que se extrai da concepção de segurança pública, justiça e liberdades, em contrapartida dos sonhos e desejos de consumo, como forma de alcançar o bem-estar. A esse respeito, o sociólogo Zygmont Bauman (1998) apresenta visão bem exata de que a opção pelas liberdades em nossa sociedade, obtidas pelas mudanças econômicas, tecnológicas e culturais, acaba por comprometer a segurança do cidadão ou conduz à sensação de insegurança dos povos modernos. Como ele afirma: Em 1981, registraram-se 2,9 milhões de delitos penais na Inglaterra e no País de Gales. Em 1993, 5,5 milhões. Nos últimos três anos, a população carcerária subiu de 40.606 para 51.243. Entre 1971 e 1993, os gastos públicos com a polícia subiram de 2,8 bilhões de libras para 7,7 bilhões de libras. De 1984 a 1994, o total de advogados elevou-se de 44.837 para 63.628 e o de advogados forenses de 5.203 para 8.093. Em 1994, 5,6 milhões de pessoas na Grã-Bretanha reivindicaram renda suplementar. O auxílio-desemprego foi recebido por 2.700.000; mas, segundo outros cálculos, distintos dos cálculos oficiais do governo, os totais daqueles que necessitavam de emprego, mas haviam sido impedidos, por normas legais, de solicitar o auxílio-desemprego (e, portanto, haviam sido excluído das estatísticas oficiais dos desempregados) eram o dobro. Durante os últimos vinte e cinco anos, a população de encarcerados e de todos os que obtêm a sua subsistência da indústria carcerária - a polícia, os advogados, os fornecedores de equipamentos carcerários - tem crescido constantemente. O mesmo ocorre com a população de ociosos - exonerados, abandonados, excluídos da vida econômica e social. Conseqüentemente, como seria previsível, aumentou o sentimento popular de insegurança: atualmente, 85% da população da Grã-Bretanha acham que, há 30 anos, era seguro caminhar pelas ruas à noite, mas 95% acham que, hoje em dia, não é seguro. Esses últimos trinta anos, aproximadamente, foram de fato anos fecundos e decisivos na história do modo como foi moldada e mantida a sociedade ‘ocidental’ - industrial, capitalista, democrática e moderna. É esse modo que determina os nomes que as pessoas tendem a dar a seus medos e angústias, ou às marcas nas quais elas suspeitam residir a ameaça à sua segurança (BAUMAN, 1998, p. 49-50).

É possível dizer que a era consumista na qual vivemos conduz a desejos e vontades humanas incontidas, especialmente porque incrementadas e cevadas pela publicidade profissional. 20

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Assim, mais do que uma segurança tradicional, baseada em firmes pilares do emprego regular e duradouro, do apoio à previdência pública e poupança, estão voltadas as atenções e os objetivos para o ganho rápido, fútil, não usual, até por intermédio dos “jogos de azar” autorizados, dos concursos de TV, dos créditos bancários e financeiros, estes à disposição facilmente por intermédio dos cartões de crédito, consórcios, cheques pré-datados etc., tudo, enfim, servindo como fonte inspiradora para a aquisição de bens de consumo e, por conseguinte, a obtenção da sonhada felicidade. Entretanto, não obstante a proximidade dessas “coisas” que parecem ser capazes de tornar-nos “pessoas felizes” ou “realizadas”, exsurgem os obstáculos à obtenção desses objetivos, ou estes quando alcançados não representam na sua inteireza aquela tão sonhada felicidade. Resultam disso, pois, enormes frustrações, como também as práticas de atos condenáveis pela sociedade e o consequente aumento da insegurança dessa própria população. A par disso, ainda se faz presente em nossos dias, em virtude da opção pelas liberdades de mercado, a insegurança no trabalho regular, o qual passou a representar o momento vivido do trabalhador, e não o futuro previsível, sem falar na carência de parâmetros culturais e educacionais, tudo em nome da chamada “livre expressão”. E a vontade constante pela aquisição de liberdades na contemporaneidade, começando mesmo no âmbito da família, sem um paradigma ético, conduz a uma maior sensação de insegurança, mesmo porque a pressa e a intolerância diárias passaram a fazer parte do cotidiano pós-moderno e consumista. Por outro lado, em conjunto com essa visão pósmoderna, de valorização exagerada do consumo, intolerância e falta de referencial ético, surgem os ideais de “justiça”, que deságuam sempre nos critérios de “pureza”, os quais impõem às pessoas modelos e padrões de conduta, que irão determinar a exclusão ou não da sociedade daqueles “desajustados”. Nesse sentido, mais uma vez, o professor Zygmont Bauman é esclarecedor: Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um ‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida, são consumidores falhos - pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos, pessoas incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso de ‘liberdade’ definido em função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos ‘impuros’, que não se ajustam ao novo esquema de pureza. Encarados a partir da nova perspectiva do mercado consumidor, eles são redundantes - verdadeiramente ‘objetos fora do lugar’. O serviço de separar e eliminar esse refugo do consumismo é, como tudo o mais no mundo pós-moderno, desregulamentado e privatizado. Os centros e os supermercados, templos do novo credo consumista, e os estádios, em que se dis-


E adverte Bauman sobre a conexão existente entre o mundo consumerista da sociedade pós-moderna com a sua noção de justiça, tomando como exemplo os Estados Unidos da América, onde se depreendem de forma contundente o domínio do mercado consumidor liberal e os anseios por uma “justiça”, perseguida sem qualquer conteúdo de eticidade, mas somente dotada de subjetividade, individualismo e estratégia de poder. A este respeito lembra: Em nenhum lugar a conexão é exposta mais completamente do que nos Estados Unidos, onde o domínio incondicional do mercado consumidor chegou, nos anos da livre competição reaganista, mais longe do que em qualquer outro país. Os anos de desregulamentação e desmantelamento dos dispositivos de bem-estar foram também os anos de criminalidade ascendente, de força policial e população carcerária cada vez maiores. Foram também anos em que uma sorte cada vez mais sangrenta e espetacularmente cruel precisava ser reservada àquele declarados criminosos, para corresponder aos aceleradamente crescentes medos e ansiedades, ao nervosismo e à incerteza, raiva e fúria da maioria silenciosa, ou não tão silenciosa, de consumidores ostensivamente bemsucedidos. Quanto mais poderosos se tornavam os ‘demônios interiores’, mais insaciável se fazia o desejo daquela maioria de ver ‘o crime punido’ e ‘a justiça distribuída’. O liberal Bill Clinton venceu a eleição presidencial prometendo multiplicar os efetivos da polícia e construir novas e mais seguras prisões. Alguns observadores (dentre eles Peter Linebaugh, da Universidade de Toledo, Ohio, autor de The London Hanged) acreditam que Clinton deve a eleição à execução amplamente divulgada de um retardado mental, Ricky Ray Rector, a quem permitiu, quando governador do Arkansas, ir para a cadeira elétrica. Recentemente, adversários de Clinton dos setores de direita radical do Partido Republicano levaram tudo nas eleições congressistas, havendo convencido o eleitorado de que Clinton não fizera o suficiente para combater a criminalidade e de que eles fariam mais (BAUMAN, 1925, p. 58).

E essas ideias vêm-se alastrando por todo mundo, especialmente no Brasil, onde o arquétipo norte-americano foi adotado com bastante facilidade. Dessa forma, começam a aparecer soluções pirotécnicas para a implantação de uma almejada “justiça”, como leis mais rigorosas (“crimes hediondos”), construção de número cada vez maior de penitenciárias de “segurança máxima”, compra de armamentos cada vez mais sofisticados e de alto poder de fogo, ocupação de favelas, sem que haja uma preparação anterior de ordem moral, ética, educacional e especializada do agente público ou policial-usuário.

Ademais, revela-se, no cenário de ideias sem referencial ético, a chamada "justiça privada" (grupos de extermínio, seguranças particulares, cercas eletrificadas, câmeras e todo um aparato tecnológico de proteção particular), por intermédio do uso indiscriminado de instrumentos sem legitimidade em um Estado que pretende ser Democrático de Direito. A autodefesa, que deveria ser exercida em situações especialíssimas, transforma-se em regra e, pior, muitas vezes, reveste-se em autotutela, substituindo o Estado na sua função de promoção da justiça. No entanto, é importante salientar que essa análise da vida pós-moderna, da civilização, não importa em uma visão puramente pessimista, mas na constatação da íntima relação entre comprometimento ético das decisões de Estado e a segurança com justiça. Dessarte, a segurança, a justiça e consequentemente a paz social somente tendem a ser alcançadas, de maneira racional, a partir da avaliação das atitudes do ser humano e sua opção pelas liberdades públicas, sempre no contexto de um Estado pautado por princípios de direito e democrático, mas que para esse desiderato jamais se olvide ou se afaste da moral e do seu exercício na prática por intermédio da ética. Assim, sem a liberdade plena (com ética), desaparece a figura do Estado de Direito e floresce a insegurança. Por isso mesmo, sempre se está a carecer de uma análise sobre a influência da atitude ética, especialmente junto às funções estatais, e mais ainda daquela decorrente da atividade jurisdicional, já que esta é fundamental para o equilíbrio e a pacificação dos conflitos sociais. 3 Da ética como fator de segurança e justiça Como se procurou demonstrar, o aspecto fundamental na avaliação dos motivos, causas, consequências e possibilidades de soluções da problemática envolvendo a segurança pública e a justiça, encontra-se em uma concepção do exercício das funções estatais pela ética. E a ausência do referencial moral na sociedade conduzirá a comportamentos desastrosos e de repercussão imprevisível na convivência social. Henrique C. de Lima Vaz, citado por Arthur J. Almeida Diniz, afirma: Ninguém pode ainda prever o que serão as gerações que sobem para a cena da história e não encontram mais diante de si o relevo definido do horizonte de uma tradição, mas, tão-somente, o espaço vazio de um futuro para o qual o niilismo ético aponta com a promessa sedutora de que tudo será permitido e possível. Não é apenas a percepção do tempo humano que irá mudar para essas gerações. Mudará sua própria alma. E quem poderá dizer o que será essa nova alma? (DINIZ, 1995, p. 47-48)

E não parece haver dúvida de que a humanidade não conseguirá atingir seus objetivos de liberdade com segurança pública e justiça, somente centrada nos Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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puta o jogo do consumismo, impedem a entrada dos consumidores falhos a suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas liberdades; assim fazem os consumidores individuais, encarando suas casas e seus carros como muralhas de fortalezas permanentemente sitiadas (BAUMAN, 1925, p. 24).


avanços tecnológicos, mas é imprescindível repensar os paradigmas éticos de responsabilidades e livre arbítrio. Por isso, admitimos que Bauman bem resume a questão ética no Estado, ao asseverar que: A ética não é um derivado do Estado. A autoridade ética não deriva dos poderes do Estado para legislar e fazer cumprir a lei. Ela precede o Estado, é a exclusiva fonte da legitimidade do Estado e o supremo juiz dessa legitimidade. O Estado, poder-se-ia dizer, só é justificável como veículo ou instrumento da ética (BAUMAN, 1998, p. 69 - grifo nosso).

No entanto, o que observamos é uma crescente falta de compromisso com a ética em todos os setores do Estado. Basta lembrarmos as recentes reportagens sobre os abusos praticados por agentes públicos. Ora, onde deveria ser implantada a primeira célula de comprometimento com a ética e o bem público, o que se veem são os desvios de conduta, os quais redundam invariavelmente para o prejuízo na qualidade de vida das pessoas, diante da ausência de saúde, educação e segurança adequadas. Além disso, ocorre um fenômeno ainda pior, pois o cidadão, ao constatar a falta de ética de seu representante, perde a referência de autoridade que deveria emanar daquele agente estatal, do qual, em verdade, deveria também se sustentar o Estado Democrático de Direito. Dessarte, não existe possibilidade de falar-se em segurança pública e justiça sem uma reformulação nos valores a serem alcançados, já que isso é que permitirá um efetivo tratamento da questão de forma preventiva. E como lembra Almeida Diniz: Alguns autores antecipam, talvez de modo pessimista, mas valendo por um caveat exemplar, uma civilização centrada no desenvolvimento técnico-científico, sem o primado do Ético: ‘será a necrofilia realmente uma característica da segunda metade do século XX? [...] esse novo tipo de homem volta os seus interesses para um sítio longe da vida, das pessoas, da natureza [...] de tudo aquilo que esteja vivo [...] aspira fabricar robôs como uma das maiores realizações de sua mente técnica e alguns especialistas nos garantem que o robô mal se poderá distinguir do homem vivo. Essa realização não parecerá tão surpreendente quando o próprio homem mal consegue diferenciar-se de um robô [...] o mundo da vida transformou-se no mundo da ‘não vida’ [...] seus símbolos agora são máquinas limpas, que brilham [...] mas a realidade, por detrás dessa fachada antisséptica, torna-se cada vez mais visível. O homem, em nome do progresso, está transformando o mundo num lugar malcheiroso e envenenado (e isso não é simbólico). Polui o ar, a água, o solo, os animais - e a si mesmo. Está fazendo estas coisas em tal grau que tornou duvidoso se a Terra será algo em que se possa viver dentro de 100 anos. Conhece os fatos, mas [...] Os que governam continuam em busca do ‘progresso’ técnico e mostram-se dispostos a sacrificar a vida ao culto do seu ídolo. Em tempos mais recuados, os homens também sacri_________________________ 3

MARCEL, Gabriel. Man against mass society. Chicago, 1962, p. 55.

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ficaram seus filhos ou prisioneiros de guerra, mas nunca na história o homem mostrou-se disposto a sacrificar a vida toda a Moloque - a sua própria vida e a de seus descendentes’ (FROMM apud ALMEIDA DINIZ, 1995, p. 66).

Mas, Almeida Diniz, ao citar Gabriel Marcel3, já nos apresenta um começo para a modificação dessa visão da sociedade contemporânea: A reflexão que tempera esse horizonte pessimista (porém não muito longe da realidade vivida por nós atualmente) deve-se a Gabriel Marcel: ‘Obviamente, isto não quer significar que a história deva retroceder e que devamos quebrar todas as máquinas. Significa muito simplesmente, como Bérgson observou profundamente, que toda espécie de progresso técnico exterior deve ser contrabalanceada pelo homem por um esforço de conquista interior, dirigido para um autodomínio cada vez maior [...] No mundo contemporâneo, podemos dizer que quanto mais o homem se torna dependente de produtos que funcionem confortavelmente, assegurando-lhe a vida tolerável no nível material, tanto mais alienado (estranged) se torna uma consciência de sua realidade interior [...] O centro da gravidade de tal espécie de homem e seu ponto de equilíbrio tendem a se tornar exteriores a si próprio [...] Quanto mais progresso a ‘humanidade’ realiza na direção do domínio da Natureza, tanto mais os homens individuais se tornam realmente escravos de sua própria conquista’ (DINIZ, 1995, p. 67).

O caminho e a medida certa entre os avanços tecnológicos e econômicos, portanto, devem ser trilhados e sopesados no contexto de uma concepção ética, que pressupõe o paradigma da moral, obtida com ampla discussão da sociedade, observados os direitos humanos e o foro adequado para o debate. Dessarte, observados os contornos da ética, alcançada após esse profundo debate, com efetiva participação da sociedade destinatária das ações do Estado, é que se poderá conceber maior desenvolvimento e segurança às pessoas, com a tão desejada “justiça”. Aliás, não é a finalidade de “lucro” um mal em si mesmo, uma vez que se justifica pelo risco do negócio empreendido no regime capitalista. Entretanto, é o desvirtuamento advindo da falta de ética nos setores de administração da produção, e do próprio Poder Público, que conduzem às distorções e acabam por determinar as diferenças sociais e econômicas, com evidente prejuízo à segurança social, comprometendo a obtenção da “justiça”. Logo, é inegável que tanto os poderes constituídos como o cidadão comum deverão primar por atitudes éticas, se por ventura ainda desejarem melhorar a segurança pública com justiça, mantendo as liberdades individuais. A este respeito vale a síntese de Bauman (1998, p. 65) quando lembra Levinas: “Acha que um tal Estado (justo) é possível?”, vem a resposta igualmente direta: “Sim, um acordo entre a ética e o Estado é possível”.


