Outro ponto de vista: práticas colaborativas na arte contemporânea

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OUTRO PONTO DE VISTA práticas colaborativas na arte contemporânea

josé cirillo . josé luiz kinceler . luiz sérgio de oliveira [organizadores]

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OUTRO PONTO DE VISTA



OUTRO PONTO DE VISTA práticas colaborativas na arte contemporânea

josé cirillo . josé luiz kinceler . luiz sérgio de oliveira [organizadores]

Editora 2014


Copyright © José Cirillo | José Luiz Kinceler | Luiz Sérgio de Oliveira Todos os direitos desta o reservados à Editora XXXXXXX rua XXXX, XXX Cidade, Estado Telefone – E-mail É proibida a reprodução parcial ou total sem autorização expressa da Editora. Normalização: Caroline Alciones Revisão: Caroline Alciones e Luiz Sérgio de Oliveira Projeto gráfico, editoração e capa: Duplo Criativo [DC]

Catalogação na fonte Cirillo, José; Kinceler, José Luiz; Oliveira, Luiz Sérgio de (organizadores) Outro ponto de vista: práticas colaborativas na arte contemporânea José Cirillo; José Luiz Kinceler; Luiz Sérgio de Oliveira. – Xxxxxx : Xxxxxxx, 2014. 260 p. : il. : 17,8 x 23 cm. (inclui bibliografia, notas e ilustrações) - ISBN XXX-XX-XXX-XXXX-X 1. Arte. 2. Práticas colaborativas. 3. Artistas. 4. Comunidade.

Este livro é uma publicação conjunta do Programa de Pós-Gradução em Artes da UFES (Vitória), do Programa de Pós-Gradução em Artes Visuais da UDESC (Florianópolis) e do Programa de Pós-Gradução em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF (Niterói). Imagem da capa: Maurycy Gomulicki, Aerial Bridge, 2005. Tijuana, México (Foto: Luiz Sérgio de Oliveira)


SUMÁRIO

Apresentação

José Cirillo | José Luiz Kinceler | Luiz Sérgio de Oliveira

Para além da comunidade opaca e da esfera pública transparente

Gisele Ribeiro

Proposições colaborativas e público participante: das exigências às experiências

Paula C. Luersen

Os ruídos da autoria nos processos artísticos interativos/colaborativos em rede

Katyúscia Sosnowski | Maria Cristina Villanova Biasuz

O artista, homem do mundo

Luiz Sérgio de Oliveira

Intervenções artísticas no urbano: revendo “o novo paradigma relacional”

Luciana Benetti Marques Válio \ Maria José de Azevedo Marcondes

Acervo: experiências afetivas e materialidades do lugar

Isabela Frade

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O Coletivo Geodésica Cultural Itinerante e a revolução dos baldinhos: a horta vertical como uma plataforma de saberes e desejos compartilhados em arte colaborativa

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José Luiz Kinceler | Leonardo Lima | Paulo Villalva | Lucas Sielski Kinceler

Acionamentos do devir artista-nômade um projeto de arte colaborativa dentro do Museu da Maré

Marcelo Wasem

Desejos e olhares compartilhados: autorrepresentação em sistema de arte participativa

Mariana Novaes

Relato de uma arte no campo: laboratório de experiências em arte e agroecologia em Alegrete, RS - processos artísticos coletivos que deslocam e transbordam saberes

Janice Martins Sitya Appel

Coletivo Efêmero em Fortaleza: uma experiência de colaboração

Wilma Farias Gois | Síria Mapurunga Bonfim | Annádia Leite Brito

Projeto Vila Flores: práticas artísticas colaborativas pela revitalização de processos criativos no meio urbano

Antonia Wallig | Lucas Sielski

As tensões do efêmero: quando a apropriação coletiva revela a natureza da arte pública em objetos identitários em comunidades populares

José Cirillo

Cidade Luz: ações poéticas no Prestes Maia

Marcos Martins

Uma imagem, vários olhares: colaboração, construção e negociação no trabalho da Cia. de Foto

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Camila Schenkel

Informações sobre os autores

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APRESENTAÇÃO

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PARA ALÉM DA COMUNIDADE OPACA E DA ESFERA PÚBLICA TRANSPARENTE Gisele Ribeiro

O texto que apresentamos aqui faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre as ideias de esfera pública e de comunidade implicadas em práticas colaborativas enquadradas pela arte contemporânea. A investigação tem como hipótese que tanto a noção moderna de público quanto a ideia de comunidade retomada recentemente devem evitar idealizações, tornando possíveis abordagens críticas a partir do retorno de alguns pressupostos elaborados por artistas ligados à Crítica Institucional. Para tanto, vale a pena relembrar a discussão sobre a utilização do termo “comunidade” nas práticas artísticas derivadas do site-specific, abrigadas sob o novo gênero “arte baseada na comunidade” [“community-based-art”] comparando-o com

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noções diferentes noções de esfera pública. Enquanto a ideia de esfera pública carrega não apenas a noção de público, mas também sua relação com a ideia de “sociedade” – que como desenvolve Jürgen Habermas, em Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa (1984), se formou junto com a noção de Estado moderno –, o termo “comunidade” se refere normalmente a uma experiência pré-moderna ligada ao “comum” medieval. A esfera pública como espaço moderno aspiraria, portanto, à neutralidade e à “transparência” enquanto a comunidade se configuraria através de sua especificidade e “opacidade”. De modo geral, o renovado interesse pela comunidade pode ser entendido como um rechaço ao moderno frente à decepção provocada pelo desmascaramento de sua falsa neutralidade, tanto no campo da arte, – percebida nas posições contrárias à ideologia dos espaços neutros (o cubo branco, por exemplo) –, quanto na teoria política, com relação às pretensões do Estado moderno. Entretanto, a negação acrítica do moderno como um todo pode levar também a uma postura ingênua e romântica mediante a qual a pluralidade própria das distintas comunidades, quando mitificadas, confeririam às mesmas um caráter tão opaco que tornaria impossível uma relação entre elas. Ao mesmo tempo, por trás dessa recusa do moderno persiste a tentativa de fugir por completo das instituições, supostamente evitando a cooptação das combativas dos agentes. Tal movimento tem como pressuposto as possibilidades de se situar fora do alcance de qualquer guarda-chuva institucional bem como de se eximir de participar do processo de institucionalização generalizado. Entretanto, como nos tem demostrado as práticas artísticas voltadas para a ideia de crítica institucional e os escritos de teóricos como Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Chantal Mouffe, já não podemos localizar a instituição apenas em uma exterioridade, seja ela associada a arquiteturas de museus e galerias, seja sob a forma de organizações governamentais. As instituições se encontram, percebemos hoje, fluidamente impregnadas em nós, em nossos corpos e nossos modos de articulação, em nossos hábitos. Os trabalhos e textos de artistas como Daniel Buren, Marcel Broodthaers, Hans Haacke, Michael Asher, e mais recentemente Andrea Fraser, não cessam de apontar para o processo de institucionalização como algo que não se dá após a produção de um trabalho de arte, mas atravessa sua própria concepção1. A “instituição artística”, portanto, já não poderia ser associada simplesmente às paredes do museu ou da galeria – como faria, por exemplo, Mary Jane Jacob ao defender a arte pública como arte “extramuros” – e tampouco a algo determinado por seu vínculo com o financiamento estatal. Tal como

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a compreendemos hoje, a “instituição arte” reside precisamente no próprio âmbito discursivo em torno da palavra “arte”. Conforme esclarece Andrea Fraser em seu texto Da crítica às instituições a uma instituição da crítica (2008): De 1969 em diante, começa a emergir uma concepção de “instituição da arte” que não inclui só museu ou mesmo só os sites de produção, distribuição e recepção da arte, mas todo o campo da arte como um universo social. Nos trabalhos de artistas associados à crítica institucional, o termo começa a abarcar todos os sites nos quais a arte é apresentada – de museus e galerias a gabinetes corporativos e casas de colecionadores, e até mesmo espaços públicos quando neles há arte instalada. Também inclui os sites de produção da arte, ateliês, assim como escritórios, e os sites de produção do discurso artístico: revistas de arte, catálogos, colunas direcionadas à arte na imprensa popular, simpósios, conferências e aulas. [...] Na passagem de um entendimento da “instituição” basicamente como lugares, organizações e indivíduos específicos a sua concepção como um campo social, a questão referente ao que está dentro e fora torna-se muito mais complexa. [...] Arte é arte quando existe para discursos e práticas que a reconhecem como arte, seja como objeto, gesto, representação ou apenas idéia. A instituição da arte não é algo externo a qualquer trabalho de arte, mas a condição irredutível de sua existência como arte. Não importa quão pública seja sua localização, quão imaterial ou transitório, relacional, cotidiano ou mesmo invisível, o que é enunciado e percebido como arte é sempre já institucionalizado, simplesmente porque existe dentro da percepção dos participantes do campo da arte como arte; uma percepção não necessariamente estética, mas fundamentalmente social em sua determinação. 2 Desse modo, ainda que a noção de “esfera pública” seja inseparável dos avanços do capitalismo e de suas instituições, e que a noção de “comunidade”, por outro lado, se torne atrativa justamente por fazer coincidir sua opacidade com a especificidade do (que denominamos na arte) site, não nos parece possível eludir o processo de institucionalização moderno simplesmente fechando os olhos e negando sua insistente presença. No caso da arte, apesar da noção de comunidade permitir uma conexão quase perfeita entre o desenvolvimento das práticas de site-specific e as teorias multiculturais tão caras ao pós-modernismo, teríamos que considerar – como o faz Miwon Kwon ao final de seu livro One Place after Another 3 – outros modos de conceber tanto a relação dos trabalhos com seus sites, ou lugares, quanto as noções de comunidade e esfera pública. Se para Jean-Luc Nancy em La comunidad inoperante4, citado também por

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Kwon, pensar “o comum” apresentaria vantagens sobre o termo “sociedade” – na medida que a sociedade como associação que designaria uma unidade na exterioridade conotaria um laço emergente após sua constituição, enquanto o comum evocaria uma realidade primeira, um compartilhar que seria dado no próprio ser5 – ainda assim não nos parece produtivo fugir das noções de “público” e “sociedade”. Primeiro, justamente porque tais noções nos informam de nossa herança moderna. Neste caso, a crítica de Hannah Arendt e Chantal Mouffe sobre a domesticação da política encarnada no conceito de sociedade (moderna), por exemplo, poderia ser rapidamente descartada. E segundo, porque seja “o comum” seja “o público”, a “comunidade” ou a “esfera pública”, ambos polos precisam ser reavaliados e reformulados a fim de que possam ser entendidos como formações que concernem processos de identificação (segundo Nancy, que operam na própria constituição do ser) precários, cuja “incompletude” ou falta de “fixação última” aportarão características que já não se pode tomar nem como transparentes (como na ficção da esfera pública moderna) nem como opacas (como na ficção da comunidade pré-moderna). Será, portanto, precisamente o modo como o político atravessa estas formações, aquilo que as dotará de inestabilidade, de indeterminação ou de semiopacidade. Para Nancy, “o político é o lugar onde a comunidade enquanto tal se coloca em jogo” 6. Já para Mouffe: O político, entendido em seu sentido hegemónico, implica a visibilidade dos atos de instituição social, o que revela que não se deve considerar a sociedade como o desenvolver de uma lógica exterior a ela, seja qual for a sua origem. […] Toda ordem é uma articulação temporária e precária de práticas contingentes. 7 A idealização de qualquer uma das duas noções, “esfera pública” e “comunidade”, torna-se problemática, já que abafaria o político inerente a ambas constituições. O político e a arte como uma entre muitas esferas públicas Em sua diferença com a política, o político é compreendido por autores como Chantal Mouffe e Ernesto Laclau8 como aquilo que quando visível revela a contingência e a convencionalidade de uma certa ordem. Esta concepção e função do político permite entrever os antagonismos que atravessam o campo internamente mas também

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aqueles conflitos que o conformam externamente, configurando –sempre instável e temporariamente – seus limites frente a outros campos. A relação do campo da arte com essa perspectiva sobre o político revela ainda que as práticas artísticas não vão tornar perceptíveis as convenções (ou seja, a ordem estruturada hegemonicamente), e posicionar-se frente a elas, do mesmo modo. Algumas práticas vão optar simplesmente por ignorar a convencionalidade do campo (negando simultaneamente qualquer aspecto político), outras vão trabalhar na ocultação das convenções, tornando-as transparentes e imperceptíveis, umas vão se dedicar a “romper com as convenções” (embora muitas vezes de modo também convencional) enquanto outras vão entender o trabalho na arte como negociação política, insistindo na atenção às contingências. Neste último caso, mesmo diante da impossibilidade de se abdicar de toda ordem ou convenção, valeria a pena enquadrá-las, já que sua visibilidade carrega a promessa de que poderiam sempre constituir-se de outro modo. Entretanto, há de se considerar que se no momento atual tendência à domesticação e neutralização do político, sua própria ocultação, não deixaria de configurar-se como política. Nesse sentido, os trabalhos que evitam a emergência do político, estariam operando também politicamente, seja de modo consciente ou inconsciente, sem que se possa supor que o político esteja presente do mesmo modo em toda e qualquer produção artística. Ainda assim, se nos deparamos com práticas que optam por tornar perceptível o político, tal postura obviamente não garante que sua “política” seja contrária ao conservadorismo, ao totalitarismo, ao paternalismo, às hierarquizações, ou que esteja interessada na luta contra formas de opressão e dominação, de modo geral. A arte não seria, portanto, dotada a priori de uma capacidade política específica vinculada a sua essência y presente da mesma forma em todo e qualquer prática, nem tampouco estaria isenta deste potencial, inerente a todos os domínios desde sua própria constituição. Não seria por outro motivo que Rosalyn Deutsche e Chantal Mouffe – assim como no caso de outros críticos e teóricos – iriam coincidir quando argumentam sobre a necessidade de se evitar o rótulo de “arte política”: Today, art discourse is characterized not only by the usual conservative assertions of art’s independence of material and political life, against which politicized artists have long struggled, but also by renewed interest in art’s relations to politics and by advocacy of so-called ‘political art’ – a term best avoided, I think, since it implies that art

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per se is free of politics. Recently, there have been numerous books, exhibitions, articles, issues of journals and conferences – including this conference – devoted to the topic of art and politics.9 Nesse sentido, o modo como um trabalho concebe a questão da identidade e da subsequente formação comunitária é um dos aspectos relevantes a se considerar em uma análise de sua dimensão política, já que poderia mascarar problemáticas convenções em torno da representação ou torná-las visíveis. Se retomarmos as distinções estabelecidas por Miwon Kwon10 entre as possibilidades de concepção da noção de comunidade em práticas artísticas colaborativas, veremos que tais diferenças indicam maneiras diversas de entender o processo de identificação. Kwon as dividiria da seguinte maneira: comunidade baseada em uma unidade mítica (as mulheres, por exemplo) comunidade “localizada” [“sited”] comunidade inventada (temporária) comunidade inventada (ainda em atividade)11 No primeiro caso, portanto, a identidade seria supostamente constituída antes da formação comunitária, como um apriori – o que ocorreria com as primeiras concepções do sujeito do feminismo, mas também na configuração da classe operária nos primórdios da tradição marxista, tal como apontam Mouffe e Laclau em seu livro Hegemonia e estratégia socialista –. No segundo caso, a comunidade estaria vinculada a um lugar, o que também se basearia em uma identidade “naturalizada”, aprioristicamente formada, como no caso das identidades nacionais, do brasileiro do Brasil, do carioca do Rio de Janeiro, do capixaba do Espírito Santo e do paraense do Pará. Nos terceiro e quarto casos, haveria uma maior compatibilidade com a concepção da identidade concebidas como um processo forjado em meio a contingências. No último caso, no entanto, ainda haveria o risco de mitificação já que se acreditaria que uma vez constituídas, tais identidades e comunidades, permaneceriam fixas para sempre. Apenas a terceira alternativa, onde a identificação inventada funcionaria temporariamente, como um processo necessariamente precário e incompleto, seria condizente com as formulações apresentadas por Chantal Mouffe. Em suas palavras:

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Una vez que aceptamos que las identidades nunca están dadas de antemano, sino que son siempre el resultado de procesos de identificación, que están construidas discursivamente, la cuestión que se plantea es el tipo de identidad que las prácticas artísticas críticas deben ir encaminadas a fomentar. Está claro que quienes propugnan la creación de espacios públicos agonistas, en los que el objetivo es revelar todo lo reprimido por el consenso dominante, van a concebir la relación entre las prácticas artísticas y su público de forma muy diferente que aquellos cuyo objetivo es la creación de consenso, aun cuando lo consideren crítico.12 Haveria aqui a compreensão do processo de identificação como produção relacional, onde as identidades não estariam anteriormente formadas, mas se constituiriam discursivamente quando postas em relação.

A arte e a esfera pública como meio opaco os problemas não cessam quando essa espécie de lição – produzida tanto pela crítica disseminada de Miwon Kwon quanto por influência da teoria de Chantal Mouffe – parece ter sido apreendida pelas práticas colaborativas derivadas da “arte-baseadaem-comunidade” em atuação nessas primeiras décadas do séc. XXI. Muitas dessas práticas – presentes em eventos artísticos por todo o mundo – cientes do debate em torno da formação comunitária, evitam o mesmo enquadramento dos anos 1980 e 1990, atualizando seus discursos com teorias políticas coetâneas. Em um artigo publicado na Artforum em 200413, que discute “projetos dedicados a transformações sociais através da criação de comunidades experimentais”, Carlos Basualdo e Reinaldo Laddaga abordam experiências realizadas em lugares tão distantes entre si quanto Caracas, Kassel e Nova Deli, cujas preocupações seriam convergentes. Segundo os autores: These artists eschew making stable, self-sufficient objects that are removed from the particular physical or social contexts in which they appear. They do not produce specific events or performances confined

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to a particular place or time, but rather, they propose open-ended projects aimed at fostering experimental communities: temporary but durable associations composed of artists and nonartists united in their mutual endeavor.14

Entre os trabalhos discutidos por Basualdo e Laddaga está aquele do artista suíço Thomas Hirschhorn, Bataille Monument, proposto para a Documenta de Kassel em 2002. Com características similares a outros projetos seus, como Deleuze Monument em Avignon (2000) e o The Bijlmer-Spinoza Festival em Amsterdã (2009), este projeto de 2002 parte de uma série de construções “precárias” – cujo aspecto formal já é característico como estilo de Hirschhorn: madeira de tapumes sem acabamento, papel cartonado, muita fita adesiva, escritos à mão em caneta ou pincel – localizadas em uma área pertencente a um bairro residencial de maioria imigrante turca ao norte de Kassel. O projeto incluía a “colaboração da comunidade” na construção de uma escultura, uma biblioteca, uma exposição, um estúdio para transmissão televisiva, uma página web e um bar, e previa um serviço de translado que levava e trazia os visitantes da Documenta de seu espaço central em Friedrichsplatz até o local do trabalho no bairro turco. Segundo os autores do artigo da Artforum, o processo de construção do trabalho já implicava a “invenção de uma possível comunidade” 15, demonstrando uma diferença, e um avanço, com relação àquelas práticas de educação artística ou de arte comunitária financiadas pelo Estado, já que estas conceberiam a produção da arte como uma atividade compensatória, ao mesmo tempo que manteriam, com frequência, “uma noção estática de comunidade” 16. Nesse sentido, a crítica de Kwon – e, poderíamos dizer, também de Mouffe – parece apresentar uma saída, que permitiria às práticas interessadas em processos comunitários simplesmente contornar questões relativas à identificação e à constituição da comunidade. No entanto, seja a comunidade de imigrantes turcos da periferia de Kassel, sejam os imigrantes surinameses do bairro de Bijlmer em Amsterdã, Hirschhorn toma seus sites de modo similar a como as práticas dos anos 80 tomavam a comunidade com a qual decidiam trabalhar, mas agora com uma mudança no discurso. Hirschhorn segue à risca a pauta de Basualdo e Laddaga a fim de prevenir que práticas colaborativas incorram nos erros do passado (posicionando-se explicitamente contra a categoria de “arte-baseada-em-comunidade” dos anos de 1980 e 1990)17. De acordo com

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Basualdo e Laddaga, as práticas colaborativas devem: romper com a figura sacrificial do altruísmo; evitar produzir eventos e performances específicos para um tempo e lugar particulares; evitar a tentação de se identificar com a comunidade; evitar tomar a comunidade como autêntica ou organicamente definida.18 Entretanto, se os projetos devem acontecer em contextos onde não se poderia mais pressupor as identidades fixas, mas entender o processo de identificação dos participantes como “inexoravelmente voláteis”, como se explica o fato dos sites de Hirschhorn abrigarem sempre uma população imigrante com uma determinada procedência comum (sabendo-se que os agrupamentos de imigrantes são aqueles que mais facilmente se identificam com a ideia de “comunidade perdida”)? O artista tenta solucionar o problema da exclusividade que impregna a ideia de especificidade da comunidade como site, simplesmente insistindo em suas declarações que o público ou a comunidade com os quais trabalha seriam “audiências não- negando inclusive que o contexto onde projeta o trabalho lhe importe. Retorna, dessa forma, à afirmação – agora sem qualquer ponderação – da Universalidade e da autonomia da Arte (as duas com maiúsculas)19, apostando ainda no idealismo moderno de que as obras poderiam ser experimentadas sem qualquer mediação.20 O contra-discurso de Hirschhorn recobra para si vários pressupostos criticados por teorias e práticas artísticas a partir dos anos 60, em um movimento cíclico, que opera na lógica da recusa do passado recente, próprio da tradição do novo moderno.

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[Fig.1, 2, 3, 4 e 5] Thomas Hirschhorn, Bijlmer Spinoza Festival, Amsterd達, Holanda, 2009.


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Sua noção de site assume agora a função de meio, onde este volta (como em Greenberg) a ser considerado em sua opacidade, abandonando completamente qualquer vínculo com a ideia de representação. Segundo as declarações de Hirschhorn, os “moradores implicados” em seus projetos estão ali para ajudar a ele, ao artista, na construção do trabalho e não ao contrário, como proporiam as práticas que viam seu labor como serviço à comunidade. No entanto, como nunca chega a esclarecer porque e como elege cada comunidade, o trabalho se apropria desses moradores como um meio, a fim de compor um quadro – agora em tempo e espaço expandidos – onde os vizinhos e suas precárias identidades e vidas lhe servem como uma cor. Tudo permanece na aparência, na opacidade da superfície greenberguiana, onde o protagonista é, conforme a tradição, o artista. Al igual que en mis otros trabajos en espacios públicos –aquellos que necesitan de una implicación directa de los vecinos, como en el caso del Deleuze Monument, del Spinoza Monument o del Bataille Monument– para mí se trata de implicar a los vecinos. La legitimidad que me otorgo como artista para implicar a los vecinos y para establecer un diálogo con ellos es pedirles que me ayuden. No se trata de preguntarles: ¿Qué es lo que queréis? ¿Qué puedo hacer por vosotros? ¿Cómo puedo ayudaros? Sino todo lo contrario. Yo soy un artista, tengo un proyecto, una idea, una misión, pero para llevarlo a cabo !necesito ayuda! Vosotros que vivís aquí, ¿podéis ayudarme a realizar mi proyecto? !Soy yo, el artista, quién necesita vuestra ayuda, vecinos! Por eso mi trabajo no es un trabajo social, es un trabajo de artista. El punto de partida lógicamente soy yo, el artista.21 Apesar de todo o exposto, no entanto, o trabalho de Hirschhorn não poderia ser totalmente desmerecido, pois traz aspectos interessantes que transbordam o seu discurso. Ao propor construir e oferecer serviços como bibliotecas, salas de exposição, cafés/bares, teatros e conferências – espaços vinculados à esfera pública burguesa – no seio de um espaço comunitário, seus “monumentos” e “festivais” colocam frente a frente a lógica da esfera pública e da comunidade, provocando uma potente fricção para

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a reflexão na arte22. Ainda assim, o artista deixa a auto-crítica com relação ao campo da arte de lado e insiste, contraditoriamente, que não há exclusão em seus projetos artísticos, onde os mesmos se dirigiriam (segundo ele) não à instituição arte, mas aos “Outros” 23. ‘The Bijlmer Spinoza-Festival’ could have taken place in a different neighbourhood than the Bijlmer. This work could have been built in another city, another country or another continent. 24 Em um artigo que tenta contrastar e defender a noção de “antagonismo” de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau frente à “estética relacional” de Nicolas Bourriaud como duas bases teóricas possíveis para a arte colaborativa, Claire Bishop contrapõe os trabalhos vinculados ao curador francês – como aqueles de Liam Gillick e Rirkrit Tiravanija – às práticas de Thomas Hirschhorn e Santiago Sierra, que, segundo a autora, poderiam ser associadas à ideia de antagonismo. Bishop aproxima assim estes dois últimos da teoria sobre o político de Mouffe e Laclau como se suas práticas fossem próximas. Entretanto, consideramos que os dois artistas trabalham com pressupostos e posições políticas bastante diferentes. Longe de colocar o artista em uma posição confortável, muito menos sobre um pedestal, os trabalhos de Santiago Sierra tornam perceptíveis as contradições e o poder depositados tanto nas mãos do artista quanto no sistema da arte. Se a teoria da hegemonia de Mouffe e Laclau implica colocar sob foco crítico a linguagem, a identidade e o social, delimitar o contexto ou o campo discursivo sobre o qual se pretende influir, além de enfrentar a impossibilidade de não-exclusão bem como os diversos antagonismos presentes no campo (da arte ou outro qualquer), os trabalhos crítica e conceitualmente atentos de Santiago Sierra parecem oferecer reflexões muito mais contundentes aos problemas artísticos e sociais atuais25. Consideraríamos, portanto, que para enfrentarmos o político de modo mais incisivo, torna-se necessário retomar as contribuições da arte conceitual e da crítica institucional, deixadas de lado, por exemplo, por Miwon Kwon como apenas uma etapa passada no desenvolvimento da noção de site26. Neste sentido, poderíamos considerar que a produção de Santiago Sierra, que combina um enfrentamento político preciso com uma atenção focada nos mecanismos de funcionamento da instituição arte, expõe de modo muito mais contundente os antagonismos e o paradoxo nos quais estão imersos o trabalho do artista. É certo que, tomado superficialmente, o trabalho de Hirschhorn também parece encaixar-se na teoria da hegemonia de Chantal Mouffe. Tal experiência crítica demonstra, por um lado, que determinadas teorias e projetos filosóficos são utilizados, cada vez mais, como simples legitimadores de práticas, mas também, por

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outro, que – longe de mantermos uma distância com relação à teoria crítica – deveríamos investir em uma investigação atenta, a fim de refletir criticamente sobre as posições políticas e artísticas implicadas em cada proposta colaborativa, mantendo um olho aqui e outro lá, entre a opacidade e a transparência. A questão não seria, portanto, atacar ou glorificar as práticas que parecem transbordar as margens tradicionalmente estabelecidas para a arte, mas indagar cada uma a partir do pressuposto que o terreno artístico é um campo social discursivo, onde os antagonismos e as articulações hegemônicas estão sempre em operação.

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[Fig. 6 e 7] Santiago Sierra, Campanha dentes dos Ăşltimos ciganos de Ponticelli, NĂĄpoles, Itlia), 2009.


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Notas 1 FRASER, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. In: Concinnitas, Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, Ano 9, Vol. 2, nº 13, dezembro de 2008. Ver também: BUREN, Daniel. “The Function of the Studio” (1971). In: KRAUSS, R.; CRIMP. D., et al (eds.). October: The First Decade1976-86. Cambridge: MIT Press, 1988. 2 FRASER, Da crítica às instituições a uma instituição da crítica, op. cit. , p. 182-184. 3 KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. Cambridge/London: MIT Press, 2004. 4 NANCY, Jean-Luc. Prefácio. La comunidad inoperante. Santiago de Chile: ARCIS, 2000. 5 NANCY, Jean-Luc Nancy/Chantal Pontbriand, un entretien. In: Parachute: revue d’art contemporain, Edición especial “L’idée de communauté/01”, nº 100, out./nov./dez. de 2000, pp. 18-19. 6 NANCY, Prefácio. La comunidad inoperante. Op. cit., p. xxxviii. 7 MOUFFE, “Prácticas artísticas y política democrática en una era pospolítica”. In: MOUFFE, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Macba/UAB, 2007, p. 62. Tradução nossa. 8 LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987. 9 DEUTSCHE, Rosalyn. The Art of Non-indifference. In: SCHMIDT-WULFFEN, Stephan (ed.); et al.. The Artist as Public Intellectual? Wien: Akademie der Bildenden Künst Wien/ Schlebrügge Editor, 2008, p. 19. 10 KWON, op. cit., p. 116. 11 Ibid., p. 118-135. 12 MOUFFE, op. cit. (2007), p. 67. 13 BASUALDO, Carlos; LADDAGA, Reinaldo. “Rules of Engagement”. In: Artforum International, março 2004, pp. 166-169. 14 Ibíd., p. 166. 15 Ibíd., p. 167.

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16 BASUALDO, Carlos; LADDAGA, Reinaldo. Rules of Engagement, op. cit., p. 167 17 Em conferência proferida na Casa Encendida em Madri, Hirschhorn explicitamente rejeita a utilização das expresses “community art”, “educational art” ou “arte participative”. HIRSCHHORN, Thomas; PIRON, François. “Bijlmer Spinoza Festival” [conferencia]. Madrid: La Casa Encendida, 2009. 18 BASUALDO, Carlos; LADDAGA, Reinaldo. “Rules of Engagement”, op. cit., p. 167 19 Em entrevista a Ross Birrell, na revista Art&Research, “RB: Is there a connection for you between your insistence upon the autonomy of the art work and autonomous political movements, for example in political anarchism or the Italian autonomists? [...] TH: No, there is no connection that I could establish. I just believe in the autonomy of Art – because it’s Art – and I do think that it is the autonomy of an Artwork which gives it its absoluteness”. HIRSCHHORN, Thomas; BIRELL, Ross. The Headless Artist: An interview with Thomas Hirschhorn on the Friendship between Art and Philosophy, Precarious Theater and the Bijlmer Spinoza-Festival”. In: Art&Research: A Journal of Ideas, Contexts and Methods, vol. 3, nº 1, inverno 2009/2010. Disponível em: http://www.artandresearch.org.uk/v3n1/hirschhorn2.html. Acesso em 10/9/2012.. 20 HIRSCHHORN, Thomas; et. al. The Subjecters [catálogo exposição]. Madrid: La Casa Encendida, 2010, pp. 59-60. 21 Ibíd., p. 62. 22 HIRSCHHORN; BIRELL, op. cit. (2009/2010) 23. O artista explicita esta formulação através de um esquema e afirma: “Je dirige [mon travail] a des autres, gens que s’intérêt naturellement pour l’art”. HIRSCHHORN, Thomas; PIRON, François. “Bijlmer Spinoza Festival” [conferência]. Madrid: La Casa Encendida, 2009. 24 HIRSCHHORN; BIRELL, op. cit. (2009/2010) 25 MOUFFE, op. cit. (2007), p. 69. 26 Segundo Kwon, essa etapa seria caracterizada pela noção de “site institucional” dos anos 1970.

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Referências 2010.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

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PROPOSIÇÕES COLABORATIVAS E PÚBLICO PARTICIPANTE: DAS EXIGÊNCIAS ÀS EXPERIÊNCIAS Paula C. Luersen

Assumir o papel de público de arte é propor-se um exercício de percepção e imaginação que envolve constante aprendizado. Do olhar solitário à fruição coletiva, do silêncio à necessidade do diálogo, do distanciamento à imersão, o encontro com a obra de arte oferece ao público múltiplas possibilidades de experiência, mas um incessante retomar dos modos de ver, sentir, interagir. Nesse exercício constitui-se o público que, por sua vez, institui a obra. Como nas palavras de Fernando Pessoa, o público precisa buscar em cada obra um recomeço: “Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram. E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos.” (PESSOA, 1980, p. 54)

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A obra necessita do outro. Atualmente se reforça a consciência de que a obra de arte só passa a existir, de fato, na presença de um público. Mais do que a presença, hoje aumenta o número de propostas artísticas que exigem a ação e o envolvimento do outro. As propostas chamadas colaborativas ou participativas fazem da interferência do outro um mecanismo de abertura para a construção conjunta da obra, não mais totalmente dependente do artista. A partir disso, o trabalho se modifica constantemente e objetivamente no decorrer de um processo que se define na medida em que vai sendo feito. Nesse sentido, cada vez mais se mostram válidas as palavras do escritor francês Jean-Cristophe Rouyoux que em um artigo para a Documenta de Kassel, afirmava “a participação do espectador como o principal legado da vanguarda dos anos 1960 e 1970.” (BRETT, 2005, p. 44) Vários autores comentam a reafirmação de práticas desse caráter a partir dos anos 90 (BORRIAUD, 1998; BISHOP, 2006) e nos últimos 10 anos (KESTER, 2006). De fato, muitos artistas contemporâneos vêm fazendo uso de estratégias colaborativas, associando-as ao desenvolvimento das mais diversas intenções poéticas. Esse texto tem por objetivo discutir processos colaborativos do ponto de vista dos participantes, tendo como base dois trabalhos exemplares: o Coro de Queixas – proposição performática dos artistas Oliver Kochta-Kalleinen e Tellervo Kalleinen1; e PORTA-POR-TER – proposição do artista Paulo Damé�. O que significa para o público integrar uma produção artística no papel de participante? Um dos pontos de vista para olhar essas propostas é o que as considera impositivas, ao tornarem o processo de instauração da obra dependente obrigatoriamente da colaboração e do outro. Porém, ao considerar o contexto das grandes exposições contemporâneas, marcado pelo excesso, pela rapidez e imediatismo, não seriam as proposições colaborativas – com suas exigências – uma possibilidade de o público participante comprometer-se a ponto de vivenciar uma experiência?

Participação e colaboração: escolhas e incertezas Antes de analisar os exemplos, podemos começar a entender o que significa colocar-se como participante imaginando a reação daquele que se vê convidado a integrar uma proposta artística que tomará forma a partir da sua colaboração. Afinal, o que significa participar de uma obra? O convite à participação prevê muitas possibilidades. Uma das formas de evidenciar a dificuldade de definição do participar é comparando-o

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ao contemplar. É fácil imaginar um indivíduo contemplando uma obra. A contemplação está ligada a uma relação visual e a certa conduta e postura previsíveis – e continuamente reforçadas nos espaços de arte. Há sempre, claro, as variantes como o distanciamento, o tempo, a atenção, que unificam cada um dos momentos em que se contempla. Ainda assim, ao dizer que contemplo estou definindo uma ação e uma conduta em relação à obra perfeitamente imagináveis. Porém, tentemos imaginar um público participando de uma obra. Pode-se conceber a cena já mencionada no sentido de completude imaginária da obra. Mas na contemporaneidade participação e colaboração se expandem, abarcando a noção de autoria compartilhada. Assim, embora contemplar um quadro de Rembrandt seja completamente diferente de contemplar uma assemblage de Picasso ou um quadro de Pollock, eles envolvem uma relação mais próxima do que colaborar com uma proposição de Lygia Clark, com um happening de Kaprow ou participar de um ambiente de Tiravanija. Esses trabalhos envolvem diferentes ações e exigem atitudes que fogem ao posicionamento tradicional. Dessa forma, cada um pode possuir um referencial muito distante do que é participar de um trabalho de arte e colaborar com a proposição de um artista. Diferente de uma arte contemplativa que não guarda marcas ou vestígios visíveis da conduta e da passagem do público, nas propostas participativas as decisões e escolhas dos participantes interferem diretamente no processo em obra. Aqueles que se dispõe a participar são incumbidos, então, de assumir parte da responsabilidade sobre o curso do processo. Em razão disso, muitas vezes as propostas participativas são vistas como uma arte impositiva. Rancière traduz muito bem essa visão. Para ele, nesse tipo de arte mais do que interpretar ou completar a obra, o público precisa fazê-la acontecer e isso só se dá se ele aceita as regras do jogo. (...) Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender. (RANCIÈRE, 2011) De fato, a ação e interferência do outro, segundo determinadas regras, são condições para o próprio desenvolvimento das propostas participativas ou colaborativas, o que acaba colocando o público numa posição de obrigatoriedade. Não estando um indivíduo ou grupo dispostos a participar, de fato, pode não haver obra. Mas quais seriam as regras do jogo mencionadas por Rancière? Analisemos as propostas colaborativas que

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servirão de referencial para as discussões propostas nesse texto: Coro de Queixas dos artistas Oliver Kochta-Kalleinen e Tellervo Kalleinen e PORTA-POR-TER, de Paulo Damé – a primeira como exemplo de uma participação coletiva, que engloba uma comunidade, e a segunda representando uma participação mais individualizada, que pouco a pouco aproxima um grupo. O Coro de Queixas de Kochta e Kalleinen consiste em convocar a população de determinada localidade e formar um coral para cantar reclamações, na forma de canções, em pleno espaço urbano. A idéia surge da experiência dos artistas, que depois de morarem em diversos lugares do mundo passaram a perceber “o ato reclamar como uma prática universal, independente de local, de cultura, de sistema político”3. As queixas são vistas como uma forma de ligação entre as pessoas. Além disso, o projeto também partiu da palavra valituskuoro que significa “coro de reclamações” e é usada no finlandês para definir as reclamações coletivas. O processo é simples: os colaboradores integram-se à proposta a partir de um convite aberto nos jornais da cidade, quando é marcado um encontro em determinado local e data. Assim se inicia uma série de oficinas e encontros, onde se dá a construção do coro e da canção a ser entoada. O término do processo se dá em colaboração com músicos e regentes, com uma performance em que o coro canta suas reclamações em um espaço público da cidade – o que resulta na produção de um vídeo. Já a mostra-troca PORTA-POR-TER do artista brasileiro Paulo Damé, se vale de uma forma diferente de envolvimento. A proposta do artista é criar situações de troca. O artista estabelece um ambiente para receber o público: posta no espaço de uma galeria um grande armário de madeira, onde exibe uma série de pequenos objetos estranhos de diferentes formas, tamanhos e materiais, feitos manualmente. Os objetos ficam visíveis apenas pelas portas de vidro, nas prateleiras internas do armário. A colaboração do público rege o desenrolar da proposta, que se dá pela repetição de um procedimento: o participante escolhe um dos objetos de dentro do armário, levando-o consigo por um período determinado; em troca, deixa um objeto pessoal de valor para fazer parte da mostra durante o mesmo período. Na ocasião em que foi realizada, de agosto a setembro de 2008, em uma galeria na cidade de Pelotas, as trocas eram negociadas por um grupo de mediadores instruídos pelo artista e sempre a espera do público no espaço expositivo. Os interessados em possuir provisoriamente uma das peças de Paulo Damé precisavam, portanto, convencer os mediadores sobre o valor do objeto pessoal que traziam para a exposição. No ato da troca, o colaborador escrevia ainda a história do seu pertence no

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caderno do artista e preenchia um cupom onde constavam as datas de retirada e entrega do objeto. Voltemos então à questão levantada por Rancière: se as propostas participativas são impositivas, envolvendo um público a partir de certas regras, quais seriam essas regras? A partir dos dois exemplos apresentados é possível reconhecer que nas propostas participativas a relação público/obra não se dá a partir de um produto, mas em nível de processo, e dela depende a construção objetiva da obra. O processo se define na medida em que vai sendo feito, e dessa forma, o participante não pode prever totalmente os rumos do mesmo. Assim, a imprevisibilidade é uma primeira regra do jogo da participação e os colaboradores precisam aceitá-la ao engajar-se no trabalho. Outra regra que podemos identificar observando as obras elencadas durante esse trabalho, diz respeito ao tempo do processo e da obra. Propostas de caráter colaborativo envolvem um protocolo: freqüentar encontros para a construção de uma música e de um coral; conviver com um objeto desconhecido, escolhendo outro para se desfazer por determinado período. Para participar e contribuir com o desenrolar da proposta, os colaboradores precisam se adequar ao tempo próprio dessas proposições, imposto por cada uma delas. E existe ainda uma terceira regra: as propostas que envolvem a participação e colaboração exigem que o público se exponha. Ao interferir objetivamente em um processo artístico, os participantes são obrigados a abandonar uma atitude subjetiva em relação à obra, expondo-se por meio de sua ação. Em algumas das proposições, o público precisa deixar para trás até mesmo o anonimato – ligado ao “grande público” nas grandes exposições – revelando seu nome, apelido ou outras informações, que ficam registradas de alguma forma no trabalho. Assim, participar é expor-se. É confessar reclamações e preocupações particulares, compartilhando-as com um grupo, para depois cantá-las em pleno espaço público; é deixar em exposição, aos olhos de todos, um pertence considerado de valor, dividindo com o artista sua história e o porquê de sua importância. Em vista desses aspectos, quando comparadas a uma arte que está diante do público, as propostas participativas se mostram, de fato, bastante exigentes em relação ao outro. Mas da mesma maneira que tais exigências podem ser associadas a uma arte impositiva, queremos propor que elas também podem representar, sob outra perspectiva, uma abertura para a experiência. O jogo da participação, a partir desse ponto de vista, se coloca como possibilidade de um maior comprometimento de um público que ao assumir a conduta participativa e os riscos que lhe são próprios, mostra-se aberto a

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vivenciar uma experiência. Mas antes de analisarmos como isso se dá, cabe esclarecer o que consideramos, aqui, como experiência.

O risco em obra: a participação e a possibilidade de experiência Para Jorge Larrosa (2002) vivenciamos uma experiência quando a relação com algo que nos cerca nos mobiliza e nos marca, quando um acontecimento ou episódio destaca-se da vida corrente para tomar um sentido transformador. Na visão de Larrosa, pesquisador e professor espanhol, a experiência se molda na relação entre o conhecimento e a vida humana, na forma como o sujeito elabora o sentido ou semsentido do que lhe acontece. Da experiência provém um saber particular, singular e inseparável daquele que a vivencia. Sentir o que nos passa ao invés de saber do que se passa: eis a condição para vivenciarmos uma experiência. Para o autor, contudo, o sentir e o presenciar em que a experiência se baseia, vêm perdendo força e importância frente a um mundo atualmente organizado para que nada nos aconteça. A ênfase na informação que caracteriza a sociedade atual faz do sujeito alguém que precisa acompanhar o que acontece no mundo. No buscar incessante por informação, guiado pela constante insatisfação, o sujeito moderno torna-se incapaz de vivenciar. Como conseqüência, mantém uma relação superficial e imediata com aquilo que o cerca. Para Larrosa, essa perspectiva informacional conduz a um saber urgente, fabricado e manipulado pelos aparatos da informação e da opinião. Saber valorizado por uma sociedade que já não conhece a dimensão da experiência, pouco a pouco aniquilada pela ênfase na informação. Informação e experiência são, assim, dimensões contrárias que moldam nossa forma de relação com o mundo. Transpondo essa visão para o universo das artes, é possível encontrar correspondências entre o argumento de Larrosa e a relação entre obra e público que se estabelece no contexto atual das grandes exposições. Podemos identificar, por exemplo, a constante insatisfação característica do sujeito de informação, expressa na postura dos visitantes. Aracy Amaral, crítica de arte que acompanha diversas exposições pelo mundo faz a seguinte observação sobre o público: Vemos as pessoas, aparentemente entediadas, visitando Bienais, ou uma exposição de arte, individual ou, sobretudo, coletiva, nacional ou

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estrangeira. Por quê? Na verdade, quem se surpreende, se impacta, com o que vê? Mas, pergunto: haveria algo para se surpreender do que é apresentado? Caminhamos, flanamos, o olhar vagando pelas peças, não nos detendo em nenhuma... (AMARAL, 2011) A fala de Aracy transparece a relação obra/público superficial que muitas vezes impera nas grandes exposições, muito bem descritas por Agnaldo Farias (1997) como “verdadeiros hipermercados de problemas [...] 700 problemas colocados em cada esquina”. Inserido nesse espaço complexo, as pessoas acabam sem dedicar o tempo e a atenção devidos a cada uma das obras, circulando em busca de algo que tenha o poder de impactá-lo e surpreendê-lo a um primeiro olhar. Na grande maioria dos casos dedicam um rápido olhar a uma infinidade de obras para aproximar-se verdadeiramente apenas de pequena parte delas. Ao favorecer uma relação imediata do sujeito com aquilo que o cerca – nesse caso, as obras – tal contexto ratifica o argumento de Larrosa, segundo o qual é cada vez mais difícil vivenciarmos uma experiência, em um mundo organizado para que nada nos aconteça. Os espaços expositivos parecem não mais representar a fronteira necessária entre o ritmo acelerado da vida e a cadência mais lenta, mais paciente está ligada à apreciação. Arthur Danto dá testemunho dessa dificuldade de interrupção de um ritmo acelerado: Na vida cotidiana, em que a percepção está ligada à sobrevivência e se deixa guiar pela experiência, nosso campo visual se estrutura de tal modo a relegar a um segundo plano tudo o que não se enquadra nos nossos esquemas mentais. Esses hábitos do olhar são transferidos para o espaço do museu (...) onde é preciso um ato de vontade para deter o costume de passar os olhos rapidamente em um texto que devemos estudar. (DANTO, 2005, p. 177) Mas ainda que a ênfase na informação e em um saber informacional se converta em regra, a experiência e o saber de experiência persistem como exceção. Buscaremos demonstrar aqui que as propostas colaborativas e participativas, ao mesmo tempo em que podem ser vistas como impositivas, também podem aproximar as pessoas da dimensão da experiência, ao exigirem uma postura marcada pelo comprometimento e pelo risco. As regras do jogo da participação podem ser vistas, a partir dessa perspectiva

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como aberturas para a possibilidade de experiência. Os trabalhos aqui apresentados – Coro de Queixas e PORTA-POR-TER apontam para uma forma de relação entre a obra o outro bastante diversa da estabelecida no contexto atual das grandes exposições, ainda que a primeira já tenha sido desenvolvida no contexto referido, mas fora do ritmo geral do evento. Como já vimos uma das características das propostas colaborativas é o envolvimento dos participantes em termos de processo e não a partir de um produto. Para tomar parte do processo – aberto e dependente da ação conjunta – os participantes precisam arcar com a imprevisibilidade. Essa atitude fica bastante clara no Coral de Queixas de Teutônia. Segundo Lucas Brolese, regente do grupo, muitos dos teutonienses que se integraram à proposta compareceram aos primeiros encontros do coral sem ter a noção do que significava participar de um processo artístico. Eles não conseguiam conceber de que forma se daria a construção de uma obra em colaboração: “no contato com as pessoas percebi que muitos desconheciam o assunto.” Dessa maneira, apesar dos participantes entenderem a proposta a partir de outros referenciais, trazidos por cada um deles, eles estavam se envolvendo não apenas com um tipo de arte da qual ainda não tinham conhecimento, mas também em uma situação nova, desconhecida e, em virtude disso, altamente imprevisível. Para Larrosa (2002) uma das características da experiência é que ela tem sempre “uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. (...) A experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido.” Na fala sobre os coralistas de Teutônia, é possível perceber que a participação em um processo artístico significou encarar o desconhecido e envolver-se em um processo do qual não se podia prever totalmente os rumos. Essa pode ser considerada uma primeira aproximação que as propostas colaborativas promovem entre a dimensão da experiência e o público participante: ao tornar-se parte da proposta, ele precisa aceitar a imprevisibilidade, abandonar o lugar de conforto representado por um comportamento padrão nos espaços expositivos e abrigar a incerteza, o que pode ser considerado um primeiro passo na abertura à experiência. Porém, na fala do regente do coral é possível perceber que a experiência foi além do desafio de dispor-se a colaborar para um processo incerto: Alguns nunca tinham ido à Bienal, outros nem tinham ouvido falar. Conheceram sobre arte, foram co-autores da obra, ampliaram sua

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capacidade de visão do mundo, deixaram preconceitos de lado e com muita coragem foram fiéis ao projeto e se divertiram muito. (informação verbal)4 Assim como a imprevisibilidade, o risco é também uma implicação da conduta participativa. Larrosa considera o risco uma abertura para que sejamos perpassados, transformados pela relação com o que nos cerca. Para descrever o sujeito que aceita arriscar-se, o sujeito da experiência, ele usa como metáfora a figura do pirata: o sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele a prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. [...] Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. (Id., p. 25) Uma das versões do Coro de Queixas demonstra, em especial, como essa dimensão de risco e de perigo, pode perpassar as proposições colaborativas. Todas as edições do projeto envolvem um risco para o público participante na medida em que fazem com que ele exponha-se, primeiramente compartilhando suas preocupações e queixas particulares com um grupo e depois cantando em pleno espaço público reclamações sobre o lugar onde vive, sobre o mundo, sobre as pessoas. Em uma das edições do projeto, na cidade-estado de Singapura, os participantes tiveram de assumir, contudo, um risco muito maior ligado a essa exposição. O problema com a censura fazia com que a população tivesse medo de reclamar. Embora várias pessoas tenham comparecido aos encontros, interessadas no projeto, não foi possível coletar as queixas individuais abertamente nas oficinas, reprimidas pelo medo. Então, montou-se um esquema para colher as reclamações anonimamente. Ainda que essa primeira fase tenha sido difícil, a partir dos encontros e ensaios, o grupo de fortaleceu. Depois da melodia e da letra prontas e da canção devidamente ensaiada, o grupo decidiu se apresentar em algum espaço público da cidade. Um dia antes da apresentação, porém, as autoridades comunicaram que não seria permitido a performance do coro de queixas, sob a alegação de que estava proibido que estrangeiros cantassem em lugares públicos. Como o coral era formado tanto por nativos quanto por pessoas de outras localidades que na ocasião moravam em Singapura, a única saída era

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promover uma apresentação fechada, dentro de algum espaço. O grupo escolheu então a Casa do Antigo Parlamento para abrigar o coro de reclamações, levando em conta o significado político deste espaço. Mas, ainda por conta de restrições impostas pelo governo, só poderiam assistir à apresentação, familiares e amigos dos coralistas. A partir disso, o artista Oliver KochtaKalleinem propôs-se a procurar um modo de burlar essa regra. Antes da apresentação ele criou um site para que as pessoas pudessem se cadastrar como amigos dos colaboradores, pela internet. Através do cadastro elas recebiam informações sobre os participantes, podendo simular um vínculo de amizade e assistir a apresentação. Finalmente, O Coro de Queixas de Singapura apresentou-se no dia 26 de janeiro de 2008, no prédio do Antigo Parlamento, zona colonial de Singapura (Figura 1). A canção contava com algumas reclamações que faziam referência direta ao episódio da censura, entoadas pelo grupo de coralistas: por que o expressamente permitido é proibido? Por que precisamos de uma permissão para cantar nossas queixas? O posicionamento do público participante vem de encontro, portanto, a uma das constatações de Larrosa a respeito do sujeito de experiência: Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. (Ibid., p. 25) Nessa edição do coro os colaboradores assumiram um risco de exposição que ia além do enfrentado em outras versões da proposta. A disposição em desafiar a censura e fazer parte de uma iniciativa que era contrária a conduta assumida no cotidiano das pessoas, fazia dessa apresentação do coral um episódio singular e desafiador na vida daqueles que se fizeram presentes. Expor-se, nesta ocasião, significava doar-se a um projeto que em nenhuma das outras edições alcançou um cunho político tão forte, manifestado na letra da canção e na atitude do público participante. Mas existem outras formas de exposição, mais sutis, que também envolvem um risco e abrem a possibilidade de que o público participante se coloque como um sujeito de experiência. A proposta PORTA-POR-TER solicita que as pessoas dediquem às coisas

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[Fig. 1] Oliver Kochta-Kalleinem e Tellervo Kalleinen, Coro de Queixas de Singapura, 2008. (performance) (Fonte: Pรกgina do projeto http://www.complaintschoir.org/)


que as cercam um olhar diferenciado do que normalmente emprega para relacionar-se com os objetos. Essa proposta revelou-me o quão interessante é envolver-se com um processo artístico na perspectiva de colaborador. O episódio ficou-me marcado por seu potencial transformador, mostrando como podem se modificar as idéias e conceitos que formamos sobre as coisas que nos cercam e sobre nós mesmos. Nessa proposta, somos convidados a eleger dentre todas as coisas que fazem parte de nossa vida um objeto que tenha um significado ímpar. Um objeto valioso, por alguma razão pessoal. Ao participar é preciso mobilizar-se, olhar em volta, exercer uma escolha: qual dos tantos objetos com os quais convivemos, possui um valor que transcende sua forma, seu uso, seu significado óbvio? Somos obrigados, então, a uma interrupção na nossa conduta automatizada, a um intervalo, que nos permita olhar para as coisas pelo filtro da emoção. Começa a revelarse com isso a diferença entre o valor material e simbólico de cada objeto. Nossos objetos são dispositivos que nos remetem a lembranças, acontecimentos, episódios ligados a gostos e opiniões particulares. A próxima etapa é contar a história do objeto a outra pessoa, um mediador da mostra, que definirá se este objeto é, de fato, “de valor”. Nesse momento começamos a nos expor: revelando a história do objeto, estamos revelando um pouco de nossa própria história. Esse procedimento faz atentar para o modo como podemos condensar em certas coisas, aparentemente banais, experiências de vida. Comprovado o valor do pertence, é preciso desapegar-se e deixá-lo em poder do artista, levando uma de suas peças por um período determinado. Acontece então um segundo momento de escolha, quando analisamos os objetos colocados no grande armário do artista. Precisamos selecionar um dos tantos para abrigar, guardar, experimentar durante certo tempo. A partir da troca, surgem vários questionamentos: conquistará também esse objeto algum tipo de valor em nossa vida? Qual a importância desse pertence para aquele que nos ofereceu uma troca? O que é esse objeto, como e por que foi feito? Invertendo a lógica do armário fechado, espaço de esconderijo, o artista produz um armário com portas de vidro, onde os objetos estão expostos e visíveis. Porém, ainda que se perca a característica inviolável do armário como lugar particular, os objetos que o habitam continuam a abrigar segredos. Eles possuem uma dimensão da qual a visão, simplesmente, não dá conta. Ao mesmo tempo em que os pertences incentivam a criação de significados e estórias para aqueles que assistem as trocas, não revelam ao olhar desavisado a narrativa particular que lhes confere valor. Junto a muitas outras coisas,

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[Fig. 2] Paulo DamĂŠ, PORTA-POR-TER, 2008. (pertence do artista trocado pela colaboradora Paula Luersen) (Fonte: Arquivo pessoal da autora)


[Fig. 3] Paulo DamÊ, PORTA-POR-TER, 2008. (pertence da colaboradora Paula Luersen trocado por peça do artista) - (Fonte: Arquivo pessoal da autora)


nosso pertence passa a ocupar um espaço expositivo. Expositivo em dois sentidos: primeiramente, um espaço que expõe obras de arte, contudo, também um espaço que nos expõe. O objeto será visto por todos, ainda que não possam julgar os porquês de sua importância. Segue-se então um período de risco: como confiar em deixar um objeto de real valor para nós em um armário de uma instituição pública? Estará seguro? É preciso confiar no artista – que também nos confiou um de seus objetos – e na segurança do armário. Enquanto nosso pertence repousa no armário, cercado de tantos outros objetos que vão e vem, convivemos com aquilo que nos foi confiado: um objeto estranho, no qual não é possível reconhecer qualquer utilidade ou uso. Um objeto artístico e estético. Até o momento da nova troca, ou destroca, quando nos deparamos com um armário que não é mais o mesmo, repleto de outros objetos, histórias e lembranças, onde ainda reside o objeto que trocamos, motivo de tanta preocupação. Recebemos de volta, então, o nosso pertence valioso, devolvendo o objeto do artista ao seu lugar original. Ali ele permanece, à espera de outro colaborador, que lhe dará, novamente, outra função e outro sentido. Como afirma Larrosa: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza. (Ibid., p. 24) Ao escolher um de nossos objetos para fazer parte de uma exposição de arte, somos convidados a olhar para todas as obras que ocupam os espaços expositivos a partir de outro olhar: em que reside o valor das coisas que vejo nos espaços de arte? O que cada objeto carrega daquele que o produziu? Ao mesmo tempo somos forçados a observar nosso objeto numa vitrine, elevado a posição de objeto artístico. E não o seria já antes, para nós, como um resquício de experiência. As propostas participativas podem, assim, abrir espaço para outro tipo de vivência, nos conduzindo a observar melhor, ver detalhadamente, parar para pensar, parar para olhar, olhar mais devagar,

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parar para sentir. Deixar-nos afetar. Afinal, se tais propostas são consideradas – e de fato, provam ser – bastante impositivas, é preciso que nos coloquemos na posição de experimentá-las. “O sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido.” (Ibid., p. 25)

Considerações finais As proposições colaborativas partem de processos abertos e em certa medida incertos, se oferecendo ao público somente se este dispuser de seu tempo e de sua vontade criativa para ativá-las. Diferente de outras obras, essas proposições necessitam que participantes interfiram objetivamente, respondam a um protocolo, exponham-se ao risco e comprometam-se com o desenvolvimento do processo, assumindo parte da responsabilidade sobre a obra. Isso pode ser lido como um aspecto impositivo desses trabalhos, sendo que a obra não se oferece a outros tipos de relação antes que seja de fato instaurada pela ação dos participantes. Porém, isso deixa de soar negativo ao pensarmos no contexto das grandes exposições de arte contemporânea, que facilitam uma relação cada vez mais rápida com as obras. Ao proporem um envolvimento em seu próprio tempo, essas obras mobilizam os participantes a respeitarem outro ritmo: no caso do envolvimento individual, o ritmo do processo – já que a colaboração compreende a interlocução com o artista e trocas que transcorrem em seu próprio tempo; no caso das propostas que envolvem o coletivo, também o ritmo do outro – de um grupo que se relaciona e define a obra conjuntamente. Como demonstram os exemplos analisados, os processos colaborativos na arte podem de fato dar abertura a momentos únicos, memoráveis, que ficarão marcados nos envolvidos não apenas como uma contribuição para uma produção artística, mas como experiência de vida.

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Notas 1 Oliver Kochta-Kalleinen (Dresden, Alemanha, 1971) e Tellervo Kalleinen (Lohja, Finlândia, 1975) são artistas que trabalham em conjunto desenvolvendo performances, instalações e vídeos com abordagem colaborativa e participativa. Ambos vivem e trabalham em Helsinki. Em 2011 o Coro de Queixas chegou ao Brasil e foi desenvolvida em Teutônia/RS como parte da 8ª Bienal do Mercosul, e até esse ano esta já havia percorrido outras 28 cidades por vários países. 2 Paulo Damé (Encruzilhada do Sul/RS, 1963) trabalha com cerâmica, escultura e instalações. Define-se como um artista que opera “pequenos deslocamentos no dia-a-dia das pessoas”. É professor de escultura e cerâmica na Universidade Federal de Pelotas. 3 Palestra de Oliver Kochta-Kalleinen proferida no curso de formação de mediadores da 8ª Bienal do Mercosul no Instituto Cultural Norte-Americano em julho de 2011. 4 Palestra de Lucas Brolese proferida em um dos encontros do evento “Pensando a Bienal com...” promovido pelo Santander Cultural em outubro de 2011.

Referências AMARAL, Aracy. Cena Artística: Arte Contemporânea. Fórum Permanente: São Paulo, nov. 2011. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/.painel/artigos/ cena-artistica-arte-contemporanea/. Acesso em 08/1/2012. BISHOP, Claire. Participation: Documents of Contemporary Art. London: Massachussets Institute of Technology Press, 2006. BORRIAUD. Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. BRETT, Guy; MACIEL, Katia (orgs.). Brasil experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005. DANTO, Arthur Coleman. A transfiguração do lugar comum. São Paulo: Cosac Naify, 2005. FARIAS, Agnaldo. A arte e sua relação com espaço público. Boletim Arte na Escola: Porto Alegre, abril 1997. Disponível em: http://www.artenaescola.org.br. Acesso em 04/5/2011.

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KESTER, Grant. Colaboração, arte e subculturas. Caderno Videobrasil 02: Arte mobilidade sustentabilidade, São Paulo, SESC-SP, p. 10-36, 2006. LARROSA, Jorge Bondia. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, jan/fev/mar/abr 2002. PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Portugal: Orfeu Negro, 2010. RANCIÈRE, Jacques. . Entrevista – Jacques Rancière. Cult, São Paulo, 2010. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/ Acesso em 14/11/2011.

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OS RUÍDOS DA AUTORIA NOS PROCESSOS ARTÍSTICOS INTERATIVOS/ COLABORATIVOS EM REDE Katyúscia Sosnowski Maria Cristina Villanova Biasuz

Introdução No presente texto, propomos uma reflexão sobre a atribuição de autoria em produções artísticas contemporâneas envolvendo obras interativas/ colaborativas no contexto digital online. Percebe-se que, nesse contexto, o conceito clássico de autoria é frequentemente tensionado, causando ruídos, no sentido de conflitos e disputas nas produções artísticas. Os ruídos surgem ora por pressão do mercado da arte, com o objetivo de julgar e atribuir valor monetário às obras; ora na concorrência de se chegar ao acabamento da obra; ora em lugares em que a arte exerce uma função menos mercadológica e mais

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participativa, como no ciberespaço. Os processos artísticos interativos/colaborativos na rede web exigem dos artistas uma reflexão ética: característica central da arte colaborativa, onde o artista tem que superar seu próprio estatuto privilegiado, a fim de criar um diálogo com quem se dispõe a colaborar remotamente. Essas proposições na web nem sempre são propostas por artistas, e quem se dispõe a colaborar geralmente não reivindica sua autoria. Sob um olhar estético do ponto de vista da obra, a autoria nem sempre é reivindicada, a exemplo disso são os artefatos primitivos, tais como ornamentos ou objetos utilizados em rituais religiosos de culturas não ocidentais, que não possuem função artística, neles a autoria não é uma preocupação latente. Discussões sobre a autoria é algo recorrente, no entanto, nesse texto buscamos rediscuti-la a partir de obras produzidas no espaço rizomático da web, questionando-nos sobre a ideia que parece estar se generalizando de que “no ciberespaço todos somos autores, e ninguém mais é”. Será mesmo assim? Pôde-se perceber a partir de Cavalheiro (2008) que os escritos de Foucault, Barthes e Bakhtin têm em comum o questionamento sobre “a unicidade do sujeito, a partir da negação de uma voz soberana/única”. A autora discorre sobre a autoria sendo um fenômeno complexo perpassado por várias instâncias. O que hoje chamamos de literatura, na idade média eram textos colocados em circulação e valorizados sem que sua autenticidade e autoria fossem questionados. (CAVALHEIRO, 2008). Segundo Antonio (1998, p.189) “a função do autor responde à realização do projeto da modernidade”, tempo esse, no qual Foucault destaca que “constitui o momento forte da individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências” (FOUCAULT, 1981, p. 33). Outro aspecto importante na questão da autoria destacado por Antonio (1998, p. 189), “está ligado à questão econômica e social, principalmente a partir do século XIX, quando o autor se converte em um produtor para o mercado”. A forte individualização moderna inventa o indivíduo que nas artes corresponde à figura do autor, aquele que assina e se responsabiliza pelo acabamento da obra (FOUCAULT, 1981). Para Foucault, a origem da propriedade em textos inicia quando os discursos começaram a ser transgressores, efetivamente quando o indivíduo/autor torna-se passível de ser punido (CAVALHEIRO, 2008). Essas questões nos remetem aos casos de anonimato, em que autores são suprimidos, ou ainda mascarados por um codinome ou pseudônimo.

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A arte do século XX em seus “ismos” esteve também, por muito tempo, pautada no conceito de singularidade do autor. Era possível perceber a presença da “mão do artista” na materialidade da obra, legitimando também sua autoria. Mas os surrealistas desafiaram a fragilização da autoria, ao propor jogos infantis como experiências de uma escrita coletiva que valorizava o automatismo psíquico e o imaginário dos participantes. Dentre esses, o cadavre exquis1, que podia abarcar tanto a linguagem verbal como a visual, sem nenhuma preocupação com a autoria ou com o talento dos jogadores (PIANOWSKI, 2007). Diante dos jogos de signos propostos pelos surrealistas, Barthes afirma que esse movimento “[...] contribuiu para dessacralizar da figura do autor”. ( BARTHES, 1988, p.65) Na Renascença, na obra “ o Batismo de Cristo”, (1475) a pintura foi realizada de forma colaborativa com a participação do Mestre Andrea Verrócchio e seu aprendiz Leonardo da Vinci no fechamento da obra. (VASARI, 1912). A participação – do latim participatio: ter parte em – é entendida como a possibilidade de intervenção de artistas em uma comunidade em um projeto coletivo, favorecendo a posterior apropriação da obra/processo pela comunidade envolvida e qualificando o evento ou produto final. A colaboração – do radical latim labor, trabalho – e co-labor, trabalho em conjunto, é entendida como a possibilidade de contribuição ativa de todos os atores sejam eles artistas ou público envolvido no processo criativo. A questão dos processos participativos é comparada à de processos colaborativos onde as palavras-chave são interação e auto-organização. Compreendendo que temos obras que se valem de “modos ou meios não tecnológicos para lograr a inter-relação do observador com a obra, serão denominadas arte participativa”, enquanto que a arte ou processos interativo/colaborativo necessita de fato do emprego de “interfaces técnicas para estabelecer relações entre o público e a obra” (GIANNETTI, 2006, p.14). No século XX, o conceito de participação é revisitado por Marcel Duchamp, que esboçou uma preocupação com a receptividade da obra com características de participação. No Brasil, a arte participativa de Hélio Oiticica e Lygia Clark anunciava uma ampliação das formas de percepção e colaboração na arte. Entende-se aqui a colaboração como uma participação possibilitando a interação com/na obra do artista. No entanto, o avanço das tecnologias, especialmente as digitais, traz junto a si, não somente a questão da interatividade, mas também uma grande ruptura na materialidade da obra de Arte, envolvendo novas possibilidades de produção da obra, que pode inclusive, diluir a fisicalidade do objeto. Sendo assim, a arte

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que experimentamos na atualidade e os processos artísticos interativos/colaborativos produzidos e propagados pelas interfaces digitais na contemporaneidade, remetem de um conceito de singularidade e adentram o cenário da pluralidade, da inteligência coletiva (LEVY, 1998). As propostas contemporâneas online pretendem ser e sua grande maioria, avessas às classificações e às autorias individuais, propondo parcerias de colaboração, participação e compartilhamento em projetos interdisciplinares cada vez mais abertos e complexos.

Dialogando com a teoria Argumentaremos a partir do ponto de vista de alguns teóricos que se dedicaram aos aspectos estéticos no ambiente digital, bem como refletiram sobre a concepções de autor e autoria no contexto artístico. Partimos do conceito de obra de arte digital estabelecido por Giannetti, que expressa que “[...] quando falarmos de arte ou de sistema interativo, nos referiremos, especificamente, à arte/sistema que emprega interfaces técnicas para estabelecer relações entre o público e a obra” (GIANNETTI, 2006, p.3). A autora também abre espaço para os questionamentos do significado do autor nos sistemas digitais da “media art”, esses que precisaram redefinir campos essenciais, tais como os da percepção, da exibição e da estrutura, para se adequar a participação do interator (GIANNETTI, 2006). Kac (2004) ressalta o potencial significativo das obras criadas em meios telemáticos, as quais visam a criar uma experiência da comunicação “dialógica”, para ele uma interação sincrônica. Segundo ele essas obras ainda estão à margem da discussão científica. Os artistas/cientistas que se valem dos meios tecnológicos para criar nesse contexto estão interessados em processos de criação, em exploração estética, em obras inovadoras e “abertas”, no sentido de produzir criações intermídias (GIANNETTI, 2006). As produções de que tratamos nesse texto acreditávamos que se enquadrariam no conceito de “web art”: de obras criadas para um consumo individual, dependentes de uma conexão de internet. Entretanto, o conceito parece não dar mais conta da característica idealizada para o consumo individual. Observamos nessa pesquisa que as obras digitais interativo/colaborativas estão reinvindicando espaços públicos tais como o museu. As ”autorias distribuídas” discutidas por Ascott (2003) estão muito presentes

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nesses projetos, constituídos em maioria por parcerias interdisciplinares. A investigação sobre os ruídos nas atribuições de autoria parte da premissa que Olhando para as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe disso, que a função autor permaneça constante na sua forma, na sua complexidade e mesmo na sua existência. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse (FOUCAULT, 2002, p. 70). Para Foucault, a função autor surge na necessidade de se atribuir responsabilidade a um indivíduo sobre determinadas ideias. Um mecanismo de apropriação marcado inicialmente pela função repressora dos autores transgressores da ordem estabelecida. Já Barthes no texto “A Morte do Autor”, referindo-se a um personagem da novela Sarrasine de Balzac, pergunta: Quem fala assim? É o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? É o indivíduo Balzac, dotado, por sua experiência pessoal, de uma filosofia da mulher? É o autor Balzac, professando idéias “literárias” sobre a mulher? É a sabedoria universal? A psicologia romântica? (BARTHES, 1988, p. 65). Dando continuidade à discussão, Barthes afirma que é impossível saber qual é a origem desta voz, justificando que a “... escritura é a destruição de toda voz...” e compreendendo-a como um campo neutro onde se perde a identidade, incluindo-se aí o corpo do próprio autor. A ideia de que ao criar “... o autor entra na sua própria morte...” (BARTHES, 1988, p. 65) pode dialogar com questões sobre autoria na arte contemporânea digital, na qual por vezes é possível perceber a diluição dos autores/colaboradores nas obras. Barthes distingue o autor do escritor, enquanto Foucault destaca a “função autor” como algo não intrínseco ao texto. Bakthin, no entanto, fala de um autor-criador e de um autor-pessoa. Sendo eles dois entes distintos na mesma produção discursiva; o autocriador, elemento da obra, e o autor-pessoa, componente da vida. Bakhtin propõe uma análise puramente estética, partindo da obra e não exigindo para isso conhecer a vida

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do autor. Para Barthes e Bakhtin, a polifonia de vozes culturais que ora se diluem, ora se corporificam influenciando autores em diferentes linguagens tem como lugar de encontro o olhar do espectador no momento da fruição estética (BAKTHIN, 2002, p. 4; BARTHES, 1988, p. 70). Barthes (1988, p. 70) tranquiliza os incomodados com a diluição da identidade dos autores, anunciando que “...o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor”. Seria mesmo uma morte? Ou apenas uma diluição? Uma ressignificação da função do autor? Levy (1993) diz que o autor jamais morrerá; ele apenas perderá sua importância ou terá um outro significado. Compreende-se que essa valorização do leitor/espectador em detrimento da importância do autor estendase também aos interatores e apreciadores das produções da arte interativa/colaborativa contemporânea digital. Os interatores são incentivados a protagonizar suas vivências a partir das propostas dessas obras. Para Prado, o artista torna-se um [...] possível gerador de novas situações e é um potencializador de atuações. Trata-se aqui de processos de interação e partilha que devem ser vivenciados ao mesmo instante que os intercâmbios se realizam, seguindo as configurações “instantâneas e efêmeras” das redes. (PRADO, 1997 p. 297) As interações e partilhas na produção da obra podem ocorrer de diferentes formas, ora através da gestualidade, como nas obras “Bichos” (1960), ora na reprodução de textos, imagens e sons, como nas obras colaborativas da rede. Tais manifestações passam a constituir a identidade da obra que se mantém em constante processo de mutação, evoluindo “…permanentemente em torno de um núcleo pré-concebido pelo autor que lhe assegura uma coerência e continuidade” (COUCHOT, 2002, p.104). Para aceitar o convite de um obra interativo/colaborativa da rede, faz-se necessário que o interator com pretensões a co-autor coloque em exercício suas capacidades de “cognição e percepção” que, juntas, constituem a ciberpercepção (ASCOTT, 1997, p . 336). [Ciberpercepção é] uma percepção simultânea de uma multiplicidade de pontos de vista, uma extensão em todas as dimensões do pensamento associativo, um reconhecimento da transitoriedade de

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todas as hipóteses, a relatividade de todo o conhecimento (ASCOTT, 2002, p.33). Mas, não basta ser ciberperceptivo, para passar de interator a co-autor dessas obras; é preciso ter uma “ativa posição responsiva” (BAKHTIN, 2011, p. 271) indo além da análise, recriando outras tramas, encaminhando novas narrativas através da apropriação ou da rejeição das ideias, considerando e respondendo as proposições feitas tanto pelos autores como pelos co-autores. Bakhtin (2011), afirma que é impossível tomarmos decisões sem considerarmos outras vozes; assim compreende-se que autores e co-autores produzem mais que obras: criam “ressonâncias dialógicas” (BAKHTIN, 2011, p. 300). As concepções de Bakhtin (2011) sobre “responsividade” e a produção de “ressonâncias dialógicas” diante de um enunciado, aqui representado pela obra, podem dialogar com as ideias de Prado (1997), que compreende o “outro” para além do mero reflexo, percebendo-o como um olhar revestido de criticidade e também capaz de intermediar novas tessituras. “O outro é também um espelho, ou mais ainda: um olhar crítico, um obstáculo a ser superado e/ou a partilhar, ou seja, um regulador dos intercâmbios” (PRADO, 1997, p. 296). As obras digitais interativas/colaborativas online, quando “dialógicas” (KAC, 2004), incentivam o interator a buscar novas formas, direcionando ou redirecionando o trabalho na rede, inventando formas de agrupar pessoas e ideias na tentativa de estabelecer uma nova ordem. O artista no espaço virtual é como um engenheiro de mundos: aquele que, guiado por uma ideia, propõe tendências e estratégias em um ambiente constituído por estranhezas, onde os textos, as imagens, os sons, os atores assumem novas configurações na forma de programas (LÉVY, 1993). As trocas no ciberespaço, sendo dinâmicas, constituem uma interface entre homens e imaginários.