De início, conforme assevera Salgado: Nenhuma teoria moral, nenhuma ética até Kant procurou assentar-se em princípios a priori, por isso universais, garantidores da sua validade. E, mais, todas as éticas até então existentes buscaram o fundamento da sua validade fora delas mesmas, em conceitos externos. Só a ética kantiana procura princípios próprios para a sua fundamentação. (SALGADO, 1995, p. 144).

É absolutamente inegável a contribuição de Kant sobre a necessidade de uma universalização dos princípios éticos, como único critério de validade do exercício da razão (ou do agir humano), e sua teoria passou a influenciar toda a humanidade, até porque todas as constituições de Estados considerados democráticos na modernidade estabeleceram princípios ditados universalmente, como pressuposto para a criação do ordenamento jurídico infraconstitucional. Bryan Magee (1999) esclarece que para Kant a universalização da moral é fundada na razão, no entanto salienta que uma razão não é universalmente válida quando apenas houver um interesse próprio de pegar ou largar. Assim, não se pode defender que algo poderia ser coisa certa para alguém fazer, mas errada para outra pessoa em idênticas circunstâncias e situação. Portanto, para Kant, adverte Magge, se determinada coisa é certa para alguém, tem de ser certa para qualquer outro na mesma posição. Isso significa que, se o mundo empírico é governado por leis científicas que têm aplicação universal, logo, também a moral é governada por leis que têm aplicação universal. Dessa forma, ele conclui que a moralidade se funda na razão, da mesma maneira que a ciência se funda na razão. Salgado (1995, p.152) igualmente lembra a preocupação de Kant em encontrar um grau razoável de ‘cientificidade’ para a Ética, isto é, uma objetividade traduzida na necessidade e universalidade dos seus princípios, diante da mutabilidade do éthos, entendido como conjunto do agir humano.

O Direito, por sua vez, também procura a universalização de princípios, notadamente princípios éticos para a formulação de suas máximas e concretização do agir humano conforme um ordenamento jurídico. E, embora Kant veja uma diferença de fundo entre o direito e a ética, pois em sentido estrito seria a ética somente uma teoria das virtudes, o certo é que para ele, em sentido amplo, a ética é a ciência das leis das liberdades, que se dividem em morais e jurídicas. Portanto, na visão kantiana não existe discrepância de princípios éticos (ciência da moralidade e das liberdades) com o direito ou leis jurídicas (ciência jurídica), desde que estas sejam universalizadas no âmbito da

própria moralidade, e não só pela sua origem na razão a priori, mas também no momento de sua aplicação. Surge daí, pois, a importância da Fundamentação da metafísica dos costumes para o Direito, onde Kant se esforça para estabelecer máximas como princípios objetivos ou leis universais. Inclusive, na segunda secção - Transição da filosofia moral popular para metafísica dos costumes Kant submete seu entendimento a diversos exemplos de comportamento humano para deixar claro que uma lei somente pode ser universal quando válida para todos indistintamente. Assim, ele afirma que “temos que poder querer que uma máxima da nossa acção se transforme em lei universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral” (KANT, 1997, p. 62). Logo, as leis universais para Kant são aquelas que podem ser aplicadas a todos os homens de forma indistinta, jamais se acomodando a situações empíricas da vontade humana. E exatamente para assegurar o império soberano dessa lei moral universal é que se faz necessária na visão de Kant uma metafísica dos costumes. A propósito, para melhor entender a posição kantiana sobre universalização da lei com sua vertente no Direito, Salgado (1995, p.199), além de lembrar que a lei “para ser válida para todos, é formal, isto é, não pode levar em conta aspectos contigentes de sua aplicação subjetiva", ressalta de que maneira Kant, dentro desse prisma de universalização, vislumbra o importante critério de igualdade, que, como se sabe, vem inspirando os diversos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Assim ele diz: Kant retoma o princípio da igualdade de todos perante a lei como princípio formal da sua aplicação. A lei que proíbe matar não quer significar, para ser universal, que não se deva matar em determinadas circunstâncias. Tão só quer dizer que, se há exceção para a proibição da ação, a exceção deve alcançar todos os seres racionais. Esse formalismo do direito, já vislumbrado no direito romano, da igualdade abstrata de todos perante a lei e que provocou a acerbada crítica de Anatole France (Le Lys Rouge), segundo a qual a lei proíbe igualmente ao rico e ao pobre furtar um pão, 'mendigar e dormir debaixo da ponte', não é, contudo, o que acentua predominantemente o caráter universal da lei; essa universalidade advém do momento da elaboração e significa uma conformidade absoluta com a razão, na medida em que a vontade pura a cria de tal modo, que seja válida para todos os seres racionais. Nesse sentido, aceito o critério da admissibilidade de Krassuer, não seria avesso ao pensamento de Kant, o princípio da eqüidade que preside às situações concretas, pelo qual, por exemplo, não seria imoral o furto famélico, visto que, em tais circunstâncias, a sua prática não colidiria com uma forma racional de ação, aceita por todo ser racional. Essa questão, contudo, tem a ver mais com o tema 'específico do imperativo categórico; é mais do que o conceito de lei moral' (SALGADO, 1995, p. 199-200). Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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4 A contribuição de Emmanuel Kant para uma ciência da ética


Percebe-se, portanto, a influência do pensamento kantiano para o Direito contemporâneo, que não obstante esteja, e sempre esteve, muito diretamente tangido pelos interesses individuais, o que definitivamente é rejeitado pela filosofia de Kant, recebeu grande contribuição de tal filosofia, na medida em que o Direito aparece como exigência de uma sociedade livre de indivíduos que reclama uma legislação universal fundada na razão pura. Dessarte, nos Estados de Direito pleno, a legislação universalizada surge como fundamento indispensável para a convivência em sociedade. Por isso mesmo, nas respectivas constituições, encontramos princípios como a da garantia da liberdade, da vida, da igualdade e do livre pensamento, que, independentemente de sua aplicação na prática, afiguram-se como máximas universalizadas e fundadas na razão a priori de uma sociedade organizada. Entretanto, a Ciência do Direito reclama não apenas um ordenamento jurídico adequado, mas a ação prática que se expressa de forma candente perante o Judiciário e por intermédio do princípio do devido processo legal (due process of law). Daí por que se torna fundamental estabelecer, conhecer e estudar cada vez mais os princípios éticos aplicáveis à atividade jurisdicional, resguardando, inclusive, sua independência para que este possa atuar adequadamente na pacificação dos conflitos de interesses da sociedade. 5 Ações éticas no exercício da atividade jurisdicional Procurou-se até agora demonstrar que a ausência de um referencial de moralidade, patente nas sociedades consumistas, conduz a insegurança e injustiças, sendo, dessarte, a busca da ética imprescindível no Estado que se insere nos paradigmas de direito e democrático. No entanto, o exercício da ética precisa encontrar um grau de cientificidade, razão por que o universalismo pregado por Kant, malgrado todos os seus exageros de uma visão extremamente asséptica, revela-se como importante passo para se estabelecer os parâmetros de atuação do Estado e da sociedade. E não poderia ser diferente em relação ao juiz e Judiciário, que necessitam desse paradigma ético para bem exercer suas funções institucionais. Como lembra Dallari (2002), citando Raúl Zaffaroni, malgrado nas universidades latino-americanas se tenha uma preocupação de aprofundamento de temas de direito básico e processual, há uma verdadeira omissão quanto ao estudo e pesquisas sobre o Poder Judiciário, e mais ainda de análise sociológica do exercício da função jurisdicional. Isso se deve, salienta Dallari com apoio em Zaffaroni, à circunstância de que uma investigação dos juízes, especialmente no campo sociológico, representa uma forma de “desacato”. 24

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Por isso mesmo, Dallari (2002), ao salientar que faltam nos cursos de Direto das universidades no Brasil disciplinas voltadas para o aprimoramento da estrutura institucional incumbida de aplicar os conhecimentos adquiridos de direito material e processual, oferece um modelo que na verdade representa estudo concreto e prático da ética por parte do profissional da área jurídica, que se revelará imprescindível para exercício da atividade dos juízes. Assim, pois, ele afirma: Na realidade, o que se deve fazer, em primeiro lugar, é reforçar nos cursos de Direito, para todos os alunos, a formação humanística, estimulando a aquisição de conhecimento sobre história e a realidade das sociedades humanas, para que o profissional do direito, seja qual for a área de sua escolha, saiba o que tem sido, o que é e o que pode ser a presença do direito e da justiça no desenvolvimento da pessoa humana e nas relações sociais. A par disso, devem ser transmitidas noções básicas de disciplinas relacionadas com os comportamentos humanos, como a antropologia, a sociologia e a psicologia, pois, seja qual for o conflito jurídico, esses aspectos sempre estarão presentes e é importante que o profissional do direito saiba reconhecê-los (DALLARI, 2002, p. 30).

Outro aspecto a ser levado em conta para estabelecer o exercício ético da atividade jurisdicional, contribuindo, assim, para a almejada segurança jurídica com justiça, é o que vem precisamente ressaltado por Luiz Flávio Gomes (1997) quando assinala ser indevida a afirmação de que a atividade jurisdicional é antidemocrática, ao simples argumento de que os membros do Judiciário não são eleitos por sufrágio universal. Essa colocação é equivocada, no seu entendimento, a partir de algumas peculiaridades dessa mesma atividade, notadamente quando se esquece que o exercício da jurisdição pressupõe o devido processo legal, inserido em um sistema de constante dialética, tendo como parâmetros as garantias fundamentais constitucionalizadas do contraditório, ampla defesa e isonomia. Nesse sentido, Gomes presta importante contribuição para a formação concreta de uma ética dos juízes em sua atividade precípua, ao sustentar que: Diante do exposto, quem acusa a atividade judicial de antidemocrática, pelo fato de que seus membros não são eleitos pelo sufrágio universal, desconhece por completo que sua legitimação democrática formal tem natureza completamente distinta da legitimação política representativa. Desconhece, ademais, que vários membros do Poder Judiciário são oriundos de carreiras distintas, que o ingresso na carreira é concretizado com a participação da OAB (CF, art. 93, I), que pessoas do povo (no júri) participam da distribuição da Justiça e desconhecem, por fim, a própria natureza dialética da função jurisdicional, que é uma das últimas do Estado moderno cujo pão de cada dia é o diálogo, é o prestar atenção e escutar, a difícil arte de poder escutar!, e sopesar as diversas opiniões assim como os argumentos dos que participam do processo, cumprindo o princípio do contraditório (CF, art. 5º, inciso LV) (GOMES, 1997, p. 123).


O profissional juiz subordina-se a uma normatividade ética derivada não apenas da Carta Fundamental, que prevê as vedações do parágrafo único do art. 95, mas também do Estatuto da Magistratura - de índole igualmente constitucional, com sede no art. 93. Essa normatividade hoje vigora sob a forma da Lei Complementar Federal 35, de 14.3.79, a conhecida LOMAN - Lei Orgânica da Magistratura Nacional, recepcionada pela superveniente ordem fundante. Não se está diante de uma ética, pois não existem, substancialmente, idéias divergentes sobre o bem e a perfeição. Mas uma espécie do mesmo gênero, consoante confirma Antonio Peinador Navarro: ‘A moral profissional é uma aplicação da moral à profissão, ou melhor, ao profissional [...] Não hão de ser, nem podem ser, distintos princípios, de razão ou revelados, que rejam a vida moral do profissional, enquanto tal, dos que hão de reger a vida de qualquer mortal, posto que a moral, como a verdade, não pode ser mais que uma. Sem prejuízo, nem tudo o que é princípio ou base do raciocínio prático tem porque endereçar-se ao profissional, nem aquele que a ele se aplica, idêntico em sua concepção genérica, chega ou há de chegar até ele da mesma forma e com a mesma carga de conclusões com que chega aos demais, enquanto alheios ao mundo da profissão’.

Destaca Nalini (1994, p. 93) a preocupação de enunciação de um Código de Ética Judicial, merecendo menção o decálogo do Juiz Juan Carlos Mendoza, Professor da Universidade Católica de Assunção e assim redigido: 1. Sê honesto. O conteúdo necessário do Direito são os valores morais, donde não se pode conceber um ordenamento jurídico que não responda a um princípio ético. Por esses valores morais, o Direito existe, tem autoridade, aperfeiçoase e se impõe aos homens. Para que possas aplicá-lo com rigor e cumprir seus pressupostos últimos, deves encarnar em ti esses valores, dentre os quais a honestidade é o primeiro e essencial ao teu ministério. 2. Sê sóbrio: a sobriedade é uma exigência do teu cargo. Para que sejas um verdadeiro magistrado e alcances o respeito de teus semelhantes, hás de ser necessariamente exemplar em tua vida pública e privada e hás de condensar, em todas as tuas decisões, o equilíbrio de tua alma. 3. Sê paciente: quem vai aos tribunais em demanda de tua justiça, leva atribulações e ansiedades que hás de compreender. Esta é a parte mais sensível e humana de tua missão; ela te ajudará a ter presente que o destinatário de sua sentença não é um ente abstrato ou nominal, mas que é um homem, uma pessoa humana. 4. Sê trabalhador: deves esforçar-te para que tenha vigência o ideal de justiça rápida, se bem que não deves sacrificar o

estudo à celeridade. Trabalha no pleito mais insignificante com a mesma dedicação que no pleito mais importante e, em todos os casos, tem presente que o que está em jogo é a própria justiça. 5. Sê imparcial: o litigante luta pelo seu direito, tanto quanto tu lutas pelo direito. Isto não deves esquecer nunca. Não te deves levar por tuas simpatias ou antipatias, por conveniências ou compaixões, nem por temor ou misericórdia. A imparcialidade implica a coragem de decidir contra os poderosos, mas também o valor muito maior de decidir contra o fraco. 6. Sê respeitoso: respeitoso da dignidade alheia e da tua própria dignidade; respeitoso nos atos e nas palavras. Todo o Direito é dignidade; está dirigido à dignificação da pessoa humana e não se pode conceber esvaziado dela. Deves estar consciente da imensa responsabilidade do teu ministério e da enorme força que a lei põe em tuas mãos. 7. Sê justo: antes de mais nada, verifica, nos conflitos, onde está a Justiça. Em seguida, fundamenta-a no Direito. Do ponto de vista técnico, hás de esforçar-te para que a verdade formal coincida com a verdade real e para que a tua decisão seja a expressão viva de ambas. 8. Ama o Direito: se a advocacia é um nobre apostolado, que exige um profundo amor ao Direito, a magistratura judicial é um apostolado mais nobre ainda, isento de enganos e refúgios, que exige para o Direito uma devoção maior porque não te dará triunfos, nem riquezas. 9. Sê independente: tuas normas hão de vir unicamente das normas da lei e de tua consciência. Não é por capricho que se quer que sejas independente e que os homens teham lutado e morrido pela independência, mas porque a experiência da humanidade demonstra que esta é uma garantia essencial da Justiça, a condição da existência do poder jurisdicional, o modo mais eficaz de proteger o indivíduo contra os abusos do poder. 10. Defende a liberdade: tem presente que o fim lógico para o qual foi criada a ordem jurídica é a Justiça e que a Justiça é conteúdo essencial da liberdade. Na medida em que a faças respeitar, tu, teus companheiros e tua posteridade gozarão de seus benefícios, pois nunca foram livres os homens, nem os povos, que não souberam ser justos. Defender a liberdade não é fazer política, senão preservar a saúde da sociedade e o destino das instituições que a justificam. Para cumprir com o teu dever, para que esse baluarte seja uma fortaleza, sem necessidade de canhões, nem de soldados, para que seja majestoso e imponente, é mister que tu o levantes como nunca, por cima das paixões e cumpras, com grandeza e com suprema energia, teu dever de magistrado, em alto apostolado jurídico; que não cedas ante a violação de uma lei e não te embaraces no atentado contra uma única garantia (NALINI, 1994, 93-95).