Metodologia Para dar conta dessa pesquisa, realizamos um breve mapeamento do campo tendo como bússola os sites de busca na Internet com as palavras-chave arte colaborativa, web art, collaborative art, internet Art. Com isso, encontramos, além de diferentes projetos, blogs como o Territorialidade/Territoriality - Banco de dados2, que se propõe a indexar e categorizar obras digitais colaborativas na Internet. A partir desse blog, outros foram organizados por aspectos temáticos diferenciados: o Net Arte Molotov3 organiza

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e cataloga obras colaborativas relacionadas a temas políticos. O Art Places4, lugares de Arte. Além desses blogs/repositórios, visitamos também revistas nacionais que publicam artigos sobre arte e tecnologia, nas quais encontramos uma pesquisa inicial sobre interação na obra The Exquisite Forest (2012) e nos interessamos em ampliar a análise focando aspectos da autoria. Em nosso mapeamento, escolhemos, além da obra The Exquisite Forest (2012), a The Endless Mural (s/d) para análise. A escolha dessas obras deu-se pela sua “arquitetura flexível de contatos que expande a plataforma” (GIANNETTI, 2006, p. 94) e por oferecerem propostas diferenciadas no que tange às atribuições de autoria. Os resultados desse primeiro mapeamento nos fizeram conhecer mais o campo e a partir disso elaboramos questionamentos que pudessem responder aos nossos objetivos: Se a obra é interativa, como ocorre a interação? Como a obra muda, se transforma, e o que nela se modifica após a interação? Como a questão da autoria acontece? De onde parte a obra? Quem a propõe, uma instituição, um artista, um programador? Quem legitima como arte a obra em questão? A proposta envolve carregamento de arquivos, sejam eles sonoros ou visuais? As primeiras questões nos ajudariam a delimitar o campo, estabelecer quais obras tinham qualidades interativas/colaborativas, para então, observarmos como a autoria se constitui nessas obras. As últimas questões nos ajudaram a nos aproximar dessas produções e compreendermos como são construídas e disponibilizadas.

Análise e discussão Uma media art, termo usado por Giannetti que possui características interativo/ colaborativas necessita de um ambiente eletrônico, virtual dinâmico, como suporte. Nessas obras As relações são ressignificadas, o espectador é estimulado a assumir o lugar de interator e provocado a participar da obra como co-autor frente às provocações na tela de seu computador. Visto que muitos dos processos digitais de criação contemporâneos ocorrem a partir de apropriações e citações, nas quais os artistas produzem novos sentidos em contato com outras vozes, assim como um “... texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura” (BARTHES, 1988, p. 69), a obra de arte visual que se propõe interativa/colaborativa é tecida por muitas imagens e ideias. O ritmo potencializado numa proposta inicial interativa/colaborativa pode ser

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de continuidade topológica ou não. Algumas obras pressupõem um resultado provisório, mas em sua maioria há um certo controle sobre os resultados. As obras desse gênero são geralmente criadas com ferramentas digitais e não fazem parte de acervos institucionais. São exibidas em sua maioria por meio da internet e alcançam altos índices de acessos. Muitas obras de arte midiáticas até poucos anos atrás só podiam ser visualizadas e/ou manipuladas com sofisticados softwares. Observamos que os navegadores hoje têm suprido essas complexidades de visualização. Em nossa pesquisa observamos que há diferentes propostas de arte colaborativa na rede. Há projetos que se utilizam de carregamento de arquivos nas propostas de colaboração, propondo envio de arquivos de fotografia e composições sonoras, tais como o projeto Colecionador de Espíritos5 (2003), de Fernando Velasques, e Doe seu rosto6 (2001-2006), de Nardo Germano. Nesses projetos, as colaborações envolvem envio e carregamento de arquivos, no caso fotografias implicando direitos de imagem. As colaborações em geral são realizadas informalmente, isso é, corre-se o risco de o interessado subverter a proposta, positiva ou negativamente. Sendo assim, as regras que regem os direitos autorais devem estar explícitas. Escolhendo uma licença, o responsável pela obra esclarece os papéis dos colaboradores em um projeto, abrindo oportunidade para colaboradores utilizarem por exemplo técnicas de apropriação. Nessa licença é possível discutir expectativas sobre o resultado e definir as relações da proposta com a continuidade. Ao explicitar a licença escolhida, o proponente formaliza a forma de colaborar, compartilhar e republicar a obra. Uma das licenças mais populares entre as obras que mapeamos foi a Creative Communs e a Free Art License - (FAL). Esta última nos interessou por ter uma relação direta com nosso objeto de pesquisa. A Free Art License foi elaborada em 2000 por Attitude Copyleft7, um grupo de artistas franceses e especialistas legais. O objetivo era transferir a Licença Pública Geral ao campo artístico. O grupo procurava por uma ferramenta de transformação cultural e um meio eficaz de disseminar a arte na rede. O mundo da arte é dominado por uma lógica mercantil, os monopólios e as imposições políticas decorrentes de círculos fechados. A licença define os trabalhos posteriores como obras originais. Outra aspecto a ser considerado é quanto à exposição das obras online. Em casos como a obra The Exquisite Forest (2012- ) e a Communimage 8(1999-) que foram expostas em local público: um museu. Em casos assim, fica a pergunta: quem ganhará os créditos na legenda? Como ficam em casos em que a obra é aberta e está em constante

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construção? Seriam os interatores/colaboradores os engenheiros de mundos que Levy (1993) destaca? Que não assinam uma obra acabada, mas um ambiente por essência inacabado, cabendo a eles, exploradores, construir não apenas o sentido variável, múltiplo, inesperado, mas também a ordem de leitura às formas sensíveis? (LÉVY, 1993, p. 147-148). A relação de coerência e continuidade cada vez mais permeável, mas não menos complexa, entre interator - obra - autor apontado por Couchot (2002), fica claramente exemplificada na obra The Exquisite Forest (2012). Nela, a tríade interator/obra/ autor assume outros contornos, numa igualdade de importância como nos descreve (BAKHTIN, 2011) fugindo da linearidade, iniciados numa proposta de continuidade topológica e transformando-se em um processo rizomático de criação.

Obras destacadas A obra The Exquisite Forest 9, desenvolvida por Chris Milk e Aaron Koblin, foi inaugurada em 23 de julho de 2012 na Galeria Tate de Londres. Criada e recriada na rede, mas não somente pra ser visualizada nela. A obra rompe com a relação individual via computador proposta no início da web art e é exposta no museu desde sua criação. A obra foi assunto de diversos artigos na Internet destacamos um, escrito pela diretora de conteúdo e criação do Tate Media Agora, mais do que antes, novas tecnologias em rede permitem que o museu seja um espaço de trocas de ideias, experiências e opiniões sobre arte e cultura. Com esse projeto pretendemos aproximar a arte de um amplo público ainda mais global e inspirar pessoas a responder criativamente. Nós estamos satisfeitos em dar continuidade ao pioneirismo do projeto nosso com Google de apoximar artistas, público da Tate e a comunidade online tradução nossa. (BURTON, 2012) Em outro artigo publicado por Ricardo Kenski (2012) a obra é comparada com outro projeto de arte colaborativa online The Johnny Cash Project 10 (2010) realizado pelos mesmos criadores. Ambos os projetos têm como base a técnica de animação e fazem upload de colaborações diretamente no site sem carregamento de arquivos até o momento dessa pesquisa. The Exquisite Forest (2012) foi realizada com a tecnologia HTML5 do Google Chrome e suporte a JavaScript e também do Google App Engine e Google Cloud Storage .

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Os idealizadores convidaram sete artistas para criar as primeiras narrativas visuais da obra, entre eles Miroslaw Balka, Olafur Eliasson, Dryden Goodwin, Raqib Shaw, Julian Opie, Mark Titchner e Bill Woodrow. Apresentadas no formato de árvores, as narrativas compõem uma floresta, e são visualizadas na tela do computador. Cada um dos sete artistas tem uma árvore temática onde o crescimento da ramagem e a densidade da floresta dependem das colaborações criadas e enviadas pelos interadores - colaboradores da obra. Os artistas realizam a curadoria das colaborações dos interatores/colaboradores demonstrando preocupação em manter o controle sobre o seu projeto inicial, conduzindo as possibilidade do crescimento dialógico da mesma. No objetivo de investigar como os processos de atribuição de autoria acontecem, chegamos a pensar que o login exigido para interagir com essa obra poderia ser uma forma de assinatura. Só é permitido participar como co-autor usando uma conta do Google. O site da proposta não disponibiliza opção na língua portuguesa. O cadastro inclui um termo de compromisso no qual o interator deve ter mais de dezoito anos e suas submissões só podem envolver conteúdo de sua propriedade. Além disso, não é permitido incluir conteúdo depreciativo ou nocivo independentemente do idioma. Ao interator cadastrado/logado no site, é permitida a participação, sendo que, após ter colaborado em uma das sete propostas, lhe é permitida a criação de uma nova árvore com conceito próprio. A seguir, é o momento de fazer escolhas e fruir, deixando-se afetar pela obra e pelas ideias pré-concebidas pelos artistas convidados, assim como pelas intervenções feitas até então pelos co-autores colaboradores. Passadas estas etapas, o interator já é um co-autor em potencial, tendo disponível ferramentas gráficas e sonoras, para criar colaborando com uma sequência narrativa de oito slides dando continuidade ou desconstruindo a proposta anterior. Ao término desta etapa, há a possibilidade de visualizar previamente sua produção individual em um arquivo dentro do site, há também a opção de publicar e compartilhar em redes sociais. Entretanto o site não se restringe à visualização da criação individual do co-autor e sim, abarca a totalidade da obra na qual a criação foi apropriada. Os autores e coautores são representados simbolicamente na obra através dos ramos e nós das árvores, considerando que as árvores mais frondosas concentram um número maior de co-autores. A legitimização da obra enquanto Arte, parece vir por parte das instituições Google e Tate Modern, que aceitaram a parceria, criando assim uma “chancela artística” para a mesma. Outra observação é que os sete artistas mantêm a curadoria sobre a publicação das interações submetidas às suas árvores. Evitam com isso

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a subversão do conceito por eles criado, assim como garantem o seguimento dos termos e condições propostos para a participação. A obra explicita em sua homepage que está sob licença Creative Commons 3.0. Na segunda obra destacada The Endless Mural 11 (s/d), desenvolvida por Joshua Davis Studios com apoio da Microsoft, a tela do computador é quem media a relação entre os interatores e a obra. O primeiro contato do interator com a proposta na homepage é uma visualização panorâmica de um mural com as colaborações apresentadas na forma de um espiral movimentando-se no sentido anti-horário. No centro da tela um retângulo estático sobreposto ao espiral, estão os créditos da obra. É possível escolher entre criar uma composição ou visualizar o mural. A obra propõe um espaço para interação onde o interator pode iniciar por meio de um traço. Em seguida uma animação com base no traço é acionada, na informática essa ação é chamada de “default”. As formas e cores estão pré-gravadas no software. Há possibilidade de mudar o conjunto de cores e formas. Durante o tempo da animação surge na tela o texto: “tornando gesto” que desaparece quando cessa o movimento do traço do interator. Ao clicar sobre a palavra “Draw”, abre-se um campo sobre a tela com opções para seleção. A primeira é quanto aos “gestos comportamentos” - indicando que o interator pode escolher e redimensionar o movimento das formas, optando entre: enxame, explosão, espiral e bolhas. Em cada uma destas opções há a possibilidade da redefinição de suas características, modificando o resultado gráfico na tela. A segunda opção é a escolha entre quatro estilos propostos por artistas chamada “Obra”. Nessa opção, o interator pode escolher entre Evgeny Kiselev, Matt Lyon, Joshua Davis e Guilherme Marconi, cada um dispõe de três conjuntos de formas e cores criadas pelo respectivo artista. Para interagir, publicar e colaborar com a obra não é necessário estar logado. A interação acontece por meio da interface composta por uma página em branco com opções de ferramentas dispostas na tela. As colaborações na obra são mediadas por formas, cores e movimentos pré-concebidos pelos artistas propositores, fato esse que limita o processo criativo e dialógico. A interação e o exercício da co-autoria são atrelados às concepções dos proponentes artistas e do software que oferece uma escala de cores e formas pre-concebidas, e uma animação criada pelo software a partir do traço do interator. Há a opção de visualizar o passo a passo de cada criação através de uma animação que reproduz o caminho percorrido. Não há identificação do co-autor em momento algum; as colaborações são

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publicadas na rede anonimamente. Nessa obra, a legitimação enquanto Arte é registrada explícitamente na homepage juntamente com os créditos dos propositores e não é dada a opção de envio de arquivos.

Considerações finais O público, ao entrar em contato coma obra, assume o papel de interator ativo na colaboração de obras digitais, dando-lhes acabamento, “a ação do observador é, assim, parte essencial e complementar do sistema interativo” (GIANNETTI, 2006, p.125) partilhando a autoria em obras de arte interativas/colaborativas na rede. Os projetos de Arte interativo/colaborativa na internet se traduzem em um território permeável e fértil, onde se hibridizam diferentes linguagens oportunizando aos interatores uma experiência estética híbrida e potencialmente rica em produção de sentidos. Na sociedade contemporânea há espaço para “a heterogeneidade, para a relatividade cultural, com seus pluralismos, ambigüidades, localismo, simultaneidade, informalidade, subjetividade, suas verdades múltiplas” (ANTONIO, 1998, p.190). Percebemos com essa investigação que questões sobre territorialidades e cartografias estão presentes nas obras das duas últimas décadas. A localidade do interator/co-autor é evidenciada em algumas propostas, provocando-nos a pensar sobre a relevância desse dado nos sentidos representacionais culturais locais, diferentemente do que ocorre como o registro do nome, idade ou sexo, que em algumas propostas estão em segundo plano. As informações agrupados nos blogs facilitou a pesquisa haja vista que essas produções estão dispersas na rede de internet e o acesso pode ser difícil. O ciberespaço é um lugar de encontro, de conexão, de arte, de colaboração e também de disputa. Uma arte democrática, colaborativa, não somente como soma mas como processo transformativo, parece-nos ainda uma utopia sob o ponto de vista das implicações financeiras impostas pelo mercado de arte, da falsificação e disputas por direitos autorais. As propostas interativo/colaborativas não conseguem dar conta dos interesses mercadológicos e conceituais até então. O que se configura no cenário atual é um desaparecimento do autor individual, que dá lugar a uma autoria múltipla e distribuída, como proposto por Ascott (2003) e Barthes (1988). O encontro entre o interator e as obras interativo/colaborativas diferencia-se da relação do espectador com uma pintura exposta em museus por sua materialidade. O interator é um sujeito disposto e interessado em colaborar, e a obra interativa/

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colaborativa é aberta e convida a participação. O interesse do interator pode estar tanto na reprodução de valores do sistema da arte, quanto também em movimentos de fuga desse mesmo sistema. Ele está em busca de sensações além da visual. Pudemos observar, por meio de nossa participação colaborativa, que é possível dar continuidade à obra, atuando anonimamente como um organismo vivo que se ramifica em direções não calculadas. Na obra The Exquisite Forest, por exemplo, há um controle e restrições quanto às colaborações, os sete artistas mantêm a curadoria sobre a publicação das interações submetidas às suas árvores. Evitando com isso a subversão do conceito por eles criado. Já na obra The Endless Mural a colaboração não passa por uma curadoria nem mesmo por um login, e pode ser visualizada logo após o interator salvar no site sua produção. O que se observa é o incremento de projetos de autoria coletiva, em que os interatores participam, muitas vezes, anonimamente no desenvolvimento/acabamento de obras idealizadas e propostas na rede.

Notas 1 Segundo Tristan Tzara (1948), citado por Pianowski (2007), o jogo na forma verbal, era feito dobrando uma folha de papel no mesmo número de participantes, na qual cada um escrevia em uma das dobras o que lhe vinha à cabeça, sem preocupar-se com o que já havia sido escrito pelos demais. Obedecendo à regra de escrever na seguinte ordem: substantivo-adjetivo /advérbio-verbosubstantivo. Na versão visual, usavam o desenho e posteriormente a colagem, seguindo a mesma ideia considerando o número de três participantes como o mais adequado, seguiam uma ordem de : cabeça, tronco e pernas, havendo também a possibilidade da escolha prévia das cores a serem usadas. O resultado final só era revelado após a participação de todos. 2 Disponível em http://territorialidadeterritoriality.blogspot.com.br/. Acesso em 17/4/2013. 3 Disponível em http://netartemolotov.blogspot.com.br/. Acesso em 17/4/2013. 4 Disponível em: http://artplaces-lugaresdearte.blogspot.com.br/. Acesso em 17/4/2013. 5 Disponível em: http://www.blogart.com/The-Soul-Collector. Acesso em 17/4/2013. 6 Disponível em: http://www.nardogermano.com. Acesso em 17/4/2013. 7 Disponível em: http://artlibre.org/licence/lal/pt. Acesso em 20/3/2013.

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8 Disponível em http://www.communimage.ch. Acesso em 20/3/2013. 9 Disponível em: http://www.exquisiteforest.com. Acesso em 17/4/2013. 10 Disponível em: http://www.thejohnnycashproject.com. Acesso em 17/4/2013. 11 Disponível em http://www.endlessmural.com. Acesso em 17/4/2013.

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O ARTISTA, HOMEM DO MUNDO Luiz Sérgio de Oliveira

Arte para um mundo mundano: o artista é um homem do mundo O conceito de modernidade está atado à ideia de instauração radical do novo, com suas implicações tanto em termos de temporalidade, quando o novo toma o lugar do antigo, como em termos de ruptura, na qual a instauração desse novo contem necessariamente a experiência de rompimento. No entanto, conforme pudemos aprender com a história da arte da modernidade, o “novo” moderno deixa de ser novo no exato momento de sua instauração, tornando-se de imediato no já-não-

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tão-novo a ser substituído por outro novo. Da mesma maneira, fomos alertados para o fato de que a ruptura está irremediavelmente ligada em uma tensão dialética com a ideia de continuidade. O poeta e crítico francês Charles Baudelaire foi fundamental para as formulações que lidam com os momentos inaugurais da modernidade na arte, sendo reconhecido como aquele que soube esquadrinhar com precisão o que distinguia a modernidade no momento histórico de sua instauração. Em função de seu senso crítico aguçado, Baudelaire se destaca na instituição do moderno; com sua clarividência e sensibilidade, o poeta-crítico-francês foi aquele que mais cedo e melhor definiu a noção de moderno. No entanto, apesar dos inúmeros estudos e debates em torno da obra estética de Baudelaire, algo relevante para uma compreensão alargada do conceito de moderno parece ter sido suprimido, algo que ressurge nas práticas avançadas da arte contemporânea, em especial naquelas alinhadas com os princípios de colaboração e de interação com o universo de não artistas. Nas sucessivas leituras das teorias baudelairianas, pouco se avançou na direção de uma melhor compreensão das relações entre ser artista e ser homem do mundo, conforme aparece n’O pintor da vida moderna. (BAUDELAIRE, 1996, p. 14) Baudelaire buscou esclarecer que no texto utiliza o termo artista em sua acepção mais restrita, enquanto “a expressão homem do mundo [denota um] sentido mais amplo”: homem do mundo, isto é, homem do mundo inteiro, homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os costumes; artista, isto é, especialista, homem subordinado à sua palheta como o servo à gleba. (BAUDELAIRE, 1996, p. 14) É verdade que transformações extraordinárias ocorreram nos últimos cento e cinquenta anos desde que Baudelaire descreveu os artistas como sendo, em sua maioria, “uns brutos muito hábeis, simples artesãos, inteligências provincianas, mentalidades de cidade pequena”. (BAUDELAIRE, 1996, p. 16) Não resta dúvida de que, na atualidade, os artistas são percebidos de forma muito diferente daquela do poeta crítico; poderíamos avançar sobre a genealogia dessas transformações, o que nos levaria inevitavelmente a Marcel Duchamp. Interessa-nos entender e enfatizar justamente a noção de homem do mundo, conforme apontado por Baudelaire, para além de ideias disseminadas pelas leituras de sua obra. O crítico-poeta sugere que esse artista-homem-do-mundo não

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deve ser confundido com o dândi pelo fato de que “o dândi aspira a insensibilidade”, e por sua própria natureza, “é entediado, ou finge sê-lo, por política e razão de casta”. (BAUDELAIRE, 1996, p. 19) Ao contrário, para esse artista, para esse homem do mundo, a multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. [...] Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto no mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes. (BAUDELAIRE, 1996, p. 19) Ao lermos essas linhas de Baudelaire somos inevitavelmente lançados à questão da permanência dessas atitudes nas práticas de artistas contemporâneos comprometidos com as ideias de trânsito e de deslocamento, artistas que se movimentam por diferentes partes do planeta provendo serviços criativos, provendo respostas inteligentes e sensíveis a situações e contextos que lhes são estranhos. De uma maneira ou de outra, o artista tem se feito um homem do mundo, tendo abandonado seu ateliê anteriormente definido como espaço prioritário e privilegiado para a criação da arte e para a produção do objeto artístico. Na atualidade, cada vez mais e mais artistas buscam aventurar-se no universo dos espaços públicos como lócus de instauração de sua criação artística. [...] Esse transbordamento em direção ao mundo ocorre como se o artista tivesse sido expelido de seu antigo domínio, de seu antigo abrigo – o ateliê modernista. (OLIVEIRA, 2011, p. 30-31.)

Genealogias de uma arte mundana Ao se lançar no mundo, ao se tornar homem-do-mundo, o artista se transforma em agente de processos que têm empurrado a arte em direção à internalização das políticas do cotidiano, arte transmutada em mundana e trivial para o contentamento daqueles que conseguem ligar esses fenômenos artísticos contemporâneos à efetivação das transfigurações na natureza da arte perseguidas pelas vanguardas. É verdade que

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esse processo não pode ser considerado novo. De diversos modos e sob diferentes perspectivas, a condição singular da obra de arte, seu caráter excepcional entre os objetos produzidos pelo homem, em oposição à condição do mundano e trivial, tem sido objeto de permanentes disputas empreendidas pelas vanguardas em sua tentativa de desobrigar a arte como sendo algo de “outro mundo”. Nessas transformações que apontavam para a instauração da natureza mundana da arte, Walter Benjamin identificou o desenvolvimento técnico que fomentou a reprodutibilidade mecânica da obra de arte como o ataque decisivo à condição singular e privilegiada da obra de arte, o que acarretou na perda do status de categoria especial imputado à obra de arte pelos registros sucessivos da história. Com as possibilidades da multiplicação mecânica, a obra de arte perdia a potência do original sobre o qual as marcas do tempo são inscritas, a começar pelas marcas do artista na instauração da obra de arte. Isso acaba por constituir esse “estranho tecido fino de espaço e tempo” (BENJAMIN, 2012, p. 27), a aura, conforme definida por Benjamin: a unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição. Essa tradição é ela mesma completamente viva e extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vênus, por exemplo, encontrava-se em um contexto de tradição diferente entre os gregos, que dela fizeram objeto de culto, que entre os clérigos medievais, que nela viam um ídolo maléfico. No entanto, o que se colocava igualmente diante de ambos era sua unicidade, ou seja: sua aura. (BENJAMIN, 2012, p. 31) Por outro lado, para o crítico alemão Peter Bürger, a leitura benjaminiana do desenvolvimento da arte é problemática por enfatizar a história cultural das técnicas e por ignorar a passagem da arte sacra para a “arte autônoma, que chega com a sociedade burguesa e produz um novo tipo de recepção (a estética) ao libertar-se do ritual”. (BÜRGER, 1993, p. 59) Dessa maneira, para Bürger, a teoria da arte de Benjamin não reconhece a emancipação da arte em relação ao sagrado na sociedade burguesa: “em vez de se integrar no universo do sagrado, a arte põe-se no lugar da religião”. (BÜRGER, 1993, p. 59) Além disso, ao discorrer sobre os processos criativos dos dadaístas, “aos quais agregam botões ou bilhetes”, Benjamin reconhece que os dadaístas alcançaram “assim uma brutal destruição da aura das suas produções” (Benjamin apud BÜRGER,

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1993, p. 60), mesmo que para tanto não se valessem dos recursos da reprodução mecânica e o consequente assalto à ideia da autenticidade e da originalidade. Com essas constatações, Bürger busca afirmar não ser “possível evitar a sensação de que Benjamin descobriu a perda da aura das obras de arte através das obras de vanguarda, procurando depois fundamentá-la de modo materialista”. (BÜRGER, 1993, p. 60) Bürger alerta ainda para os riscos da tentativa de Benjamin de “aplicar o teorema marxista segundo o qual o desenvolvimento das forças produtivas se transfere no âmbito da sociedade na sua generalidade para o âmbito da arte” (BÜRGER, 1993, p. 61), enquanto Bürger lembra que a “produção artística é um tipo de produção de mercadorias [...] no qual os meios de produção material têm uma importância relativamente escassa”. (BÜRGER, 1993, p. 61) Neste debate com as ideias de Walter Benjamin, Peter Bürger prioriza uma abordagem crítica da história da arte fundada na questão da autonomia da arte, alertando de imediato para as complexidades do conceito. O alerta de Bürger é relevante diante do pensamento hegemônico que busca consolidar o lugar da arte na modernidade como sendo distante do mundo, instaurada na esfera própria e exclusiva da arte, como que a reverberar a afirmativa de Adorno de que a autonomia da arte é irrevogável. (BÜRGER, 1993, p. 73) Mais que isso, dominados como somos pela tendência à naturalização das coisas que apreendemos no mundo, estamos sempre inclinados a considerar processos históricos, socialmente construídos e condicionados, como se naturais fossem e não como sendo construções de natureza ideológica. Assim, quando nos deparamos com os registros históricos da autonomia da arte, entendida como a desvinculação da arte das práticas do cotidiano, devemos ter clareza não se tratar de condição imanente à natureza da arte. A visão de Peter Bürger, suficientemente conhecida, não é nada otimista quanto aos resultados dos embates históricos das vanguardas em sua recusa em aceitar a natureza da arte como sendo apartada do contexto do cotidiano. Para o crítico alemão, a remoção dos limites entre arte e vida pelos artistas de vanguarda “não aconteceu e não pode acontecer na sociedade burguesa, a não ser sob a forma de falsa superação da arte autônoma”. (BÜRGER, 1993, p. 96) Participando deste debate reatualizado pelas práticas colaborativas correntes na arte contemporânea, Jean-Pierre Cometti nos alerta para as ambiguidades que permeiam os discursos em torno do suposto, segundo o teórico francês, campo autônomo da arte.

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Cometti afirma que essa ambiguidade pode ser exemplificada pela obra de inúmeros artistas dos séculos XIX e XX, tanto entre aqueles que “elevam a arte a um patamar e finalidade que não encontram outra justificativa senão a arte em si mesma” quanto entre os artistas de vanguarda, “considerando seu objetivo de negação pura e simples da arte” e que “não podem simplesmente superar a arte ou, para dizer de outra forma, ultrapassar o ‘fosso que separa a arte da vida’, a não ser agindo no cerne da arte ou como arte”. (COMETTI, 2012, p. 77-78) Dessa maneira, Cometti entende que as vanguardas, ao recusarem à noção de uma arte que “não tem contas a prestar a não ser a si mesma”, que se escreve “‘com A maiúsculo’ [sendo sua] expressão mais significativa e talvez a mais infeliz” (COMETTI, 2012, p. 77), o fizeram de dentro do campo exclusivo da arte. Para Jean-Pierre Cometti, “a situação histórica da arte e o estatuto da autonomia que ela herdou historicamente são intrinsicamente solidários como nossa noção de arte, [...] inclusive os empreendimentos de negação, de superação ou de desconstrução que nela se manifestaram”. (COMETTI, 2012, p. 78) Avançando em suas reflexões, Cometti afirma que a suposta autonomia constituise como um mito, em nada negligenciável na medida em que “estrutura grande parte do campo das práticas artísticas e das ideias que são, por assim dizer, sua consciência”. (COMETTI, 2012, p. 78) Para ele, a ambiguidade da autonomia da arte se evidencia na própria experiência que a arte provoca no público, a experiência de um espectador que essa arte autônoma insiste em tentar desconhecer ou mesmo excluir. Nas palavras de Cometti: o que torna uma obra viva e o que faz realmente acessar o estatuto de obra (reconhecida) é a relação que se estabelece ou que ela estabelece com um ou vários indivíduos em condições de compreensão e de sentido que não podem ser completamente dissociadas de um vasto contexto não artístico de crenças, hábitos, aprendizagens e vida. [Desse modo], a experiência da arte joga contra a autonomia da arte! (COMETTI, 2012, p. 79) Ou ainda, “a maneira como [essas obras] são percebidas, a experiência para qual se abrem as subtraem do isolamento”. (COMETTI, 2012, p. 84) As estratégias e as ações das práticas artísticas das vanguardas tinham como

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sentido questionar o estatuto da obra de arte, promovendo sua dessacralização e a superação da distância entre arte e vida, mas acabaram por se constituir como elementos inovadores para o impulsionamento continuado da arte moderna. Assim, as atitudes de protesto e negação das vanguardas tiveram o resultado oposto ao aspirado, contribuindo para revitalizar uma dinâmica da arte que combatiam, própria de um modernismo alongado, a cuja produção acabou por emprestar um elã crítico ressuscitado, embora domesticado e entorpecido. Neste sentido, as proposições das vanguardas na tentativa de reverberar para além dos limites vedados do campo da arte parecem ter fracassado, obrigadas a que permanecessem circunscritas aos ambientes artísticos autônomos, perfazendo o voo fechado do bumerangue. Essa retração imposta às propostas das vanguardas, condenadas a uma reclusão a que programaticamente se opunham, parece sugerir uma forma desesperançada de protesto diante do fracasso de seus projetos de transformação da natureza da arte, mesmo que esses modos de enfrentamento pelo isolamento já não tivessem qualquer significado como estratégia diante das transformações políticas, sociais e culturais que abalaram o mundo nos anos 1960 e 1970. Transformações que passaram a demandar maior participação, clamando por uma melhor articulação da sociedade civil, abrindo novas perspectivas para o transbordamento e maior comprometimento da arte no campo da cultura.

As práticas colaborativas da arte mundana Considerando a produção de arte contemporânea recente, Cometti admite que artistas identificados com as formulações do crítico e curador francês Nicolas Bourriaud, e reunidos sob a insígnia da estética relacional, delineiam o novo “contorno de uma sociabilidade alternativa que retira a arte de sua posição separada”. (COMETTI, 2012, p. 87) Para Bourriaud, a crescente necessidade de enfrentamento das frustrações provocadas por relações rasas e abstratas em nossas sociedades pós-modernas individualistas tem impelido “artistas a explorar o campo do inter-humano”, deflagrando a exigência de que esses artistas mergulhem nas práticas das relações interpessoais, uma tarefa a ser conduzida de dentro das instituições de arte e que aqueles que acreditam poder permanecer do lado de fora “estão acreditando ser Deus, não artistas”. (BOURRIAUD, 2004, p. 44)

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Nas críticas às formulações da estética relacional, fica patente que as proposições de Bourriaud passaram a ser questionadas justamente por estarem comprometidas por sua defesa de que essas articulações se dêem dentro dos limites do sistema de galerias, museus e centros de arte. No entanto, na contemporaneidade uma infinidade de artistas de diferentes lugares tem privilegiado os espaços externos às instituições de arte para a efetivação de seus projetos de arte; artistas que elegeram a arena pública como espaço privilegiado para a instauração de uma arte que pode e deve ser vista com um processo de reversão do decantado fracasso das vanguardas. Esses artistas estão enfrentando a separação entre arte e vida a partir do lado de dentro, não do dentro de Bourriaud, do dentro institucional, mas de dentro da vida, o qual pode eventualmente significar do lado de fora do território tradicional que tem sido consignado à arte no mundo ocidental. Em atitudes que parecem redesenhar nossa percepção política do campo da arte e que parecem reorganizar os paradigmas da arte, esses artistas parecem afastar-se do campo autônomo da arte, assumindo uma absoluta exterioridade. Ou, no sentido inverso, como bem observado por Antonio Negri, o paradoxo artístico consiste hoje no desejo de produzir o mundo (corpos, movimentos) diferentemente – e ainda de dentro – um mundo que não admite outro mundo além daquele que de fato existe e que sabe que o ‘lado de fora’ a ser construído somente pode ser o outro dentro de uma absoluta interioridade. (NEGRI, 2011, p. 108) O retorno do diálogo explícito com a sociedade tem caracterizado as práticas de artistas que identificamos como geovanguardas, os quais articulam seus projetos de arte diretamente com os diferentes contextos do mundo, em práticas que se dão sob a égide do diálogo e da negociação e que valorizam o processo do encontro. Ao reinventar o lugar da arte no mundo real, no mundo mundano, afastando-se das limitações tradicionais do mundo da arte, o artista se lança na direção do outro. Esse artista enfrenta suas mazelas e seus prazeres em um “mergulho no concreto” que tem transformado a natureza da arte, provocando seu espalhamento nesse mundo mundano na busca da invenção de singularidades. Neste sentido, diante dessas práticas do fazer artístico, o artista parece refluir da necessidade de afirmar sua condição singular e única para se permitir desaparecer entre

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uma multidão de singularidades. Embora a presença desse artista seja difusa no meio da multidão, em realidade ele parece ter encontrado um novo lugar no mundo, enfatizando que o perder-se e o achar-se perfazem a dialética do processo. Essas articulações instauram uma nova dinâmica na criação artística que subverte de forma substantiva a natureza da arte, em práticas orientadas pelos processos de aproximação entre arte e vida, entre artista e mundo, artista e multidão, como que a asseverar que o artista é um homem-do-mundo.

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COMETTI, Jean-Pierre. As falsas sugestões da autonomia artística, as experiências das vanguardas, arte e cultura. In: VINHOSA, Luciano, e D’ANGELO, Martha (orgs.). Interlocuções: estética, produção e crítica de arte. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012. p. 77-88. NEGRI, Antonio. Art & Multitude. Londres: Polity Press, 2011. 123p. NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica de multidão. Lugar Comum: estudos de mídia, cultura e democracia, Rio de Janeiro, n. 19-20, p, 15-26, jan./jun. 2004. OLIVEIRA, Luiz Sérgio de. O despejo do artista. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 19, p. 24-37, dezembro de 2011.

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INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS NO URBANO: REVENDO “O NOVO PARADIGMA RELACIONAL” Luciana Benetti Marques Válio Maria José de Azevedo Marcondes

As obras artísticas na contemporaneidade têm abrigado questionamentos em torno do potencial da arte para transformar o espaço social e as relações humanas. Nesta perspectiva a 27ª Bienal de São Paulo, curada por Lisette Lagnado em conjunto com Adriano Pedrosa, Cristina Freire, José Ignacio Roca e Rosa Martínez, buscou protagonizar obras e práticas artísticas e discursivas em torno da denominação central “Como Viver Junto”. Além do projeto expositivo, a proposta desta bienal incluiu uma sequência de seis Seminários1: “Marcel 30”2, organizado por Jochen Volz; “Arquitetura”, por Adriano Pedrosa; “Reconstrução”, por Cristina Freire; “Vida Coletiva”, por Lisette Lagnado; “Trocas”, por Rosa Martínez; e “Acre”, por José Roca.

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Para o Seminário “Trocas”, a cocuradora Rosa Martínez convidou os conferencistas: Renata Saleci, socióloga; Maria Rita Kehl, psicanalista; Ernesto Neto, artista; Carlos Jiménez, crítico e historiador; Paulo Herkenhoff, curador, e Nicolas Bourriaud, curador, para refletirem sobre “a ideia de transferência e intercâmbio, como parte do que poderia ser considerado um novo ‘paradigma relacional’” (MARTÍNEZ, 2008, p. 279), avançando a reflexão a respeito do conceito de “estética relacional” definido por Borriaud em 1998. Após quase uma década, o presente artigo propõe-se a retomar a “ideia de transferência e intercâmbio” do debate proposto - o potencial da arte para transformar o espaço social e as relações humanas - sobretudo, por Nicolas Bourriaud e, também, pelas curadoras Lisette Lagnado e Rosa Martínez (organizadora do Seminário “Trocas”) em uma perspectiva histórica. Assim, para iniciar a reflexão, descrevem-se as perguntas lançadas por Rosa Martínez sobre o papel das relações, das trocas e dos intercâmbios: Mas será que essa consciência da onipresença do intercâmbio é suficiente para adjetivar nossa época como sendo essencialmente fundamentada nas relações? E mais: esse foco nas diversas formas de sociabilidade, negociação e comércio é realmente uma mudança de paradigma? (MARTÍNEZ, 2008, p. 279). Pensar que as formas de “sociabilidade, negociação e comércio” podem tornarse uma mudança de paradigma de “nossa época”, e mesmo pensar que a “nossa época” esteja fundamentada nas relações, remete a uma reflexão primeira sobre quais relações: relações entre indivíduos, entre países, relações de negócios, de comércio, afetivas, profissionais, religiosas? E a segunda, sobre se é realmente um intercâmbio, uma troca? São/estão as relações estabelecidas em uma via de mão dupla, de modo a se considerar como a “onipresença do intercâmbio”, mesmo aceitando que uma hora pese mais para um lado do que para outro, e/ou muitas vezes, configure-se de maneira desigual? Rosa Martínez (2008, p. 279) relata que O planejamento do seminário “Trocas” está calcado no otimismo, na convicção e na esperança de contribuir para equilibrar os intercâmbios a partir da perspectiva da economia sustentável, tanto no campo das emoções quanto no campo do saber e da riqueza material

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e, portanto, no campo da redistribuição do poder. Pretendeu-se, com isso, que a reflexão do evento chegasse a uma “análise específica da arte e das exposições como meios para redistribuir o capital simbólico e criar cidadãos mais conscientes, mais críticos e mais participativos” (MARTÍNEZ, 2008, p. 280), pois, para a autora, “não nos resta senão reinventar as formas de generosidade, amor, hospitalidade e comunidade”. (2008, p. 283) Considerando tais responsabilidades à arte e aos artistas, Bourriaud (2009)3, por consequência, observou as modificações da arte contemporânea durante a década de 1990 e, para descrevê-las e analisá-las, procurou organizar a partir das especificidades das práticas artísticas, isto é, tentou encontrar um modo de reuni-las, de caracterizá-las, de aproximá-las dentro de um conceito, que ele denominou de “estética relacional”. Mas para isso, o autor pergunta: “Como entender os comportamentos artísticos manifestados nas exposições dos anos 1990, e seus respectivos modos de pensar, a não ser partindo da mesma situação dos artistas?” (BOURRIAUD, 2009, p. 15-16). Para isso, ele propõe que não é mais possível [...] perceber sua originalidade e sua importância analisando-as a partir de problemas resolvidos ou deixados em suspenso pelas gerações anteriores. É preciso aceitar o doloroso fato de que certas questões não são mais pertinentes – e, por extensão, demarcar quais delas são assim consideradas atualmente pelos artistas: quais são os verdadeiros interesses da arte contemporânea, suas relações com a sociedade, a história, a cultura? (BOURRIAUD, 2009, p. 9). Assim, delimita alguns princípios de atuação dessa prática artística contemporânea: a utilização de “formas existentes, obras, práticas ou vocabulários que foram inventados no início do século XX, nas décadas de 1960 e de 1970”, não se trata mais de criar o “novo”, mas pensar de que maneira “podemos viver dentro dele?”, o que leva a questões como “o que estamos fazendo com o mundo? Como podemos habitá-lo? Como podemos produzir novas relações dentro da grade que nos foi dada? E é possível mudar essa grade e inventar novas ferramentas para o amanhã?”. (BOURRIAUD, 2008, p. 336) Segundo o autor, estas seriam as questões do presente, com as quais os artistas se baseiam para pensar em suas práticas de modo a “se opor a este processo de padronização na esfera das relações humanas”. Ele se refere ao “processo global de padronização que

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está implicado no projeto capitalista”; para tanto, acredita que “o valor político da arte” implica em uma oposição, que seriam, justamente, os “processos de individualização/ singularização.” (BOURRIAUD, 2008, p. 339). O conceito de “estética relacional” [...] converteu-se em uma definição bem-sucedida. Serviu como guarda-chuva para acolher muitas práticas de artistas contemporâneos. Para eles, além da produção de objetos, a obra de arte se converte em elemento de perpétuo fluxo e transformação a partir do encontro e da interação entre as subjetividades dos participantes na sua criação. Bourriaud vê esta transformação diretamente conectada com a conversão de uma economia de produtos em uma economia de serviços. Fala também do “critério de coexistência” e sustenta, polemicamente, que o valor político da estética relacional implica em duas constantes: o real social é um produto de negociações, e a democracia é uma montagem de formatos. (MARTÍNEZ, 2008, p. 282) Parece que o limiar entre as relações e as negociações é bastante delicado, talvez a via de mão dupla, da “onipresença do intercâmbio”, em algum momento seja de um sentido só. Seja como for, vislumbrando um novo “paradigma relacional” ou não, o fato é que na arte contemporânea as negociações assumiram um papel de relevância, estendendo-as para as interações, para as relações, socialidades, trocas e intercâmbios. Ressalve-se aqui que o uso do termo socialidade é adotado a partir da expressão tal como definida por Bauman (1997, p. 138): “socialidade como aquela que coloca a unicidade acima da regularidade e o sublime acima do racional, sendo, portanto, em geral avessa às regras, tornando o desempenho delas problemático e cancelando o sentido instrumental da ação”. Para a 27ª Bienal de São Paulo, “Como Viver Junto”, a artista Renata Lucas realizou o trabalho Matemática Rápida (2006)4 no bairro da Barra Funda, na cidade de São Paulo. O fato de Matemática Rápida concretizar-se na Barra Funda demonstra o enfoque nas sociabilidades espontâneas da rua, isto é, o trabalho não era somente para ser visto pelo público frequentador da Bienal, mas pelo público transeunte: aquele que utiliza a calçada em seu dia a dia.

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[Fig. 1] Renata Lucas, Matemática Rápida (Quick Mathematics), 2006. intervenção urbana com calçada de concreto, postes de luz, canteiros de plantas, árvores jovens. Vista da intervenção na Rua Brigadeiro Galvão, Barra Funda, São Paulo, para a 27ª Bienal de São Paulo. Aproximadamente 150m de extensão. (Foto: Daniel Steegmann; cortesia da artista)


O lugar onde decidi fazer o trabalho é a Barra Funda, ponto de investigação privilegiado em muitos dos projetos relatados5, próximo do bairro onde vivi por muitos anos. Mais propriamente a rua Brigadeiro Galvão, onde funciona o CB Bar, local que costumo frequentar, assim como outros artistas da minha geração, além de visitantes alheios ao meio da arte que vão ali se divertir, assistir a shows, tomar cerveja com amigos. (LUCAS, 2008, p.78) A investigação que a artista fez do local – desde o histórico de formação do bairro até o processo de renovação urbana que os investidores imobiliários estavam ávidos por executar – n permitiu que a artista se apropriasse das especificidades do local, que, na verdade, não se tratam de características tão singulares assim, uma vez que as grandes cidades sofrem com o problema dos interesses imobiliários especulativos. Assim, a Barra Funda formou-se como um bairro tipicamente de classe operária no final do século XIX, pois ali se estabeleceram muitos trabalhadores das fábricas do grupo Matarazzo, localizadas próximas no bairro da Água Funda. Em conjunto com o interesse de especulação imobiliária está o descaso com a situação do bairro, fazendo com que os moradores não sejam atendidos em suas necessidades de melhoria e cuidado com o aspecto físico do local: Há uma recente invasão de construtoras para empreendimentos imobiliários na região, elas erguem novos condomínios de torres altíssimas em que os apartamentos, diminutos, são vendidos em prestações a perder de vista. O padrão de condomínio da classe alta e média chega às classes populares, com as mesmas muralhas que isolam o conjunto da cidade lá fora. As ruas pacatas, em geral tomadas por crianças, escolas de samba, moradores da região e às vezes moradores de rua, assistem à substituição de umas poucas paisagens horizontais da cidade por uma paisagem de arranhacéus cercados por grades, portarias e outros aparatos de segurança privada. (LUCAS, 2008, p. 64)

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Ao diagnosticar e vivenciar este processo de renovação urbana da Barra Funda, Renata Lucas propõe um trabalho em que os problemas locais – n calçamento danificado, iluminação pública insuficiente, falta de árvores, de sombra, de verde – são sobrepostos por uma duplicidade do mobiliário urbano, ao mesmo tempo em que reforça a questão maior da construção de arranha-céus, a partir do apagamento da calçada existente com a cobertura de uma camada de cimento. A intervenção artística no urbano altera a percepção e/ou provoca modificações físicas, ou não, nos espaços urbanos com intenção de provocar/alterar a ideia preconcebida do espaço urbano por aquele que o usufrui. Na visão de Brissac-Peixoto (1998, p. 118) resta ao artista “converter esses locais de trânsito, típicos de nossa dinâmica urbana moderna, em locais de experiência”. Marcondes (2008) ao analisar paradigmas da arte pública contemporânea – a arte no espaço público, a arte como espaço público e a arte no interesse público – considera que a arte que se estabelece enquanto um espaço público cria um espaço de visibilidade e comunicabilidade de múltiplos questionamentos estéticos, reverberando conflitos e subjetividades que se opõe à arte no espaço urbano integrada ao espaço físico que a contém, e que serve meramente para a valorização estética deste espaço. Assim como para Pallamin (2000), há uma relação processual que leva a arte a participar como constituinte do urbano, de maneira que os [...] procedimentos e resultados vão sendo definidos em percurso. Sua abordagem parte do modo do seu fazer / construir, modo este não definido plena e previamente como sendo antecedente à obra, mas engendrado durante a sua produção, entendendo-se por arte a resultante desta construção inventiva. (PALLAMIN, 2000, p. 16) O modo como Pallamin (2000) discute a arte, como constituinte do urbano, leva a entender que as negociações decorrentes do processo de constituição do trabalho são construídas em conjunto (a/o artista e os sujeitos envolvidos) ao longo do processo de elaboração e execução. Embora, MATEMÁTICA RÁPIDA (2006) tenha sido feito para um evento institucional, como a Bienal de São Paulo, e a ideia, a proposta e as negociações realizadas pela artista, este trabalho não deixa de criar relações com o espaço em que se insere, de modo que, estas relações tornam-se partes constituintes do trabalho enquanto tal. E não se trata somente de uma questão de fisicalidade, MATEMÁTICA

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RÁPIDA (2006) é construído no campo discursivo de modo a se estabelecer enquanto uma intervenção artística no urbano. A compreensão que a artista tem do local para executar o trabalho, pode levar a interpretá-lo como uma prática de “site-specific”, onde o espaço urbano é o site, que “é definido e não simplesmente representado.” (BRISSAC-PEIXOTO, 1998, p. 118). Decorre nesse sentido, a arte “site-specific” constituir-se nas especificidades do lugar, apropriando-se do espaço urbano como elemento ativo de sua prática ao tratar a cidade como a interface contemporânea das relações humanas. A intervenção artística urbana ao valorizar as práticas cotidianas, trabalha com as questões latentes do site e busca alterar a carga simbólica preexistente, possibilitando momentos de interrupção, reflexão e respiro. Podem ser “intervenções modestas, muitas vezes muito efêmeras, ainda pontuais e, sobretudo, que reconhecem a complexidade da cidade.” (Idem, p. 117). A especificidade do site é incluída pela prática artística que é elaborada incluindo “o ‘site’ de múltiplas formas” (KWON, 2008, p. 177), fato que leva o site a uma condição discursiva, pois a especificidade do trabalho não está mais vinculada somente ao local, mas às condições ideológicas presentes tanto no próprio trabalho quanto no local. Kwon (2008) refere-se às transformações ou ampliações do conceito de “sitespecific”, em que a obra não pode estar mais vinculada, somente, ao local6, mas “sitespecific” como situação. A situação opõe-se à permanência, não é apenas uma alteração em termos espaciais, mas principalmente em termos temporais, pois se trata de um local que é marcado e logo em seguida é abandonado. É uma “requalificação” do espaço por parte do trabalho artístico, em que há uma desterritorialização do local da prática e uma ambientalização no discurso da arte (BASBAUM, 2007). Compreende-se assim que o potencial ambientalizante da intervenção artística leva ao site discursivo. O artista assume o papel de propositor, cabe a ele identificar o local (física ou discursivamente) como constituinte de sua prática. Assim, Renata Lucas descreve o bairro que selecionou para fazer MATEMÁTICA RÁPIDA (2006): As edificações da Barra Funda variam entre o casario contínuo – são casas na maior parte das vezes geminadas, de fachadas estreitas e alongadas por dentro do quarteirão – e os galpões, onde funcionam pequenas indústrias, marcenarias e oficinas mecânicas. Muitos desses galpões foram erigidos sobre o casario original, parcialmente demolido para dar-lhe lugar, deixando-se alguns detalhes

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arquitetônicos remanescentes, como um pedaço de parede de taipa, um portão velho ou um lustre de época. (LUCAS, 2008, p. 64) Com isso, o envolvimento da artista com o contexto configura a prática artística enquanto um discurso com esse contexto, com as questões inerentes ao local que ocorre, principalmente, pelo posicionamento frente aos conflitos existentes no espaço, seja posicionando-se criticamente, enfrentando-os, ou, seja simplesmente tornando-os visíveis. Esses trabalhos não apenas partem de indagações a respeito do lugar em que estão inseridos, o que poderia identificá-los com a prática do site-specific, mas têm uma vontade de confundir-se com o próprio lugar, têm a intenção de sê-lo. Nesse sentido, talvez o ânimo da obra aqui relatada não venha de um intrincamento com o lugar específico, mas de intrincamento específico com qualquer lugar. (LUCAS, 2008, p. 9) O “intrincamento específico” de MATEMÁTICA RÁPIDA (2006) com a Barra Funda ocorre na associação do processo de especulação imobiliária do bairro com a camada de cimento que sobrepõe à calçada. MATEMÁTICA RÁPIDA (2006) é uma intervenção realizada no lado esquerdo de quem segue o sentido da rua, no lado ímpar da Rua Brigadeiro Galvão, entre as Ruas Lavradio e Lopes Chaves. O trabalho sobrepunha duas imagens similares ocupando o mesmo lugar no espaço. O resultado era uma calçada sobreposta a outra, algo inclinada, atravessando um quarteirão inteiro. Tratava-se de um trecho com novos pavimentos, canteiros, mudas de árvores e poste de iluminação cujas lâmpadas tinham uma ligeira alteração de cor em relação às existentes, proporcionando efeito duplo naquele bloco, com uma tonalidade mais amarela. Era como se dois quarteirões se coincidissem naquele ponto da cidade. Era como “dobrar a esquina”. (LUCAS, 2008, p. 78)

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[Fig. 2] Renata Lucas, Matemática Rápida (Quick Mathematics), 2006. intervenção urbana com calçada de concreto, postes de luz, canteiros de plantas, árvores jovens. Vista da intervenção na Rua Brigadeiro Galvão, Barra Funda, São Paulo, para a 27ª Bienal de São Paulo. Aproximadamente 150m de extensão. (Foto: Edouard Fraipoint; cortesia da artista)


A ideia da artista do “dobrar a esquina” remete a uma ida e volta sobre a mesma calçada. A esquina é uma surpresa. Não é simplesmente um ângulo abstrato desenhado pela caneta de um administrador, é onde as pessoas param para “jogar conversa fora” - uma expressão tipicamente brasileira que significa “tomar uma brisa” em público.7 (LAGNADO, 2007, tradução nossa) Além disso, o trabalho pode causar um estranhamento, pois todos os elementos são comumente encontrados neste tipo de lugar, trata-se: de postes, de calçada e de árvores -, porém a quantidade, a duplicidade, a calçada sobreposta em sentido diagonal à calçada mais antiga, no conjunto, o todo, o excesso, provoca uma desorientação do local. Assim, o “estranhamento” é causado pelo excesso de objetos e signos conhecidos. De escala e tamanho ligeiramente distorcidos, a intervenção criava uma nova camada que materializava duas temporalidades numa só. Sua ocupação da zona que separava residências e lojas da rua tornouse uma espécie de esquina, um ponto de encontro espacial de duas construções diferentes de espaço e de tempo (o futuro desenvolvimento da vizinhança). (KIM, 2007, p. 29) A artista deu o título MATEMÁTICA RÁPIDA, porque foi desta maneira que ela considerou seu processo de trabalho para o projeto. “Ele foi fruto de um exercício de somas e subtrações rápidas que eu operava desde o início de meus projetos para a Bienal.” (LUCAS, 2007, p.67). A partir de contas simples e diretas, como 1 + 1: se há um poste será plantado outro ao lado, Renata Lucas faz uma série de cálculos rápidos para executar o trabalho. “Sua instalação intitulava-se matemática ‘rápida’ (ao invés de ‘lenta’) porque era uma intervenção rápida, uma obra efêmera que só existiu por um tempo relativamente breve.” (ZELEVANSKY, 2007, p. 49) Nesse sentido que Bourriaud (2011, p. 178), em desenvolvimento posterior, expõe que “cada vez mais os artistas consideram seu trabalho do ponto de vista temporal, e não mais estritamente espacial.”. Ele associa a temporalidade à ideia da “cópia”, de reprise, do remake, todos estes incluídos numa cultura que dá valor ao tempo, a

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velocidade, em detrimento do espaço. Assim, a “repetição, dentro do tempo, chama-se reprise, ou réplica”, isto é, “a obra de arte é um evento que constitui a réplica de outra obra ou de um objeto preexistente; afastada no tempo do ‘original’ a que está ligada, essa obra pertence, contudo, à mesma cadeia de eventos.” (Idem, p. 179). Seu caráter transitório depende não de sua materialidade, mas do status que reivindica “dentro da cadeia cultural: o status de evento ou de réplicas de eventos passados.” (Idem). Por ter um tempo determinado, a intervenção está fadada ao seu esvanecer. O fato de se dar como um acontecimento, ser uma situação, exige uma interação in loco com o público. Inclusive, “o significado da obra é gerado no devir de seu processo de fruição e leitura e não depositado nela de antemão, numa plena totalidade” (PALLAMIN, 2000, p. 61), o significado é construído no momento. Assim como, em Basbaum (2007), é tratado o momento da “fruição”, que remete à relação imposta entre a obra contemporânea e seu público. Basbaum (2007, p. 106) ainda discute como ocorre a interação daquele que participa do “acontecimento” e daquele que discursa sobre a obra, que seria o “produtor de discursos críticos”: Desse modo, o espectador e o produtor de discursos críticos estão envolvidos em um mesmo ‘paradigma de fruição’ da obra de arte contemporânea, que os impulsiona a uma condição de enfrentamento do trabalho plástico, no sentido de uma aproximação máxima, de uma tatilidade intensiva, da construção de um espaço-tempo, em que suas próprias presenças, enquanto espectadores-atores, possibilitam o funcionamento da obra como máquina de expressão; somente a partir do confronto com esses mecanismos que poderão ser construídas as relações positivas ou negativas vinculadas ao trabalho de arte, consideradas como construções que envolvem uma responsabilidade interativa. (BASBAUM, 2007, p. 106) A interação obra-público ocorre de modo específico na arte urbana, pois o público da cidade não é necessariamente o espectador interessado que frequenta a Bienal de São Paulo, um museu ou uma instituição cultural. A arte urbana envolve o público que é o transeunte da cidade, o passante, o sujeito anônimo que habita, trabalha e usufrui a cidade. Portanto, o espectador e o produtor de discursos críticos apresentados por

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Basbaum (2007) nem sempre são os mesmos da arte urbana, não se pode esperar, de maneira geral, que o público saiba o que está acontecendo, muitas vezes ele é envolvido sem nem ter a consciência de que o trabalho/prática inserido no espaço urbano seja um trabalho artístico. Justamente, a prática artística no espaço urbano não se quer diferenciar como arte, ela se pretende misturada ao espaço, portanto, a intervenção trabalha com um público que [...] não existiria como previamente dado, por um grupo presumivelmente coeso, mas seria gerado com e pela obra e diferenciado segundo os mais diversos interesses. Inclui a possibilidade da falência da obra, diante de uma [sic] sua incapacidade em promover seu público. Em outras palavras, não há garantia de público para a arte urbana. Ela pode desabar pela indiferença. (PALLAMIN, 2000, p. 49) O fato de arte urbana não ter garantias de que será percebida pelo público, não a inibe de atuar no espaço urbano, uma vez que ela só pode ser apreendida por meio das condições sócio-materiais da cidade. (Idem, p.47). Trata-se da própria condição da constituição da intervenção artística, ficando “evidente sua consideração como um vetor constituinte do real e não como sua representação constituída.” (Ibidem, p. 62) Surgem aqui algumas questões: de que maneira o participante é incluído no trabalho artístico? Estaria o trabalho artístico dentro do “critério de coexistência” proposto por Bourriaud (2009), de modo que o trabalho desencadeie um modelo de socialidade que poderia se traduzir no real? Enfim, como tal tradução reverbera, tanto no campo das artes, como no campo social? Em MATEMÁTICA RÁPIDA (2006) a condição de “público” pode ser vivenciada pelo período enquanto o trabalho esteve “exposto”. Configurado como intervenção artística urbana não se pretende “interpretado” como obra de arte contemporânea pelo transeunte da rua. Interessante nesse momento, apresentar uma leitura de Bourriaud (2009) sobre a questão da “disponibilidade da arte contemporânea” que diverge de uma “disponibilidade simbólica” de um quadro ou uma escultura, por exemplo, no caso, ele descreve que: [...] a arte contemporânea muitas vezes opera sob o signo da não-

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disponibilidade, apresentando-se num momento determinado. [...] Esse tipo de prática pressupõe um contrato com o observador, uma “combinação” cujas cláusulas tendem a se diversificar desde os anos 1960: a obra de arte não é mais aberta a um público universal nem oferecida ao consumo numa temporalidade “monumental”; ela se desenrola no tempo do acontecimento para um público chamado pelo artista. Em suma, a obra suscita encontros casuais e fornece pontos de encontro, gerando sua própria temporalidade. (Idem, p. 41) O fato de a obra suscitar encontros e fornecer pontos de encontros parte de uma relação que é, segundo Bourriaud (2009, p. 114), a necessidade de os “artistas procura[re]m interlocutores: visto que o público continua a ser uma entidade bastante irreal, eles incluem esse interlocutor no próprio processo de produção.”. Ele considera que as obras de arte “funcionam como interstícios, como espaços-tempos regidos por uma ordem que vai além das regras vigentes para a gestão dos públicos” (Idem, p. 80), para ele é perceptível uma preocupação democrática no próprio processo de produção, pois “arte não transcende as preocupações do cotidiano: ela nos põe diante da realidade através de uma relação singular com o mundo, através de uma ficção” (Ibidem, p. 8081), ocorrendo sem estabelecer uma hierarquia na relação produtor-observador, são negociações, relações abertas, resolvidas em conjunto, e não de antemão. “O sentido da obra nasce do movimento que liga os signos emitidos pelo artista, mas também da colaboração dos indivíduos no espaço expositivo” (Ibidem, p. 114), no caso, no espaço da rua. No caso de Matemática Rápida, os moradores de Barra Funda, tendo sido inicialmente avisados, tentaram evitar a remoção do trabalho ao final da Bienal (eles pensaram que a prefeitura, geralmente desatenta às suas necessidades, estava finalmente lhes dando a atenção), mas os burocratas da cidade acabaram frustrando este exemplo de que se pode chamar, seguindo Hélio Oiticica, “vontade construtiva”.8 (LAGNADO, 2007, tradução nossa) Pode-se considerar que o espectador assume vários papéis “de consumidor

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passivo e o de testemunha, associado, cliente, convidado, co-produtor, protagonista. Atenção, pois: sabe-se que as atitudes se tornam formas; agora, deve-se levar em conta que as formas induzem modelos de socialidade.” (BOURRIAUD, 2009, p. 81) Hoje, o que estabelece a experiência artística é a co-presença dos espectadores diante da obra, quer seja efetiva ou simbólica. As primeiras perguntas a ser feitas diante de uma obra de arte são as seguintes: Esta obra me dá a possibilidade de existir perante ela ou, pelo contrário, me nega enquanto sujeito, recusando-se a considerar o Outro em sua estrutura? O espaço-tempo sugerido ou descrito por esta obra, com as leis que a regem, corresponde a minhas aspirações na vida real? Ela critica o que julgo criticável? Eu poderia viver num espaço-tempo que lhe correspondesse na realidade? (Idem, p. 80) Em relação às questões colocadas anteriormente: sobre as formas de inclusão do participante/transeunte no trabalho artístico; sobre o “critério de coexistência” proposto por Bourriaud (2009) - de modo que o trabalho desencadeie um modelo de socialidade que poderia se traduzir no real –; e sobre a tradução reverberar tanto no campo das artes, como no campo social, em relação ao trabalho artístico de Renata Lucas, considera-se que tais questões repercutem no trabalho. Trata-se do estranhamento causado no sujeito que pode se desencadear pelas repetições materiais: da calçada, dos postes e de árvores, e, inclusive, pelas repetições simbólicas de bairro e de outro bairro... Esses possíveis desencadeamentos revelam poéticas, subjetividades latentes, derivas nos percursos do cotidiano, reminiscências, memórias de sua infância e/ou, o contrário, que o participante se negue enquanto sujeito, recusando-se a considerar o Outro na estrutura do trabalho artístico. Em suma, o estranhamento do trabalho oferece a possibilidade de existir perante ele. Assim, a partir da reflexão das práticas artísticas da década de 1990, o autor acredita que a intenção comum de interatividade de tais práticas pretendia ir além, estabelecendo socialidades. A relação com o público, ou o possibilitar interações entre os públicos, faz das práticas artísticas um disparador de socialidade. No campo da arte, a estética relacional tornou-se um tipo de

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[Fig. 3] Renata Lucas, Matemática Rápida (Quick Mathematics), 2006. intervenção urbana com calçada de concreto, postes de luz, canteiros de plantas, árvores jovens. Vista da intervenção na Rua Brigadeiro Galvão, Barra Funda, São Paulo, para a 27ª Bienal de São Paulo. Aproximadamente 150m de extensão. (Foto: Daniel Steegmann; cortesia da artista)


ortodoxia, na qual processos interativos procuram eliminar a distinção entre o artista, como produtor de objetos, e os espectadores, como consumidores passivos de mensagens visuais. Em termos de estética relacional, a interação de subjetividades é fundamental para a produção de novas formas de sociabilidade. Emoções, trocas discursivas, generosidade e negociação entre indivíduos são as principais questões dessa metodologia criativa que leva a arte a oscilar entre algo que alguns vêem como entretenimento e outros legitimam como reinvenção de uma nova ética de mudança social. (MARTÍNEZ, 2008, p. 281) Enfim, a “arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações” (BOURRIAUD, 2009, p. 23), o que pode ser potencializado ao se tratar de uma intervenção artística urbana. Assim, a questão inicial colocada por Martínez (2008) sobre um novo “paradigma relacional” perpassa pela tentativa de se opor à padronização na esfera das relações humanas, de modo a se rever e a questionar as possibilidades de se produzir novas relações dentro da grade dada. Assim, num processo de rebatimento do cotidiano, MATEMÁTICA RÁPIDA (2006) utiliza-se dos mesmos materiais encontrados no dia-a-dia: 1 + 1, um poste mais outro poste, uma calçada mais uma calçada, uma árvore mais uma árvore, um projeto mais um outro projeto, um bairro mais outro bairro = MATEMÁTICA RÁPIDA, que podem possibilitar socialidades. A releitura da intervenção artística no urbano de Renata Lucas mostra, após vários anos, seu potencial de enraizamento poético e as potencialidades de alterar o espaço social e as relações humanas em um território específico.

Notas 1 O programa de Seminários da 27ª Bienal de São Paulo teve como intenção propiciar uma maior abrangência da mostra. Divido em seis seminários, que aconteciam durante dois dias consecutivos, separados em três sessões, de janeiro a novembro de 2006. Estes seminários

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“serviriam de estrutura para a construção da Bienal, ‘Como viver junto’, título emprestado dos cursos de Roland Barthes no Collège de France (1976-1977). Em vez de aparecerem em segmentos diferenciados na montagem, optou-se por uma assinatura coletiva da mostra, enquanto essas pautas foram paulatinamente explicitando os convites aos artistas, sua afinidade e seu engajamento com o projeto curatorial” (Cf. LAGNADO, Lisette, Seminários: Introdução. In: 27 Bienal de São Paulo : seminários. Curadoria geral Lisette Lagnado; co-curadores Adriano Pedrosa ... [et al.] ; curador convidado Jochen Volz. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. p. 17). 2 O Seminário “Marcel 30”, seminário de abertura do ciclo de conferências, foi coordenado por Jochen Volz, convidado especialmente para fazer a curadoria deste projeto: uma homenagem ao artista Marcel Broodthaers. 3 Publicado pela primeira vez, na França, em 1998 : BOURRIAUD, Nicolas. L’Esthetique Relationnelle. France: Les Presses Du Reel. 1998. 4 Matemática Rápida (Quick Mathemathics), 2006. Intervenção urbana com calçada de concreto, postes de luz, canteiros de plantas, árvores jovens. Intervenção na Rua Brigadeiro Galvão, Barra Funda, São Paulo, para a 27ª Bienal de São Paulo. Aproximadamente 150m de extensão. 5 [nota das autoras]: A artista propôs vários projetos de trabalhos para serem feitos para o evento, porém foram recusados por não ser possível a autorização dos órgãos responsáveis pelo patrimônio e por questões orçamentárias. 6 Refere-se à primeira ideia de site-specific em que o local físico era parte constituinte da obra, e conforme Richard Serra posicionou-se sobre a remoção de Tilted Arc: remover a obra é destruí-la. Assim, os primeiros site-specific consideravam o espaço físico em sentido literal como parte da obra. 7 Tradução livre do trecho: The street corner is a surprise. Not simply an abstract angle produced by a surveyor’s pen, it is where people stop to ‘throw talk away’ – a typical Brazilian expression meaning to ‘shoot the breeze’ in public. 8 Tradução livre do trecho: In the case of Matemática Rápida, the residents of Barra Funda, having been initially wary, tried to prevent the work from being removed at the end of the Biennial (they thought that the city hall, usually inattentive to their needs, was finally paying them some attention), but the city’s bureaucrats eventually defeated this example of what one might call, following Hélio Oiticica, “constructive will”.

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Referências BASBAUM, Ricardo. Além da pureza visual. Porto Alegre: Zouk Editora, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Editora Paulus, 1997. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional, a política das relações. In: 27ª BIENAL DE SÃO PAULO: Seminários. Curadoria geral Lisette Lagnado; cocuradores Adriano Pedrosa [et al.]; curador convidado Jochen Volz. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. p. 332-340. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante – por uma estética da globalização. Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BRISSAC-PEIXOTO, Nelson. Arte & cidade. In: SESC. Seminário de Arte Pública. São Paulo: SESC, 1998. pp. 113-120. KIM, Clara. Estranha Racionalidade. In: KIM, Clara; PEDROSA, Adriano; e ZELEVANSKY, Lynn. Renata Lucas. Los Angeles: RedCat, 2007. p.16-31. KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. Tradução Jorge Menna-Barreto. Arte & Ensaios: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA – UFRJ, Rio de Janeiro, n. 17, p. 166-187, dez. 2008. Disponível em: http://www.eba.ufrj.br/ppgartesvisuais/. Acesso em 18/3/2011. LAGNADO, Lisette. Turning so many corners. Frieze Magazine, may/2007. London. Disponível em http://www.frieze.com/issue/article/turning_so_many_corners. Acesso em: 10/5/2011. LUCAS, Renata de Almeida. Visto de dentro, visto de fora. 2008. 132 f. Tese de Doutorado (Doutorado em Artes Plásticas). Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008. Disponível em http://www.teses.usp.br/ teses/disponiveis/27/27159/tde-20052009-161950/publico/3401396.pdf. Acesso em 04/2/2011. MARCONDES, Maria José A. Arte pública e forma urbana: o fetiche do espaço público. In: Anais do SEMINÁRIO ARTECIDADE, 2º, 2008, Salvador: Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, UFBA. MARTÍNEZ, Rosa. Trocas: Introdução. In: 27ª BIENAL DE SÃO PAULO: Seminários. Curadoria geral Lisette Lagnado; cocuradores Adriano Pedrosa [et al.] ;

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curador convidado Jochen Volz. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. p. 279-283. PALLAMIN, Vera M. Arte urbana; São Paulo: região central (1945-1998): obras de caráter temporário e permanente. São Paulo: FAPESP, 2000. ZELEVANSKY, Lynn. Argila Macia: Renata Lucas e a herança artística do Brasil. In: KIM, Clara; PEDROSA, Adriano; e ZELEVANSKY, Lynn. Renata Lucas. Los Angeles: RedCat, 2007. p.32-49.