Ao magistrado no exercício desse seu mister, isto é, de defesa da liberdade de maneira indissociável da ética e, por conseguinte, como fator de garantia de segurança jurídica e social, incumbe, conforme também ensina Jônatas Luiz Moreira de Paula (2002), ter uma perspectiva da jurisdição como elemento de inclusão social ou de efetivação da cidadania, entendida a partir de novos paradigmas de (re) construção do direito processual. O mesmo jurista explica essa sua posição: O Direito Material é do povo, porque o ato de legislar do Estado consiste em retratar os costumes, os valores e os princípios contemplados pela sociedade. Tanto que se disJurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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E, além da preocupação da formação do magistrado desde o seu curso de Direito, como refere Dallari (2002), e de sua vinculação à dialética processual, bem lembrada por Gomes (1997), como fatores essenciais à conformação na prática da eticidade exigida para o juiz, afigura-se, outrossim, importante a colocação de José Renato Nalini (1994, p. 91), ao se referir à necessidade de o juiz manter-se, no desempenho de suas atribuições, nos limites dos fundamentos constitucionais, isto é, dos “valores adotados como bons pelo formulador originário desse pacto”. Ademais, acrescenta Nalini:


cute se o costume é fonte material do direito ou apenas de revelação do direito. No entanto, o Direito Processual é para o povo. A sociedade não legisla diretamente no direito processual, senão por meio de seus representantes no parlamento. O Direito Processual é produto da necessidade de aprimoramento da atividade jurisdicional. Suas normas indiscutivelmente regulam os princípios informadores, temperados pela realidade e pelo bom-senso. O caráter transformador que impregna a atividade jurisdicional bem norteia o endereçamento do direito processual: o proveito social. A sociedade é ‘consumidora’ das normas processuais no afã de conferir eficácia forçada dos direitos subjetivos espontaneamente ineficazes. No intuito de se obter o direito objetivo - o direito interpartes, real, concreto e forçosamente eficaz - o Estado não só pronuncia a tutela jurisdicional, como lhe dá efetividade. No âmbito da realização da inclusão social, a efetividade da jurisdição é mister para a consecução do fim desejado. (MOREIRA DE PAULA, 2002, 207-208).

É indiscutível que sem eficácia do direito processual jamais serão alcançados os objetivos da sociedade de segurança com justiça (ética), razão pela qual se impõe refletir sobre o modelo atual e suas consequências, bem como sobre a reestruturação a partir de paradigmas democráticos que na contemporaneidade não se amoldam a um sistema de litigiosidade irresponsável, a qual compromete o próprio funcionamento do aparelho estatal judiciário, e que não responde aos anseios de uma sociedade participativa. Por fim, não se pode olvidar a preservação da independência do Judiciário, sem se descurar a harmonia com as demais funções estatais4, motivo pelo qual se afigura essencial a referência aos chamados “princípios básicos de independência do Judiciário”, adotados no “Sétimo Congresso das Nações Unidas na Prevenção de Crimes e Tratamento de Transgressores”5, a saber: 1 - A independência do judiciário deve ser garantida pelos Estados e assegurada na Constituição ou na lei do país. É dever de todos os governos e de outras instituições respeitarem e observarem a independência do judiciário. 2 - O judiciário deve decidir os conflitos com imparcialidade, com base nos fatos e de acordo com a lei, sem qualquer restrição, influências indevidas, induzimentos, pressões, ameaças ou interferências, diretas ou indiretas, vindo de qualquer direção ou por qualquer razão.

3 - O judiciário deve ter jurisdição sobre todos os assuntos de natureza judicial e deve ter autoridade exclusiva para decidir se um problema se submete à sua decisão dentro da competência definida por lei. 4 - Não devem existir quaisquer interferências inapropriadas e sem justificativa com o processo judicial, nem deverão as decisões proferidas pelas cortes serem submetidas a revisão. Este princípio é sem prejuízo da revisão judicial ou mitigação ou comutação pela competente autoridade das sentenças estabelecidas pelo judiciário, de acordo com a lei. 5 - Qualquer um deve ter o direito de ser julgado por cortes ordinárias ou tribunais que se utilizem do processo legal. Tribunais que não se estabeleçam pelo devido processo legal não deverão ser criados visando deslocar a jurisdição pertencente às cortes ordinárias ou tribunais judiciais. 6 - O princípio da independência do judiciário autoriza e exige que o judiciário assegure que os procedimentos judiciais são conduzidos imparcialmente e que os direitos das partes são respeitados. 7 - É obrigação de cada Estado Membro suprir os recursos adequados para possibilitar ao judiciário desempenhar suas funções corretamente (p. 41-42, tradução livre) (QUINN, [1997?],p. 41-42).

6 Conclusão Não obstante a natural limitação deste trabalho, como na introdução já se chamou atenção, é possível por ele vislumbrar, como um canal de reflexão, que a segurança jurídica e social somente será atingida por intermédio da realização de uma liberdade ética. E é inegável que a Ciência do Direito se sustenta no exercício da liberdade e da autonomia da vontade. No entanto, como o próprio Kant adverte, existe entre a ética (lei moral) e a ordem jurídica uma diferença básica na forma da legislação, pois, enquanto o dever moral coage interiormente, a norma jurídica atua e coage exteriormente. Ademais, não nos parece viável imaginar que na prática seja possível refrear as ações humanas indevidas por intermédio de um comportamento absolutamente racional e monitorado. Basta lembrar que são universal e consensualmente repudiadas a poluição da atmosfera, as guerras e a opressão econômica dos povos mais fracos, práticas estas, no entanto, que continuam a ocorrer apesar dessa uníssona condenação imposta por uma ética universalizada.

_________________________ Importante notar, a este respeito, que Montesquieu dedica, na citada obra, capítulo VI do Livro XI, apenas seis parágrafos sobre a separação de Poderes. Em todos os demais setenta e um parágrafos trata da harmonia entre eles. Basic Principles on the Independence of the Judiciary, 1985 Adopted by the Seventh United Nations Congress on the Prevention of Crime and the Treatment of Offenders held at Milan from August 26 to September 6, 1985, and endorsed by General Assembly resolutions 40/32 of November 29, 1985 and 40/146 of December 13, 1985. Independence of the Judiciary 1. The independence of the judiciary shall be guaranteed by the State and enshrined in the Constitution or the law of the coun try. It is the duty of all governmental and other institutions to respect,observe the independence of the judiciary. 2. The judiciary shall decide matters before them impartially, on the basis of facts and in accordance with the law, without any restrictions, improper influences, inducements, pressures, threats or interferences, direct or indirect, from any quarter or for any reason. 3. The judiciary shall have jurisdiction over all issues of a judicial nature and shall have exclusive authority to decide whether an issue submitted for its decision is within its competence as defined by law. 4. There shall not be any inappropriate or unwarranted interference with the judicial process, nor shall judicial decisions bay the courts be subject to revision. This principle is without prejudice to judicial review or to mitigation or commutation by compe tent authorities of sentences imposed by the judiciary, in accordance with the law.

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Diante desses fatos cotidianos da vida humana, o juiz não pode ficar alheio e deixar de reconhecer outros aspectos que influenciam as ações humanas e que são estudados pela história, sociologia e psicologia. Por outro lado, malgrado as diferenças teóricas e conceituais da moral com o Direito, não se pode negar que é na liberdade do homem, baseada em princípios éticos, que se poderá fundar um Estado de Direito pleno. Portanto, não basta que o Estado seja construído somente sobre pilares do Direito, pois que isso significaria, como já significou e continua significando em diversos países, o exercício do totalitarismo e da tirania. Dessarte, como assevera o prof. Calmon de Passos, “inexiste pureza no direito. O jurídico coabita, necessariamente, com o político e com o econômico. Toda teoria jurídica tem conteúdo ideológico. Inclusive a teoria pura do direito [...]” (CALMON DE PASSOS, 1988, p. 83). Portanto, o melhor caminho da sociedade parece ser o de uma verdadeira democracia participativa, em que se estabeleçam os controles pela sociedade civil, tanto do poder político quanto do poder econômico, sendo especialmente necessário para que isso se implemente o irrestrito acesso do cidadão ao processo jurisdicional, de acordo com o paradigma constitucionalizado do devido processo legal, nele compreendidos sempre o juízo natural, o contraditório, a ampla defesa e a isonomia das partes. De resto, cumpre assinalar que a filosofia, embora se acredite não se presta a formular soluções para os problemas humanos, pelo menos nos permite pensar, e, pensando, o ser humano estará exercendo a sua liberdade.

DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 166 p. DINIZ, Arthur José Almeida. Novos paradigmas em direito internacional público. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995. 216p.

GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no Estado Constitucional e Democrático de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 266 p. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. 416p. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997. 117 p. MAGEE, Bryan. História da filosofia. 3. ed. São Paulo, 1999. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005. MOREIRA DE PAULA, Jônatas Luiz. A jurisdição como elemento de inclusão social: revitalizando as regras do jogo democrático. São Paulo: Manole, 2002. 214 p. NALINI, José Renato. O juiz e a ética no processo. In NALINI, José Renato. Uma nova ética para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, cap. 7, p. 85-106.

7 Referências bibliográficas

QUINN, Frederick. Human rights and Warsaw/Poland: OSCE/ODIHR, [1997?]. 252 p.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 272 p.

you.

SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995.

CALMON DE PASSOS, J.J. Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

...

_________________________ 5. Everyone shall have the right to be tried by ordinary courts or tribunals using established legal procedures. Tribunals that do not use the duly established procedures of the legal process shall not be created to displace the jurisdiction belonging to the ordinary courts or judicial tribunals. 6. The principle of the independence of the judiciary entitles and requires the judiciary to ensure that judicial proceedings are conducted fairly and that the rights of the parties are respected. 7. it is the duty of each Member State to provide adequate resources to enable the judiciary to properly perform its functions. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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Doutrina

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, 2003.


Municípios e a regularização fundiária Armando Ghedini Neto

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Sumário: I - Introdução. II - A propriedade imobiliária e o registro. III - Ocupação de terrenos pertencentes à Municipalidade. IV Loteamentos irregulares. V - Matrículas imobiliárias que têm por objeto uma fração ideal dentro de um todo maior (em face do não cancelamento da matrícula original e da abertura de novas matrículas). VI - Conclusão. VII - Referências bibliográficas.

I - Introdução Uma das características do Registro de Imóveis diz respeito à publicidade e segurança jurídica dada aos proprietários e prováveis adquirentes de imóveis. Ocorre que nem sempre todos os princípios e regras relativos à matéria são observados, causando inúmeras irregularidades fundiárias. Durante certo período, essas irregularidades foram ignoradas. Contudo, com o desenvolvimento da sociedade, com o crescente processo de urbanização e a evolução das cidades, não se tornou possível fechar os olhos a esses problemas. O presente estudo tem por escopo salientar a importância dada à propriedade pela Constituição da República, elevando, via de consequência, o valor do Registro de Imóveis. Também serão apontadas algumas anomalias existentes, bem como as possíveis soluções a cada uma delas. II - A propriedade imobiliária e o registro A cidade é uma projeção da própria sociedade em um espaço físico, ocasionando uma multiplicidade de relações, obrigações e deveres por parte dos poderes públicos e dos particulares, de modo a proporcionar um amplo desenvolvimento e proteção dos direitos individuais e sociais, da dignidade da pessoa humana, dos valores democráticos e ambientais. O assunto envolvendo as cidades está intimamente relacionado ao direito de propriedade, sendo necessário, ao mesmo tempo, distinguir e relacionar a propriedade privada ao espaço e ao domínio público. Sem dúvida, um dos temas jurídicos mais importantes está relacionado à propriedade, que é considerada o mais amplo dos direitos reais e possibilita ao seu titular, nos termos do art. 1.228 do Código Civil, a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la de quem quer que injustamente a possua ou detenha. O constitucionalismo contemporâneo busca uma ordem social mais justa, democrática e solidária, fazendo com que a propriedade fique permeada de novos va-

lores, notadamente sociais, afastando-se o individualismo anteriormente existente. Nesse diapasão, o art. 5º, XXII, da Constituição da República garante o direito de propriedade, dispondo, ainda, no inciso XXIII, que esta atenderá a sua função social. Função social foi introduzida na legislação pátria como uma cláusula geral, permitindo uma influência ininterrupta dos valores sociais, de modo a mantê-la sempre atualizada. Tal conceito, por ser impreciso e vago, tem gerado inúmeras interpretações. José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 273) leciona com maestria que a função social se configura como expressão de conteúdo indeterminado e plurissignificativo, visto que passível de diversas valorações em relação a idênticos fatos sociais, dependendo de quem está interpretando. Segundo ele, essa imprecisão conceitual reclama delineamento mais exato no intuito de propiciar uma concreta execução das disposições contidas na Constituição da República. Existem aqueles que afirmam que a função social da propriedade tem relação direta com a sua utilização, incidindo sobre os poderes inerentes a esse direto, que deve servir ao bem da coletividade (LEAL, 2003, p. 32). Diversamente, Eduardo Tomasevicius Filho (2003, p. 37) sustenta que se podem classificar os bens em de consumo e de produção. Ressalta que os bens de produção são as fontes de riqueza de uma sociedade, enquanto os bens de consumo são destinados ao uso do seu proprietário. Segundo ele, somente os bens de produção têm por obrigação exercer uma função social, vinculando uma coisa ao interesse coletivo. Finalmente, Nelson Rosenvald (2003, p. 26-27) afirma que a função social é um princípio inerente a todo direito subjetivo. E continua dizendo: Portanto, ao cogitarmos da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção de que o ordenamento jurídico apenas concederá legitimidade à persecução de um interesse individual se este for compatível com os anseios sociais. Caso contrário, o ato de autonomia privada se considera inválido. [...] a função social vai muito além, pois estabelece limites internos e positivos à atuação do proprietário.

Em outros incisos, o constituinte demonstrou claramente a sua intenção de proteger o direito de propriedade, dizendo que a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento (art. 5º, inciso XXVI, da Constituição da República).

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Juiz de Direito. Pós-graduado em Direito Público pelo xCAD - Centro de Atualização em Direito.

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moradia é um direito social, que inegavelmente tem relação direta com a propriedade dos bens imóveis. Já o art. 170, II e III, da Constituição da República estabelece que são princípios da ordem econômica a propriedade privada e a função social da propriedade. Por sua vez, o art. 182 e seus incisos do mesmo texto normativo, ao dispor sobre a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, impõem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, elevando o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, a instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, dizendo, ainda, que a propriedade urbana cumprirá sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor. Ressalte-se, por oportuno, que os Entes Federados se beneficiam diretamente dos bens imóveis, seja na qualidade de proprietários, seja como instituidores e cobradores de impostos, ex vi dos arts. 20, 153, VI, 155, I, e 156, I e II, todos da Constituição da República. Dessas considerações, verifica-se a relevância dada pela Constituição à proteção da propriedade, devendo os particulares bem como o Estado não só resguardála, como promover atos que potencializem a sua ampla utilização. Já de outra feita, o Código Civil brasileiro, em seu art. 1.245, dispõe que a propriedade dos bens imóveis se transfere, entre vivos, mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. Demais disso, o § 1o deste artigo é no sentido de que, enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. Vê-se desse dispositivo que não basta o contrato para a aquisição, sendo necessário o registro imobiliário. Com isso, busca-se o direito de se opor o título de domínio contra terceiros.