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ACERVO – EXPERIÊNCIAS AFETIVAS E MATERIALIDADES DO LUGAR Isabela Frade

La verdadera imagen del pasado pasa de largo a prisa. W. Benjamim

O sítio da pacificação: o local em violência surda No diálogo entre universidade e favela, relações se tramam na constituição de uma zona híbrida, resultado de uma prática estética calcada na presença viva. De um depósito de lixo na Mangueira, no Rio de Janeiro, é constituído um espaço de convívio e aprendizado na arte de formas livres. São expectativas diversas: a favela vive a intervenção policial deflagrada no sentido de uma “pacificação”, profundamente silenciada em seus anseios; a universidade, por sua vez, se desloca para um campo de interações para além da hierarquia de saberes. O movimento em torno da rua se expande

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e se recriam memórias, narrativas sobre o que foi e o que há de vir. O sentido de futuro implica no engajamento do presente, garantindo a condição desejante. Em muitas regiões da cidade, a esperança é apenas de se ter um dia sem fome ou morte. Dado o grau exponencial de violência nessa região, tornouse imprescindível pensar a beleza em termos de relação extrema, de convivência em situações limite. Nesse sentido, estamos na Mangueira para apreender e refletir sobre essa forma do relacional comunitário que se deflagra em situações de risco social. Entre enlaces e atravessamentos diversos, são traçados os contornos de um lugar comum, espaço que é tomado pelo intercâmbio intenso com a circulação de moradores, artistas, educadores e pesquisadores. O amadurecimento das experiências nos projetos da via UERJ/Mangueira traz contínuas inquietações. Com um grupo de agentes onde se unem universitários e pessoas da comunidade, seguimos em uma associação instável, mas resilente e insistente. Processo que se define por atuação em situações emergenciais – situações que se apresentam na dupla condição de emergência: como contingência, no desafio do novo e da diferença, quanto no sentido da urgência, do imprescindível - na implantação do trabalho em 2009 e de suas fases anteriores (Projetos O Círculo, Arte Viva, O Jardim da Tia Neuma).Todas essas etapas de um mesmo projeto maior, o Terra Doce, seguem em direção à constituição de uma zona de convivialidade e sua ativação por proposições lúdicas na arte. A experiência no diálogo universidade/favela se desenvolve em dois âmbitos: o espaço de cada qual, passante, visitante ou morador, e o lugar comum, fruto do compartilhamento. A construção de um espaço para a convivência implica em mobilização interna da comunidade pelo contato com o outro que se insere em ação transformadora. Requer tolerância e abertura para a diferença em intervenções que exigem proximidade. São desafios consecutivos: ao adensar-se, o processo gera novas demandas, o desafio relacional segue se desenvolvendo em profundidade e amplitude. O trabalho vem se transformando, chegando a constituir uma ordem visual linear – a Parada Verde, ainda invisível - que pouco a pouco se torna concreta, mas já é grande no delírio do chamado “- Vamos verdejar o morro!”. Ao subir a rua, colocamo-nos em “situações/limite”. A favela se mostra em agitação social crescente. As mudanças são incessantes, a instabilidade é causa e fruto da insegurança. O ritmo da vida na Mangueira é veloz. O momento atual é de retorno ao clima de sobressalto: foi súbita a revisão do plano de ocupação da favela pelas forças policiais na cidade do Rio de Janeiro em março deste ano de 2013, sendo

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ampliado seu efetivo de forma ostensiva, tratando de se exibir em seu poder máximo. Assistimos diariamente à crescente manipulação e controle exercidos pelo Estado, que vem progressivamente alterando as formas de vida nas comunidades cariocas. A ação compressora da polícia cresce. Caberia aqui pensar que conformamos uma intervenção, ação com origem externa, compondo mais uma onda de mutação a compor esse jogo de forças que pressionam a comunidade no sentido de sua transformação. No entanto, somamos no sentido inverso, nos assumimos como agentes livres e disponíveis. Não somos pacificadores, mas dividimos o desejo comum de uma condição de vida livre do medo. Um dos passantes comenta sobre a destruição da área de lazer ao sopé do morro: - “Foi duro. Não havíamos nem sonhado com isso. Na chegada da UPP a comunidade recebeu ‘na paz’. Em todas as casas do Buraco Quente as mulheres colocaram lençóis brancos nas suas janelas. E eles chegaram destruindo tudo isso aqui.” Na base do morro, em frente à quadra da Escola de Samba Mangueira, sob o viaduto que liga o bairro ao fluxo geral da cidade, havia um conglomerado de biroscas, onde a tardezinha e seguido à noite, as pessoas se reuniam, tomavam cerveja, comiam pastéis e jogavam sinuca. Era um lugar onde também costumávamos descansar e observar o movimento, sendo um bom espaço para trocas e conversas. Eliminar esse espaço de lazer foi a primeira forma de subjugar os seus moradores. A partir desse momento, em março de 2012, desde a instauração da UPP e até hoje, após um ano de operação especial da polícia, os moradores se postam de um jeito diferente, em grande recolhimento. Hoje, o silêncio é mais profundo. Não adianta se manifestar, a violência é surda. A Mangueira se situa em uma região urbana estratégica para os programas oficiais, como a Jornada da Juventude deste ano de 2013, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016; especialmente pela proximidade com o complexo esportivo Maracanã/Maracanãzinho. Tivemos oportunidade de acompanhar, através da Reitoria de Extensão, o projeto de um campus integrado, planejamento produzido em conjunção da Prefeitura e do Governo do Estado como tácita empresa de valorização e limpeza do lugar. Nesse projeto a universidade, o estádio e a comunidade se ligam através de uma rede de passarelas em plano paisagístico de grandes proporções. O nosso pequeno jardim, encravado entre as paredes da Rua Icaraí, segue em dissenso ao se desejar significativo frente ao gigantismo dessas construções e dos planos oficiais de revitalização/pacificação.

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[Fig. 1] Conjunto habitacional do PAC na Mangueira, programa do governo federal, na zona conhecida como Candelária. contrasta com a arquitetura rizomática da favela (JACQUES, 2011), preservada na área que se percebe mais ao fundo. Ação integrada dos poderes impõe a visão hegemônica de ordem urbana. Notam-se o cerco policial e o confinamento de seus moradores. (Fonte da pesquisa)


Hierarquia de saberes – arte e vida em comum Trata-se de criar confiança, respeito e interesse no diálogo - meios com o que medimos as nossas ações no morro, sentindo a repercussão de nossa presença, e seguir buscando, sensivelmente, a forma colaborativa. Não há objetivo final, apenas meio, o processo de realização se dá pela permanência, ainda que frágil, nessa zona de convívio e se expor – no sentido artístico mesmo – aos tratos com os sujeitos que se postam nesse lugar – em estado frequente ou esporádico, dependendo principalmente do clima de violência no local. O traço da poética se distingue pelo modo relacional, em que nos ocupamos de praticar certas formas de presença que se instauram em disposição de abertura para uma consciência ambiental como paisagem, como referente ao fundo de todo o processo. O conceito da Terra-Mundo, espaço pedagógico de humanização através de uma visão ecosófica (CASTRO, 2009) implica em reconhecer o fundamento no poetizar. Castro vai cunhar o termo “poietizar”, no encontro da poesia com a ética para expressar essa ação primária, básica: “É que no começo era o poietizar” (p.16). A ação humanizante deve, assim, desenvolver-se para a ampliação desse espaço de relação com o mundo de forma amplificada, total, envolvendo o humano na geração do estado de “Todo-o-Mundo”, conceito mais abrangente que abarca os sujeitos em relação. O que constituiu o ‘Todo-o-Mundo’ não é o cosmopolitismo, que é uma transformação negativa da Relação. O que constitui o ‘Todoo-Mundo’, é a própria poética dessa Relação, que permite sublimar, em pleno conhecimento de si e do todo, o sofrimento e a anuência, o negativo e o positivo, ao mesmo tempo. (GLISSANT, 2005, p. 106) O caráter de efemeridade compõe cada ação – tudo dura muito pouco, quase logo depois se dissipa, e precisa acontecer de modo justo, tomando as próprias vibrações do lugar. Então é sua ambiguidade o sentido mais premente: é uma diferença que se instala - mas de modo sutil -, adaptando-se ao próprio ambiente da rua, buscando já de partida ser coisa do lugar, disponível a todos. Forma de arte como coisa do lugar comum. Não se espera nada em troca, apenas o olhar momentâneo, uma pausa e uma conversa um pouco mais duradoura e, em alguns casos, a companhia para viver uma aventura em forma de jogo. Estamos aderidos à convicção de Maturana (2009) sobre a base da

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sociabilidade estar vinculada ao ato de conversar. Estabelecemos o diálogo entre posições não antagônicas, mas na condição de alteridade em alto grau: dentre os que vivem isolados na comunidade e os que circulam por todos os lugares, pelo que vivem protegidos ou ameaçados pelo poder público, estabelecendo liames pelas falas que se produzem envolvendo as posturas hierarquicamente defasadas – estamos atentos para a percepção do que imaginam como atitude de pessoas da ligadas à universidade. Nesse modo, procuramos nos colocar na condição de igualdade de inteligências a que se refere Ranciére (2010), quando pensa na disposição pedagógica do mestre Jacotot. Respondemos à questão que o filósofo faz ao artista em uma perspectiva diferente: - “Não será precisamente a vontade de suprimir a distância que cria a distância?” (p. 21) Assumimos o valor positivo de alteridade na relação em que todos somos aprendizes; não suprimimos a distância, nem mesmo a diferença, operamos através dela, no reconhecimento de uma possibilidade de troca para além de uma hierarquia de saberes (FRADE, 2012). A rede sociotécnica a que cada grupo humano se envolve é núcleo dinâmico e irradiador de práticas criativas, compondo saberes próprios que operam pelos desígnios revelados na realidade social em que se inserem. As trocas entre saberes, assim, revestemse de intercâmbios mais amplos, de remodelação das visões de mundo, de percepção de outros modos no entendimento da vida. O exercício de se fazer pensar a partir de outra esfera, ao explorar o espaço da alteridade, se dá principalmente no ensejo de sofrer essa transformação, forma de exercício existencial na disposição de experienciar o que se percebe livremente do outro. O momento atual é de impasse: a opressão externa chega ao clímax. São dobrados os efetivos policiais e a comunidade está cercada. E começa a ser difícil ficar na rua, o jogo da arte está tenso. O pior problema, considerando o vínculo com o poder do governo de estado, é relacionarem nossa proposta ao poder sufocante da polícia. Se os moradores são aliviados da presença dos traficantes, recebem outra demanda muito opressora: o silêncio. Ser pacífico é silenciar-se, aceitar a sua condição e resignar-se. Operamos por uma via receptiva, a da escuta. E seguimos com delicadeza, passo a passo, degrau por degrau. Fomos conhecendo a rua pouco a pouco, e ainda apenas em seu primeiro nível – na escadaria que leva do asfalto até a primeira praça (anterior bunker do tráfico). Escolhemos essa medida inicial para mantermos segura a distância entre qualquer domínio (policial ou bandido) e nos integrarmos à Creche Escola Nação Mangueirense, CENM/SMRJ, nossa parceira no projeto.

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[Fig. 2] Amarelinha! Para os mais velhos, memória dos tempos de criança, para os novos, descobertas de formas ainda não vividas de brincar, na ativação do espaço da rua como lugar de encontro. (Fonte da pesquisa)


Esse tempo que vivemos é do andamento de ir e vir, de estar e de conversar. É um momento que buscamos recuperar o momento da brincadeira, noção mais legítima do estado de paz. Nesse aspecto, os mestres são as crianças, que se deixam tomar pela alegria e arrastam a todos com seu entusiasmo. Ao criarmos os canteiros liberados pela limpeza do lixão, o lugar se revelou um oásis. Conseguimos conter um vazamento de esgoto – com muito argumentação com a diretoria da escola. O debate era sobre a condição que a escola ocupa na comunidade: a nosso ver, sua entrada como intercessora com o poder púbico a tornaria uma agência mais importante, podendo atuar mais intensamente como instância mediadora pela comunidade. No entanto, a escola tem preservada uma relação de distância, protegida detrás de muitas grades, trabalhando de modo quase que ausente ao que ocorre em entorno. Suas principais ações comunitárias são promover as reuniões que contemplam os cursos de cuidados infantis, as orientações médicas e pedagógicas da CENM com os responsáveis. O sentido de comunidade escolar, porém, se dissipa tão logo as pessoas passam pelo portão. Acolhemos esse vazio e nos postamos nesse papel, fazendo reclamações e solicitações à Prefeitura. Observamos que o espaço externo das moradias, na favela, é considerado lixo. O que de certa forma, reforça o próprio hábito de jogar lixo ao lado, em todo o lugar, na porta de casa, pelas ruas e vielas. Durante as chuvas, todas as passagens viram riachos de água suja, o esgoto transborda de suas precárias caixas, os canos rompem-se, gerando múltiplas cachoeiras de dejetos. Estamos na cloaca do mundo. Aqui sabemos que é preciso ter coragem e resistir para suplantar esse problema. Nesse sentido, aqui são vencidas as nossas próprias resistências, sujeitos da universidade, ao superar o preconceito e o choque na ultrapassagem dos parâmetros da ordem e da limpeza com que estamos acostumados, e descobrir a humanidade para além de nossos próprios limites. O se por à prova começava ao sentar-se na escadaria e aceitar o que a cidade rejeita e esconde. O mau cheiro da terra no jardim, os restos de alimento, e toda a sorte de coisas imundas que circundam o espaço do trabalho ferem os nossos sentidos de modo contundente. Defendemo-nos da contaminação, mas nos expomos ao estado de rejeição sobre a sujeira – essa que brota tão rápido quanto o capim -, insistindo em ocultar o que está se produzindo em beleza. Nesse sentido, o Jardim se posta nessa condição de terceiro termo suscitado por Ranciére (2010), onde os signos demarcados são as atitudes frente ao lixo, ao estado comunitário diante da geração do campo de convívio,

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verificadas as dificuldades entre entrar e sair ou se envolver, entre trazer ou roubar, entre cuidar ou depredar, entre permanecer e conversar ou entre passar sem olhar. No âmbito da lógica da emancipação existe sempre, entre o mestre ignorante e o aprendiz emancipado, uma terceira coisa – um livro ou qualquer outro texto escrito -, algo que é estranho tanto a um como ao outro e a que ambos podem remeter-se para verificarem em comum aquilo que o aluno viu, aquilo que diz do que viu e o que pensa do que viu. (p. 24) O último desafio que ainda não vencemos foram os ratos. De nossa horta/jardim se satisfizeram com os magníficos pés de abóbora, onde se alimentavam de suas flores e criou-se um animado ninho de roedores. Depois da infestação, o canteiro agora jaz quase todo raspado, as plantas mortas ou extraídas. Algumas furtadas, outras mortas pelo sol escaldante do verão, outras arrancadas pelo medo de infestação. Somos jardineiros aprendizes e os moradores de certo modo se divertem com a nossa “ignorância”. Mas é essa mesma falta, essa mesma inaptidão para lidar com as plantas, a náusea na sujeira e nossa falta de conhecimento que geram o descompasso que instaura a quebra da hierarquia de saberes. Anoto no caderno de campo o que ouço de D., o lixeiro comunitário, importante sujeito da pesquisa. Ele produziu o seguinte comentário após a primeira leva de plantas: - “Sabe, eu sou da roça. Eu vi que vocês não entendem nada desse negócio de planta, né? (rs)” - “Verdade, não sabemos de nada disso! E veja que atrapalhada, (rs). Como você acha que devemos fazer?” –“Olha, primeiro você tem saber das plantas. Olha, essa aqui não é erva daninha, é Jurubeba, nem inventa de cortar. Dá para fazer remédio.” Assim, quem passa vem dar palpites e, ao se envolver, por a mão na enxada. Trabalhamos todos com luvas pelo risco de contaminação na terra; o que identifica quem está de jardineiro são as luvas. Então, com essas, se constituem o primeiro índice da mistura. As paredes laterais da rua, ladeadas pelas duas grandes escadarias, são marcadas por muitos buracos de balas, resultado da guerra do tráfico. A Rua Icaraí funcionava como uma espécie de bunker: pelos seus platôs de cimento se localizavam a proteção ao comércio de crack, impedindo o acesso ao alto da rua. O fato de não sabermos como lidar com o projétil encontrado no meio da terra levou a essa reflexão sobre o sentido da história do lugar e esse então foi nosso primeiro objeto conformador do Acervo.

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Uma rosa, uma lamparina, um jogo, um desenho. As sementes, a pipoca feita na escada, a dança na rua, o bate papo. O desfile de bonecas, o spray, a modelagem no barro, a caça ao gafanhoto, os jogos corporais. Viemos assim até nos encontrarmos com as próprias coisas da rua, ao lidarmos com os canteiros; resíduos do depósito de lixo se mostram como fugazes indícios e fabulam acontecimentos recentes. A mostra fez-se como resultado de uma prática estética baseada na escavação e observação dos achados, um tipo de arqueologia do contemporâneo, e que significa o que se incorpora no mundo como reflexo do passado recente. O que aconteceu a pouco de pode ter sido esquecido, o acúmulo de fatos e ocorrências, das coisas que se sucedem em veios velozes, pouco discriminados. A favela é todo um monturo, o lixo é o chão. Encontramos como resíduos vários materiais dispersos na terra, que recebe esses restos das ações humanas e verte, ao fundo, um campo de memória. A Rua Icaraí, na zona conhecida como Buraco Quente, é foco de convergência na descoberta de nosso próprio passado institucional. Cada pedaço de coisa encontrada levava à conversas sobre seu estado original e forma de uso. Fomos tendo mais material para estabelecer a base do contato direto, colecionando as narrativas sobre o morro. Nessas conversas, descobrimos a história da Favela do Esqueleto, vizinha à Mangueira: construção abandonada de um hospital público que, com a retirada dos moradores do entorno, no começo dos anos 60, foi recuperada, dando origem à atual UERJ. Na época, o governo Lacerda, responsável pelo deslocamento de seus moradores (VENTURA, 1994), os tranferiu para área mais distante do centro urbano, orientado pela oclusão da pobreza. Nisso, pode ser comparado ao atual governo municipal, cujo foco tem sido o deslocamento contínuo dos setores mais vulneráveis da população carioca, espremida por reformas urbanas contínuas. A UERJ já foi favela. Favela deslocada para longe, premissa modernizante e higienista, resultado da mesma força que oprime hoje o morro da Mangueira. Vizinhança ainda partida pela construção dos elevados da autovia Radial Oeste, estações de trem e metrô. Hoje pensamos no que se pode ultrapassar dessa violência através de uma ponte de afetos. Em reportagem postada no blog jornalístico Técnicas de Reportagem, “Favela do Esqueleto e política de cotas” (2010), moradores da Mangueira rememoram traços da vida na antiga favela. Identificam alguns dos que foram deslocados na remoção lacerdista, decidiram permanecer na região, indo morar na Mangueira. A relação entre as duas comunidades era intensa. Descortinamos algo desse trânsito em nossos diálogos.

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[Fig. 3] Nos cantos da rua, nos canteiros, pequenas coisas foram se fazendo elos de uma narrativa do que na rua pudera ter sido vivido. Algumas clamavam tempos recentes e outras, os mais antigos. A cada extrato do terreno, uma descoberta pulsava sobre a relacファaフバ do passado e do futuro desse lugar. (Fonte da pesquisa)


Fomos vendo esses substratos da memória ao lidarmos com o que antes era considerado apenas sujeira e que pouco a pouco se revelou como materialidade da história na constituição do lugar. Ao nível do solo, na atual presença viva, essas coisas se somam ao rol de experiências brincantes. As narrativas que ouvimos integram esse conjunto como uma rede de apoio, explicitando os fatos e significando os objetos. Alguns foram deixados de lado e irremediavelmente perdidos, o que nos levou a colecioná-los. A partir dessa coleção nasce a mostra Acervo. Na reunião e composição dos objetos nos permitiu uma compreensão mais profunda de nosso papel na comunidade. A projeção sobre as peças e sua ordenação seguiam gerando novas narrativas possíveis, entre o real e o imaginário sobre a memória mangueirense. Também povoamos o lugar com nossas próprias imagens; em troca, deixamos uma borboleta branca, o retrato de Tia Neuma e uma roseira. Aqui o lixo não é algo “extraordinário” (extraindo dai a oposição contida no título da obra de Vik Muniz produzida com os catadores de lixo, quando as peças descartadas são matéria para a criação de imagens do artista), mas é o mergulho no ordinário, na discursividade latente, na arqueotipia do cotidiano. Foi pelo modo de seleção, de esterilização e de ordenação desses objetos do monturo que pudemos ultrapassar nossos limites diante do abjeto. E entender, mais profundamente, a fonte da violência que envolve a favela.

No movimento contínuo: reflexões finais pela Parada Verde, seguindo o enlace A Relação compreende a violência, marca a distância dela. Édouard Glissant A continuidade dessa ação no morro se faz pela inserção de objetos coloridos onde o verde predomina, assim estendendo a ideia que se segue de verdejar o morro, introdução da alteração no cinza predominante. O Cravo e a Rosa, imagem poética perdida recentemente com o furto constante das mudas, foi um marco nesse processo. Os relatos de quem se envolve conosco nos cuidados partem desse refrão: - “Os meninos lá de cima vem e levam tudo”. Os meninos ficam com a fama, mas vimos muitos outros moradores levarem as plantas. De certo modo, ao pensar nessa ação de retirada das

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[Fig. 4] Mostra Acervo – experiências afetivas e materialidades do lugar. (Fonte da pesquisa)


plantas, reconhecemos que assim se realiza o projeto de forma indireta, com o alto do morro sendo enverdejado pela ação da dispersão produzida por todos, em colaboração assumida ou não. No diálogo com os moradores, ficamos na discussão sobre o ambiente de entrega parcial onde - “Aqui tudo é roubado”. Insistir no replantio tem significado manter a disposição para o contato em forma de entrega. Assim, pelo modo do furto, a Parada Verde, ao invés de se fazer como linha, está se tornando uma mancha, uma zona não limitada, ou, ainda, no momento, como uma rede, pela estrutura conformada por uma série de pontos em crescente dispersão. Refletir academicamente é assumir o aspecto forte da universidade nessa relação e isso certamente integra o trabalho. Não se trata de reproduzir experiências controladas por marcos teóricos absolutos, e sim de deixar o processo se desdobrar e seguir pensando-o, exatamente como parte mesma do próprio processo. Recentemente, no contato com a obra de Catherine Grout (2010), seguimos tomando como parâmetro reflexivo a categoria que autora identifica trabalhos próximos ao nosso projeto como Arte e Jardim, que ela identifica como conceito wagneriano de “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk). Grout faz atenção à qualidade imersiva, em que a obra se torna espelho-mundo, refletindo o contexto local e criando nele uma fenda, um espaço livre para o trabalho do imaginário. Nesse sentido, v emos aí um percurso reflexivo que nos acompanha e nos explicita algumas das afinidades que viemos elegindo ao longo do tempo. Mas não apenas na arte, mas na própria vida urbana os jardins se multiplicam, se tornam uma agência cidadã compartilhada e, pelo que temos acompanhado em grupos com ações em jardins urbanos, reconhecemos uma “militância verde” que se torna algo comum. E assim, o jardim se apresenta mais uma vez como um protótipo significativo na medida em que une a arte e o saber comum, instâncias as quais atravessamos nesse exercício. Também Cauquelin (2007), ao pensar o jardim, o coloca como um “paradoxo amável”: um fora dentro para a fuga contra a ferocidade, ao se referir aos jardins romanos. Uma dobra fora do mundo, a forma-jardim é a construção da imagem do que há melhor no homem. Sob esse aspecto, lembramos que a Rua Icaraí era bunker do tráfico nos confrontos diretos com a polícia. Os moradores rememoram conosco cada detalhe dessa escadaria-trincheira, com a pequena casa de operações da CEDAE em seu início, dificultando a visada geral da entrada e, mais acima, nas muradas da pracinha mais ao alto, onde se fazia a resistência. Pensar em estar hoje lá conversando e brincando, expande esse pensamento de se colher flores para o âmbito maior do humano, onde cada

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um pode se permitir ser o encanto do outro. Chegamos a uma formulação simples: “nós todos somos as flores”. O recurso do grafite, por sua vez, tem se mostrado eficaz na comunicação com os moradores; além de criar uma atmosfera de troca: a obra é tratada em parceria, onde os elementos cor, espaço, forma, são temas de conversa e debates. O tempo de nossa estadia vespertina, às vezes encurtada pela chuva ou pelo calor extremo, tem feito estreitar ao laço e a confiança vem surgindo, as parcerias seguem, pouco a pouco. A escuta exige a espera. Exercitamos a arte da presença na mobilização de uma força liberadora. E sobre esses aspectos, a leitura de Beuys (2006) tem se feito como significativa reflexão: Eu não quero uma área livre, uma área extra, mas eu quero uma área de liberdade que se tornará conhecida como o lugar de onde a revolução se origina, transformada pela passagem através da estrutura democrática de base, e assim reestruturando a economia de um jeito que sirva às necessidades do homem e não meramente aos de uma minoria em seu próprio benefício. Essa é a conexão. E é o que eu entendo como arte. (p. 124) Escolhemos o desafio pensando a economia como uma expressão mais ampla, significando a inclusão da economia dos corpos, das afecções, dos afetos, das memórias, dos lugares e dos desejos. As intervenções são derivadas como trabalhos de todos, na medida em que as proposições começam a surgir de ambos os lados. A Parada Verde é ideia elaborada como projeto a partir do desejo das crianças que frequentam o Jardim da Tia Neuma, pois desejam subir o colorido para o alto da Rua Icaraí. Será preciso ainda animar o jardim com outras festas e encontros, espaços de trânsito entre o cotidiano e o extraordinário. E ainda seguir no tempo regular, no espaço dos dias comuns, praticando a situação de familiaridade, ao que tornamos, assim, válido, o estado de vizinhança.

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Referências BEUYS, Joseph. Report on a Day ́s Proceedings at the Bureau for Direct Democracy/ 1972. In BISHOP, Claire. Participation. Col. Whitechapel Gallery, Documents of Contemporary Art. Massachusetts: The MIT Press, 2006. CASTRO, Manuel Antônio. ARTE: corpo, mundo e Terra. Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, 2009. CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2007. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: EDJF, 2005. GROUT, Catherine. Arte y Jardín. In Grupos, Movimientos y tendencias del arte contemporáneo. FERRER, Mathilde (org.) Buenos Aires: La Marca editora, 2010. FRADE, Isabela. Arte viva na via uerj mangueira - modelagem de corpos e lugares de convivência. Anais XXI ANPAP Vida e ficção: arte e fricção. Rio de Janeiro: UERJ, 2012. (p. 373 -385). GIAMMATEI, R., PERROUT, B., JUNIOR, A. Favela do Esqueleto e política de cotas. Blogspott Técnica de Reportagem, 2010. Disponível em: <http:// tecreportagem20092.blogspot.com.ar/2010/01/favela-do-esqueleto-e-politica-de-cotas. html. Acesso em: 20 de ago. 2013. JACQUES, Paola. Estética da ginga. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011. MATURANA, Humberto e VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e brincar – fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Atenas, 2009. 2010. 1994.

RANCIÉRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro Ed., VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Editora Companhia das Letras,

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O COLETIVO GEODÉSICA CULTURAL ITINERANTE E A REVOLUÇÃO DOS BALDINHOS: A HORTA VERTICAL COMO UMA PLATAFORMA DE SABERES E DESEJOS COMPARTILHADOS EM ARTE COLABORATIVA José Luiz Kinceler Leonardo Lima Paulo Villalva Lucas Sielski Kinceler

Contextualizando o jogo A arte hoje transborda seus limites representacionais ao propor a presentificar modos de vida possíveis de se realizarem em colaboração com o público. É espaço-tempo vivenciado de uma maneira engajada, solidária e afetiva, pois participa da construção de imaginários coletivos que desejam transformar uma

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dada realidade imediata. Esta diluição da arte pública em seu desejo de gerar formas mais dignas de experimentar mundos de vida possíveis é consequência lógica da própria auto-reflexividade do discurso da arte, que conectadas a contextos sociais específicos tencionaram a instituição arte a reconhecer processos criativos fundados em lógicas artísticas culturais ativistas, complexas, e colaborativas. Vimos nascer, a partir de finais dos anos oitenta, práticas artísticas voltadas a participar da reconfiguração da esfera pública se utilizando de táticas criativas marcadas fundamentalmente pelo desejo de não apenas incluir, mas também de construir comunidades e coletividades como parte constitutiva da estrutura criativa de suas propostas. Um arco tensionado por modos de fazer arte pública que comporta o entendimento do significado e importância de como o outro pode ter sua subjetividade complementada em função de contaminações intersubjetivas passam a ser deflagradas num movimento simultâneo entre o propositor, a construção da proposta e de um público atuante que se deixa contaminar afetivamente. A proposta de instalar hortas verticais nos espaços públicos na comunidade da Chico Mendes, em Florianópolis, tem como fundamento o cruzamento entre o uso de referentes de outros campos de saberes, de processos criativos em arte que estimulem o convívio, a produção de descontinuidades, e principalmente estimular a criatividade com o propósito de gerar representatividade ao contexto. O objetivo é desencadear a criação de novas conexões e estratégias vinculadas a formas colaborativas de representação em arte, visando propiciar que o processo criativo aconteça de forma coletiva e descentralizada a todos os participantes, de modo que a autoria seja diluída durante a realização das hortas verticais, a qual passa a ser vivenciado como um dispositivo artístico1. Busca assim instaurar uma reflexão crítica nas condições de produção artística, ampliando formas de fazer arte na qual a unidade artística particular seja posta em descontinuidade em favor da criatividade humana em geral. A proposta articula processos criativos que se desenvolvem no encontro entre dois grupos: o Coletivo Geodésica Cultural Itinerante2, formado por alunos e professores do CEART/UDESC e das mulheres da comunidade, que em parceria com a CEPAGRO3, realizam o projeto conhecido por “Revolução dos Baldinhos”. A construção de hortas verticais por meio da reutilização de pneus automotivos descartados pelos consumidores, montados por sua vez numa estrutura de madeira, serve como um dispositivo relacional para a disseminação de outros saberes artísticos que a elas estão vinculadas. Foi o caso das sementeiras modeladas em argila, a qual propiciou a criação de uma oficina de iniciação á cerâmica e, por conseguinte a confecção de vasos de paredes cujo objetivo é gerar

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renda às mulheres. A proposta, portanto, é de índole ecosófica (GUATARRI-1996), pois transita entre educação meio ambiental, sustentabilidade e criatividade na comunidade do Monte Cristo. A partir de táticas criativas estruturadas para ativar o processo criativo colaborativo baseadas no princípio da descontinuidade4, do saber que a experiência produz, e do estar juntos em espaços intensificados pela convivência, a metodologia foi baseada no encontro, no afeto e na troca de saberes a partir da materialização de desejos coletivos em relação a plataforma de saber compartilhado que a instalação das hortas verticais podem proporcionar.

Revendo o jogo A partir de “Estética Relacional” (BOURRIAUD, 2006), podemos compreender que representação em arte se trata de um jogo formal capaz de instaurar novos modelos de sociabilidade, onde as regras estão constantemente se reelaborando durante a partida, em função do contexto cultural no qual o artista está em sintonia. Para Nicolas Bourriaud se trataria então de descobrir formas representativas para as nossas necessidades de habitar melhor o mundo. Isto significaria o desejo de reinventar novas relações com os objetos, consigo mesmo e com o outro de modo a tornar este mundo mais digno de ser experenciado. No entendimento de Bourriaud proposições relacionais, vislumbram a possibilidade da reinvenção da subjetividade e do cotidiano, o que a nosso entender abre por sua vez a possibilidade de questionar o processo criativo naquilo que lhe é mais caro, o ato criativo em si. De acordo com Bourriaud, “as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, más procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista.” (Bourriaud, 2006, p.18) Como sequencia e lógica cultural deste tipo de sensibilidade relacional que tocam o real em suas múltiplas e desconhecidas possibilidades, vimos o surgimento já no final do século passado de processos criativos em arte pública caracterizadas por agenciar múltiplas linhas de força. Nesta forma de arte pública colaborativa e complexa, o propositor modela conjuntamente com a comunidade envolvida, relações que reativam o jogo representacional da arte pública entrelaçada diretamente com a esfera pública. Formam, já nas palavras de Reinaldo Laddaga5, verdadeiras ecologias culturais. Laddaga em seu livro “Estética da Emergência” (2006) nos mostra diferenças

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que redefinem o campo da arte em um novo patamar. Neste jogo, o papel do propositor, da proposta artística e do participante acontece em contextos específicos por períodos de atuação prolongados gerando descontinuidades locais que tem a potência de alterar a realidade imediata. Neste sentido o propositor, agora mediador de narrativas contextuais de reconhecimento mútuo, costura saberes de outros campos representacionais compartilhando responsabilidades científicas, éticas e estéticas junto com o outro. A proposta artística ao praticar a realidade como uma ficção modélica de mundos possíveis, leva o participante a gerar representatividade a seu contexto. Passando a atuar de forma complexa estas formas emergentes de arte viabilizam interações, reflexões, e principalmente ensaiam modos de vida mais dignos de serem vivenciados na realidade. Laddaga nos indica que o presente das artes está marcado pela proliferação de um certo tipo de projetos que visam, segundo este autor: ... iniciar o intensificar procesos abiertos de conversación (de improvisación) que involucren a no artistas durante tiempos largos, en espacios definidos, donde la producción estética se asocie al despliegue de organizaciones destinadas a modificar estado de cosas en tal o cual espacio, y que apunten a la constitución de “formas artificiales de vida social”, modos experimentales de coexistencia. (LADDAGA, 2006, p. 22) Projetos como Park Ficcion, mediados por Chistoph Shaefer e Cathy Skene, The Land, laboratório de práticas colaborativas formulado por Rikrit Tiravanija, Quietude da Terra de Francis Morin, Musée Precarie Albinet agenciado por Thomas Hirschorn, A fé move montanhas de Francis Alys, Kissarama de Asier Perez Gonzalez, La comuna de Peter Watkins, Coletivo AVL-Vile, o Coletivo Superflex, atuam na fronteira da criatividade em arte como reinvenção do cotidiano. Criam zonas dialógicas de atuação temporárias, sabem que por meio deste espaço mágico definido como Arte a realidade pode ser modelizada, formatando o que Laddaga pontua como um novo paradigma para processos de arte colaborativa, a de instaurarem novas “ecologias Culturais”(Idem, p. 09) Estes projetos são entendidos como “Comunidades experimentais”, pois atuam durante períodos prolongados em situações de interesse compartilhado, a partir dos quais são produzidos textos, filmes, vídeos, arquiteturas, etc. Ou seja, nestas comunidades experimentais a produção de imagens acontece em função dos interesses

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vivenciados in loco. Considerando com Laddaga que “uma emergência é a ocasião de uma aprendizagem” ( Idem, p. 288), estes processos estão se configurando enquanto verdadeiras plataformas de desejos e saberes compartilhados. Este jogo está agora acontecendo com suas regras sendo alteradas na medida em que se realiza no espaço da esfera pública, entendido esta, como espaço de conflito, o que permite a prática contextualizada do diálogo e da geração de processos representativos. Neste sentido o artista costura relações, com o desejo de formatar mundos de vida mais dignos de serem vivenciados. Isto indica que o processo criativo da Arte se implementa quando o artista abandona sua zona de conforto representacional, a especificidade de suas disciplinas, sua autonomia na criação de signos, seja por meio do monumento, de esculturas em lugares públicos, ou de intervenções em lugares-específicos, e passa a invadir e a usar em suas propostas os próprios referentes de uma realidade que se faz a cada dia mais complexa e emergencial. Estas ecologias culturais emergentes, além da geração de imagens resultantes de experiências vivenciadas que buscam a transformação da e na realidade, nos indicam que outras formas experimentais de socialização estão acontecendo.

O jogo no contexto O Bairro Monte Cristo/Chico Mendes, situado na parte continental de Florianópolis é formado por nove comunidades que perfazem um total de quase trinta mil habitantes. São, em sua maioria, formados por famílias com histórias de vida semelhantes. Geralmente imigrantes, encontraram naquele bairro abrigo emergencial, mas que por falta de qualificação profissional, baixo índice de escolaridade, desemprego enfrentam no seu cotidiano sérios problemas, como a desnutrição, a desestruturação familiar, a violência, a insegurança, e a falta de saneamento básico. Durante o ano de 2008 um sério problema de saúde pública assolou a comunidade. Vários casos de leptospirose foram diagnosticados, o que inclusive ocasionou a morte de algumas pessoas. Em setembro de 2008, lideranças comunitárias por meio das escolas, creches, associações, centros de saúde e outras ONG’s reuniramse para tentar resolver o sério problema de invasão de ratos na comunidade. Inicialmente promoveram uma desratização com venenos e iscas pelas casas e ruas. O segundo passo seria a retirada dos resíduos orgânicos das ruas evitando assim que estes se transformassem em alimento para os ratos. Mesmo com estas medidas urgentes os

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ratos continuavam a se proliferar já que o poder público, via órgão de limpeza e coleta de resíduos, não atendia com regularidade a comunidade. Em 2009, a situação era de calamidade pública e algumas mães, ao verem que suas crianças frequentemente contraiam doenças e no pior dos casos eram mordidas por animais que compartilhavam com elas o espaço das ruas, cansadas de esperar uma ação do poder público resolveram se unir para buscar uma solução a esta grave situação. Ao procurarem o posto de saúde, o médico esclareceu que a presença massiva de ratos nas ruas era consequência natural dos resíduos orgânicos depositados em frente das calçadas de suas casas e que estes deveriam ser devidamente separados e acondicionados para seu transporte. Uma alternativa apontada seria compostar o resíduo orgânico na própria comunidade. O passo seguinte foi procurarem apoio técnico junto a CEPAGRO, que já vinha desenvolvendo em parceria com escolas, creches, um projeto de agricultura urbana na comunidade no qual desenvolviam a prática da separação dos resíduos orgânicos e sua transformação em adubo por meio da compostagem termofílica. (Fig. 01) A estratégia traçada para eliminar os ratos era inicialmente simples, mas exigia a participação efetiva das famílias envolvidas. As mães deveriam separar os resíduos orgânicos em suas próprias casas e deposita-los em pequenos baldinhos. Estes seriam fechados e colocados em frente de suas residências. Um segundo grupo, formado por mulheres e jovens voluntários da comunidade, iria transportar estes baldinhos por meio de carrinhos de tração humana até as leiras de compostagem termofílicas montadas no terreno da escola. Nascia assim o Projeto Revolução dos Baldinhos. Cumpre ressaltar que as mulheres da comunidade em parceria com a CEPAGRO foram os agentes que impulsionaram a criação e mantiveram o projeto ativo até a presente data. Atualmente duzentas famílias participam do projeto selecionando e armazenando os resíduos orgânicos em baldinhos, os quais são entregues em quarenta e três pontos de entrega voluntário – PEV onde se localizam as bombonas azuis (Fig. 02) estrategicamente distribuídas nos espaços públicos da comunidade, as quais são recolhidas duas vezes por semana. Isto significa a compostagem de 15 toneladas de resíduos sólidos orgânicos coletados e compostados mensalmente. Levando-se em conta que a Prefeitura de Florianópolis gasta atualmente cerca de cento e oitenta reais por tonelada de lixo depositado em aterro sanitário de uma empresa privada, a sustentabilidade sócio econômica do projeto estaria praticamente resolvida se o poder público repassasse estes recursos às mulheres que fazem a Revolução no dia a dia.