Visando justamente dar publicidade e segurança jurídica aos proprietários e prováveis adquirentes de imóveis, e, em consonância com o art. 1.245 do Código Civil brasileiro, foi criado o Registro de Imóveis. O procedimento do registro está previsto na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973) e se caracteriza por ser um ato translativo de propriedade ou de constituição de ônus reais, correspondendo a todos os acontecimentos envolvendo referido imóvel. Ressalte-se que os requisitos do registro estão dispostos no art. 176, § 1º, III, da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973) e são: a data, o nome, o domicílio e a nacionalidade do transmitente ou do devedor, do adquirente, ou do credor, e demais dados aptos a qualificá-lo; o título da transmissão ou do ônus; a forma do título, sua procedência e caracterização; o valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições e mais especificações, inclusive os juros, se houver. Ressalte-se que o registro do imóvel é antecedido pela matrícula, que nada mais é do que a descrição do imóvel, alcançando-se a sua individualização. Os requisitos da matrícula, segundo o art. 176, §1º, II, da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973), são: o número de ordem, que seguirá ao infinito; a data; a identificação do imóvel, feita mediante indicação de suas características e confrontações, localização, área e denominação, se rural, ou logradouro e número, se urbano, e sua designação cadastral, se houver; a identificação do imóvel, que será feita com indicação se rural, ou se urbano; o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário, bem como outros dados capazes de qualificá-lo; o número do registro anterior. O registro difere da averbação, na medida em que esta se destina aos atos modificativos da situação física do imóvel e posteriores ao registro como, por exemplo, o cancelamento, a extinção dos ônus e direitos reais, a mudança de denominação e de numeração dos prédios, da edificação, da reconstrução, da demolição, do desmembramento e do loteamento de imóveis, das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade impostas a imóveis, bem como da constituição de fideicomisso. A averbação está prevista no art. 167 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973). Note-se que o registro imobiliário se informa por alguns princípios que são de fundamental importância para garantir a sua eficácia, tais como o da fé pública, da publicidade, identificação, prioridade objetiva, veracidade, continuidade, legalidade ou legitimidade, especialidade e unitariedade. O princípio da publicidade faculta aos interessados o conhecimento da situação do imóvel mediante o acesso ao registro imobiliário. Nesse sentido reza o art. 17 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973): “Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido”. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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Doutrina

Excepcionou a regra nos incisos XXIV e XXV do art. 5º, ao prever que a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, bem como a utilização da propriedade particular pela autoridade competente no caso de iminente perigo público. Tais disposições estão inseridas no Capítulo I, Título II, da Constituição da República, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, motivo pelo qual devem ser amplamente protegidos contra quaisquer tipos de violações, seja por parte de particulares, seja por parte do próprio Poder Público. É que, aos direitos individuais, deve-se dar interpretação extensiva, de modo a protegê-los e garanti-los o máximo possível, não se admitindo restrições, a não ser aquelas estabelecidas expressamente no próprio texto constitucional. Lado outro, segundo o art. 6o da Carta Magna, a


Já o princípio da continuidade determina que se mantenha um encadeamento ininterrupto das titularidades do imóvel, de modo que o antigo proprietário deve estar inscrito anteriormente ao novo titular, conforme exsurge dos arts. 195 e 222 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973). O princípio da legalidade obriga ao oficial do registro, antes de proceder ao registro, a análise da legalidade e validade do título. O princípio da especialidade, previsto no art. 225 da mencionada Lei de Registros Públicos, determina que nas escrituras sejam indicadas, com precisão, todas as características, confrontações e as localizações dos imóveis, mencionando os nomes dos confrontantes e, ainda, quando se tratar só de terreno, se esse fica do lado par ou do lado ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário. Por fim, o princípio da unitariedade é no sentido de que cada imóvel deve ter a sua própria matrícula, sendo que cada matrícula somente pode ter por objeto um único imóvel, conforme art. 176, § 1º, da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973). Feitas essas considerações e analisando a questão sob outro ângulo, pode-se afirmar que muitas irregularidades são ocasionadas por três fatores, a saber: I) ocupação de terrenos pertencentes à Municipalidade em virtude de contratos de compra e venda irregulares, ou simplesmente por concessão de alvarás para construção, sem que se procedesse à observância dos requisitos legais; II) constituição de loteamentos irregulares, também sem a existência dos requisitos previstos na Lei nº 6.766, de 1973, com a venda de lotes a diversas pessoas; III) finalmente, pela existência de matrículas imobiliárias que têm por objeto uma fração ideal dentro de um todo maior, em face do não cancelamento da matrícula originária e da abertura de novas matrículas. Essas irregularidades não proporcionam ao registro imobiliário a segurança necessária, uma vez que os imóveis não estão perfeitamente individualizados, não se sabendo realmente as suas dimensões e a quem pertencem. Sendo constatadas tais anormalidades, o oficial do registro imobiliário deve oficiar ao diretor do foro, o que ocasiona o bloqueio da matrícula. É que o Oficial de Registro de Imóveis não pode proceder ao registro da compra e venda ou de outros negócios jurídicos que tenham por objeto imóveis em situações irregulares, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal, ex vi dos arts. 52 da Lei nº 6.766, de 1979, 22 e 23, ambos da Lei nº 8.935, de 1994. Tais bloqueios inviabilizam o registro e consequentemente o comércio seguro de imóveis. Como decorrência, não se podem receber incentivos fiscais 30

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resultantes de convênios com os governos federal e estadual visando melhorias na habitação do Município. Investimentos privados deixam de ser feitos ocasionados pela impossibilidade da aquisição dos bens imóveis ou de eventual constituição de direitos reais em garantia. Imobiliárias e corretores de imóveis ficam com seu trabalho inviabilizado em relação a tais imóveis. A construção civil também fica com a demanda reduzida, diminuindo a oferta de trabalho dos profissionais atuantes nessa área. Daí se pode concluir que alguma solução deve ser dada, visando sanar as irregularidades encontradas, de modo a permitir o normal processo de desenvolvimento das cidades. III - Ocupação de terrenos pertencentes à Municipalidade José dos Santos Carvalho Filho (2006, p. 939) conceitua bens públicos como: [...] todos aqueles que, de qualquer natureza e a qualquer título, pertençam às pessoas jurídicas de direito público, sejam elas federativas, como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sejam da Administração descentralizada, como as autarquias, nestas incluindo-se as fundações de direito público e as associações públicas.

Os bens públicos se dividem, segundo o art. 99 do Código Civil brasileiro, em bens de uso comum, de uso especial e dominiais ou dominicais. Os primeiros são aqueles que admitem a utilização por qualquer pessoa indiscriminadamente, tais como as ruas, praças e praias. Os bens de uso especial são considerados aqueles utilizados pelo próprio Poder Público para a consecução das atividades administrativas em geral, neles se incluindo os prédios utilizados pelas Prefeituras e hospitais públicos. Por fim, os bens dominicais abrangem aqueles integrantes do patrimônio público disponível, como objeto de direito pessoal ou real das pessoas jurídicas de direito público. Estão incluídos nesta última classe os terrenos de marinha e as faixas de fronteira. Ressalte-se, por oportuno, que os bens públicos não pertencem a determinada categoria de forma imutável, podendo passar de uma categoria a outra em virtude da sua afetação ou desafetação a determinado fim público. O art. 100 do Código Civil brasileiro dispõe que os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. Por sua vez, o art. 101 do mesmo código é no sentido de que os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei. Nos termos dos citados artigos, os bens dominicais, diversamente dos de uso comum do povo e dos de uso


[...] se essa deve ser a regra geral, há que se reconhecer que, em certas circunstâncias especiais, poderão surgir situações que acabem por conduzir a Administração a manter o ato in-

válido. Nesses casos, porém, não haverá escolha discricionária para o administrador, mas a única conduta jurídica viável terá que ser a de não invalidar o ato e deixá-lo subsistir e produzir seus efeitos. Tais situações consistem em verdadeiras limitações ao dever de invalidação dos atos e podem apresentar-se sob duas formas: 1) o decurso do tempo; 2) consolidação dos efeitos produzidos. [...]. Haverá limitação, ainda, quando as conseqüências jurídicas do ato gerarem tal consolidação fática que a manutenção do ato atenderá mais ao interesse público do que a invalidação.

Também se deve atentar que o princípio da segurança jurídica visa impedir que determinadas situações permaneçam eternamente instáveis, de modo a provocar incerteza nas pessoas. Caso a opção fosse anular as alienações, provavelmente ocorreria um grande problema social, na medida em que os compradores perderiam o suposto direito de propriedade sobre os bens, gerando para a pessoa jurídica de direito público o poder-dever de reaver os imóveis públicos indevidamente ocupados, ocasionando um sério problema de moradia. Também estariam sendo prejudicadas as finanças públicas, já que, com a volta do bem ao patrimônio público, o valor pago deveria ser devidamente restituído ao comprador, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração. Por fim, tal anulação ocasionaria fatalmente uma crise política, decorrente da falta de credibilidade da população nos atos governamentais, insegurança na aquisição de outros bens, e até mesmo na efetivação de investimentos. Nessa hipótese, entende-se que a anulação traria um prejuízo ao interesse público primário muito maior do que a manutenção do ato. Entretanto, por mais que a situação esteja consolidada e que os prejuízos morais, sociais, econômicos e políticos imponham a prevalência do ato que autorizou a compra e venda, entende-se que não se pode permitir que o patrimônio público seja dilapidado por preço vil. Obtempere-se que o preço da aquisição deve ser compatível com o da avaliação. Caso tenha sido pago valor inferior e desproporcional, deve o adquirente complementar a quantia, de modo a não se locupletar em prol da Administração Pública. Quanto à autorização legislativa, embora a regra seja a de que ela deva ser anterior, dada a excepcionalidade do fato e buscando justamente a regularização, entende-se que pode ser posterior, referendando a situação. Note-se que o art. 17, f, da Lei nº 8.666, de 1993, dispensa a licitação nos casos de alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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Doutrina

especial, por pertencerem à categoria dos bens patrimoniais disponíveis, podem ser alienados, respeitadas, é claro, as condições legais. A alienação de bens imóveis da Administração Pública, nos termos do art. 17 da Lei nº 8.666, de 1993, subordina-se à existência dos seguintes requisitos: interesse público devidamente justificado, avaliação prévia, autorização legislativa para órgãos da Administração direta e entidades autárquicas e fundacionais e de licitação na modalidade de concorrência. É certo que a regra é de que a Administração Pública mantenha em seu patrimônio os seus bens. Contudo, em determinadas e excepcionais situações, a alienação pode ser conveniente e até mesmo vantajosa. Com essas considerações, verifica-se que, a princípio, as alienações dos imóveis públicos sem os requisitos legais seriam todas nulas, acarretando ainda ao gestor público diversas consequências, tais como os crimes previstos no art. 89 da Lei nº 8.666, de 1993; no art. 1º, X, do Dec.-lei nº 201, de 1967; bem como o ato de improbidade administrativa estabelecido no art. 10, I, III, IV e VIII, da Lei nº 8.429, de 1992. Não é incomum se deparar com inúmeras irregularidades envolvendo alienações de imóveis públicos, criando-se um grande problema fundiário, na medida em que os particulares, de boa ou má-fé, passam a ocupar os bens adquiridos, construindo, revendendo e neles se estabelecendo. Constatada a inexistência de algum dos requisitos legais para a compra e venda, resta saber se a Administração Pública tem a obrigação de anular o ato, ou se pode mantê-lo, deixando que produza seus efeitos. Existem aqueles (MEIRELES, apud CARVALHO FILHO, 2006, p. 134) que entendem que, verificada a ilegalidade, haverá sempre a obrigação de anular o ato, em respeito ao princípio da legalidade estrita. Outros (OLIVEIRA, 1978, p.124; FAGUNDES, 1979, p. 52; MUKAI,1999, p. 229, apud CARVALHO FILHO, 2006, p. 134), contudo, afirmam que a Administração terá a opção entre a invalidação ou a manutenção do ato, observando-se a prevalência do interesse público. Preferimos acompanhar o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho, para quem nenhuma das correntes doutrinárias está correta. Segundo o citado autor (2006, p.134), a regra geral é aquela de que o ato ilegal deve ser anulado pelo administrador, porquanto a Administração se rege pelo princípio da legalidade. Contudo, em determinadas momentos, poderão surgir situações que acabem por conduzir a Administração a manter o ato inválido como única atitude viável. Ainda de acordo com José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.135):


no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública. Regularização fundiária é uma intervenção pública promovida pelos Entes Federativos, que objetiva legalizar a permanência das populações moradoras de áreas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando a segurança da posse, bem como melhorias na qualidade de vida da população beneficiária. Diga-se, por oportuno, que o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001), em seu art. 2º, XIV, estabelece que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante, entre outros, a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda através do estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais. Tais disposições visam promover e regulamentar o bom e sustentável desenvolvimento das cidades. Dentro dessa sistemática, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001) estabelece normas de ordem pública e interesse social, que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. O art. 2º e incisos I, IV e XIV, da Lei nº 10.257, de 2001 estabelecem que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as diretrizes gerais, dentre as quais se destacam: I - a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; IV - o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação considerados a situação socioeconômica da população e as normas ambientais.

Assim, conclui-se que aquelas situações de ocupação em virtude de aquisição já devidamente consolidadas pelo tempo e pelas circunstâncias podem ser regularizadas através de legislação específica de cada Ente Federado sobre o tema, desde que haja o pagamento de um preço compatível com a avaliação, ou sua devida complementação. A título de exemplo, cite-se que o Município de Belo Horizonte, no art. 7º, VII, c/c o art. 31, VI, VII, VIII, 32

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XIII, c/c o art. 42, II, c/c o art. 57 da Lei nº 7.165, de 1996, previu expressamente a possibilidade de regularização fundiária, dispondo especificamente na Lei nº 7.166, de 1996, sobre as condições para parcelamento, ocupação e uso do solo urbano no Município. Por fim estabeleceu na Lei nº 9.074, de 2005, sobre a regularização de parcelamentos do solo e de edificações no Município. Do mesmo modo, procedeu o Município de Ipatinga, no art. 1º da Lei nº 1.518, de 1997. Cumpridas todas essas exigências, o Ente Federado providenciará a regularização do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis através do instrumento de compra e venda. Frise-se que o art. 213, § 15, da Lei nº 6.015, de 1973, estabelece que não são devidas custas ou emolumentos notariais ou de registro, decorrentes de regularização fundiária de interesse social a cargo da Administração Pública. Dessarte, esclareça-se que não se trata de uma faculdade do Município, mas sim de uma obrigação, já que a ele cabe legislar e agir especificamente para regularizar a situação urbanística em seu território. Caso assim não proceda, e em observância aos arts. 1º e 4º da Lei nº 7.347, de 1985, poderá o Ministério Público ou os demais legitimados ajuizar ação civil pública visando compelir o Município a agir e a responsabilizar a autoridade omissa. IV - Loteamentos irregulares A constituição de loteamentos de forma irregular com a venda de lotes a diversas pessoas é outra situação que ocorre com frequência em diversos Municípios. Tal situação se dá em virtude de muitos dos loteamentos terem sido feitos em datas em que não estava em vigor a legislação que regulava a matéria, da falta de conhecimento de alguns dos registradores, bem como da ausência de fiscalização do Poder Público. O loteamento é um outro componente do processo de urbanização e se caracteriza por ser um conjunto de lotes destinados à venda e à edificação urbana. Nele coexistem interesses particulares e públicos. A Lei nº 6.766, de 1979, dispõe sobre parcelamento do solo urbano, estabelecendo em seu art. 6º que compete aos Municípios definir as diretrizes para o uso do solo, traçado dos lotes, do sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas para equipamento urbano e comunitário. Os Municípios devem aprovar previamente os projetos de loteamentos e/ou desmembramentos (art. 12), acompanhando, ainda, a implementação das obras de infraestrutura do empreendimento. Verifica-se, assim, a imposição da efetiva participação do Poder Público na fiscalização da regularidade do loteamento, primando pelo atendimento do interesse público. Nesse sentido, Rogério Gesta Leal (2003, 196) ensina que:


Ressalte-se que somente com a aprovação do Município e com o registro em Cartório de Registro de Imóveis pode-se considerar como regular o parcelamento do solo. O art. 52 da Lei nº 6.766, de 1973, proíbe o registro de loteamentos ou desmembramentos não aprovados pelos órgãos competentes. Já o art. 50 da referida lei considera crime contra a Administração Pública dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições da citada lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios. Por fim, o art. 37 da mencionada lei veda a venda ou promessa de venda de parcela de loteamento ou desmembramento não registrado. Nos termos do art. 38 da Lei nº 6.766, de 1973, verificado que o loteamento ou desmembramento não se acham registrados ou regularmente executados, deverá o adquirente do lote suspender o pagamento das prestações restantes e notificar o loteador para suprir a falta. Frise-se que o Município e o Ministério Público poderão promover ao loteador a notificação prevista no citado artigo. De outra feita, o art. 40 da Lei nº 6.766, de 1973, estabelece que o Município, se desatendida pelo loteador a notificação prevista no art. 38, poderá regularizar o loteamento ou desmembramento não autorizados ou executados sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes. Note-se que o loteador, ou qualquer pessoa física ou jurídica que se beneficiou, de qualquer forma, do loteamento ou desmembramento irregulares, será solidariamente responsável pelos prejuízos por ele causados aos compradores de lotes e ao Poder Público (art. 47 da Lei nº 6.766, de 1973), ainda que já tenham vendido todos os lotes (art. 45 da Lei nº 6.766, de 1973). Regularizado o loteamento ou desmembramento pelo Município, o adquirente do lote, comprovando o depósito de todas as prestações do preço avençado, poderá obter o registro de propriedade do imóvel em questão. Tais medidas não são de utilização discricionária da Administração Pública, constituindo uma obrigação do Poder Público, visando evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano, sem prejuízo das sanções

criminais aplicáveis aos responsáveis pela ilegalidade. Essa ação suprirá a inexistência de aprovação do projeto. É importante ser frisado que os arts. 1º e 3º da Carta Magna, ao disporem que a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, tendo como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, revelam valores importantes a serem atingidos, procurando alcançar de forma completa a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Por isso, o Estado deve buscar reformas e ações concretas e efetivas no sentido do atingimento do bemestar social e do completo desenvolvimento das cidades, não podendo se restringir a cobrar impostos e esperar que o loteador ou particular prejudicado regularize a questão imobiliária. Novamente ensina Rogério Gesta Leal (2003, p.152): Isto porque há uma idéia de democracia substantiva presente no texto constitucional, apresentada não como algo definitivamente realizado, mas como um princípio normativo que indica e impõe as metas a serem alcançadas. É assim que, enquanto instituição jurídica e política, o Estado passa a ser o principal responsável pela efetivação e proteção da função social dos direitos fundamentais, devendo abandonar, para tanto, sua neutralidade e apoliciticidade, assumindo funções transformadoras das estruturas sociais e econômicas. A Constituição passa a ser, assim, um estatuto de organização social, traçando, efetivamente, um plano de atuação concreta, e não uma simples utopia.

Isso significa que o Município, sendo parte integrante da estrutura da organização político-administrativa da República Federativa do Brasil, deve priorizar a efetivação dos princípios e objetivos estabelecidos na Carta Magna, no âmbito municipal, e em seu espaço territorial, estabelecendo um Estado Democrático de Direito de forma efetiva e substancial. Deve, por isso, ter como objetivo o desenvolvimento e o bem-estar de todos, não apenas atendendo aos serviços de saúde, saneamento e educação, mas utilizando-se de ações que tendam à promoção do incremento das cidades. Falando especificamente sobre o tema, o citado autor (LEAL, 2003, p. 202-203) sustenta a obrigatoriedade da regularização: Ocorre que, considerando-se as particularidades dos interesses sociais envolvidos no parcelamento do solo urbano, e tendo em vista a indispensável preservação dos padrões de desenvolvimento urbano e a defesa dos direitos dos adquirentes de lotes, o Poder Executivo, em razão do princípio da indisponibilidade do interesse público deve promover a regularização do parcelamento, até porque inadmissível se admitir a transigência da Administração para renunciar à regularização, motivo por que alguns doutrinadores e a própria jurisprudência vêm entendendo não ser mera faculdade o que a lei determina, apesar de se falar em poder. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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Por tais fatos, a atividade da Administração Pública não se resume à aprovação do projeto de loteamento ou de desmembramento, devendo, ainda, persistir durante todas as suas fases de instalação e efetiva confecção material, exercitando seu poder de polícia, para assegurar que tal parcelamento se enquadre e respeite as disposições legais consectárias.


Nesse diapasão, caso o Município não promova a regularização dos loteamentos, incorre em omissão, fazendo surgir a possibilidade de utilização da ação civil pública por parte do Ministério Público. É sabido que o Parquet tem legitimidade ativa para proteção de situações envolvendo a ordem urbanística, ex vi do art. 1º, IV, c/c o art. 4º, c/c o art. 5º, I, ambos da Lei nº 7.347, de 1985. Para tanto, pode celebrar termos de ajustamento de conduta e até mesmo propor ações civis públicas. Entretanto, não basta ao Município proceder, a qualquer custo, à regularização do parcelamento. É preciso que o Poder Público efetue um planejamento adequado, demonstrando o que realmente gastará nesse mister, incluindo tais valores no orçamento anual, sob pena de flagrante ilegalidade. Também não se pode esquecer de observar todos os demais requisitos previstos nos arts. 4º a 6º, da Lei nº 6.766, de 1979, tais como as áreas destinadas ao sistema de circulação, à implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como aos espaços livres de uso público. Obtempere-se que o Município que promover a regularização do loteamento poderá obter judicialmente do loteador o ressarcimento das importâncias despendidas com equipamentos urbanos ou expropriações necessárias para regularizar o loteamento ou desmembramento. Procedendo desse modo, estar-se-á promovendo a regularização do espaço urbano, otimizando a função social da cidade sem, contudo, causar prejuízos ao erário, garantindo-se, assim, o efetivo atendimento ao interesse público. V - Matrículas imobiliárias que têm por objeto uma fração ideal dentro de um todo maior (em face do não cancelamento da matrícula originária e da abertura de novas matrículas) Outro grande problema fundiário refere-se às frações ideais de imóveis dentro de um todo maior, ocasionando incerteza quanto à correta delimitação do terreno. Os proprietários dessas frações de terra são condôminos. A existência do condomínio é uma exceção ao princípio da exclusividade que estabelece que a propriedade somente possa pertencer a uma pessoa. Lado outro, o próprio ordenamento jurídico autoriza que cada condômino possa, sem o consentimento dos demais, vender ou dar em garantia a sua fração ideal no terreno (arts. 1.314 e 1.420 do Código Civil brasileiro). Ocorre que inúmeras dúvidas são suscitadas, acarretando, consequentemente, o bloqueio de diversas matrículas. 34

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Para a solução do problema, bastaria que os condôminos se dirigissem ao Cartório de Registro de Imóveis e, de comum acordo, solicitassem o cancelamento da matrícula originária, com a consequente abertura de tantas matrículas novas quantos fossem os proprietários. Contudo, lembre-se que deve ser respeitado o módulo urbano ou rural e feita a medição através do georreferenciamento nos casos exigidos pelo art. 176, § 3º, da Lei nº 6.015, de 1973. O art. 213, § 9º, da mencionada lei é no sentido de que, independentemente de retificação, dois ou mais confrontantes poderão, por meio de escritura pública, alterar ou estabelecer as divisas entre si e, se houver transferência de área, com o recolhimento do devido imposto de transmissão, desde que preservadas, se rural o imóvel, a fração mínima de parcelamento e, quando urbano, a legislação urbanística. Note-se que inúmeros proprietários não se interessam pela regularização desses terrenos, visto que não lhes trará nenhum proveito imediato, além dos custos cartorários para o atingimento da regularização e do pagamento do georreferenciamento a ser elaborado por um perito. Caso não haja acordo, as ações de divisão e usucapião podem ser utilizadas para a solução do impasse. Não se pode esquecer de que são procedimentos demorados e dispendiosos. Em todas essas hipóteses, novamente se estaria esperando que o particular tomasse a iniciativa da regularização e no momento que bem lhe aprouvesse. Anteriormente, as normas que regiam a matéria referente à propriedade e ao seu registro (Lei nº 6.015, de 1973) não previam a possibilidade de o Estado intervir na propriedade determinando a dissolução de condomínio. No entanto, conforme já ressaltado, o art. 5º, XXII e XXIII, da Constituição da República garante o direito de propriedade, desde que atendida a sua função social. Mais adiante, prevê, nos arts. 22, I, e 24, I, que compete privativamente à União legislar sobre direito civil e sobre normas gerais do direito urbanístico. Já o art. 182 da Constituição da República estabelece que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, elevando o plano diretor a instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Por sua vez, o art. 182, § 2º, da mesma norma, ao prever que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, afirma que o direito de propriedade não é absoluto, mas condicionado à função social. Mencionado artigo, no entendimento de José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 273), objetivou o senti-


[...] não há dúvida de que, diante de tais parâmetros, é certo afirmar que o plano diretor ‘passa a ser um instrumento legal que, até certo ponto, pode mesmo adentrar o direito de propriedade’, pois, para tornar efetiva a sua função que hoje compõe o próprio direito de propriedade, pode ‘impor obrigações de fazer e de não fazer’ e, ainda, dentro de certos limites que não extrapolam os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, impor obrigações de dar (sem grifos no original).

Do mesmo modo, José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 274) entende que as normas do plano diretor têm influência dentro do âmbito do próprio direito de propriedade, normalmente instituindo algumas limitações aos proprietários em favor do interesse da coletividade. Em consonância com o art. 182 da Constituição da República, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001), em seu art. 39, prevê que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Do mesmo modo, o art. 40 reza que o plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, o Estatuto da Cidade prevê a cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização; o uso e a ocupação do solo e a edificação, considerando-se a situação socioeconômica da população; as normas ambientais, a simplificação da legislação de parcelamento, o uso e a ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais. O Estatuto da Cidade coloca como uma de suas diretrizes gerais a simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, buscando permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais (art. 2º, XV). Diga-se, por oportuno, que a referida lei, em seu art. 4º, III, a, b, c, g e h, e IV, a, b e c, dispõe que serão utilizados, entre outros instrumentos, o planejamento

municipal, em especial o plano diretor, a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo, o zoneamento ambiental, os planos, programas e projetos setoriais, os planos de desenvolvimento econômico e social. Como institutos tributários e financeiros, estão criados o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU, a contribuição de melhoria e os incentivos e benefícios fiscais e financeiros. Já no art. 4º, inciso V, i, p, e q (Lei nº 10.257, de 2001), há previsão, dentre outros institutos jurídicos e políticos, de desapropriação, parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, operações urbanas consorciadas e regularização fundiária. O art. 182, § 4º, da Constituição da República faculta ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, entre outras sanções, do parcelamento compulsório. Essas providências procuram ajustar a propriedade privada ao bem-estar social. Para tanto, deverá ser incluído o imóvel no plano diretor e elaborada uma lei municipal específica contendo a referida área. É de ser ressaltado que as áreas a serem incluídas devem ser escolhidas pelos Municípios, não se podendo incluir toda a cidade na referida lei, sob pena de se ferir o princípio da razoabilidade. Também não pode o Poder Judiciário determinar ao Município a inclusão de determinado terreno, uma vez que se trata de competência constitucional do Município. O parcelamento do solo ocorre quando se procede a sua subdivisão, em partes iguais ou não, resultando daí outros imóveis autônomos em substituição à área total e agora parcelada. O parcelamento do solo pode ser feito através de loteamento ou de desmembramento. O loteamento já foi devidamente comentado no item anterior, motivo pelo qual deixamos de nos manifestar novamente. No desmembramento, há o aproveitamento do sistema viário já implantado, executando-se apenas a divisão do lote, o que não ocorre no loteamento, visto que se torna necessária a abertura de vias de circulação, logradouros públicos e de áreas non aedificandi. No parcelamento compulsório, não se faz presente o elemento volitivo do proprietário, imputando uma conotação de penalidade àqueles donos de imóveis em dissonância com o plano diretor. Com respeito às opiniões em contrário, entende-se que a função social da propriedade estará sendo atendida com a regularização das matrículas dos referidos imóveis. Não se pode admitir que um proprietário, egoisticamente, se recuse a proceder ao desmembramento de um imóvel irregular, prejudicando diversos outros indivíduos. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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do de função social, de forma que a propriedade estará assegurada se guardar compatibilidade com os parâmetros traçados no plano diretor. Segundo Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (apud CARVALHO FILHO, 2009, p. 273), a função social é, assim, “a linha limítrofe entre a garantia, ou não, do direito de propriedade”. Sobre o assunto Toshio Mukai (apud CARVALHO FILHO, 2009, p. 273) leciona que:


Esperar que as pessoas diretamente interessadas tomem a iniciativa é postergar o problema e manter a situação irregular. Lado outro, considerar que a função social somente se aplica aos bens de produção é reduzir drasticamente o seu alcance e tornar inócuas e vazias todas as normas e institutos criados no Estatuto da Cidade, na Constituição da República e em diversas outras leis. Estar-se-á privilegiando o individualismo desarrazoado e relegando o bem-estar coletivo a um segundo plano. José Afonso da Silva (2008, p. 78-79) considera que a Constituição da República acolheu a doutrina de que a propriedade urbana é um típico conceito do direito urbanístico e afirma, citando Spantigatti, que: A função social da propriedade urbana ‘constitui um equilíbrio entre o interesse privado e o interesse público que orienta a utilização do bem e predetermina seus usos, de sorte que se pode obter, nos modos de vida e nas condições de moradia dos indivíduos, um desenvolvimento pleno da personalidade’. Nesta construção está claro que o interesse do indivíduo fica subordinado ao interesse coletivo por uma boa urbanização, e que a estrutura interna do direito de propriedade é um aspecto instrumental no respeitante ao complexo sistema da disciplina urbanística.

Segundo mencionado autor (SILVA, 2008, p. 80), é o direito urbanístico que determina os princípios que dominam o regime jurídico da propriedade urbana. Para ele: O regime jurídico da propriedade urbana tem seu lado civil, como tem seu lado administrativo e tributário. Aquele, no entanto, só diz respeito às relações civis do direito de propriedade, que geram, como vimos, um direito subjetivo do proprietário em face das demais pessoas, que têm o dever de respeitar a situação jurídica subjetiva ativa (de vantagem) do proprietário. É nesse âmbito que interferem as disposições sobre a propriedade contidas na legislação civil, inclusive as limitações de direito privado.