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[Fig. 1] Mulheres da Revolução dos Baldinhos nas leiras de compostagem termofílica. (Fonte: Arquivo da pesquisa)


[Fig. 2] Bombona azul para coleta de resíduo orgânico. (Fonte: Arquivo da pesquisa)


Ao longo desta experiência comunitária de reaproveitamento dos resíduos orgânicos, o projeto da revolução dos Baldinhos como vem demonstrando, passou a ser uma alternativa viável a nível de pequenas comunidades para um dos problemas meio ambientais mais sérios a ser enfrentado em nossa contemporaneidade, a questão do que fazer com milhares de toneladas de sacos de lixo depositados, no melhor das hipóteses, em aterros sanitários com um alto custo para os contribuintes, mas como sabemos são levianamente atirados nas calçadas das ruas, nas encostas dos morros, em aterros improvisados, entupindo bueiros, contaminando o solo, o lençol freático, e durante a época das chuvas ajudando a provocar verdadeiras catástrofes. Entretanto, mesmo reconhecido como exemplo de modelo a ser seguido, implantado e incentivado nos vários encontros e fóruns nos quais o projeto foi convidado a proferir palestras e oficinas de compostagem, a Revolução dos Baldinhos, e principalmente as mulheres que efetivamente fazem a revolução, enfrentam sérios problemas que poderão colocar em risco sua continuidade. O primeiro deles foi consequência natural da expansão qualitativa e quantitativa que o projeto alcançou nestes cinco anos de atividades. Ao acreditarem no potencial do projeto, as mulheres viram as leiras de compostagem necessitar a cada ano de mais espaço. Do jardim da creche, ao terreno da escola, as leiras passaram a ser montadas num terreno cedido temporariamente pela Cohab (Fig. 01), numa comunidade vizinha a Chico Mendes conhecida por Jardim Panorama, que por sua vez não estava inserida na zona de atuação da coleta dos baldinhos. Esta comunidade ao sentir-se incomodada pela presença das leiras, que no seu entendimento eram apenas lixo orgânico, começou a atear fogo nas palhas que recobrem as leiras. Esta, ao ver que as leiras continuavam a serem remontadas naquele espaço, até então um simples terreno baldio, solicitou à prefeitura que providenciasse a limpeza daquela área. Como a prefeitura demorou atender seu pedido, o ministério Público de Florianópolis foi acionado. A Cohab, proprietária do terreno ao receber a intimação da prefeitura, contratou uma empresa privada para que providenciasse a limpeza do terreno. Resultado, dez toneladas de adubo orgânico já processados prontos para serem comercializados desapareceram “misteriosamente” durante a “limpeza”. Isto significou um prejuízo real, não apenas em relação ao valor monetário de quase cem mil reais, mas principalmente no ânimo e no trabalho depositado de anos onde finalmente as mulheres efetivamente gerariam renda para suas famílias. Outra possibilidade para que o projeto se sustente, nos indica o Eng. Marcos de Abreu da CEPAGRO, seria “tentar ingressar a proposta da revolução dos Baldinhos

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no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) das Nações Unidas”. Mas para que isto ocorra, continua Abreu “seria preciso que alguma consultoria realizasse de forma gratuita as medições necessárias para estudar a viabilidade do programa gerar créditos de carbono”. Complementa Abreu, “caso fosse realmente possível gerar créditos, isto seria uma grande ajuda para o auto sustentabilidade do projeto.” O segundo ponto que merece nossa atenção e cuidado, diz respeito a como desde o campo da arte pública colaborativa, o engajamento do Coletivo Geodésica Itinerante poderia atuar junto com o projeto da Revolução dos Baldinhos. O envolvimento se iniciou a partir de um saber específico, o entendimento de que a horta vertical poderia atuar como um dispositivo artístico capaz de complementar uma das propostas levadas a cabo pela Revolução, a de promover a agricultura urbana em sua própria comunidade. Para tanto, devemos reconhecer que atualmente arte, ciência e filosofia em todas suas múltiplas conexões e interlocuções, moldam um novo panorama artístico cultural que exige um pensar e a reinvenção de práticas artísticas que catalisem o diálogo direto entre diferentes esferas do saber. Dentro da lógica de participação ativa e colaborativa a qual o público está sendo implicado, não deixa de nos surpreender que novas formas de praticar o jogo representacional da arte pública coloquem a criatividade dos participadores em beneficio do contexto social a qual está vinculado. Neste jogo o propositor atua como um mediador costurando novas relações a partir do uso dos saberes de outras formas de representação. Ou seja, a proposta artística, implementada junto com as mulheres da revolução dos Baldinhos, passou a exigir deslocamentos processuais que transitaram entre, lógicas de experimentar o cotidiano de forma complexa que se reinventaram em função de descontinuidades potencializadoras de acontecimentos, estar disposto a materializar o processo criativo de forma dialógica, e principalmente praticar formas de existência complexas capazes de reinventar nossa subjetividade junto com o outro. Sabendo que uma horta vertical não se realiza sem a presença de mudas que lhe proporcione o devido sentido, a primeira descontinuidade do Coletivo foi realizar uma oficina de cerâmica para modelagem de sementeiras e vasos. Esta desencadeou por sua vez uma série de providências que transitaram da necessidade de adequação do ambiente da sede da revolução por meio da instalação de mesas e prateleiras de trabalho, à limpeza do espaço onde foi construído um forno cerâmico. Simultaneamente a estes preparativos, o Coletivo Geodésica Cultural Itinerante passou a acompanhar as visitas pedagógicas que as mulheres realizavam junto as escolas e creches da comunidade com a finalidade de conscientizar jovens e crianças da importância de não depositarem

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os resíduos orgânicos nas ruas da comunidade, de como funciona uma compostagem termofílica, de onde poderíamos usar o adubo, e de como a agricultura urbana poderia gerar alimentos mais saudáveis, Entendemos então que começar uma proposta de arte pública de cunho colaborativo a partir do desejo pessoal de dar forma conjunta a uma plataforma de desejos compartilhados tendo como referente a implantação de hortas verticais em um contexto sócio cultural específico, exigia que estivéssemos abertos e dispostos a vivenciar descontinuidades durante os encontros que vão sendo tramados por situações inesperadas. Novos acontecimentos se apresentam de acordo com o desejo do outro que, mais além de serem respeitados, devem ser vivenciados de forma íntegra em contaminação afetiva. Suely Rolnik nos indica que: Contaminar-se pelo outro não é confraternizar-se, mas sim deixar que a aproximação aconteça e que as tensões se apresentem. O encontro se constrói – quando de fato se constrói – a partir dos conflitos e estranhamentos e não de sua denegação humanista. (ROLNIK, 2003) Esta postura exigiu uma dinâmica e versatilidade no percurso que fizeram com que nosso saber se deslocasse de nossa zona de conforto e se enfrentasse ao desconhecido. O real neste momento se apresentou como uma oportunidade a ser compartilhada com as mulheres da revolução. Neste processo, percorrer desvios foi ir ao encontro de acontecimentos, de vivências que se multiplicam em outras possibilidades sentidas como diferenças. Instauradas na convivência, catalisaram um processo de produção de subjetividade abrindo possibilidades para que o processo criativo pudesse promover a reinvenção do si mesmo no cotidiano. Neste processo ficou evidente que com arte poderíamos preencher um interstício que efetivamente ainda se encontra em potência de ser solucionado. Como promover representatividade do saber daquelas mulheres dentro da própria comunidade? Como fazer com que a própria comunidade sinta que o projeto revolução do baldinhos lhe pertence? Que tipo de imagens compartilhadas poderíamos extrair do real até então vivenciado de forma a promover visibilidade e empoderamento à própria comunidade da Chico Mendes? Uma questão a ser ressaltada, é que no decorrer desses anos, as mulheres da Revolução dos Baldinhos se capacitaram no que confere as diversas etapas de tratamento dos resíduos orgânicos, tanto no nível das práticas de compostagem quanto ao nível de

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conscientização sócio-ambiental que influem diretamente no contexto da comunidade. No entanto, compreendemos que tais saberes correm o risco de não serem valorizados, desestabilizando a confiança delas, frente a seus próprios saberes. Visto que as mulheres no contexto do seu dia a dia, raramente tem a oportunidade de educar e repassar estes saberes e fazeres por meio de experiências criativas, lúdicas e solidárias, compreendemos que tal conhecimento de fazeres, assim como a sua disseminação e conscientização, só seriam passíveis de serem assimilados por parte da comunidade, à medida que se vincule a ações críticas e criativas, em situações efetivas de compartilhamento de desejos entre os sujeitos envolvidos. Ao estarmos dispostos a nos contaminar com os saberes da revolução, a primeira tática criativa elaborada conjuntamente com as mulheres foi a de escrevermos um roteiro experimental contando de forma lúdica o processo da compostagem termofílica. Tendo como argumento a história de alguns ratos que ao entrarem nas leiras se transformam em bonecos animados conscientes de sua nova condição e em busca de sua história, este roteiro uma vez produzido e filmado servirá como material pedagógico a ser exibido nas creches e escolas da comunidade. A segunda forma de colaboração artística está se efetivando e tem como proposta a disseminação do saber fazer hortas verticais com pneus reutilizados nos espaços públicos da comunidade. Para a efetivação desta proposta, o processo criativo compartilhado está envolvendo uma série de eventos que ocorrem nas ruas da comunidade e em frente a sede da revolução, entre os quais: Cortejos animados com os personagens “ratos” de nosso roteiro, que de uma forma performática e improvisada junto com as crianças da comunidade conduzem animadamente os carrinhos da revolução transportando as hortas verticais para serem instaladas nas ruas e calçadas da Chico Mendes. Este cortejo, filmado e projetado ao anoitecer sobre a fachada da sede da Revolução, desencadeou, além da visibilidade, uma série de perguntas feitas pelos próprios moradores já que as hortas foram instaladas na rua, e não dentro de seus terrenos, o que de certa forma pede que se faça uma reconstrução no pensamento da comunidade no que diz respeito as relações entre o que é público e o privado. De quem seriam as hortaliças? Quem iria cuidar das plantas? Se as crianças não iriam estragar as hortas? Como de forma lúdica a construção das hortas poderiam ser ensinadas no cotidiano? Nascia assim o “III Torneio Vira Pneus” onde duplas formadas entre moradores da comunidade e membros do Coletivo Geodésica Cultural Itinerante, aprendem juntos a como virar um pneu pelo seu avesso. Estas propostas, por sua vez, desencadearam a formatação de uma história em quadrinhos experimental em tempo real, onde por meio

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[Fig. 3] O cortejo para a instalação de hortas verticais. (Fonte: Arquivo da pesquisa)


[Fig. 4] Hist贸ria em quadrinhos realizada em tempo real. (Fonte: Arquivo da pesquisa)


da fotografia foi possível além de documentar os eventos supracitados, gerar material didático e representativo.

Considerações finais Mesmo colaborando na geração de imagens que proporcionam certa visibilidade e representatividade ao contexto da comunidade, o Coletivo Geodésica Cultural Itinerante reconhece que são as mulheres da Revolução dos Baldinhos em parceria com a CEPAGRO, que lidam e superam com criatividade e determinação sérias adversidades tais como: as dificuldades financeiras que atualmente impossibilitam as mulheres a se dedicarem integralmente ao projeto; encontrar apoio em órgãos públicos que as oriente a terem uma gestão mais consolidada, a exemplo de uma cooperativa ou associação; produzirem material pedagógico específico sobre o projeto que sirva de suporte metodológico para sua utilização em escolas, seminários e palestras, assim como do esclarecimento, conscientização e repasse de seus saberes na própria comunidade. Outra necessidade emergente diz respeito a necessária adequação do terreno cedido pela Prefeitura de Florianópolis em regime de comodato para sua utilização enquanto pátio de compostagem, o que exigiria terraplanagens, sistemas para captação do percolado, áreas reservadas para produção de mudas, construções para guarda de equipamentos e espaços multiusos para oficinas e reuniões. Por meio das propostas e táticas criativas colaborativas, o Coletivo Geodésica Cultural Itinerante passou a atuar como um mediador atento a provocar novas possibilidades de visibilidade e representatividade junto com a comunidade. Conquistando e estabelecendo vínculos emocionais por meio de práticas de convívio capazes de motivar os sujeitos envolvidos a reinventar seu próprio cotidiano, e a terem experiências artísticas de forma direta, o processo criativo proposto procurou costurar relações nas quais os referentes e saberes fossem tramados em simultaneidade afetiva e solidária. Joseph Beuys com sua prática de escultura social nos legou que a criatividade deve ser estimulada e pode estar presente em todas as atividades, para que isto ocorra é tarefa do artista mediador atuar em níveis tanto operacionais como afetivos. Nesta nova situação o processo criativo deixa de ser o fim e assume uma nova condição, a de ser um meio para proporcionar o encontro entre diferentes experiências de vida e saberes. Ajudando a formatar uma nova cartografia para o jogo representacional da Arte, onde se vivencia uma plataforma de desejos compartilhados capaz de experenciar

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ecosoficamente este mundo, o processo colaborativo levado a cabo por ambos coletivos está instaurando uma micro ecologia cultural. Ativa formas de convívio capazes de produzir resistência a esta homogeneização existencial que modos capitalísticos nos impõem por meio do consumo e do espetáculo massificado que se implanta paulatinamente em todo o mundo decorrente da globalização. Como já reconhecido, o metarrelato do consumo ao minimizar a experiência por meio da mera reprodução de sentidos que já nascem obsoletos provoca uma universalização nas formas de pensar e sentir a realidade como uma estrutura homogênea. Para contrapor a esta presente condição, a que todos estamos submetidos através dos meios de comunicação, produção e recepção massificados, a função da representação em arte pública exige que novas ecologias estéticas sejam postas a prova.

Notas 1 Sobre a noção de Dispositivo Artístico ver Brian Holmes “El dispositivo artístico, o la articulación de enunciaciones colectivas” Disponível em http://rsalas.webs.ull.es/rsalas/ materiales/lr%20Holmes,%20B.%20El%20dispositivo%20art%C3%ADstico.pdf 2 O Coletivo Geodésica Cultural Itinerante atualmente está formado pelos seguintes membros: José Luiz Kinceler, Aires de Souza, Paulo Villalva, Leonardo Lima, Lucas Sielski Kinceler, Helton Patricio Matias, Paula atonon, Pedro Freiberger, Tatiana Rosa, Antonia Wallig, Rafael Neckel Machado, Raphael Duarte Alves Augusto, João Calligaris Neto. 3 CEPAGRO- O Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo – Cepagro é uma organização não governamental, formada por entidades de apoio à Agricultura Familiar, de abrangência regional ou estadual, e por agricultores familiares. (descrição retirado do site: http:// www.cepagro.org.br/ ) que participa na coordenação das atividades da Revolução dos Baldinhos. 4 Sobre a noção de descontinuidade ver o artigo AS NOÇÔES DE DESCONTINUIDADE, MPODERAMENTO E ENCANTAMENTO NO PROCESSO CRIATIVO DE “VINHO SABERi – ARTE RELACIONAL EM SUA FORMA COMPLEXA” Disponível em http://www.anpap.org.br/ anais/2008/artigos/162.pdf 5 Reinaldo Laddaga - Filósofo, doutor em literatura latino-americana pela Universidade de Nova York (NYU), crítico de arte, escritor e professor da Universidade da Pensilvânia.

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ACIONAMENTOS DO DEVIR ARTISTA-NÔMADE UM PROJETO DE ARTE COLABORATIVA DENTRO DO MUSEU DA MARÉ Marcelo Wasem

Introdução A questão do presente artigo é investigar como o relacionamento entre artista e público é estabelecido em processos colaborativos, nos quais a obra não se apresenta mais como síntese ou produto final da interação artista e público, e sim um dispositivo1, entendido em um contexto maior e com a finalidade de colocar estes dois agentes em relação. Alguns teóricos atuais defendem que o caráter relacional dos artistas e seus projetos embrenhados neste contexto é suficiente para definir processos artísticos que buscam não mais representar a realidade, mas que lidam in loco com populações e

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problemas. No entanto, para além das intenções dos artistas envolvidos nestas práticas, das resoluções práticas ou possíveis falhas em atos ativistas, se faz necessário pensar em critérios que transcendam o assistencialismo, menosprezando as capacidades e potencialidades do Outro quando se categoriza este na condição de “carente”. A experiência a ser tratada, como prática artística que se insere neste campo conceitual, será o projeto Ondas Radiofônicas2, realizado entre 2009 e 2010, tendo como principal local de atividades o Ponto de Cultura Museu da Maré. Localizado na comunidade Morro do Timbau, o projeto interagiu com algumas comunidades que formam o complexo de comunidades da Maré, na cidade do Rio de Janeiro. O projeto foi desenvolvido por mim, desempenhando os papeis de pesquisador, artista e principal articulador, contando com a contribuição constante de outros artistas, educadores, ativistas de fora do bairro Maré em conjunto com jovens moradores e as populações das comunidades ao redor do Museu. O projeto teve início em outubro de 2009 e durante cinco meses foi feito o contato com moradores e grupos do bairro, e conversa com os agentes culturais do Museu da Maré. A partir de março de 2010 é que suas atividades foram iniciadas, com a formação de um grupo composto por sete jovens e a realização de oficinas com públicos diversos. Elas aconteceram até junho com a abertura de uma exposição criada colaborativamente com estes jovens e outros agentes. Durante as diversas etapas de realização do projeto, houveram significantes transformações nas relações estabelecidas entre eu e os jovens (formando a equipe Ondas Radiofônicas), deste coletivo com os artistas colaboradores, e, principalmente, deste grupo maior com os moradores da região. Este fluxo de mudanças foi fundamental para o amadurecimento da pesquisa e para as reflexões que serão colocadas no decorrer do trabalho.

A Maré Antes denominada “Favela da Maré”, hoje ela é reconhecida como bairro e é composta por dezesseis comunidades. Além de um palco de luta pela legitimação os direitos básicos, o complexo da Maré se tornou mais uma localidade carioca onde o narcotráfico se estabeleceu, criando diferentes interdições territoriais baseadas na disputa pela venda de drogas ilícitas. Tal situação também é vivenciada em muitas outras regiões do Rio de Janeiro, com carências similares – desde infra-estrutura básica como esgoto, saneamento, saúde e educação até equipamentos culturais e sociais coletivos. O Museu

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da Maré se apresenta como um entre vários outros desdobramentos dos movimentos sociais de luta e resistência por estes direitos de ordens variadas. O Museu está instalado na base do Morro do Timbau e é formado por um conjunto de edificações. O galpão principal possui um grande pé direito e ainda possui alguns maquinários do antigo labor de reparo naval. Neste espaço está sediada a Exposição Permanente, onde objetos, fotografias, textos, maquetes configuram uma narrativa possível de organizar esta camada histórica coletiva. O circuito da exposição foi dividido em doze espaços representando aspectos de diferentes momentos desta narrativa histórica construída e conta com uma réplica de um barracão suspenso por palafitas e diversos objetos antigos. A execução do projeto Ondas Radiofônicas foi possível, em grande parte, por ter sido contemplado no edital “Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura”. O foco do edital é inserir artistas atuais de diversas áreas dentro iniciativas culturais que foram contemplados com o título de Ponto de Cultura, nos contextos em que estes estão estabelecidos. Neste modelo de interação denominado de “residência” o artista se desloca do seus usuais espaços de criação e se insere em outro contexto, mudando sua rotina a fim de que, no final, resulte em uma produção artística diferenciada, fruto desta vivência singular do artista, numa condição mais “estrangeira”. Considero interessante esta adaptação do modelo de residência artística por ser uma iniciativa do poder público que inaugurou um incentivo diferente de produção de arte, promovendo diálogos entre artistas de múltiplas linguagens e poéticas e públicos de contextos diferenciados. No entanto, o que pôde ser verificado na conclusão do projeto Ondas Radiofônicas é que nem sempre as ações previstas no projeto original conseguem ser executadas da mesma maneira que foram pensadas. É claro que entre plano e ação é necessário que haja constante adequação. No caso de um trabalho de arte que possui como alicerce a interação e participação de um grupo de pessoas de contextos diferentes das do artista proponente, este procedimento de permanente avaliação e redefinição é fundamental.

Início do projeto e os modos do fazer O que me levou a propor um projeto de arte para um Ponto de Cultura foi primeiramente meu desejo de trabalhar de forma colaborativa com outras pessoas, dentro de um conjunto de campos do meu interesse – sonoridade e radiofonia em arte pública

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colaborativa – inserido em um contexto específico e estrangeiro para mim. Quando estruturei o projeto Ondas Radiofônicas para a inscrição no edital minha principal meta era trabalhar com a dimensão da sonoridade nas esferas simbólica, estética e política em um processo de arte colaborativa através de oficinas, grupos de discussões e ações que pudessem debater o próprio fazer artístico. Este plano formou uma estrutura do projeto que, uma vez posto em prática, teve diversas modificações, já que o contexto apresentou suas próprias maneiras de funcionamento. De maneira ampla, podem ser observados três grandes modos do fazer artístico colaborativo: 1) Planejamento e implementação; 2) Modificação do público-alvo e espaços de oficina; e 3) Exposição coletiva com os resultados do projeto.

Modos do Fazer 1: Aproximações No contexto do projeto Ondas Radiofônicas, eu possuía uma posição fundamental como proponente do projeto e, por isso, o de principal responsável pelo seu andamento. Meu objetivo, enquanto artista, era daquele que propõe certa atividade, mas uma vez que outros são convidados e decidem integrar a proposta, a responsabilidade das decisões e direcionamentos passa a ser compartilhada com outros agentes. É um formato de agir onde o artista é um mediador de situações, conforme aborda José Luiz Brea (apud KINCELER, 2007), sendo que o papel do artista se refere a articulação para a instauração de um espaço diferenciado, onde o contato tenha a potência de transformação da realidade. No caso da Maré, a mediação aconteceu de maneira diferenciada em cada etapa, formatando assim um caráter processual ao projeto Ondas Radiofônicas. A primeira estrutura de trabalho era dividida em três eixos (Oficina, Grupo de Estudos e Grupo de Intervenção) formado a equipe do projeto sete jovens que já haviam atuado no Museu da Maré e que trouxeram consigo uma bagagem sobre o Museu, além de serem moradores desta região. Neste momento do projeto, a participação destes jovens seria dinamizar este três espaços de atividades, além de alimentar o blog3 do projeto, desempenhando papel de monitores. Para isso, foram capacitados com oficinas de sensibilização sonora, buscando despertar a audição para uma escuta mais atenta ao entorno que eles viviam, a partir dos elementos constituintes da paisagem sonora local. Na época do planejamento do projeto, foi pensado destinar uma verba específica para pagar uma bolsa que garantisse a participação de monitores, facilitando assim o engajamento no projeto, mas também buscando auxiliar na produção executiva do

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projeto (tarefas mais práticas, mas não menos importante, como a ação de colar cartazes pela região, somente possível pelo conhecimento empírico de habitar tais localidades). No primeiro contato com a direção do Museu da Maré, foram sugeridos os sete jovens citados acima, pela experiência prévia e para que eles continuassem vinculados com o Museu. Se por um lado este tipo de vinculação garante que haja o comprometimento e assiduidade de um grupo de pessoas na realização de um projeto de arte colaborativa, por outro lado, levanta uma questão importante sobre a participação do público e as relações que se estabelecem com o artista. É somente através de um retorno financeiro que pode-se garantir o engajamento do público em uma proposta de duração longa, que necessite de muitos encontros e com metas muitas vezes difíceis de serem compreendidas por todos? A participação em processos artísticos colaborativos desta natureza requer estabelecer uma relação de proximidade, contato, estranhamento, de consensos e dissensos, na busca por uma contaminação entre ambos os lados (artista e público), possibilitando que a experiência seja, de alguma forma, enriquecedora em uma via de mão dupla. A partir da categorização4 proposta por Helguera (2011), podemos afirmar que o projeto Ondas Radiofônicas utilizou os modelos de participação criativa, onde é permitido que o público crie dentro da estrutura dada pelo artista, e participação colaborativa, no qual o público pode ir além, transformando estrutura e conteúdo em conjunto com o artista. Posso afirmar que somente pela formação desta equipe comprometida com o projeto, e o constante contato com estes jovens é que puderam transformar o Ondas Radiofônicas em algo pertinente para o contexto da Maré e com potência de atravessar as dimensões da subjetividade daqueles que se envolveram de alguma forma com o projeto, sendo moradores da Maré ou visitantes. Quando foi planejada e no início do projeto, esta estrutura de trabalho prezava pela divisão de tarefas, organizando momentos de compartilhamento do grande grupo com especificidades de cada eixo, com um tipo de atividade. O desafio, neste começo, foi como trazer outros moradores da Maré para as atividades do projeto, além do público de fora do bairro (pesquisadores, artistas, ativistas), para que diferentes percepções pudessem ser apresentadas e trocadas. Foram realizadas algumas atividades de capacitação voltadas para a sensibilização da questão sonora, com a participação de vinte e cinco jovens de um curso preparatório para o vestibular, com as dinâmicas “Varal de trajetos sonoros“ e “Caça ao Som no Museu“. Neste dia, cada monitor pesquisou um fragmento sonoro que

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se relacionasse com cada temporalidade da Exposição Permanente do Museu, divida em doze partes, e estas foram colocados em dispositivos eletrônicos, celulares, caixas auto falantes e, até, executados ao vivo. Importante é destacar que, a partir deste momento, eles passaram a desempenhar uma função para além da burocrática, como propositores de ações no campo do artístico através do sonoro. Começaram a lidar com a questão de provocar no outro uma experiência sensorial voltada para o campo do sonoro. Se primeiramente eles significavam o público direto na relação com o artista residente, a partir deste momento eles iniciaram um processo experimental de se verem também enquanto propositores, contaminados com uma escuta diferenciada e refletindo sobre seus exercícios de proposições. Eles, na verdade, se tornaram o principal público do projeto e suas ações (mesmo considerando que neste período não havia tal compreensão por minha parte). E tendo como tema principal, estava a dimensão do sonoro enquanto fonte de reflexão sobre o mundo. A seguir, apresentaremos alguns conceitos essenciais no que diz respeito a este campo.

Paisagem sonora Para Murray Schafer (2001), a paisagem sonora difere da paisagem visual, pois requer outra temporalidade para ser objeto de percepção e ação. De maneira geral, podemos afirmar que o campo da sonoridade é ampliado com o ruído, re-estabelecendo a relação dentro do conjunto dos sons e entre estes eventos sonoros e seus ouvintes. As primeiras dinâmicas do projeto Ondas Radiofônicas com a equipe de mediadores tiveram a meta de sensibilizar a escuta. De minha parte, também era um momento de descobrimento de outros sons e códigos, como, por exemplo, a diferença entre o som de tiros dados por integrantes de grupos do narcotráfico e membros das forças de policiamento do Estado. Conversando com um jovem funcionário do Museu, ele comentou que os disparos dados pelos narcotraficantes eram desordenados e sem ritmo preciso, ao passo que os das forças policiais possuem um ritmo certo e marcado, tal qual uma marcha. Características de uma paisagem sonora específica. Também fazem parte desta outros elementos, como o conjunto de histórias que compõem a memória coletiva. Elas habitam o campo sonoro, uma vez que são acionadas pela oralidade. A partir da tarefa de compor trilhas sonoras para a dinâmica “Caça ao som no Museu”, me deparei com a pluralidade de sons listados pelos jovens: feira de rua,

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animais, trânsito intenso de motocicletas, automóveis, vans e caminhões, caixa falantes tocando diversos estilos musicais – além do funk, samba, pagode, gospel, entre outros estilos também encontrados na Maré.

Modos do Fazer 2: Novos rumos e montagem da Exposição Final Durante a execução do projeto, pode-se notar, por um lado, o sentimento de satisfação pelo fato do projeto estar em andamento, mas, por outro, uma sensação de desgaste e indefinição sobre o direcionamento do projeto. Esta imprecisão não se tratava tanto dos conteúdos e potencialidades que estavam sendo desenvolvidos na equipe, mas sim sobre a falta de eficácia em atingir o público previsto no projeto original. O que se pode observar a posteriore é que, de fato, existe uma grande distância entre o que foi planejado sem ter um conhecimento mais íntimo sobre o contexto e a prática em sim, através de um modo de convívio quase diário. Em projetos processuais desta espécie o trabalho de arte realmente se constrói durante o período de sua execução. De qualquer forma, minha condição solitária de artista neste contexto com desejos e desafios, convivendo diariamente com o projeto e seus integrantes, gerava uma incerteza sobre os rumos do mesmo. A partir deste estado, outros artistas foram convidados para participar do projeto, sendo a primeira delas Mariana Novaes. Ela realizou alguns encontros contextualizando o fazer colaborativo dentro da história da arte, instigando a pensar na exposição final do projeto. Assim, uma segunda estrutura para o projeto começou a se firmar, no qual o foco passou a ser a capacitação da equipe dos jovens participantes do projeto, não mais como monitores na função de auxiliar as atividades propostas, mas como principal público a ser capacitado enquanto multiplicador. Ou seja, a importância não estava mais em dar aulas ou promover debates para os moradores da Maré – público este que existe em caráter virtual – mas sim neste pequeno grupo, aprofundando sobre as potencialidades do sonoro e da arte neste contexto específico. Durante este período o foco foi desenvolver e aplicar oficinas com públicos convidados para evento de um dia só. Posteriormente tais exercícios foram aproveitados na exposição final – atividade prevista no planejamento original e já agendada com o Museu na época. Depois, cada participante pôde escolher um dos doze tempos da exposição permanente do Museu e se aprofundar em como desenvolvê-lo dentro na

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nossa proposta. Assim os temas e integrantes ficaram nesta ordem: Tatiana – Cotidiano; Tatiane – Água; Rafael – Resistência; Fé – Marcelly; Medo – Camila; Futuro – Mariana. Com estas reflexões levantadas (e também depois de compartilhar alguns exemplos de trabalhos de arte participativos), iniciamos um detalhamento de como cada integrante da equipe poderia abordar seu tema e quais materiais seriam necessários para suas atividades. Das palavras escritas e suas possibilidades de ativação da memória, passando pelo esvaziamento dos significados das palavras através da onomatopéia, até a exploração dos sentidos além da audição, pela sinestesia: o importante foi planejar dinâmicas tendo o sonoro como eixo fundamental. A aplicação se deu entre os integrantes do Ondas Radiofônicas e outros mediadores culturais do Museu da Maré, tais como monitores da exposição permanente, atendentes da biblioteca e da sala de informática. Uma proposta interessante de ser mencionada se denominou “Áudio Percurso: em busca da Figueira Mal-Assombrada” foi resultante da interação da artista Mariana Novaes com duas integrantes da equipe, Camila e Mariana. Após a Exposição, Rafael e Tatiana realizaram outros peças de “áudio percurso” pelo entorno da Maré. Para a Exposição Final, o áudio resultante foi incrementado com outros recursos: um mapa desenhado na parede e impresso em folhetos para serem distribuídos, junto com aparelhos tocadores de MP3 com este áudio. Todas estas interações aconteceram no mês de maio. No final deste mês, a troca de e-mails estava voltada para a concepção e construção das instalações e seus funcionamentos dentro da Exposição Final. O desafio era o de transformar as dinâmicas aplicadas nas oficinas em instalações permanentes, a serem expostas em uma exposição coletiva de encerramento do projeto, realizado pelos jovens integrantes do projeto e artistas convidados. Podemos destacar, desta forma, que o projeto alcançou a meta inicial de envolver pessoas de contextos diferentes dentro de um projeto processual. A escala desta construção colaborativa é que teve de ser reajustada, nesta etapa anterior à exposição: o alcance quantitativo foi menor, mas certamente com uma qualidade de interação muito maior.

Modos do Fazer 3: Durante a Exposição Final Dentro do campo da arte, a exposição é um momento fundamental, onde os resultados materiais do fazer do artista são colocados para a experimentação do

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outro, alguém não artista, muitas vezes colocados na posição de espectador, podendo ser por observação ou ainda por uma interação mais ativa. No caso do projeto Ondas Radiofônicas, a meta da exposição foi a de não somente expor as experimentações que foram realizadas durante o processo com os membros da equipe e oficinandos eventuais das oficinas, mas proporcionar para o visitante a possibilidade de ter uma experimentação pessoal e singular. A duração de exibição prevista para um mês foi estendida por mais duas semanas, por convite da diretoria do Museu da Maré, ficando assim de 11 de junho a 24 de julho de 2010, tendo ao término a realização de um debate sobre todo o projeto, denominado “Conversa Radiofônica”. A Exposição Final foi composta por instalações interativas que tiveram como base alguns dos temas da exposição permanente e outras intervenções dos artistas convidados. A última etapa do Ondas Radiofônicas foi a etapa de visitação da Exposição Final, sendo que o papel dos membros da equipe sofreu algumas alterações no trajeto: oficinandos para oficineiros, para propositores de instalações, para mediadores das mesmas. A função principal foi a de mediar os visitantes dentro da mostra das obras e indicar como interagir com cada instalação. O fato de ter sido responsável pela criação e execução de uma e participado em todas as outras dotava cada integrante com um conhecimento apreendido processualmente. Depois de passarem por oficinas de saberes específicos, propor oficinas com outros jovens, estudar e criar instalações artísticas, a atribuição de mediar e compartilhar os frutos destes resultado com o público pôde encerrar um ciclo com uma nova interação e fruição do processo artístico com este cunho colaborativo. Pensando na constituição da obra de arte, este momento se configurou como mais uma interface de experimentação, possibilitando que um público mais passageiro possa vivenciar um pouco do universo criado pelo coletivo. O conjunto de experiências que cada integrante teve também foi singular e, acredito, que pôde acrescentar uma bagagem nova ao conhecimento de cada um. Para os integrantes mais novos do projeto, mesmo sendo através de uma participação financiada por uma bolsa de trabalho, o envolvimento dos integrantes e as dificuldades enfrentadas constituíram uma experiência única. Já no caso da participante Marcelly Marques Pereira, única integrante no ensino superior, finalizando o curso de Museologia, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), o projeto representou uma mudança na visão sobre a arte contemporânea e colaborativa. É importante destacar que o objetivo do projeto não era o de formar novos artistas, e sim, abrir esta potência criadora – característica que pertence ao ser humano.