A regularização das matrículas atende à função social da propriedade, na medida em que coloca os imóveis em condições legais de serem transferidos, propiciando a segurança jurídica necessária ao seu registro. Assim, novamente poderão ser comercializados, com o reaquecimento do setor da construção civil, fazendo com que haja circulação de riquezas e geração de empregos. Também retornarão os investimentos públicos e privados que exijam a transmissão da propriedade. Do mesmo modo, a correta metragem dos lotes, a existência de um sistema viário correto, com a presença de espaços públicos delimitados e as áreas non aedificandi são fundamentais para um aproveitamento racional e adequado. Além disso, não se pode olvidar que, estando regulares as matrículas dos imóveis, se poderá controlar, de forma eficaz, a existência da reserva legal e, via de con36

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sequência, da proteção ambiental. A defesa do meio ambiente relaciona-se diretamente aos fins sociais, na medida em que é essencial a boa qualidade de vida das pessoas do campo e da cidade. Por isso, atendem ao interesse coletivo, propiciando áreas livres dentro dos lotes, destinados a assegurar a luz e a ventilação às moradias, bem como espaços para árvores e vegetação. Essas disposições relacionamse diretamente com a paisagem das cidades, sendo parte do meio ambiente urbano. No que tange ao sistema viário, o correto planejamento, com a construção de ruas e avenidas adequadas ao tráfego da região e a colocação de semáforos nos melhores locais, contribui para a redução do tempo em que as pessoas utilizam para se locomoverem, permitindo que disponham de mais espaço para si e para a sua família. Lado outro, conforme ressaltado por José Afonso da Silva (2008, p. 310): “O traçado equilibrado da cidade concorre para o equilíbrio psicológico de seus habitantes, visitantes e transeuntes”. Ao ter seu imóvel regularizado, a pessoa vincula-se afetivamente a ele, passando a realizar melhorias em sua casa. Quem mora de aluguel, ou em imóvel irregular, não investe da mesma forma que o faria se o imóvel estivesse regular ou se fosse seu, uma vez que ficam sempre na expectativa de que, a qualquer momento, poderá ser determinada a sua desocupação. Ademais, dependendo da precariedade da ocupação, nem endereço a pessoa tem. Com a regularização, haverá inclusão do morador numa situação de legalidade perante o Estado, começando a se reconhecer e a ser reconhecido como titular de direitos e de deveres em questões urbanísticas. Dessarte, não pode ser esquecido que os índices mais preocupantes de criminalidade são encontrados naquelas áreas da cidade onde o nível de desorganização social é maior. Sem a infraestrutura predomina a violência. Sérgio Salomão Shecaira (2004, p. 162) afirma que a ausência completa do Estado dá origem a uma sensação de completa anomia, condição potencializadora para o surgimento de grupos de justiceiros, bandos armados que acabam por substituir o Estado na tarefa de controle da ordem. E continua dizendo (2004, 164 e 172): Todos os estudos realizados pela escola de Chicago foram centrados nessas áreas acima descritas. Segundo o pensamento daqueles autores, desde problemas sociais, psicológicos, de saúde pública até criminais estavam relacionados com a distribuição da população por aquelas áreas. Foram verificadas, pois, áreas de delinqüência, trechos da cidade que apresentavam índices de criminalidade mais pronunciados e que estavam ligados à degradação física, à segregação econômica, étnica, racial, às doenças etc. [...]


Verifica-se, portanto, que o meio ambiente urbano afeta diretamente a prática de delitos. Políticas públicas que ajudem na redução da criminalidade, obviamente, são de interesse social. Nesse particular, não existem dúvidas de que a regularidade do registro permite um controle por parte do Município da correta implementação das ações tomadas. Após essas considerações, verifica-se que a regularidade das matrículas está diretamente relacionada ao atendimento e ao controle da função social pelos bens imóveis. Conforme já ressaltado, o Estado pode atuar na propriedade privada, desapropriando, ocupando temporariamente, criando servidões administrativas, tombamentos, entre diversas outras formas, fazendo prevalecer o interesse público sobre o privado. Assim, é perfeitamente possível que o Município, através do plano diretor e de lei específica, preveja o parcelamento compulsório dos imóveis urbanos que contenham um condomínio decorrente de diversas averbações na matrícula de um mesmo imóvel. Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos no parcelamento compulsório, o Município poderá proceder à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos (art. 7º, Lei nº 10.257, de 2001). Caso tal medida não surta efeitos, e decorridos cinco anos da cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública (art. 8º, Lei nº 10.257, de 2001). Frise-se que, nessa hipótese e por se tratar de regularização fundiária de interesse social a cargo da Administração Pública, não são devidas custas ou emolumentos notariais ou de registro (art. 213, § 15º, da Lei nº 6.015, de 1973). Em relação aos imóveis rurais, o Município não pode assim atuar, porquanto os impostos incidentes se destinam à União. Ademais, todas as normas acima

citadas dizem respeito às cidades e ao urbanismo, excluindo-se, portanto, os imóveis rurais. Outra solução concedida ao Poder Público seria a facilitação do processo de regularização a todos aqueles que desejarem dessa forma proceder. Essas atitudes do Poder Público encontram respaldo no art. 32, § 1º, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001), porque tais disposições estabelecem que a lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para a aplicação de operações consorciadas, assim considerado o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar, em uma área, transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. A ideia desse artigo é alcançar finalidades de interesse público, em especial aquelas que não almejem o lucro, buscando melhores resultados com a união de esforços. Nessas hipóteses, devem estar presentes todos os condôminos, bem como os respectivos confrontantes. Também não podem as divisões ser inferiores ao módulo urbano. Portanto, vivendo o homem em sociedade, seus direitos devem se conciliar com os do Estado, uma vez respeitada a primazia do interesse público sobre o privado, de modo a não permitir que a sua atuação individualista prejudique toda a sociedade local. Em razão de tudo o que foi exposto, é possível que o Município, através do plano diretor e de lei específica, preveja o parcelamento compulsório dos imóveis urbanos que contenham um condomínio decorrente de diversas averbações em uma mesma matrícula. Caso não surta os efeitos desejados, poderá proceder à cobrança do IPTU progressivo no tempo e à desapropriação. Dessarte, caso nenhuma atitude seja tomada pelo Município, incorrerá novamente em omissão, fazendo surgir a possibilidade da utilização da ação civil pública por parte do Ministério Público, que é legitimado ativo para proteção de situações envolvendo a ordem urbanística (art. 1º, IV, c/c o art. 4º, c/c o art. 5º, I, ambos da Lei nº 7.347, de 1985). VI - Conclusão Em razão das irregularidades existentes no registro imobiliário, não se pode ter a segurança jurídica necessária, ficando a existência da propriedade sem o devido resguardo. Essas máculas existentes no Cartório de Registro de Imóveis geraram inúmeros bloqueios, impedindo que se possam fazer quaisquer operações envolvendo imóveis. Como decorrência, advém uma paralisação em diversos setores sociais direta e indiretamente relacionaJurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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Doutrina

Em alguns momentos recentes de nossa história tivemos uma grande discussão sobre uma política de vertente ecológica chamada ‘tolerância zero’. Ela ressurge na cidade de Nova York (principalmente, mas não só) com algumas propostas urbanísticas e ecológicas associadas à repressão em larga escala de camadas de chamados indesejados. Algumas propostas de restauro de fachadas de edifícios antigos, melhoria de conservação dos próprios públicos, cultivo de flores em terrenos baldios de áreas ditas problemáticas de criminalidade, construção de quadras de basquete para utilização em clínicas noturnas e campeonatos de bairro, foram associadas à repressão total das mínimas faltas (pichações, danos a edifícios públicos, riscos em veículos estacionados, jogar sujeira nas ruas etc.), [...]. Esta política teria reduzido em larga escala os índices de criminalidade da cidade de Nova York (sem grifos no original).


da aos empreendimentos imobiliários, ocasionando crises política, econômica e social. O Município, como parte integrante da estrutura federativa nacional, é detentor de parcela de responsabilidade, por ser incumbido de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Também deve primar pelo desenvolvimento urbano, objetivando ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Desse modo, surge o poder-dever de atuar para ajustar as matrículas irregulares. Caso o Município assim não proceda, incide em evidente omissão, atraindo a aplicação de penalidades aos administradores públicos, dando ensejo ao manejo de ações individuais e coletivas. VII - Referências bibliográficas CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 16. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico. São Paulo: Renovar, 2003. ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Função social da empresa. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 92, v. 810, abr. 2003.

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Christiane Vieira Soares Pedersoli

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Sumário: 1 Introdução. 2 Ato administrativo regulamentar e as repercussões da Emenda Constitucional nº 32/2001. 3 Concretização normativa direta e indireta da Constituição da República de 1988 em nível regulamentar. 4 Da legalidade formal à vinculação da Administração Pública ao princípio da juridicidade. 5 O poder regulamentar do Conselho Nacional de Justiça e seus limites. 6 Conclusão. 7 Referências bibliográficas. 1 Introdução Diante da aceleração de fatores sociais, políticos e econômicos, bem como da atual estrutura do aparelho estatal, assiste-se ao grande incremento de instrumentos normativos utilizados pelo Poder Público. Os modernos ordenamentos constitucionais democráticos são marcados pela “pluralità delle fonti e Il policentrismo dei luoghi di produzione normativa” (ZAGREBELSKY apud RAMIREZ, 1995, p. 240). A crise da legalidade formal impõe uma releitura da Teoria de Montesquieu e um estudo aprofundado acerca da concretização normativa direta das Constituições. Canotilho (2003) afirma que o princípio da legalidade tinha como pressuposto um conceito unitário de forma e força de lei – o que atualmente se encontra relativizado, devido ao surgimento de outros atos com força legislativa. Nesse contexto, especial função assume a atividade regulamentar do Estado, uma vez que a lei deixou de ser a única fonte de atos normativos ou a única intermediária entre a Constituição e os atos concretos de execução. As resoluções do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário, têm sido objeto de grande discussão entre os juristas nacionais, tendo em vista o seu conteúdo polêmico e a amplitude apresentada no ordenamento jurídico brasileiro. O escopo do presente trabalho é traçar algumas anotações sobre o ato administrativo regulamentar e a admissibilidade dos regulamentos autônomos, com alguns apontamentos de direito comparado, a vinculação da Administração Pública à juridicidade em face

da crise da legalidade formal, para finalmente analisar a natureza e principalmente os limites do poder regulamentar do Conselho Nacional de Justiça. 2 Ato administrativo regulamentar e as repercussões da Emenda Constitucional nº 32/2001 Preliminarmente, é essencial que se faça um breve estudo sobre a conceituação, bem como a seara de atuação do ato administrativo regulamentar. Passemos, pois, à conceituação clássica de regulamento feita pela doutrina brasileira. Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p. 305) considera o regulamento, segundo o nosso ordenamento, ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública.

Seguindo a mesma vertente do regulamento de execução, Diógenes Gasparini (2007, p. 124) conceitua o regulamento como “ato administrativo normativo, editado, mediante decreto, privativamente pelo Chefe do Poder Executivo, segundo uma relação de compatibilidade com a lei para desenvolvê-la”. Odete Medauar (2007), considerando admissíveis também somente os regulamentos de execução no direito brasileiro, afirma que são atos administrativos definidores de normas gerais e de competência privativa do Poder Executivo. No mesmo sentido, expõe Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1995, p. 75), segundo a qual o poder regulamentar é privativo do Chefe do Executivo, exteriorizando-se por decreto e “somente se exerce quando a lei deixa alguns aspectos de sua aplicação para serem desenvolvidos pela Administração”. Hely Lopes Meirelles (2000, p. 170), por sua vez, denotando um caráter não meramente explicativo do regulamento, mas também supletivo em relação à lei (suas minúcias, mais precisamente), define-o como um ato administrativo, colocado em vigência por decreto, “para especificar os mandamentos da lei ou prover situações ainda não disciplinadas por lei” (p. 170). Sérgio Ferraz, em posição bem semelhante à de Hely Lopes Meirelles, citado por Ruaro e Curvelo (2007, p. 109), define o regulamento como ato administrativo, de caráter normativo, com a finalidade de especificar os mandamentos da lei ou de prover situações ainda por ela não disciplinadas, emitido por órgão ou agente no exercício de função não legislativa.

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Mestre em Direito Público na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Servidora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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Doutrina

A atribuição regulamentar do Conselho Nacional de Justiça e seus limites: alguns apontamentos sobre o ato administrativo regulamentar e a vinculação da Administração Pública ao princípio da juridicidade


Verifica-se, portanto, que, segundo a conceituação dominante apresentada em nosso ordenamento pátrio, o regulamento é um ato administrativo de caráter normativo, privativo do Chefe do Poder Executivo e destinado à execução legal. Gustavo Binenbojm (2006) assevera que, não obstante parte da doutrina nacional considerar os regulamentos lei em sentido material (tendo em vista serem gerais em relação aos seus destinatários e abstratos quanto às hipóteses), eles nunca terão a mesma eficácia normativa e a estatura hierárquica de um ato com força de lei. A doutrina lusitana, a seu turno, parece não apresentar divergência em relação à nossa concepção pátria de ato regulamentar. Marcello Caetano (2003), por exemplo, considera que o regulamento é composto de normas de caráter geral e execução permanente. Constituindo “uma autodisciplina da Administração Pública” para referido professor, é uma forma de se obter o “procedimento regular, harmônico e coerente dos seus órgãos e agentes na execução dos encargos que lhe são cometidos por lei e facilitar os contactos com os particulares” (p. 82). Canotilho (2003, p. 833) destaca que o regulamento é emanado da Administração ao desempenhar a função administrativa, tendo, via de regra, “caráter executivo e/ou complementar da lei”.1 Jorge Miranda (2007, p. 278) enquadra os regulamentos entre os intitulados “actos jurídico-públicos”, visto constituírem atos do Estado (ou do Estado e das demais entidades públicas) no desempenho de um poder público, sujeitando-se a normas de Direito Público. Em consonância com as posições anteriores, o professor argentino Gordillo (2007) considera os regulamentos atos materialmente legislativos, pois “el reglamento forma parte del Ordenamiento”, mas organicamente administrativos. Diversamente do posicionamento apresentado por Gordillo, o professor argentino Rafael Bielsa (1947, p. 332) não admite que os regulamentos sejam atos legislativos, não obstante conterem normas gerais, visto que considera sua emanação sempre uma “actividad administrativa”, qualquer seja sua natureza. Na doutrina espanhola, Rafael Entrena Cuesta (1999), frisando a confusão causada pela conceituação do regulamento através das diferentes formas pelas quais pode exteriorizar-se (não obstante prevaleçam os decretos), afirma que:

Siempre, pues, que nos encontremos con um acto normativo dictado por la Administración, en cualquiera de sus vertientes – la central, la local o la institucional -, en virtud de su competencia propia, estaremos en presencia de un reglamento. Sin que a los efectos de esta designación importe la forma de su promulgación o el término empleado para designarlo (p. 115).

Enterría e Fernández (1998, p. 167), também expoentes da doutrina espanhola, afirmam que o regulamento é “toda norma escrita dictada por la Administración”. Não admitem, no mesmo sentido de Bielsa, o regulamento como uma “ley en sentido material”, pois, tendo em vista o caráter supremo das leis (observada a Constituição) na criação do Direito, asseveram que referida qualidade não pode ser atribuída a uma norma de caráter inferior como o regulamento. Apresentando o mesmo posicionamento, o professor alemão Hartmut Maurer (2000, p. 25), destacando o caráter secundário do regulamento, considera-o uma “disposição de direito, mas não disposição de direito original, e sim derivado”.2 Diante desse breve estudo sobre a conceituação do regulamento na doutrina brasileira e segundo alguns expoentes da doutrina internacional, não obstante a diversidade de termos adotados, prevalece a premissa de submissão do regulamento à lei, bem como o caráter administrativo do mesmo. Importante destacar que é indiscutível a diferença do grau de hierarquia entre uma lei e um regulamento. Corroborando a posição de Enterría e Fernández (1998, p. 168), o regulamento só tem em comum com a lei o fato de ser norma escrita; mas é indubitável que é uma “norma secundaria, subalterna, inferior y complementaria de La Ley”. Nesse sentido, Edimur Ferreira de Faria (2007) afirma que, no ordenamento brasileiro, o regulamento está adstrito aos limites da lei, sob pena de aferição de ilegalidade e consequente invalidade. É cediço que, em um regime de legalidade, o administrador deve submeter a sua atividade aos termos legais (CAETANO, 2003).3 É sempre válido recordar que a discricionariedade legislativa no Direito Administrativo é exercida nos limites da lei, nunca se confundindo com arbitrariedade (JUSTEN FILHO, 2006). No tocante ao conteúdo do regulamento, dado o seu caráter secundário e hierarquicamente inferior à lei, a doutrina brasileira possui uma posição originária de inadmissibilidade do regulamento autônomo. Assim, a função

_________________________ 1 E ainda afirma: "É um acto normativo e não um acto administrativo singular; é um acto normativo, mas não um acto normativo com valor legislativo" (CANOTILHO, 2003, p. 833). 2 E completa: "Ela não apresenta uma infração verdadeira da divisão de poderes, porque o dador de regulamentos somente pode tornarse ativo segundo o ajuste do dador de leis" (p. 25). 3 Muito embora haja uma larga zona na administração em que a Política, como liberdade de escolha de vias de realizar o interesse público, ou a Técnica, como sistema de processos idôneos para alcançar os fins visados, tenham de ter o seu lugar, mesmo aí é a lei que está no princípio da atribuição da competência dos órgãos que realizam opções políticas ou determinam operações técnicas. (CAETANO, 2003, p. 79).

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84, IV e VI , CR/88, admitia-se majoritariamente apenas o regulamento de execução no direito brasileiro. Nesse contexto, o poder regulamentar só poderia ser exercido de forma indireta, nos estritos limites legais, não podendo encontrar na Constituição sua força normativa primária. A respeito dos limites do poder regulamentar, Sampaio, com inspiração em Pontes de Miranda (1960), afirma que: Embora o regulamento não se limite a repetir o texto da lei, tem por função precípua minudenciar a disciplina normativa que torne a lei mais exeqüível e operativa, integrando-a como um residual poder de colmatação de suas lacunas de natureza técnica, ainda que a dúvida séria deixada pelo legislador não possa vir a ser por ele resolvida (SAMPAIO, 2007, p. 277).

Após a edição da Emenda Constitucional nº 32/2001, a qual modificou, entre outros, o teor do art. 84, 6

VI, CR/88 , o indigitado posicionamento sofreu alterações, e o debate acerca dos limites do poder regulamentar intensificou-se entre os doutrinadores nacionais (BINENBOJM, 2006). Ao permitir que o Chefe do Poder Executivo nacional disponha mediante decreto sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando isso não importar em aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos públicos, bem como sobre a extinção de funções ou cargos públicos, estando os mesmos vagos, é indiscutível que nosso ordenamento constitucional passou a admitir o poder regulamentar autônomo nessas hipóteses excepcionais. Ressalte-se que a mencionada mudança no art. 84 acabou por repercutir em outros dispositivos, que também tiveram sua redação alterada, tendo em vista o

deslocamento de competências normativas do Congresso Nacional para o Chefe do Executivo.7 Assim, exercendo o seu papel de “norma-começo do Ordenamento”, a Lei Magna, “dando as cartas no interior desse Ordenamento”, mudou as regras do jogo em relação aos regulamentos no Brasil (BRITTO, 2006, p. 124). A partir da referida alteração constitucional, parte da nossa doutrina começou a entender que o Poder Executivo, nas hipóteses restritas do art. 84, VI, CR/88, possui competência regulamentar autônoma, retirando diretamente de dispositivo constitucional o seu fundamento, sem necessidade de lei prévia. Tal posicionamento restou inclusive consagrado pelo julgamento da ADI nº 2.564-DF, no qual o STF entendeu não ocorrer ofensa ao princípio da reserva legal quando decreto do Presidente da República dispuser sobre a organização e funcionamento da administração federal, sendo observado o art. 84, VI, CR/88 (URBANO DE CARVALHO). Entretanto, alguns doutrinadores brasileiros ainda negam veementemente a existência de regulamentos autônomos no Brasil, mesmo após a edição da Emenda Constitucional nº 32. De fato, o poder constituinte derivado apenas criou uma possibilidade expressa de edição de regulamentos autônomos nas referidas hipóteses taxativas, mas, dado o seu caráter limitado materialmente e formalmente, não afastou a preferência legal, nem poderia, sob pena de inconstitucionalidade. 3 Concretização normativa direta e indireta da Constituição da República de 1988 em nível regulamentar Carvalho destaca que, apesar de surgirem novas formas de se exercer a função normativa estatal, referido processo não se trata de uma “desnormatização pública seguida de uma re-regulação privada ou de uma autor-

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"Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] IV. sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. [...]" (grifos nossos) 5 "[...] VI. dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei; [...]" (grifos nossos) 4

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Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] VI - dispor mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos. [...] 7 Assim, por exemplo, o art. 48, que dispõe sobre as competências normativas do Congresso Nacional, incluía entre as mesmas: "X. criação, transfornação e extinção de cargos, empregos e funções públicas; XI. criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da Administração Publica." Após a EC nº 32, referidos incisos passaram a ter a seguinte redação: "X. criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 84, VI, b; XI. criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública." (grifos nossos) Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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Doutrina

normatizadora primária caberia à lei ou a situações específicas como as leis delegadas, prevista nos arts. 59, IV, e 68 da CR/88 (URBANO DE CARVALHO, 2008) ou as medidas provisórias (arts. 59 e 62 da CR/88). Em consonância com a redação originária do art.


regulação dirigida” (2008, p. 291). Não há a intenção, segundo a autora, de substituição das normas com origem estatal por outras com origem e que visem a fins privados. Considerando a necessidade de análise do nível de profundidade das normas no sistema, ela conclui que é preciso retomar os modos de exercício da função normativa do Estado, promovendo-se uma releitura da Teoria de Montesquieu. Aliás, é inegável, nesse contexto, a nova leitura atualmente feita no direito constitucional pátrio sobre o princípio da separação de Poderes, uma vez que abandonada a concepção rígida – hoje tal princípio é muito mais voltado à especialização e independência funcionais do que à contenção recíproca de arbítrio entre os órgãos do poder, o que foi consagrado com a edição das ECs nos 32, acima mencionada, e 47/2005, que instituiu a súmula vinculante (CORREIA, 2007, p. 581). Entretanto, é preciso muito cuidado nessa releitura para que uma nova interpretação da separação de Poderes não permita desvios, exageros e desarmonia entre os mesmos. A concretização constitucional em nível regulamentar tem assumido papel de destaque na doutrina e nas decisões jurisprudenciais. Há uma grande controvérsia acerca da concretização normativa direta, sobre a qual discorre o ministro Carlos Ayres Britto: [...] o Estado-legislador é detentor de duas caracterizadas vontades normativas: uma é primária, outra é derivada. A vontade primária é assim designada por se seguir imediatamente à vontade da própria Constituição, sem outra base de validade que não seja a Constituição mesma. Por isso que imediatamente inovadora do Ordenamento Jurídico. (ADC 12-MC/DF).

É notório que a Constituição da República de 1988 considera a lei formal a fonte do ato normativo primário, no sentido de ser editada por órgão do Poder Legislativo, “entendido este como a instância republicana que mais autenticamente encarna a representação popular e favorece a realização do Estado Democrático de Direito” (BRITTO, Carlos Ayres, ADCMC-12/DF). Da mesma forma, verifica-se a preferência da lei no ordenamento português, a qual não teve seu significado alterado, dada a legitimidade de que se reveste o Parlamento. No entanto, verifica-se que a reserva de lei se alterou e através dela o significado do princípio da legalidade (MONCADA, 2002). A respeito da crise da legalidade formal, Luís Roberto Barroso, adepto da concretização normativa direta da Carta Magna, sustenta que a lei formal, “incapaz de atender com presteza às demandas desses novos Estados e Sociedade, deixou de ser a única fonte de atos normativos ou a única intermediária entre a Constituição e os atos concretos de execução.” (ADCMC-12/DF). Segundo o respeitado jurista, o administrador vincula-se 42

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diretamente aos deveres previstos na Constituição e não pode furtar-se ao seu cumprimento, mesmo na ausência de lei. Binenbojm (2006, p. 125) identifica dois ângulos sob os quais ocorre a crise da lei formal – sob o primeiro, intitulado “ângulo estrutural”, tal crise confunde-se com a “crise de representação” – vivida universalmente pelos Parlamentos. O segundo, o “ângulo funcional”, diz respeito à descrença da lei como expressão da vontade geral ou padrão de comportamento. As leis alcançaram tamanha complexidade e tecnicidade que o Poder Legislativo não possui mais a exclusiva titularidade da função legislativa, porquanto legislação e normação não são mais sinônimos (URBANO DE CARVALHO, 2008).Tal dissociação corresponde às mutações em relação ao princípio da reserva legal, cuja polissemia dificulta a delimitação do seu âmbito de aplicação. A respeito da legalidade administrativa, Moncada (2002, p. 25) afirma que ela não se manifesta agora tanto na garantia de uma execução fidedigna da lei, mas sim na certeza da observância de um iter procedimental adequado à devida audição dos interesses e parceiros patentes na sociedade civil.

Silva (2005) encara a procedimentalização como uma forma de proteção do indivíduo em relação ao Estado, na medida em que procura garantir na legitimação pelo procedimento a participação dos administrados na formação de vontade estatal. Na vertente da procedimentalização, Justen Filho (2006) afirma que a legalidade significa a “realização da finalidade buscada pelo direito”, e não a simples repetição dos termos legais, o que conduziria à inutilidade do regulamento. Assim, conclui referido autor que deve ser analisada a extensão da inovação produzida pelo regulamento, e não se houve inovação. No mesmo sentido, afirma Tácito (1997): Regulamentar não é somente reproduzir analiticamente a lei, mas ampliá-la e completá-la, segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos que a própria lei, expressa ou implicitamente, outorga à esfera regulamentar (TÁCITO, 1997, p. 510).

Entretanto, referido posicionamento tem procedência se há uma lei prévia que disponha ao menos sobre os limites a serem observados na edição do regulamento. Em relação à concretização normativa constitucional, não procede, uma vez que o regulamento não tem força normativa primária, como já exposto. Nesse caso, é essencial verificar se ele inova ou não em relação à Carta Magna, sob pena de inconstitucionalidade. Segundo Urbano de Carvalho (2008), no Direito Administrativo brasileiro incide o princípio da reserva legal relativa, ou seja, o legislador não tem que exaurir


4 Da legalidade formal à vinculação da Administração Pública ao princípio da juridicidade O princípio da legalidade, a tônica do Estado de Direito (SILVA, 2005), assumiu diferentes conotações em função da sua amplitude, passando por uma evolução

cronológica. Na primeira fase, de cunho positivo, consagrada na Constituição francesa de 1791, ao administrador era dado apenas fazer o que a lei expressamente permitisse. Tal concepção mecanicista e restritiva não vingou por muito tempo, uma vez que a noção de legalidade administrativa (entendida como vinculação à lei formal) não apenas é inapta a alcançar performaticamente toda a atividade da Administração, como, mais que isso, não deve pretender alcançá-la (BINENBOJM, 2006, p. 138).

Assim, na segunda fase, em que a legalidade administrativa é entendida em sentido negativo, a Administração pode atuar nos espaços livres previstos na norma legal, do que se extrai a noção de discricionariedade. Na terceira fase, marcada pelo aparecimento do positivismo normativista (BINENBOJM, 2006), cujos principais expoentes são Kelsen e Merkl, a posição positiva foi reassumida, visto que o ato administrativo deveria ser necessariamente derivado de disposição legal, a fonte de sua legitimação. A partir do século XX, com a constitucionalização dos princípios gerais do direito, novos instrumentos de condicionamento da atuação do administrador público surgiram (SILVA, 2005). Em decorrência, ganhou destaque a tese de que o Poder Público está vinculado não apenas à legalidade formal, mas à juridicidade. O princípio da juridicidade administrativa, assim intitulado por Merkl, consiste na vinculação da Administração não simplesmente à lei formal, mas ao bloco de legalidade, nos termos usados por Hauriou (BINENBOJM, 2006). Referido preceito tem sido muito utilizado para fundamentar a tese de concretização normativa direta da Constituição da República, visto prever a vinculação direta da Administração às normas constitucionais. Tal posicionamento encontra-se em consonância com a moderna dogmática constitucional, a qual confere eficácia aos princípios constitucionais (BARROSO, 2006). Dessa forma, os princípios constitucionais passam a ser vistos como normas que carregam em si valores, padrões juridicamente vinculantes, necessitando de concretização (SILVA, 2005). Canotilho muito bem discorre sobre a aplicação da juridicidade na doutrina portuguesa: Quando o texto constitucional nada disser, poder-se-á interpretar o seu silêncio no sentido da admissibilidade de uma actividade administrativa - a começar pela actividade regulamentar – fundada diretamente na Constituição. Quer dizer: a precedência e a prevalência da Constituição substituem a precedência e a reserva vertical da lei. Por outras palavras: a reserva vertical de constituição substitui a reserva vertical de lei (CANOTILHO, 2003, p. 840).

Assim, ocorre uma substituição, segundo referido autor, da legalidade pela primazia das normas constituJurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 61, n° 192, p. 19-64, jan/mar. 2010

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a matéria, mas é responsável pela inovação primária. Mas, segundo a autora, em alguns casos a Constituição da República admite concretização normativa direta em hipóteses taxativas. Binenbojm (2006, p. 131), adepto da tese de concretização normativa direta constitucional, afirma que a Constituição apresenta-se não só como “norma direta e imediatamente habilitadora de competências administrativas”, mas também como “critério imediato de decisão administrativa”. Na doutrina brasileira, como já mencionado, firmou-se por muito tempo a tese de que nosso ordenamento não comporta regulamentos autônomos, não havendo que se falar em concretização normativa direta da Constituição em sede regulamentar. Tal entendimento fundamentava-se no caráter secundário do decreto, visto que a função primária caberia à lei ou a hipóteses excepcionais, como as leis delegadas (URBANO DE CARVALHO, 2008). No entanto, com a edição da Emenda Constitucional nº 32, que deu nova redação ao art. 84, VI, da CR/88, referido posicionamento alterou-se sobremaneira como exposto. Alguns autores passaram a considerar a existência de regulamentos autônomos no Brasil nas hipóteses taxativas do art. 84, VI, CR/88. Nesse contexto, ganhou força a tese de deslegalização, a qual vem sendo muito praticada no direito italiano. Consiste na transferência, por meio de lei, de competência normativa primária para o administrador público (JUSTEN FILHO, 2006). Mas vejamos bem a questão – transferência por meio de lei – ou seja, ainda há a precedência do diploma legal em relação ao regulamento. Mas daí a se admitir a concretização normativa direta constitucional já é outra coisa. A significativa questão que se coloca diante da tese de concretização normativa primária, fora das hipóteses taxativamente previstas na Carta Constitucional, é o risco que ela representa em um Estado com tradição autoritária, centralização política e, por isso, marcado pela fragilidade democrática. A história político-constitucional brasileira não permite que instituições como o Conselho Nacional de Justiça, a ser tratado adiante, comecem a inovar no ordenamento constitucional. Há uma necessidade de as normas provirem do Poder Legislativo, em observância à sua legitimidade democrática. Nunca é demais recordar que o poder regulamentar foi meio muito utilizado por chefes do Executivo para invadir a seara de competência do Poder Legislativo, cometendo sérios abusos.


cionais, a serem concretizadas diretamente pela Administração Pública. Diante da “ascendência axiológica” da Constituição sobre todo ordenamento jurídico, esse passa a ser compreendido somente a partir da normativa constitucional (BINENBOJM, 2006, p. 130). Barroso afirma que, diante da crise da legalidade formal, “a vinculação da Administração Pública passou a se dar em relação a um bloco mais amplo de juridicidade, que congrega não apenas as leis formais, mas também, e sobretudo, a Constituição” (2006, item 37). Propondo como solução à referida crise, a “constitucionalização do direito administrativo”, Binenbojm (2006, p. 36) afirma que a Carta Constitucional, seus princípios e principalmente seu sistema de direitos fundamentais devem ser “elo de unidade a costurar todo o arcabouço normativo que compõe o regime jurídico administrativo”. Adepto da vinculação administrativa à juridicidade, ele considera superado o dogma da imprescindibilidade da norma legal para “mediar a relação entre a Constituição e a Administração Pública”. Não obstante considerar que os sujeitos responsáveis pela concretização primária da Constituição da República são o Judiciário (especialmente o STF) e o Legislativo, Sampaio (2007) reconhece que atualmente o princípio da legalidade deve ser interpretado como princípio da juridicidade ou da superlegalidade. Segundo essa interpretação, entes administrativos possuem acesso direto à Constituição. Mas – indaga-se – qual é o limite para tanto? A ausência de lei não pode comprometer o cumprimento da Constituição. O administrador deve ter acesso direto à Constituição. Mas a inovação no ordenamento por esse administrador, ou seja, mediante ato normativo secundário, exorbita a seara de competência do poder regulamentar, comprometendo seriamente o sistema de fontes de direito no Brasil. A juridicidade deve ser vista como uma nova forma de interpretação do princípio da legalidade, mas não como modo de superação da mesma ou como uma alternativa que exclua a legalidade formal. Não se pode aceitar que de princípios abertos sejam extraídas vedações que não se encontrem previstas em lei ou reconhecidas pela jurisprudência (SAMPAIO, 2007). Extremamente acertada a posição exarada por Moncada em sua tese de doutorado, ao propor uma integração entre o princípio da legalidade e da juridicidade, esse de caráter mais amplo: A juridicidade não substitui a legalidade da administração, ou seja, a ausência da lei não é mais que compensada por uma vinculação a princípios gerais de recorte axiológico.