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Neste sentido, concordamos com a postulação de Joseph Beys: “todo homem é um artista”. Porém, é preciso especificar mais profundamente tal postulado. De acordo com a discussão entre as autoras Dora Longo Bahia e Monica Nador (apud CAPUSSO, 2013), a primeira argumenta que tal afirmação atribui a todo ser humano uma capacidade criativa. O que Beuys entenderia como criatividade seria do ponto de vista quase econômico – a criatividade como um capital que pode ser colocado no sistema para a produção de um bem. Este seria produzido dentro dos centros culturais, da mídia, capturando esta criatividade e produzindo matéria que gera valor econômico. Nador discorda da concepção de Beuys de que todo homem é um artista, por que nem todo homem tem a formação de arte e que a questão é trabalhar o ser humano como um sujeito emancipado. Nesta discussão, concordamos com a frase de Beuys, admitindo que cada participante possui um papel específico, uma bagagem, um local de onde sai e para onde retorna. O mais interessante da experiência de Marcelly não foi a de tornar artista ou coautora, mas sim a de abrir e se sentir parte de algo que contribui para sua formação, em múltiplas instâncias de sua vida. Já da parte do artista proponente, a experiência toda amplia a bagagem e o conjunto de competências. É difícil de mensurar a abrangência total do efeito que o projeto teve, assim como não foi possível controlar todas as etapas do mesmo. Podemos afirmar que a busca pelo controle total acaba sendo gerador de frustração, já que a colaboração com o outro implica em uma permanente inconstância, da ordem deste outro – com desejos e diferenças comparado ao artista. Neste sentido é que o conceito do nomadismo pode trazer importantes considerações.

Artista e nomadismo O autor Nicolas Bourriaud em seu livro denominado “Radicante” (2009) argumenta que sua concepção de artista seria baseado em uma idealização a respeito da forma nômade de apropriação e deslocamento no território. Porém, sua característica nômade seria a de ocupar temporariamente estruturas já estabelecidas na arte contemporânea, tendo sua identidade resultado de um contínuo movimento no mundo. Aqui há uma relação muito próxima com o modelo de residência artística, no qual o artista “faz sua casa” não em um lugar físico estático, mas na sua própria prática, que inclui o deslocamento. Porém residir dentro de um circuito de práticas em vários lugares

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é permanecer bem alocado em um contexto amparado por instituições tradicionais da arte. Uma postura realmente nômade não pretende alugar ou residir em um território através de uma negociação econômica e vantajosa. De acordo com os filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari, no livro “Mil Platôs” (2012), o nômade se relaciona intimamente com o território, mas sem pretensão sedentária; seu deslocamento segue pistas e caminhos, mas não tem a função de se alocar permanentemente, distribuindo-se em espaços abertos, não comunicantes; sua relação com a terra se dá pela desterritorialização. “É nesse sentido que o nômade não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha”. (2012, p. 56). Para Nelson Brissac Peixoto (2002), o nomadismo se relaciona com o conceito de tática, apontado por Certeau (1994), no qual seu agente (os exemplos citados por Peixoto são o sem-teto, o camelô, o favelado, o migrante) instrumentaliza tudo o que está ao seu alcance em prol de sua sobrevivência (2002, p. 12). Voltando-se para as características do artista, o nomadismo pode se tornar uma metodologia de estabelecer o contato e se posicionar entre diferentes disciplinas, grupos e espaços de acontecimento (institucionais ou não) – um caminhar “entre” espaços com a constante organização e desorganização de seu fazer criativo. Chegamos, então, ao conceito de artista-nômade, não só pelo fato de sua prática envolver um deslocamento espacial, através de residências artísticas ou não, ou em se relacionar com as diferentes especificidades dos contextos (próximo à categoria de site specific), mas principalmente por entender que sua prática se dá nestes movimentos de aproximação e distanciamento com variadas áreas, mesmo tendo como ponto de partida e chegada, o campo da arte. Ao conceito de artista-nômade podemos, desta forma, sempre acrescentar novos papéis: artista-nômade-educador, artista-nômade-ativista, entre outros. Este estado permanente de incompletude pode ainda ser associado ao conceito de “devir” no sentido da potência de vir-a-ser que o artista pode experimentar. De acordo com Deleuze e Guattari, o devir está ligado intimamente ao processo de desejo, que saí de um “si-mesmo” em busca de um “fora”. É esta possibilidade de aproximar-se de outros agentes e tornar-se um deles, por um determinado período, induzido por uma motivação singular do artista. Esta postura pessoal é que reverbera em outras dimensões maiores e onde é necessário saber equilibrar desejo de um com o desejo de outros. A teórica Suzanne Lacy ressalta as qualidades destes novos papéis para o artista, alertando sobre os cuidados que é necessário ter quando se trata com estes contextos sociais (1995, p. 39). Ela cita os escritos do artista Allan Kaprow para afirmar: “artista

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como educador é uma construção que decorre de intenções políticas” (1995, p.39). Mas o próprio Kaprow é ainda mais radical no seu texto “A educação de um des-artista”, de 1970: Só quando artistas ativos deixem voluntariamente de ser artistas poderão converter suas habilidades, como dólares em ienes, em algo que o mundo pode empregar: em jogar. O jogar como moeda corrente. A melhor forma de aprender a jogar é com o exemplo, e os des-artistas podem dá-lo. No seu novo papel como educadores, tudo o que eles têm que fazer é jogar como antes o faziam sobre a bandeira da arte, mas entre aqueles aos quais não lhes interessa dita insígnia (2007, p. 68). As propostas colocadas por Kaprow são paradoxos e inversões interessantes: ser artista é poder deixar de ser artista ou o ato de jogar como forma de desestruturar o fazer artístico. Ele ainda comenta sobre este deslocamento do papel de artista em direção à uma visão ampliada, no qual a identidade é transformada por um principio de mobilidade. A proposta de substituir o artista pelo jogador também é preciosa por conceber o jogo não somente como a relação participativa entre artista e público, mas sim como um modelo que extravasa a potência da criação artística além da seara da arte, como um modo de estabelecer contato, negociar e contaminar-se com outros agentes, dos mesmos ou outros campos. Desta maneira, acredito que o artista que se propõe a se embrenhar em outros contextos e em contato com diferentes públicos precisa estar ciente e atento, não para jogar dentro das regras, mas sim transformar a si mesmo, em um permanente estado de devir artista-nômade.

Notas 1 Por dispositivo se entende um conjunto de procedimentos, regras ou relações de funcionamento, como é colocado por Michel Foucault (1996), retomado por Giorgio Agamben (2005) e Gilles Deleuze (1990). Também é importante citar a noção de dispositivo relacional, de Nicolas Bourriaud (2006). 2 O projeto contou com o prêmio “Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos

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de Cultura”, no ano de 2009, promovido pela Fundação Nacional de Artes e Ministério da Cultura. 3 O blog ainda está disponível no endereço <http://culturadigital.br/ondasradiofonicas>, porém atualmente funcionando como um registro dos acontecimentos da época. 4 Helguera cria uma taxonomia experimental, indicando quatro tipos de participação (2011, p.40): 1) Nominal: o outro, não artista, fica na posição de observar e refletir sobre a obra, passivamente; 2) Dirigida: quando há uma indicação de como participar ativamente pelo artista; 3) Criativa: onde é permitido ao público criar dentro da estrutura do artista; 4) Colaborativa: onde o público é responsável pela estrutura e conteúdo, em conjunto com o artista.

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Tradução de Camila Pasquetti, Camila Schenkel, Carina Alvarez, Gabriela Petit, Francesco Settineri, Martin Heuser e Nick Rands. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2011, 438 p. KINCELER, José Luiz; ALTHAUSEN, Gabrielle; DAMÉ, Paulo. Desestabilizando os limites – Arte relacional em sua forma complexa. Disponível em: <http://www.unifacs.br/anpap/autores/118.pdf> Acesso em: 18 jul. 2007. KESTER, Grant H. Colaboração, arte e subculturas. In: HARA, Helio. (Org.) Caderno Videobrasil 02 - Arte Mobilidade Sustentabilidade. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, SESC São Paulo, 2006. Disponível em: <http://www2.sescsp.org. br/sesc/videobrasil/vbonline/bd/index.asp?cd_entidade=482791> Acesso em 30 de abril de 2008. LACY, Suzanne. Mapping the Terrain: New Genre Public Art. Seattle: Ed. Bay Press, 1995. LADDAGA, Reinaldo. Estética de la emergência: la formación de otra cultura de las artes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. LERSCH, Teresa Morales; OCAMPO, Cuauhtémoc Camarena. O conceito de museu comunitário: história vivida ou memória para transformar a história? Disponível: <http://www.abremc.com.br/pdf/5.pdf> Acesso em: 15 jan 2013. PEIXOTO, Nelson Brissac (org./ed.) As máquinas de guerra contra os aparelhos de captura, uma fotonovela. São Paulo: SENAC, 2002, 350 p. SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Tradução de Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

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DESEJOS E OLHARES COMPARTILHADOS: AUTORREPRESENTAÇÃO EM SISTEMA DE ARTE PARTICIPATIVA Mariana Novaes

Batendo à porta Durante os primeiros meses de trabalho realizei uma imersão na realidade das ocupações residenciais do Centro da cidade e tive contato com uma significante multiplicidade de realidades e personalidades. Após participar de encontros com grupos de jovens e crianças moradores, já em atividades conjuntas com pesquisadores oriundos de diversas áreas de conhecimento e instituições, encontrei um lugar para partilhar meus conhecimentos e construir desejos coletivos entre o grupo de moradores da ocupação Chiquinha Gonzaga. A pesquisa alcançou definição de dinâmica específica, ou seja, um sistema estruturado sendo praticado na realização de

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encontros presenciais realizados com um grupo de jovens moradores e consequentes desdobramentos estéticos (visuais, plásticos, sonoros, audiovisuais etc.) que não se encaixam na categoria de produto artístico, no sentido tradicional do termo, mas possuem uma materialidade específica. Nestes encontros construímos um blog1 coletivo, chamado “Olhar Chiq”, que tem como finalidade representar os pensamentos e vivências do grupo e, também, ser um fragmento representacional da ocupação. Para caracterizá-lo, os jovens vêm realizando entrevistas filmadas e fotografias - com outros moradores, da arquitetura do prédio, tanto interna quanto externa, e da paisagem do entorno. Também estão gerando textos coletivos que tratam de suas experiências sociais e políticas como moradores da ocupação, além de relatarem seu cotidiano. Outras atividades aconteceram, através de minha mediação, como desdobramentos dos encontros do referido grupo e são tratadas como parte constitutiva da pesquisa. Dentre estas, a ativação realizada pelo grupo de uma sala situada no primeiro andar do prédio, que apesar de sempre ter sido destinada ao uso coletivo dos moradores, vinha sendo mantida fechada desde o início da ocupação do prédio. Também foram gerados vídeos-arte que foram inscritos em um concurso nacional de vídeos para celular, promovido por uma operadora de celulares, e um documentário sobre os moradores da ocupação. Estes processos não serão aprofundados no presente artigo, mas são citados como exemplos para o que se considera como desdobramentos estéticos do sistema de arte adotado. Como mencionado, esta pesquisa teórico-prática se localiza, partindo do sistema adotado, em um contexto relacional que convoca os participantes a ações conjuntas, operando estrategicamente para gerar processos dialógicos que resultem, em última instância, no enriquecimento das subjetividades envolvidas. A partir deste contexto de nivelamento relacional pretende enriquecer a discussão acerca dos espaços onde a arte pode se instalar atualmente, o papel destes na própria formação dos projetos artísticos e em como o artista pode atuar quando da superação do paradigma da autonomia da arte em detrimento de procedimentos engajados. Como, a partir da década de noventa, se instaura um procedimento artístico constituído pela relação na cotidianidade, que alcança nos dias de hoje considerável relevância e presença nos procedimentos no campo da arte, me parece urgente aprofundar reflexões no que concerne às especificidades do contexto brasileiro. No mesmo, já não é central a problematização do espaço na arte, mas a busca por viabilizar relações na esfera da vida.

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Quem bate e quem abre a porta Por acreditar que a formação das subjetividades dos envolvidos está diretamente ligada à sua experiência de cidade e que, portanto, as expressões resultantes do sistema artístico que os envolva advém da sua relação com o espaço público, esta pesquisa se voltou com muita atenção para a realidade dada no recorte da cidade que define a moradia. É imperioso, portanto, ressaltar alguns aspectos formadores deste conjunto determinante do grupo, como a residência e seu entorno. A ocupação Chiquinha Gonzaga é a mais antiga da Zona Portuária do Rio de Janeiro. O prédio, cujo proprietário é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/INCRA, possui treze andares e hoje abriga, aproximadamente, oitenta famílias. Seus moradores e sua história, dentro da realidade do movimento dos sem-teto, representam o exercício do poder político de ocupar o espaço urbano e ressignificálo. É neste contexto de significativas representatividades social e política em que se encontram os jovens moradores desta ocupação. Como esta experiência já dura oito anos, e como a maioria está ali desde o início, é possível afirmar que a formação de suas personalidades e a forma como atuaram em nosso processo colaborativo foram submetidas ao exercício da convivência nesta realidade dada. Em outras palavras, podese dizer que o encaminhamento tomado por nossas atividades foi consequência direta do modelo de relação baseado na coletivização dos valores. Como citado, o grupo de jovens moradores me procurou para que construíssemos um blog coletivo que representasse a ocupação Chiquinha Gonzaga. Quando me aproximei da ocupação, mais precisamente comparecendo a um sarau, fui abordada por dois jovens que, segundo os mesmos, já sabiam que “se tratava de uma artista” e decidiram me pedir ajuda para lidar com a criação de um blog porque entendiam que eu estaria tecnicamente capacitada para ajudálos. Cabe salientar, portanto, que o grupo interessado neste procedimento coletivo de representação, ou seja, o blog, já estava formado e possuía uma demanda específica (aprender a lidar tecnicamente com o meio digital que compreende o blog) o que serviu de abertura estratégica para minha entrada. O que realizei foi, através da ferramenta metodológica de construção do blog, processos de mediação entre este grupo e seu microcontexto (a própria ocupação) e a esfera da cidade, que se alcança através dos textos e outros discursos adotados na ferramenta blog. Através desta metodologia, trabalhamos formas de representação que o grupo elegeu, explorando técnicas e ferramentas tanto no meio digital, quanto no material, para atuar no espaço público. A ideia de espaço, dentro

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do contexto destes jovens, é material profícuo para a problematização da atuação da arte nas instâncias que se fazem fora dos espaços legitimados. E o é, principalmente, porque é indissociável da ideia de potência política. A percepção do que, atualmente, constitui a região da Zona Portuária do Rio de Janeiro foi a ferramenta inicial para a abordagem do tema da utilização do espaço público e seus possíveis desdobramentos conceituais, junto ao grupo de jovens moradores. Ocorre ali, nos correntes dias, um movimento de transformação do uso do espaço público por parte do poder público, determinado principalmente pela projeção em grande escala de reorganização das relações sociais já existentes. Está sendo implantado um novo modelo para aquele lugar da cidade, o que implica em desalojamentos de moradores, derrubada de antigos prédios e construções de novos empreendimentos imobiliários. O que se pode observar é a paulatina substituição da multiplicidade social, hoje ali existente, por um modelo urbano uniforme que prima pela massificação no uso do espaço público e que gera um perfil arquitetônico excludente. Motivou-nos a possibilidade de ir de encontro a esta dinâmica de expulsão da multiplicidade do lugar ao vislumbrarmos a possibilidade de criarmos um espaço de resistência à lógica da cidade, mesmo que em primeira instância este espaço fosse virtual. Buscamos, na construção do blog, a ativação de um espaço que funcionasse por ser, justamente, diverso e gregário. Instauramos, portanto, a viabilidade de coexistência da diferença na contramão do padrão imposto pela ordem pública. O espaço público ocupado pelo trabalho (o blog) se abriu para presenças de diferenças.

Térreo Para pesquisar e refletir sobre o procedimento de nivelamento relacional que se instalou como prática no projeto, a principal metodologia utilizada foi a pesquisa participante (PERUZZO, 2005), pois a atuação da pesquisadora foi sendo definida pela mesma em diálogo com outras pessoas, ou seja, os moradores que constituem o grupo de jovens atuantes. Neste projeto foi fundamental que os objetivos e os conceitos fossem explicitados para todos os envolvidos, estando permanentemente abertos a diversas transformações. Definindo mais especificamente a pesquisa participante, Peruzzo considera como: aquela baseada na interação ativa entre pesquisador e grupo

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pesquisado e, principalmente, na conjugação da investigação com os processos mais amplos de ação social e de apropriação coletiva do conhecimento, com a finalidade de transformar o povo em sujeito político (2005, p. 132). Os moradores que interagiram comigo (pesquisadora) são considerados ‘participantes’ porque entendo que este termo indica o grau de interação que pretendi estabelecer entre os envolvidos. De fato, se pretendeu que estes papéis pudessem ser trocados e contaminados ao longo do desenvolvimento da pesquisa, sem que jamais desconsiderássemos as tensões e diferenças que se deram em função das origens distintas de cada envolvido e da multiplicidade humana do contexto. Não se faz simples tratar da fragmentação da sociedade atual e de sua imanente diversidade, mas existem fatores determinantes da, já citada, multiplicidade do contexto da ocupação Chiquinha Gonzaga que se intensifica, ou reafirma, quando da constituição do grupo de pesquisa participante. O trabalho se definiu, portanto, a partir da produção teórico-prática de procedimentos que constituíram um sistema artístico no espaço compreendido pela ocupação Chiquinha Gonzaga. O projeto teórico se estruturou sob as estratégias adotadas pela estética da arte pública de novo gênero. O termo “new genre public art” foi inaugurado pela artista e crítica Suzanne Lacy (LACY, 1995) para designar as novas práticas artísticas, para ela emergentes a partir dos anos oitenta. Sob este termo estariam as práticas onde as estratégias públicas de engajamento são consideradas fundamentais na constituição do procedimento de arte - entendendo este caráter parte essencial de uma linguagem estética que busca atuar junto à realidade. A arte pública de novo gênero se apropria de diversos meios, como o uso de objetos, equipamentos urbanos ou dispositivos tecnológicos, para comunicar e interagir com um público amplo e diversificado sobre questões relevantes e, ou motivadores comuns a este público. Ainda de acordo com a autora, além de diluir os limites da arte e buscar inovações na própria forma, esta categoria adicionou uma nova sensibilidade sobre os papéis dos envolvidos (tanto artista quanto espectador), nas estratégias sociais e na efetividade dos trabalhos. Esta aproximação de artista e público (a quem prefiro denominar, para a fluência do texto, de não artista), em ações onde a interação é fundamental para seu funcionamento, tem uma influência que transforma os papéis e funções destes dois agentes constituintes do jogo representacional da arte. Sucintamente, o artista se

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posiciona como mediador ou propositor de situações junto a um grupo de pessoas que, sendo consideradas de suma importância para a realização de uma proposta, se tornam coautoras nesta e todos atuam em afinidade com as preocupações do contexto onde se situam. Os resultados desta relação, tradicionalmente categorizados no sistema de arte enquanto obras, não se limitam mais a objetos e/ou produtos materiais, mas agora se situam enquanto dispositivos relacionais, ou seja, procedimentos ou maneiras de fazer - que possuem ênfase na relação que promove o encontro. As características do objeto gerado importam menos que as maneiras como os processos de interação entre envolvidos são estabelecidas e quais outras relações são construídas (ou desconstruídas) no processo. Segundo Lacy (1995, p. 34), o objeto de arte se colocava anteriormente como uma ponte entre artista e não artista, mas ainda os mantinha separados, deixando um espaço vazio. Nos trabalhos de arte pública de novo gênero este espaço é “preenchido com a relação entre artista e não artista, priorizada nas estratégias de trabalho do artista” (1995, p. 35) e ainda para muitos teóricos e artistas contemporâneos, este relacionamento se torna o próprio trabalho de arte. Nesta aproximação entre a ação do artista e a reação do não artista, as suas próprias presenças levam ao surgimento de situações onde a separação entre arte e vida se torna mais diluída, sem contornos muito bem definidos. Para o autor e curador Nicolas Bourriaud (2006) este espaço vazio, a distância entre artista e público, é justamente o interstício destinado à ocupação da arte atual, que coloca todos os participantes em diálogo. No caso específico de minha prática, na ocupação Chiquinha Gonzaga, houve uma rede de relacionamentos consistente viabilizando procedimentos artísticos. O grupo formado através de minha mediação contou com produtores de material representacional criativo, expressivo e consequentes desdobramentos estéticos. Todos os participantes, não artistas, foram agentes no sistema artístico adotado - o que gerou uma certa indefinição nos papéis e diluição do cotidiano com o processo criativo. Não se pretende, aqui, sugerir uma relação dicotômica entre cotidianidade e criatividade, mas sim, destacar que esta indefinição dos limites é intensificada neste sistema de arte. Esta indefinição é destacada por Reinaldo Laddaga (2006) e, para este autor, a arte atual está tomada por uma proliferação de projetos onde são iniciados ou intensificados processos abertos de conversação, com a preocupação em dilatar o tempo e o espaço das experiências propostas (2006, p. 21). Projetos nos quais as formas e contornos vão surgindo lentamente, através dos mais diferentes meios e que, por estas características, provocam uma constante instabilidade nos limites e regras da arte. Poderiam ser confundidas com práticas da educação, que também

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utilizam a arte como um meio, mas, como ressalta o autor, tais projetos estão mais interessados nos processos, agenciamentos e negociações na construção de “modos de vida social artificial” (2006, p. 13). Artificial porque possuem, para o autor, um caráter improvável de realização dentro dos parâmetros dos saberes comuns. Tais processos se desdobram em comunidades experimentais, onde o que importa é não só a maneira como se organizam os saberes e informações, mas a capacidade destes de improvisar e lidar com o imprevisível (2006, p. 14-5). Estes modus operandi são também destacados por Nicolas Bourriaud, que adota a característica relacional como fundamental nestes tipos de trabalhos de arte. Segundo o mesmo: Hoje, depois de dois séculos de luta pela singularidade e contra os impulsos de grupo, há que se lograr uma nova síntese que poderia nos preservar do fantasma da regressão à obra. Utilizar novamente a ideia do plural é para a cultura contemporânea, que resulta da modernidade, a possibilidade de inventar modos de estar juntos (...) já não é a emancipação dos indivíduos o que se revela como mais urgente, se não a emancipação da comunicação humana, da dimensão relacional da existência (BOURRIAUD, 2006, p. 73). Nota-se, então, que as formas de como proceder possuem extrema importância em tais processos, pois além de fundar as bases das relações com o meio externo onde são desenvolvidas, estabelecem internamente as dinâmicas entre os agentes envolvidos e acabam formando propostas diferenciadas de organização e ação destes grupos. Resumindo, nas palavras de Laddaga: “[estes procedimentos] implicam colaborações entre artistas e não-artistas” (2006, p. 15). Nesta síntese, pode-se notar que uma das modificações citadas acima é o nivelamento entre artista e público (não artista). Mesmo ainda havendo uma separação, que diz respeito ao conjunto de intenções e finalidades que cada um possui dentro deste tipo de envolvimento, a relação aprofundada entre as partes se torna essencial para que um projeto aconteça. Grant H. Kester também aponta para o caráter colaborativo e coletivo de práticas artísticas, onde “artistas colaboram com indivíduos e grupos de outras subculturas sociais e políticas” (2006, p. 11). Ele também ressalta a dimensão pedagógica explícita que estes projetos envolvem, utilizando-se de oficinas como espaço mediador de interação entre envolvidos e que se distinguem de outras práticas em arte pelo fato de não se basearem na

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produção exclusiva, ou primordial, de objetos. Desta maneira, outro aspecto que ganha bastante importância é o contexto não somente físico, mas humano e social onde estes processos colaborativos acontecem, surgindo daí o termo “arte contextual”. Segundo Paul Ardenne, este termo foi cunhado pelo artista multidisciplinar e teórico polonês Jan Swidzinski, em 1974, ao teorizar e propor uma nova maneira de elaborar a prática artística e sua relação com a realidade (ARDENNE, 2006 apud PARRAMON, 2007, p. 13). Ardenne também assinala que a relação entre artista, obra e público fica sem um desenho fixo, sendo redefinida em função do grau de comprometimento que cada caso adquire (2006, p. 13). Nos conceitos acima citados é notável como a colaboração, o nivelamento entre agentes de origens diferentes e a atenção ao contexto do outro, no processo artístico, se tornam fundamentais para sua execução. Mas esta aproximação e contato trazem questões mais complexas, sendo que os desejos e ações de um artista engajado e comprometido com tais preceitos marcam somente o início de um processo com outras variáveis (situações, desejos, contextos, relações) que tratarei a seguir.

Primeiro andar Como, desde o início, já havia uma demanda específica para se criar um blog, nossa primeira etapa de trabalho conjunto serviu para nos conhecermos melhor e para comunicarmos os interesses de cada um. Após alguns encontros o grupo realmente se afirmou e o passo seguinte foi definirmos os assuntos do blog. Esta foi a estratégia que determinou o conceito fundamental para o que se configurou como nossos processos colaborativos. Surgiu da ideia de transformar em metodologia criativa a busca pela eleição de um assunto que contemplasse satisfatoriamente a todos – o que resultou no assunto/conceito “espaço”. Partindo deste ponto decidimos que utilizaríamos, no meio digital, fotografias, vídeos e textos para tratarmos do assunto espaço e as formas como os moradores da Chiquinha, em geral, eram afetados por este conceito. Nesta etapa pude trazer para o diálogo (sobre o assunto espaço) a ideia de identidade e alguns exemplos de como a construção desta se dá na relação estabelecida com o outro. E tratamos como, muitas vezes, este processo ocorre nas instâncias da vida pública e, como muito enfaticamente ocorre com estes jovens, no forte teor político da moradia. Faz-se necessária, portanto, a explicitação do conceito de espaço que adotei para as práticas em minha pesquisa. Utilizei o proposto por Michel de Certeau (1994), que coloca que diferentemente do conceito de lugar, que estaria ligado à espacialidade planejada,

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materializada fisicamente e proposto por agentes que buscam controlar tais ambientes, o espaço não possuiria uma sede fixa ou estática, mas indicaria o uso que se desenvolve durante um período de tempo. Como aponta o autor, “o espaço é o lugar praticado” (1994, p. 202). E é justamente este praticar que dá sentido à busca de um lugar para a arte fora da instituição, para a ocupação de um prédio público e para a construção de espaços criativos, virtuais e coletivos. É neste espaço em que se pode distender o tempo, valorizar o encontro e priorizar o acontecimento, em uma via de mão dupla onde artista/ mediador e moradores participantes coabitam. Na constituição de espaços com estas características se instauram processos de “contaminação”. Por este termo se entende um tipo de relação onde os diferentes agentes se envolvam de um modo não somente participativo, mas estando abertos à influência do outro e a transformação de si, em um processo recíproco. Para Suely Rolnik (2003, p. 6) “contaminar-se pelo outro não é confraternizar-se, mas sim deixar que a aproximação aconteça e que as tensões se apresentem”. Esta aproximação, que não anula, mas viabiliza a manutenção das identidades em coexistência na prática do espaço e seus acontecimentos decorrentes, demanda uma discussão ética que parta do outro (LÉVINAS, 1994). Neste processo o exercício de alteridade reafirma as diferenças e este fato é, justamente, fundamental para a viabilização das práticas artísticas. A mediação no sistema de processo colaborativo oferece o ativamento do espaço e a oportunidade da ocupação, o lugar deste debate como devir, quando ativado, promove também uma quebra com o fluxo do cotidiano, mas não no sentido de seu esvaziamento ou descaracterização e, sim, como um desdobramento, ou dobra criativa. Aponta-se para a intervenção crítica e sígnica da função do espaço urbano e da interação/interjeição com a mensagem (re)transmitida a partir do encontro dos diferentes agentes. Por conseguinte, o conceito-guia “espaço” serviu para a localização das identidades constitutivas do grupo em relação à cidade, mas também em relação à própria Chiquinha. É interessante observar que o sistema de convívio altamente coletivizado tende, a rigor, a expor constantemente as singularidades à vida pública dentro da ocupação – o que muitas vezes acarreta em identidades-estigma dadas por relação de parentesco, idade, sub-grupo de relacionamento etc. No que se refere aos jovens é imprescindível destacar que são, aos olhos da grande maioria de moradores, recentes “ex-crianças”, o que em muitos casos acarreta na dificuldade de afirmação de alguma autoridade e outras singularizações. E, em última instância, também tratamos de minha identidade-estigma, tanto dada pela minha relação com a cidade, quanto com o

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grupo. Neste ínterim o exercício de alteridade que nos serviu para reafirmar a diferença e me colocar como um “outro” absoluto também serviu para demonstrar que é justamente esta diferença radicalizada que viabiliza o processo colaborativo que construímos – principalmente em função do fato da demanda primordial ser comunicar ao “outro” da cidade quem são os moradores da ocupação. Ou seja, à reboque do conceito-guia “espaço” está a comunicação que visa aproximar estas alteridades que se relacionam diferentemente com o espaço que convenciono chamar de esfera pública2, já que esta relação é fundamental no universo destes jovens e que afeta suas identidades na medida em que para eles morar é um ato político e de uma relevância mais acentuada que para camadas mais favorecidas da população.

Segundo andar Para tratar dos procedimentos de arte pública adotados pelos artistas Maurício Dias e Walter Riedweg, com os quais identifico meu trabalho, Suely Rolnik define os mesmos com o conceito de “dispositivo” emprestado de Deleuze (1996). Julgo pertinente considerar que, assim como o conceito de espaço, o dispositivo funciona como uma convenção que dá conta de uma esfera complexa. Ao final, me parece resultado de uma preocupação legítima da autora em não incorrer em qualquer redução. Portanto, dispositivo: É antes de mais nada uma meada, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de diferentes naturezas... Destrinchar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é traçar um mapa, cartografar, e é o que [Foucault] chama de ‘trabalho de campo’[...] A dimensão de Si não é absolutamente uma determinação preexistente que encontraríamos pronta [...] Uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela deve se fazer desde que o dispositivo o permita ou o torne possível. É uma linha de fuga... O Si não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que incide sobre grupos ou pessoas, e se subtrai das relações de forças estabelecidas como dos saberes constituídos: uma espécie de mais-

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valia (DELEUZE apud ROLNIK, 2003, p. 1). Observando este recorte realizado pela autora, e com o intuito de articulá-lo com meu sistema, gostaria de destacar que ela trata de uma cartografia de justaposições temporais da dimensão de Si. Em outras palavras, ela vê no dispositivo a possibilidade de lidar com individualidades na complexidade de suas instâncias de forma resignificante ou mesmo libertadora. Na primeira etapa da pesquisa observei os moradores das ocupações desde a perspectiva de um dispositivo que busca as dimensões de Si às quais pertencerá. À medida que o tempo de convívio me permitiu, realizei uma primeira cartografia que se baseava em alguns padrões comportamentais que me chamaram a atenção devido ao alto grau de comprometimento com o comportamento coletivo que se desnudava para mim. Apesar do pleno exercício da fala e das manifestações majoritariamente públicas das opiniões, percebi nos ambientes das ocupações uma tendência ao comportamento massificado de grupos que se definem, à percepção, após algum convívio. Aparentemente, estes ambientes altamente coletivizados tendem a diluir identidades ou, ao menos, reduzi-las a grupos que se identificam. Após compreender alguns eixos de relações estabelecidos nestes locais e onde haviam espaços abertos para minha entrada, decidi por trabalhar com o grupo de jovens da ocupação Chiquinha Gonzaga por perceber que suas singularidades estavam à mercê de um processo, algumas vezes, acachapante. Interessou-me, ao mesmo tempo em que me pareceu oportuno, seu desejo manifesto de tomar a palavra e representar-se através do blog.

Vista Panorâmica – terraço Os sistemas de legitimação da arte já estabelecidos – como os espaços de produção, ateliês e oficinas, espaços de circulação e exposição, tais como museus, galerias e outros eventos da área – se mostram limitados, ou ainda inadequados, para abrigar o contexto onde surgem os projetos de arte pública desta natureza. Como dito, a década de noventa instaura um procedimento artístico constituído pela relação na cotidianidade, o que aponta para reflexões acerca do contexto brasileiro. No mesmo, já não é central a problematização do espaço na arte, mas a busca por viabilizar relações na esfera da vida. Isto é, também, resultante do contexto histórico, demanda da sociedade fragmentária atual, que sinaliza para a arte o desafio para um novo jogo: o espaço a ser ocupado já não pode ser o institucional e a arte ocupa o espaço público, resistindo

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(como transgredia nos anos sessenta) e atuando coletivamente. Já não há dissociação entre contratos sociais e contratos estéticos (BOURRIAUD, 2006), ou seja, não se faz possível um projeto de arte autônomo no sentido tradicional da estética. Este espaço concreto está na esfera da vida, da cotidianidade e não pode ser desvinculado de uma ética própria de um sistema engajado de produção – entenda-se este como um sistema balizado pelos valores da esfera da vida, que parte do espaço que ocupa, já não mais da arte hermética e do espaço da instituição arte. Portanto, esta pesquisa teóricoprática pretendeu enriquecer a discussão acerca dos lugares onde a arte pode se instalar atualmente e voltou sua atenção para os processos complexos instaurados, pelo sistema de arte adotado, entre saberes, desejos e multiplicidades. Posso dizer que o grupo de jovens que vem criando e alimentando o blog da ocupação e promovendo, através destas ações, encontros entre realidades, tem muita aproximação com o conceito de Laddaga enquanto uma produção coletiva de desejos (2006). Neste sentido o conceito de desejo estaria próximo das concepções de Felix Guattari e Gilles Deleuze, onde este processo é visto “não como algo que sucede entre o encontro entre pessoas, senão o que se sucede entre uma singularidade desterritorializada e um fora desformalizado” (DELEUZE, GUATTARI apud LADDAGA, 2006, p. 83). Ou seja, se dá na presença efetiva e comprometida com o outro – um processo de alteridade. O local onde tais situações se desencadeiam, tanto no caso da ocupação quanto em outros projetos que correm nesta direção colaborativa, está menos constituído por sua relação com a instituição arte (ao que se refere aos círculos de mercado, galerias, museus, instituições de ensino) do que com as realidades que enfrenta. O que se impõe no processo de minhas práticas, atualmente, é a necessidade de criar dispositivos com todo o material gerado pelos participantes (entrevistas, fotografias, vídeos etc), que funcionem como comunicadores do processo, para potencializálo, ainda mais, como algo aberto para novas colaborações e novos procedimentos. É exatamente aqui que reside uma intenção diferenciadora, pois geralmente, os procedimentos de arte colaborativa deixam a geração de dispositivos comunicacionais a cargo dos artistas envolvidos. No âmbito de minha pesquisa, por exemplo, as imagens utilizadas na dissertação foram definidas a partir das eleições prévias realizadas pelos jovens para sua autorrepresentação no blog. Ou seja, foram transportadas do meio virtual, para a forma acadêmica, como um discurso coletivo de autoria compartilhada. Outro dispositivo comunicacional de autoria compartilhada foi um vídeo que os jovens editaram, coletivamente, para que eu apresentasse em minha banca de qualificação – os

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frames que o compõem são, na íntegra, resultantes das entrevistas e outras filmagens que eles realizaram para integrar o blog. Vejo como uma possibilidade real para os sistemas representacionais da arte a abertura para a autorrepresentação dos não artistas envolvidos, também como forma de criar um espaço viável para culturas de origem lidarem com o seu simbólico na experiência da cidade, que é cada vez mais um instrumento de violenta desvalorização das mesmas. Prova deste sistema de dominação cultural e simbólica é o fato de estes moradores não possuírem outra opção que não seja a de se libertarem do mesmo. Esta necessidade, que não dá espaço a escolhas, é prova de que não há liberdade, escolha livre e refletida, mas sim uma imperiosa necessidade de libertação das relações sociais e das formas de representação impostas pelo sistema dominante da esfera pública. A busca pela autorrepresentação demonstrada pelos jovens moradores na construção do blog demonstra como é necessário, e possível, viabilizar táticas de representação autônomas. Isto significa abertura, também tática, dentro do sistema geral da arte, para novas e efetivas formas de representação. Portanto, para além do uso documental ou alegórico das imagens, é possível pensar na forma desde uma perspectiva da criação de significantes onde os referentes aparecem por eles mesmos. Em outras palavras, o dispositivo comunicacional, enquanto significante, potencializa a representação do referente, que aparece na realidade. As operações representacionais se dão na vida e a tematizam. É, portanto, na criação de representações que servem de resgate do subjetivo e (re)afirmação de singularidades na experiência da vida pública que o exercício de alteridade é potência, é vir-a-ser. O espaço onde tais representações são suscitadas, através do encontro, é o que apenas se ativa a partir de uma ética própria, que parta da absoluta diferença imanente que baliza, hoje, as relações interpessoais.