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Art. 93, XII, CR/88.

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Estes aprofundam o sentido da vinculação à lei, mas não a substituem, desculpabilizando poderes autônomos do executivo. A juridicidade não deve ser invocada para afastar a legalidade (MONCADA, 2002, p. 1.144).

O princípio da juridicidade deve ser complementar ao princípio da legalidade, uma vez que não se pode da vinculação da Administração Pública à juridicidade, “retirar dividendos para afectar a ordem constitucional da primazia parlamentar quanto ao exercício das competências normativas” (MONCADA, 2002, p. 1.007). 5 O poder regulamentar do Conselho Nacional de Justiça e seus limites O intitulado controle externo do Judiciário no Brasil, inaugurado em nosso ordenamento com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, corporificou-se no Conselho Nacional de Justiça, órgão de inspiração notadamente europeia e formação híbrida. A finalidade precípua do Conselho Nacional de Justiça, como previsto na Carta Constitucional, é exercer um controle administrativo e orçamentário do Poder Judiciário, destacando-se no presente artigo a sua atribuição regulamentar (art. 103-B, § 4º, I). É inquestionável a importante atuação que vem assumindo o CNJ no Judiciário brasileiro, como verificado, por exemplo, nos movimentos em prol da conciliação, uniformização de procedimentos nos tribunais, maior transparência nas estatísticas processuais. No entanto, em se tratando de sua competência regulamentar, referido órgão tem ultrapassado – e muito – os seus limites administrativos. A premissa de mencionada competência é assegurar a autonomia do Judiciário e o cumprimento do Estatuto da Magistratura. Tendo em vista o relevo e o destaque das resoluções do CNJ, em grande parte de constitucionalidade duvidosa, muita polêmica tem sido gerada entre os juristas brasileiros. O debate começou com a edição da Resolução nº 3, destinada ao cumprimento da vedação de férias coletivas nos juízos e tribunais de 2º grau, inserida na 8 Constituição por força de EC nº 45 . Referida resolução acatou as justificativas dos tribunais de marcação de férias para julho/2005, mas deixou claro em seu art. 2º a impossibilidade de novas justificativas, em conformidade com o texto constitucional, ou seja, declarou o fim das férias coletivas em 2ª instância. No entanto, após reivindicações da OAB, do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça e outras entidades representativas, o CNJ, em flagrante desrespeito ao co-


arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta Cidadã e tem como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos

dos princípios constitucionais de centrada regência de toda atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade.

Admitindo a concretização normativa direta da Constituição da República pelo CNJ e aplicando a conhecida doctrine of implied powers9, os Ministros, em sua maioria, afirmaram que a resolução não contradiz o conteúdo constitucional, tendo o Conselho feito “adequado uso da competência que lhe conferiu a Carta de Outubro, após a Emenda 45/04”. (ADCMC nº 12/DF). Ademais, não admitiram o caráter inovador da resolução no ordenamento brasileiro, uma vez que deduziram as restrições impostas ao nepotismo dos princípios contidos no art. 37, especialmente da impessoalidade, eficiência, igualdade e moralidade, segundo a tese de eficácia jurídica dos princípios constitucionais.10 Lado outro, seguindo a mesma orientação da ADI 3367 (que declarou a constitucionalidade do CNJ), afirmaram que a resolução não atenta contra o princípio da separação de Poderes e o princípio federativo, não obstante a autonomia dos Estados para organizarem as suas próprias Justiças. Por maioria de votos, vencido o Ministro Marco Aurélio, foi concedida a liminar e, ao final, no julgamento da ADC, foi considerada constitucional a Resolução nº 07 do CNJ. Contrariando os demais Ministros, o Ministro Marco Aurélio afirmou que a Constituição revela, no seu art. 103B, § 4º, a ausência de poder normativo do Conselho, cabendo citar o seguinte trecho: Onde há base constitucional para o Conselho Nacional de Justiça normatizar de forma abstrata, substituindo-se ao Congresso? Não encontro, Senhor Presidente, por mais que queira ver a atuação profícua desse mesmo Conselho, base para afirmar que tem ele o poder, como disse, normativo. (grifos nossos)

Assim, em conclusão do indigitado voto, o Ministro Marco Aurélio ressalta que, se o Conselho houvesse “legislado” ao editar a Resolução nº 07, ele o teria feito totalmente à margem das atribuições previstas taxativamente na Constituição da República. O entendimento exarado pelo Supremo apresenta grande risco, se a partir dele forem admitidos regulamentos de órgãos ou entidades dotados de poder regulamentar segundo a Constituição, que inovem no ordenamento sem qualquer comando legislativo prévio, como assevera Urbano de Carvalho (2008):

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Conforme sustentado por Luís Roberto Barroso: "É fora de dúvida que, ao atribuir ao CNJ tal poder-dever, a Constituição conferiu-lhe também os meios lícitos para desincumbir-se dele" (ADCMC nº 12/DF). 10 Nesse diapasão, asseveraram que: "o que já era constitucionalmente proibido permanece com essa tipificação, porém, agora, mais expletivamente positivado" (ADCMC nº 12/DF). 9

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mando constitucional, suspendeu referido art. 2º, voltando na prática com as férias coletivas (janeiro e julho), mediante a Resolução nº 24. Assim, assumiu o papel de poder constituinte derivado, inserindo uma alteração que só caberia por meio de emenda constitucional. Mediante tal conduta, restou prejudicada “a eficácia da força normativa da Constituição” (ADI 3823/DF). Após decisão liminar proferida na ADI nº 3823, calcada no princípio da ininterruptabilidade da jurisdição, voltando atrás mais uma vez, o CNJ editou a Resolução nº 28, revogando a Resolução nº 24. Nesse sentido, repristinou os efeitos do art. 2º da Resolução nº 3, agora sim, dando cumprimento ao texto constitucional. Grande destaque ganhou também a Resolução nº 07, famosa por “expurgar” o nepotismo do Judiciário brasileiro, mas não por isso acima de todas as suspeitas sobre sua legitimação. A análise do julgamento da ADCMC nº 12-DF, na qual a Associação dos Magistrados Brasileiros, sob a lavra do ilustre jurista Luís Roberto Barroso, impetrou ADC visando à declaração de constitucionalidade da indigitada “resolução do nepotismo” demonstra os contornos bastante amplos e, por tal razão, questionáveis adotados pelo STF acerca do poder regulamentar do CNJ. Os fundamentos da inicial foram, em síntese: a competência constitucional do CNJ para zelar pela observância do art. 37, CR/88 e apreciar a validade dos atos administrativos do Poder Judiciário; eficácia jurídica dos princípios constitucionais – vedação ao nepotismo decorre do princípio da impessoalidade; vinculação da Administração Pública não apenas à legalidade formal, mas à juridicidade, o que segundo o impetrante possibilita a concretização normativa direta da Constituição; ausência de violação à separação de Poderes e ao princípio federativo; inexistência de direitos fundamentais oponíveis à resolução. O Supremo Tribunal Federal acabou por acolher os argumentos acima citados e adotar interpretação bastante ampliada em relação a referido poder (SAMPAIO, 2007). Segundo o acórdão, acompanhando os termos do voto do Ministro Relator Carlos Ayres Britto, a Resolução nº 07 possui os atributos da generalidade (contém normas proibitivas de condutas administrativas de logo padronizadas), impessoalidade (ausência de indicação nominal ou patronímica) e abstratividade (modelo normativo com âmbito temporal de vigência em aberto), o que permite a sua análise em ADC. Ademais, referida decisão entendeu que a Resolução nº 07 é dotada de caráter normativo primário, visto que:


O risco é comprometer seriamente o princípio da reserva legal e o da independência e harmonia entre os poderes, porquanto afastado o limite nítido que exclui a matéria a ser tratada em lei e aquela deixada ao espaço da regulação administrativa, qual seja, a inovação reservada ao Legislativo. (p. 316).

Sampaio (2007) ressalta que o CNJ não pode buscar razões adicionais que extrapolem a sua condição de órgão administrativo, mas entende que a Resolução nº 07 não é inconstitucional. Não “pela decorrência direta da Constituição ou porque o Conselho tem atribuição normativa autônoma e primária” (p. 284), pois, segundo o referido autor, a resolução não inovou o nosso ordenamento, uma vez que apenas explicitou diversas normas espalhadas no sistema, bem como reproduziu jurisprudência anterior do STF. Assim, ele cita os seguintes dispositivos federais pertinentes: o artigo 177, VIII, da Lei n. 8112/1990 – para o serviço público federal, o art. 10 da Lei n. 9421/1996 para o Judiciário Federal; o art. 22, da Lei n. 9953/2000 – para o Ministério Público da União; e o art. 357, parágrafo único, RISTF – para o Supremo Tribunal Federal [...]

Não existem dúvidas sobre a nobreza dos fins buscados pela referida resolução, bem como a grande pressão da sociedade que influenciou a sua edição, ávida por um basta ao nepotismo. Mas referida matéria deveria ser sido trazida por uma lei, a solução cabia ao Legislativo – “órgão constitucionalmente legitimado para tanto” (RUARO; CURVELO, 2007, p. 129). A Loman foi literalmente atropelada pelo CNJ, que agiu como se fosse dotado de poder regulamentar autônomo. Streck, Sarlet e Clève (2005) afirmam que, no Estado Democrático de Direito, não se pode admitir a expedição de atos (resoluções, decretos, portarias etc.) por órgão administrativo com força de lei, “circunstância que faz com que tais atos sejam ao mesmo tempo legislativos e executivos, isto é, como bem lembra Canotilho, a um só tempo ‘leis e execução de leis’”. E, mais uma vez, no intuito de “zelar pela observância dos princípios do art. 37 da Constituição Federal, pela escorreita prestação e funcionamento do serviço judiciário”, o CNJ editou recentemente a Resolução nº 59, aprovada por doze votos a um, contendo regras para autorizações de escuta telefônica. Após tanto debate deflagrado na mídia, o CNJ, sem esperar qualquer medida tomada pelo Congresso, aprovou uma nova disciplina que institui um sistema nacional de coleta de dados de interceptações telefônicas legais e impõe a comunicação pelos juízes de todo o Brasil às corregedorias estaduais acerca da quantidade de escutas autorizadas. Essas, por sua vez, devem comunicar mencionados dados todo mês à Corregedoria Nacional de Justiça. Interessante destacar que tal resolução, arrogando-se a competência legislativa processual, estabelece as regras 46

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a serem adotadas pelos magistrados quando do deferimento cautelar de interceptação telefônica. Sem intuito algum de entrar na discussão acerca das interceptações telefônicas, verifica-se que o CNJ mais uma vez pretendeu substituir o legislador, a quem cabia a regulamentação de forma mais ampla e profunda de tal matéria, e ainda comprometeu a independência dos magistrados ao impor a comunicação e os requisitos das decisões de deferimento das escutas autorizadas. As corregedorias, assim como o CNJ, são órgãos administrativos – é sempre bom recordar -, não possuem atribuição para interferir na atuação dos juízes, principalmente em procedimentos sigilosos (como ocorre nas escutas). Insurgindo-se contra a referida resolução, a Procuradoria-Geral da República impetrou ADI (4145) perante o STF, nove dias após a sua aprovação. Destacando o abuso cometido pelo CNJ no tocante ao seu poder regulamentar, a PGR alega que ele acabou por “(i) adentrar na atividade típica ou finalística do Judiciário e (ii) inovou a ordem jurídica, subvertendo reserva constitucional de lei em sentido formal”. O grande receio de que houvesse interferência na atividade-fim dos magistrados, que se fez presente quando da criação do CNJ no Brasil, agora possui amparo real diante da Resolução nº 59. Mesmo não sendo reconhecida a ingerência na atividade jurisdicional ou sendo considerada a resolução de caráter meramente administrativo, a reserva de lei prevista expressamente (art. 5º, XII, CR/88) não deixa qualquer dúvida sobre a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado, como assevera a PGR. Diante dos abusos cometidos no exercício da atribuição regulamentar do CNJ, que ameaçam a democracia e a República, alguma medida tem que ser tomada. É preciso que limites claros sejam estabelecidos para a edição das resoluções, coibindo-se as fincas autoritárias. 6 C onclusão Diante das alterações pertinentes à legalidade formal e aplicação do princípio da juridicidade, a congregar um bloco mais amplo que inclui os mandamentos constitucionais, não restam dúvidas da possibilidade de acesso direto do administrador público à Constituição. É o que nos fala a moderna dogmática constitucional de eficácia dos princípios constitucionais. No entanto, não se pode permitir que uma subversão da juridicidade afaste a legalidade, de tal modo que haja um comprometimento do sistema de fontes normativas no Brasil. É o que está ocorrendo através de resoluções exorbitantes e ilegítimas do Conselho Nacional de Justiça. Usurpando as competências do Poder Legislativo, ao inovar no ordenamento nacional, indevidamente ex-


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traindo de princípios abertos vedações não previstas em lei ou reconhecidas pela jurisprudência (SAMPAIO, 2007), o CNJ fragiliza o Estado Democrático de Direito. Devem ser traçados os exatos limites da competência regulamentar do Conselho. Aguarda-se com muita ânsia o julgamento da ADI 4145 pelo Supremo Tribunal Federal, pois é uma oportunidade para que os Ministros realmente adentrem na abrangência das resoluções in concreto, como requer a Procuradoria-Geral da República. Deve-se refletir sobre a inclusão de um rol taxativo de matérias passíveis de regulamentação pelo CNJ no Estatuto da Magistratura, lei complementar de iniciativa do Supremo Tribunal Federal (art. 93, caput, CR/88), para que não restem dúvidas. Vivemos sob a égide do “Principio de legalidad, Estado de Derecho, Rule of Law, Règle de droit e Rechtsstaat”, as quais constituem todas expressões dentro dos distintos objetivos sociopolíticos no mundo ocidental, “a una conotación similar: supremacía de la norma jurídica general – la ley – por encima de las disposiciones eventualmente arbitrarias – aunque non necessariamente injustas, del poder del Estado” (GARCÍA, 1958) (grifo nosso). Os princípios constitucionais basilares de nosso ordenamento devem prevalecer, sob pena de grave retrocesso às instituições democráticas vigentes.


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