Notas 1 Um blog ou blogue (contração do termo inglês Web log - diário da Web) é um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos, ou posts. Estes são, em geral, organizados de forma cronológica inversa, tendo como foco a temática proposta do blog, podendo ser escritos por um número variável de pessoas, de acordo com a política do blog. Disponível em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Blog>. 2

Os autores Alexander Kluge e Oskar Negt no artigo Esfera pública y experiencia:

hacia un análisis de las esferas públicas burquesa y proletaria (2001) discutem um conceito de

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esfera pública baseado no termo alemão Öffentlichkeit, abarcando uma variedade de significados que aludem sua simplificação na língua inglesa como public sphere. Assim como neste termo, Öffentlichkeit denota espacialidade, os lugares sociais onde os significados se articulam, distribuem ou negociam, assim como o corpo coletivo que se constitui neste processo, “o público”. Mas também denota o critério ou substância ideal, glanost ou “abertura” (openess compartilha a mesma raiz que o termo alemão offen), que se produz nestes lugares, mas também em contextos desterritorializados mais amplos. Kluge afirmou que um equivalente de Öffentlichkeit seria Glasnost, no sentido que designa uma esfera pública que contém experiência, uma esfera pública substantiva que é moral, com consciência. É isto que julgo imprescindível ressaltar: Öffentlichkeit é um fenômeno oposto ao privado.

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RELATO DE UMA ARTE NO CAMPO: LABORATÓRIO DE EXPERIÊNCIAS EM ARTE E AGROECOLOGIA EM ALEGRETE/RS - PROCESSOS ARTÍSTICOS COLETIVOS QUE DESLOCAM E TRANSBORDAM SABERES. Janice Martins Sitya Appel

Entre Biomas – deslocando saberes “Não me perguntes onde fica o Alegrete, segue o rumo do teu próprio coração” (...), assim começa a canção considerada um hino popular riograndense da cultura gaúcha, de autoria do grupo musical tradicionalista Os Serranos. A afirmativa contida no verso deve-se ao fato de que é grande a distância a ser percorrida para chegar ao município de Alegrete, situado próximo a Uruguaiana/RS, na região conhecida como Bioma do Pampa, quase na fronteira oeste do Brasil com a Argentina. Para desenvolver este percurso foi necessário promover um deslocamento de 447km

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entre Florianópolis/SC até Porto Alegre/RS, e desta até Alegrete/RS em mais 508km, perfazendo um total de 953 km, do litoral do Estado de Santa Catarina até meados da fronteira oeste do Rio Grande do Sul. A descrição da distância dá sentido e ênfase ao tamanho do deslocamento percorrido, pois em quase mil quilômetros são notadas evidentes mudanças geográficas, culturais e ambientais entre o ponto de partida e o lugar de chegada quando se percorre por estes dois Estados brasileiros. Durante o percurso deslizam sob os olhos as mudanças que alteram a paisagem, comprovando assim, a biodiversidade da mata nativa, bem como as persistentes interferências do homem, capazes de provocar visíveis modificações no meio ambiente. O deslocamento constituiu-se de imagens que desdobraram esta paisagem, transformando-a, das dunas do litoral catarinense, passando por araucárias que dividem os dois estados na serra, aos campos e planícies que configuram o bioma campeiro. Mais de doze horas passaram ao realizar este percurso, o qual também fazem aumentar as expectativas quanto ao fato de estar indo ao encontro de um grupo de alunos de agroecologia para promover, junto a eles, uma experiência entre as, até então, distintas comunidades e saberes das áreas da arte e da ecologia. A ênfase do encontro centralizava-se no desenvolvimento de uma prática e experiência artística coletiva, a ser realizada junto a esta comunidade acadêmica, na proposição da construção de uma horta comunitária, tendo em vista a discussão acerca de uma estética ambiental1. Tal proposição surgiu a partir do convite feito pela direção do IFFRS2, ao tomar ciência do trabalho prático-artístico em arte e sustentabilidade como processo colaborativo em comunidades, tomados a partir do objeto de pesquisa desenvolvido na dissertação de mestrado na linha de Pesquisa em Processos Artísticos Criativos, intitulado Hortas Comunitárias na Barra da Lagoa – Agenciamentos Colaborativos em Arte Pública de Novo Gênero3. O curso intitulou-se Hortas Coletivas e Permacultura - uma proposta em Arte, Sustentabilidade, Ciência e Tecnologia. A ocasião do encontro fez parte da V Semana de Ciência e Tecnologia do Campus, realizada entre os dias 26 a 28 de setembro de 2011 no Campus Alegrete no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha/RS localizado à RS-377, Km 27 em Passo Novo/RS. Mais do que um longo deslocamento4, a experiência maior tornou-se justamente o atravessamento e transbordamento de diferentes culturas e de campos do saber e conhecimento. Neste sentido, estar ali foi parte de um movimento migratório das percepções que alimentam diferentes campos de pesquisa, da a arte à agroecologia, diluídas pelo convívio entre diferentes culturas e que, naquele momento, apontavam

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[Fig. 1] Tr铆ptico Florian贸polis, SC / BR 290 / Alegrete, RS. (Fonte: Arquivo da pesquisa)


para as novas experiências sob os campos sulinos junto a esta comunidade acadêmica. A promoção de uma biodiversidade estaria assim, para além da paisagem mensurada (figura 1), e cada vez mais próxima aos movimentos transdisciplinares que fazem interagir diferentes culturas e práticas artísticas. Específicos estudos em arte apontam para práticas coletivas desenvolvidas por artistas junto a certas comunidades e que dão sentido às questões de interesse coletivo. À exemplo disto, a construção de uma horta comunitária em uma comunidade pode atuar como uma forma de dispositivo relacional para uma proposta coletiva em arte e ecologia, como parte de um processo que faz gerar colaboração e trocas sociais com a comunidade (APPEL, 2010). A pesquisa em arte que tem como base o convívio em na comunidade, exerce o sentido de que um processo artístico coletivo pode ter suas transversalidades com outras práticas, assim como as de cunho agroecológicos praticadas por um grupo específico de moradores de uma região. Além de gerar colaboração por ser realizada em um ambiente de convívio cotidiano, uma proposta como o cultivo de hortas pode tornarse uma prática sustentável viável para certas comunidades5.

Laboratório de experiências Chegando em Alegrete, o Campus continha instalações que consistiam em salas de aula bem equipadas em meio ao ambiente rural. O grupo contava com a presença de aproximadamente dez jovens alunos, todos provindos de maduras experiências da lida campeira desde os seus primeiros anos de vida. Durante uma manhã foi realizada a primeira parte do encontro, onde aconteceram trocas quanto aos diferentes campos práticos e teóricos. Foram apresentados e discutidos exemplos de coletivos artísticos e de soluções eco ambientais para determinados contextos e tipos de moradias, cultivos e técnicas específicas para um convívio em equilíbrio com a natureza. Os exemplos encontrados em arte e que entram em diálogo com o relato desta experiência são distintos e descrevem diferentes formas de inserção e colaboração. Algumas práticas de artistas atuam em transversalidade com a natureza, atuando em contrapartida e colaboração efetiva junto a certas comunidades, como no caso das hortas e espaços bioconstruídos realizados na Fundação The Land6 (Tailândia), onde os artistas promovem ações junto a movimentos e manifestos para uma revitalização do local e assentamento de famílias em zonas de cultivos de arroz. Outro tipo de exemplo pode ser descrito em ações que operam em colaboração para uma crítica social quanto ao uso e percepções do espaço

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urbano e rural em uma determinada comunidade, como no caso das hortas iniciadas pela artista Lara Almarcegui. Após refletir sobre sua postura como artista, Lara Almarcegui7 decidiu fazer parte da comunidade dos Volkstuin. Este projeto foi desenvolvido em tempo real, num lugar específico, onde a artista ficou por três anos trabalhando num quintal de uma associação de hortas de Rotterdam (Holanda) para a implantação de um jardim. As suas intervenções deslocam a paisagem, pois o cultivo da horta é também responsável por modificar espaços. Em meio do campo Alegretense, o passar das horas fez crescer o meu encantamento e dos alunos pelas próprias experiências relatas e apresentadas, assim como por suas distintas histórias de vida e questionamentos que alternadamente nos fizeram recorrer às experiências cotidianas, assim como às acadêmicas. Da janela da sala de aula do Campus havia ovelhas, carneiros, novilhos, plantios e cultivos. Um forte barulho de água e muitos jovens estudantes de bombacha e chimarrão na mão. Por certo momento era possível contrastar esta imagem com a dos alunos da Ilha de Florianópolis, que naquele momento deveriam estar de prancha ou linha de pesca na mão, sem camisa e prontos para entrar no mar. Mas, se por um lado, tão distintas características geográficas e culturais marcavam ali suas diferenças, de outra maneira, estes alunos estariam conectados e alimentados por um modo de vida que os faz atuar direto à natureza, ao (meio) ambiente e às práticas coletivas, já que, através da construção de hortas comunitárias estariam agenciando propostas para coletivos, mesmo que em diferentes regiões brasileiras. A segunda parte do encontro foi marcada pela proposição de uma ação prática que consistia na construção de um espaço bioconstruído, onde o espaço de atuação não seria mais o da equipada sala de aula e sim do próprio ambiente campeiro. Ao partir para uma saída de campo, as dimensões e a escala do trabalho tornam-se maiores do que nossos olhos possam alcançar. Havia em meio ao prado uma grande horta circular em forma de mandala - trabalho em agroecologia realizado pelos alunos do IFFRS (figura 2), portanto, a experiência de estarmos ali não seria a de instaurar uma nova horta, mas sim a de um aprofundamento sobre os questionamentos quanto às práticas coletivas e a ampliação do campo de diálogo e de conhecimentos frente ao ambiente construído em coletividade. Os alunos apontavam pelo interesse em discorrer sobre um campo de pesquisa em arte que fosse sensível e aberto para uma estética ambiental, capaz de absorver tanto os saberes tradicionais e convencionais do campo exercidas em coletividade, como as propostas criativas e contemporâneas do campo da arte acerca

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de trabalhos feitos em especificas comunidades. Depois de algumas horas juntos não pareciam mais haver barreiras ou distanciamentos entre nossos saberes e conhecimentos específicos. Arte e agroecologia transversalizando-se em forma de convívio, de um estar junto para além das práticas relacionais, apontando para um laboratório de experiências e uma necessidade de agir a partir das práticas alcançadas. Portanto, é no fluxo de específicas intenções locais e o histórico de experiências anteriormente propostas por artistas em colaboração com diferentes meio ambientes, que foi praticada a horta coletiva junto aos alunos de agroecologia em Alegrete, sob o ponto de vista de uma estética ambiental, baseada na prática de uma permacultura8 como melhor plataforma de trabalho em colaboração a ser desenvolvido no local. No decorrer do encontro com os alunos de agroecologia, o papel do artista, do educador e do cidadão do mundo foi sendo alternando, deslocando-se em meio ao processo e atravessando, tanto a pesquisa em arte, como em agroecologia e ao saber cotidiano. O contato com o grupo de alunos possibilitou o início de uma proposta que não ficou encerrada ali, pois surgiram demandas de novos espaços bio construídos e de uma estética ambiental a ser cultivada e exercida tanto em micro, como numa macro escala. Naquela tarde caminhamos por uma grande área de campo, onde também realizamos cultivos junto à horta previamente constituída. A partir de uma pequena quantia de taquaras/bambus iniciamos um modelo de construção que atendesse à demanda daquela comunidade acadêmica. Ao mesmo passo que o grupo experimentava ações no espaço, surgiam imagens de novos objetos, assim como a produção de imagens feitas através de registros fotográficos e de relatos audiovisuais. A efemeridade da ação pode, ainda assim, gerar imagens e registros que lhe permitem nova permanência, tanto em formatos de arquivo como de memória. O encontro acabou ao iniciar da noite, mas nossas curiosidades seguiriam para além daquele momento. A experiência que tivemos foi um exemplo onde a prática artística estendeu-se para além das fronteiras do conhecimento, promovendo diálogos estéticos entre arte, ambiente em diferentes comunidades acadêmicas, fazendo-nos refletir sobre o criar coletivo e o possível poder transformador destas ações em diferentes espaços.

Sob os transbordamentos do campo artístico e as formas de pensar o espaço em colaboração. O que faz um artista e pesquisador de arte no interior do bioma do pampa gaúcho

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[Fig. 2] Alunos do IFFRS (Campus Alegrete) na Horta Comunitรกria. (Fonte: Arquivo da pesquisa)


em meio a uma horta comunitária e junto aos alunos de um curso de agroecologia? Esta foi a pergunta a qual tentei responder quando me vi em meio a um lugar tão improvável e imediato para o campo artístico que seria o de estar em uma fazenda ou canteiro manejando plantas e praticando cultivos. Não deveria o artista estar em museu, galeria ou instituição cultural? Este questionamento pode ser respondido ao percebermos que a arte pode deslizar entre os diferentes campos do saber e do conhecimento, tornando-se possível em transversalidade junto a estas diferentes áreas, trazendo à tona novas formas de pensar. Os constantes processos de ruptura destituíram da arte a necessidade de um suporte tradicional, abrindo espaço para uma desmaterialização do objeto artístico não mais centrado no conceito de obra em si, mas sim em seu processo instaurador, capaz de produzir diferenças, novos questionamentos e assim, ampliar as possibilidades deste fazer para novas direções de acontecimento e efemeridade: transbordamentos do campo artístico. Este conceito provém de diferentes narrativas e práticas, a partir de autores que discorrem entorno de justificativas para as alternadas formas de ações no espaço que, na evolução de seus contextos, convergem para comunidades e sua realidade. A arte volta-se, então, ao interesse público, ou novo gênero de arte pública, através de práticas artísticas, baseadas em táticas que envolvem colaborações entre diferentes linguagens e grupos sociais. Esta noção caracteriza-se por enfatizar questões sociais e ativismo político, assim como engajar-se em colaboração com a comunidade. Nesta noção, o local onde é realizado o trabalho em arte passa a ser compreendido como um espaço social, político e físico. Inicialmente meus estudos apontavam para Lucy Lippard (2001), onde o conceito de lugar – assim como o da horta, aqui aplicado ao contexto, - estaria relacionado diretamente com a necessidade de vincular as atitudes às problemáticas sociais, na urgência em aumentar a vinculação da arte com a política e os assuntos sociais. Sendo assim, estaríamos falando de práticas em que o conceito de espacialidade se expande do formal ao crítico-político no lugar ou comunidade na qual atua. O questionamento quanto ao lugar que ocupamos frente aos fatos sociais, implicaria em engajamento em algum sentido, provocando uma prática artística mais contundente. Como no caso da horta dos alunos de Alegrete e suas manifestações de desejos quanto a um aprofundamento em práticas que transversalizam os campos de pesquisa em arte e agroecologia, a presença do artista torna-se fundamental para que este processo tenha dado início. Na intenção em tomar uma posição a respeito da esfera pública, o artista passa assim a atuar em colaboração com propostas comunitárias, bem como

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com as pessoas com as quais convive, alimentando este convívio no funcionamento de sistemas colaborativos e de instituições sociais no qual também esteja inserido. Contudo, conforme Grant Kester, “não deve bastar para um artista o fato de agenciar propostas relacionais em arte, como o encontro pelo encontro, mas sim o de desencadear um processo artístico em compromisso social e político” (KESTER, 2004), de acordo com as razões de um lugar praticado9. Desta maneira, a horta torna-se um espaço critico de atuação, em um lugar praticado, dando forma e sendo a própria expressão e interesse da comunidade, praticado através da utopia, como na busca por um espaço de vida mais saudável baseado na agricultura familiar e no cultivo de orgânicos. Neste contexto, o artista passa a exercer o papel ativista frente às questões que envolvam as micropolíticas do local, fazendo desmaterializar não somente a figura do objeto artístico como efeito de obra de arte, mas também a figura do próprio artista ao tornar-se, então, um agente mediador entre um processo de autoria coletiva. É também referência para os estudos da ampliação do campo e atuação da arte em novos espaços, como as comunidades, os apontamentos de Reinaldo Laddaga, que no final dos anos 1990, publica Estética da Emergência, onde apresenta diferentes coletivos artísticos que atuam como ativistas através de interações estéticas e sociopolíticas. Conforme o autor, tais práticas culturais exigiram uma estética da emergência, as quais vieram a dar visibilidade aos agentes, até então, não incluídos na autoria do processo, não mais centrado na figura do artista, tornando a comunidade seu principal agente operacional, conectando, então, a arte com um público mais amplo. Nas palavras do autor, o entendimento do contexto da arte apontou para um campo em constante expansão, com zona de limites não claros e ampliados - atravessamento ou ausência de limites – que fizeram da arte um campo em trânsito junto aos diferentes campos de atuação da vida cotidiana. Este cotidiano é marcado por um cenário atual político, econômico e artístico, onde se mostra imprescindível o entendimento da transversalidade da arte. Com a inclusão da colaboração de diversos profissionais em projetos artísticos junto às comunidades, transversaliza-se o mundo da arte em integração social, surgindo assim, novos métodos para trabalhos e projetos comunitários. Em meio a tantos caminhos possíveis em arte contemporânea, a transversalidade com temas como sustentabilidade e ecossistemas também encontra reverberações nas noções de ecosofia apontadas por Felix Guattari (1997)10, onde se torna então possível articular práticas artísticas ao contexto ecossistêmico, já que a intervenção do homem como um todo é exercida como forma de colaboração, tornando-se parte fundamental de

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uma relação também capaz de controlar os efeitos causados pela própria espécie humana no espaço que ocupa e interage.

Encaminhando novas propostas – da horta comunitária ao jardim de entropias. Atualmente a pesquisa prática em arte vem sendo desenvolvida em nível de doutorado, com projeto de tese intitulado Jardim: Laboratório de Experiências a Céu Aberto11 e que faz referência às práticas de convívio diário em um jardim e das experiências possíveis em arte em meio à natureza. A proposição do tema é estabelecida a partir da ampliação da prática do cultivo de hortas para o espaço do jardim. A prática do cultivo de um jardim como laboratório de pesquisa em arte contemporânea é uma forma de ação artística e faz gerar uma reflexão quanto aos processos de criação de espaços como possibilidade de experimentação e sua articulação com ações cotidianas e colaborativas, de limites permeáveis e em transversalidade com ecosofia, agroecologia e os novos meios de arte pública. Nesta proposta, o processo de trabalho em um jardim está sendo realizado através de diferentes processos de cultivo. Uma das maneiras é o exercício do cultivo a partir do plantio de alimentos orgânicos, ervas medicinais e de plantas comestíveis não convencionais (PANC)12, percebidos a partir das diferentes etapas sazonais e suas respectivas possibilidades de colaborações junto aos próprios elementos da natureza. A outra forma é contribuição para o cultivo e manutenção da flora nativa que aleatoriamente cresce sem nenhum tipo de intervenção, facilitando o reaparecimento de uma paisagem selvagem, pois conforme a crítica de arte Anne Couquelin ”o que distingue o jardim do que chamamos de paisagem ou natureza, é a intervenção do jardineiro” (COUQUELIN, 2005). Quanto a outras intervenções, o projeto aceita colaborações específicas de outros artistas, certos tipos de público e de diferentes agentes para cada uma das ações. Conceber o mundo como um jardim faz parte das concepções apontadas pelo francês Gilles Clement13, sobre o termo que define como “jardim planetário”, no qual um jardineiro percorre distintas personalidades de atuação que constantemente o deslocam entre ser artista, cientista, sedentário e nômade. Tendo no jardim o espaço para diferentes cultivos (não somente aos que se referem aos vegetais e seus ecossistemas, mas também aos cultivos do afeto e da memória, pois deles provém a instauração de sucessivos novos espaços). Neste sentido, a pesquisa atual também aponta para as

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questões de deslocamento e desmaterialização do objeto artístico, público e artista de maneira a aprofundar o processo iniciado durante a pesquisa de mestrado, já que na presente etapa, estes conceitos são considerados movimentos de entropia em relação à natureza. Proveniente do campo da física, o termo entropia provém da segunda lei da termodinâmica ao apontar a irreversibilidade existente nos sistemas isolados, destacando a importância de preservá-los abertos. Um esvaziamento da energia de um sistema aberto pode propiciar a entrada de energia em outro sistema, e assim, sucessivamente. Como exemplo e diálogo no campo da arte, em um dos trabalhos da artista Lara Almarcegui, intitulado O Guia de Al Khan (2007), a mesma aponta para um lugar abandonado, quase vazio, sendo assim, um lugar que está aberto a todo o tipo de possibilidades onde as pessoas podem então, se sentirem livres. As plantas e árvores que sobraram dos jardins do passado tem que crescer ao lado de vegetação selvagem, lado a lado com as ruínas e lixo, gerando processos naturais extraordinários de mistura e entropia. Neste sentido, a entropia pode ser vista no campo da produção artística tanto por sua ruptura com padrões ultrapassados, desvencilhando-se de estruturas solidificadas, como pela composição de novas ordens. Toda arte teria assim, certo grau de entropia, pois ao buscar novas formas, o artista propõe uma nova realidade, ou outra dimensão para a relação espaço-tempo. Sua proposta passa a ser a vivência deste novo tempo, um elemento dinâmico e que contém a vida. Neste alargamento de sentido, a experiência do convívio em um jardim em termos entrópicos, traz à tona o sentido de efemeridade que a arte possa ter, já que, tal como nos próprios cultivos, uma nova arte se refaz a cada novo ciclo, onde o cotidiano também é capaz de nos reinventar, ou em outras palavras, nos reciclar. Em recente contato informal com a Secretaria de Agricultura do Município de Alegrete foi estabelecido, através do secretário da agricultura14 o convite para pensar junto a esta, uma forma de construção coletiva de um jardim que sirva de plataforma para um trabalho colaborativo capaz de promover ações da comunidade nos campos da arte e da agricultura familiar. Esta nova relação de contato e colaboração inicialmente apontada é mantida, pois ao inserir-se em espaços institucionais, o artista deve promover práticas relacionais que gerem processos autônomos e de colaboração, buscando reorientar sua prática artística, não mais para a técnica ou para a produção de objetos, mas para um processo de transbordantes e novas trocas intersubjetivas. Os novos jardins propostos fazem assim, reinventar o cotidiano, fazendo surgir novos espaços de colaboração, renovando assim nossas práticas em constantes transversalidades, seguidos de movimentos de entropia.

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Notas 1 Estética Ambiental e Espaços Bioconstruidos foi o título de uma oficina ministrada durante o encontro intitulado Festival Submidialogia 2010 na Ilha do Valadares, acerca do município de Paranaguá, litoral do Paraná, promovido pela ONG Descentro e que ganhou o Prêmio Funarte projeto aprovado no edital Petrobras Cultural de 2009 vinculado à Lei de Incentivo à Cultura, MINC. Na ocasião, eu havia sido convidada pela artista e mestre em artes Visuais, Claudia Washington, para ministrar a oficina e compor o quadro de artistas propositores de ações para a comunidade dos moradores da Ilha do Valadares. O festival Submidialogia acontecia desde 2005, e contava com quatro edições antes desta de 2010 (Campinas-SP 2005, Olinda-PE 2006, Lençois-BA 2007, Belém-PA, 2009) realizadas em diferentes partes do Brasil. Desenvolvido colaborativamente por meio da lista de discussão Submidialogia, pode ser compreendido como um festival multidisciplinar que remixa conhecimentos de arte, mídia e tecnologia, cultura livre. Durante a oficina houve o debate quanto a soluções em estética ambiental para questões de moradia e foi construído um objeto biocontruído a partir de bambu para coleta da água da chuva. Disponível em: http://hortaeartecoletiva.blogspot.com.br/2011/06/meio-ambiente-e-tecnologia.html - 12/05/2013. 2 O Instituto Federal Farroupilha – IFFRS é uma Instituição de Educação Superior, básica e profissional, pluricurricular e multicampi, especializada na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com sua prática pedagógica. Localiza-se no interior do Rio Grande do Sul em meio â zona rural. Disponível em http://www.iffarroupilha.edu.br/, em 31/05/2013. 3 Dissertação de mestrado apresentada por Janice Martins Sitya Appel em 25/11/2011 pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais (PPGAV) do Centro de Artes (CEART), da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) com orientação do Prof. Dr. José Luis Kinceler. 4 O ponto de partida na ocasião do deslocamento descrito neste relato faz referência à saída de Florianópolis no Estado de Santa Catarina com destino final a chegada em Alegrete no Estado do Rio Grande do Sul. 5 Ampliado ao âmbito da agroecologia, o conceito de comunidade refere-se a existência de muitas populações, o que envolve os diferentes reinos em convívio, significando que muitos tipos de interferência podem estar ocorrendo ao mesmo tempo, podendo interagir e modificar umas às outras, criando relações complexas entre os membros da comunidade (GLIESSMAN, 2001). De outra maneira, o conceito de comunidade inicialmente abordado parte de considerações feitas por Michel Mafesoli (2000) quanto às tribos urbanas - agrupamentos constituídos predominantemente

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de pessoas que se aproximam pela identificação comum a rituais e elementos da cultura que expressam valores e estilos de vida típicos de um espaço-tempo, assim como o não-compromisso com aspectos de continuidade, valorizando o tempo presente. Uma comunidade vista pelo ponto de vista de uma tribo, possui caráter dinâmico e em constante transformação, o que lhe confere forte potencial criativo. 6 Fundação The Land, disponível em http://www.thelandfoundation.org/?About_the_ land, em 31/05/2013. 7 Lara Almarcegui nasceu na Espanha em 1972. A artista reconhecida por seu trabalho de ações e intervenções em terrenos baldios, construções e questões que envolvam a discussão do espaço urbanístico. Em 2006 participou da 27ª Bienal de Arte de São Paulo, com trabalho intitulado Guia de Terrenos Baldios, no qual reuniu os lotes vagos de algumas regiões da cidade. Em 2013 participou da Bienal de Veneza. Disponível em http://www.sp-arte.com/en/artists/lara-almarcegui/, em 31/05/2013. 8 O conceito de permacultura foi criado pelos ecologistas australianos Bill Mollison e David Holmgren na década de 1970. Para B. Mollison, a permacultura se define por “um sistema de planejamento para a criação de ambientes humanos sustentáveis” envolvendo aspectos éticos, socioeconômicos e ambientais. O termo provém de permanent agriculture (agricultura permanente) que mais tarde se estendeu para permanent culture (cultura permanente). O sentido de uma sustentabilidade ecológica deu vazão a uma sustentabilidade que preveja os espaços humanos. Sua ênfase está na aplicação criativa de princípios e padrões básicos da natureza, integrando plantas, animais, construções e pessoas em um ambiente produtivo com estética e harmonia. A permacultura utiliza além de técnicas ancestrais para modos sustentáveis de vida, um conceito de união entre os diferentes campos de atuação como a arte, arquitetura, engenharia, agronomia e sociologia sob a ótica da ecologia. A sustentabilidade comunitária passa a ser a aplicação de um conceito que provém desta premissa ecológica e diz respeito aos conhecimentos, técnicas e recursos que uma comunidade utiliza para manter sua existência tanto no tempo presente quanto no futuro (...) incluem em sua organização muitas práticas como a produção local e orgânica de alimentos; utilização de sistemas de energias renováveis; utilização de material de baixo impacto ambiental nas construções (bioconstrução ou arquitetura sustentável); criação de esquemas de apoio social e familiar; diversidade cultural e espiritual; governança circular e empoderamento mútuo, incluindo experiência com novos processos de tomada de decisão e consenso; economia solidária, cooperativismo e rede de trocas; educação transdisciplinar e holística; sistema de saúde integral e preventivo; preservação e manejo de ecossistemas locais; comunicação e ativismo global e local. Disponível em: http://gen.ecovillage.org/ - 12/05/2013.

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9 Esta expressão que faz referência à afirmação de Michael de Certeau ao colocar que, entre espaço e lugar há uma distinção que delimita um campo de atuação - “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência” (CERTEAU, 1994). Sendo assim, um lugar seria uma configuração de posições e implicaria uma indicação de estabilidade. O espaço, por sua vez, passa a ser constituído por vetores de força em movimento, sendo então, “um lugar praticado” (CERTEAU, 1994). 10 Para Felix Guattari, relações de ecosofia envolvem questões éticas ambientais e podem ser denominadas como ecologia mental, ambiental ou social. A ecologia mental pode surgir a todo o momento em todos os lugares “para além dos conjuntos bem constituídos na ordem individual ou coletiva” (GUATARRI, 1997). No princípio da ecologia ambiental tudo é possível e as evoluções são flexíveis, onde cada vez mais os equilíbrios naturais dependerão das “intervenções urbanas”. O principio da ecologia social diz respeito à promoção de um investimento afetivo e pragmático em grupos humanos de diversos tamanhos. Para GUATTARI (2009), “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo”. 11 Pesquisa desenvolvida para tese de doutorado a ser defendida por Janice Martins Sitya Appel em 2016 no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais (PPGAVI) do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação da Profª. Drª. Maria Ivone dos Santos (CV: http://lattes.cnpq.br/8186621070642430) 12/05/2013. 12 Plantas Comestíveis não Classificas são chamadas “PANC” no campo da biologia conforme Stephen Gliessmann. 13

Gilles Clement é paisagista, agrônomo, professor e escritor. Disponível em http://

www.gillesclement.com/ Em: 31/05/2013. 14

O secretário da agricultura do município até a presente data trata-se do Prof. Ms.

Otacílio Silva da Motta, médico veterinário, membro do corpo docente e ex diretor do IFFRS.

Referências APPEL, Janice. Permacultura e espaços Bioconstruídos como forma e possibilidade estética em propostas coletivas em arte para moradia e obtenção de energia In: WASHINGTON, C.; ARAUJO, L. Trânsito à margem do Lago: caderno de viagem. Curitiba: edição do autor, 2010. APPEL, Janice. Dispositivos relacionais em processos coletivos e prática

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artística em comunidades: hortas comunitárias e canteiros como possibilidade. In: Revista Panorama Crítico, 2010. Disponível em: http://www.panoramacritico.com/006/ docs/JaniceMartins_DispositivosRelacionais_artigos_panoramacritico06.pdf. Acesso em 24/04/2012. APPEL, Janice. Hortas comunitárias na Barra da Lagoa - agenciamentos colaborativos em arte pública de novo gênero. 2011. 2 v. : Dissertação (mestrado) Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Artes Visuais, Florianópolis, 2011. Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo. php?codArquivo=2687. Acesso em 22/02/ 2012. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Ed. Vozes, Petrópolis. 1994 CLEMENT, Gilles. Le jardin Planétaire In: Tableau d’une exposition Hommes et plantes. Revue du CCVS, Automne, n. 31, 1999. Disponível em http://www. gillesclement.com. Acesso em: 31/05/2013. COUQUELIN, Anne. Petit traité du jardin ordinaire. Rivages Poche, 2005. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas (SP): Papirus, 1997 GLIESSMAN, Stephen. Agroecologia Processos Ecológicos em Agricultura Sustentável. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. KESTER, Grant. Conversation Pieces – Community + Comunication In Modern Art. Los Angeles: University of California Press, 2004. LACY, Susanne. In: BLANCO, Paloma (org). Modos de hacer: arte crítico, esfera pública y acción directa. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2001. LADDAGA, Reinaldo. Estética de la emergência. 1ª ed. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006 MOLLISON, Bill. Permacultura Um – Uma agricultura permanente nas comunidades em geral. Ed. Ground, 1983.

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COLETIVO EFÊMERO EM FORTALEZA-CE: UMA EXPERIÊNCIA DE COLABORAÇÃO Wilma Farias Gois Síria Mapurunga Bonfim Annádia Leite Brito

Colaboração – Um fazer compartilhado Pensar os modos de práticas artísticas no contemporâneo se torna desafiante pelas inúmeras possibilidades existentes. Envolve-nos em um bom desafio, pois nos leva a conhecer os inúmeros posicionamentos que se têm no campo das artes. Seja arte ativista, relacional, conceitual, urbana, intervenção, etc., em toda a diversidade que envolve o campo artístico, algo em comum perpassa: o posicionamento político, ou seja, o modo como nos colocamos diante do que nos acontece. Nesse caso, propomos refletir sobre projetos em arte que se fazem com vários,

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tornando possíveis desejos e proposições numa perspectiva de colaboração. Por colaboração entendemos o compartilhar ações e diferentes fazeres em favor de um objetivo comum. Nesse sentido, relatamos a experiência colaborativa para a realização do Cine Fantasma, na cidade de Fortaleza, em abril de 2013. Tendo como propositora a artista carioca Paola Barreto, o Cine Fantasma trata da pesquisa “Cartografias espaço-temporais: Cinema Vivo”, que consiste em projeções de vídeo e imagens de arquivo sobre fachadas de antigos cinemas de rua, reativando as marcas desses espaços, cruzando com os imaginários da cidade. O projeto tem como característica a efemeridade, os deslocamentos e a mobilidade de suas ações. Entendemos o Cine Fantasma como obra em movimento, no sentido de não estar constituída por um modelo fechado para sua produção itinerante, pois cada espaço que essa intervenção ocupa está marcado por especificidades. Dessa forma, o Cine Fantasma precisa inventar diferentes possibilidades de realização. Para tanto, aliamonos aos estudos de Cecília Salles (2006), que traz a criação artística compreendida em sua dinamicidade, colocando-nos em contato com um ambiente caracterizado pela flexibilidade, mobilidade e plasticidade. Desse modo, consideramos os diversos modos de produção da obra, tomando a criação como “rede de conexões” (SALLES, 2006, p. 15), em que se volta para a consideração da multiplicidade das relações que envolvem a criação e a realização. Ao longo do processo de construção da obra, como nos explica Salles (2006), a rede se torna complexa à medida que novas relações são estabelecidas. Edgar Morin (2008) nos ajuda a problematizar o pensamento, contrapondo o complexo ao simplificante, utilizando como exemplo nós, seres humanos, em nossos aspectos físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos, espirituais, e - complementamos –artísticos, sob o ponto de vista da articulação, identidade e diferença. Para o autor, a complexidade tem como particularidade dar conta das articulações existentes entre tais aspectos, sob uma perspectiva multidimensional do conhecimento. De acordo com o estudioso, a complexidade não vem para responder e sim para afirmar as diversas dimensões que envolvem o homem, um “ser biológico-sociocultural” (MORIN, 2008, p. 177). Acompanhando a consideração multidimensional do conhecimento, o princípio da incompletude e a incerteza que delineiam o pensamento complexo, pensamos a criação artística em seu viés multidimensional. Nesse processo, a posição do artista é deslocada, deixando de ser o único a executar sua obra, para estabelecer modos de articulação com outros e com os diversos saberes que podem contribuir na produção

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de determinado projeto ou obra. Alguns artistas e pesquisadores de diversos segmentos nos oferecem discussões acerca do termo ‘colaboração’ em artes. No teatro, Luís Alberto de Abreu (2004), premiado dramaturgo brasileiro, apresenta-nos o processo colaborativo como uma metodologia de criação que “busca a horizontalidade nas relações” (ABREU, 2004, p. 01). Adotemos, pois, o conceito também como um processo de realização no deslocamento de hierarquias. Walmeri Ribeiro (2010), artista e pesquisadora do audiovisual, considera o processo de criação colaborativa como nomeação de uma prática coletiva, estabelecida a partir do diálogo entre os envolvidos. Segundo a autora, é uma “proposta de construção a partir de trocas, de interferências, que traz como princípio criativo a liberdade de criação e a improvisação” (RIBEIRO, 2010, p. 54). Ressalta, ainda, que obras realizadas colaborativamente são processuais e dificilmente podem ser separadas de seu processo de criação, pois, “são obras em constante movimento, nos quais o jogo e a improvisação atravessam a etapa de criação e se imprimem na obra, seja para o palco ou para as telas” (RIBEIRO, 2010, p. 54). Claudia Paim (2009), artista visual e pesquisadora, afirma que o modo colaborativo de fazer na arte deve existir em cooperação com outros grupos da sociedade, independente de sua natureza informal, efêmera, constituída apenas para um projeto a ser finalizado ou com estrutura formalmente organizada. A autora expõe o termo colabor – trabalho compartilhado – para refletir sobre o desaparecimento de fronteiras na colaboração entre grupos. Em nossa concepção, esse contexto de trabalho compartilhado tornou possível nossa experiência no Cine Fantasma na cidade de Fortaleza. O Cine Fantasma tem como principal característica sua efemeridade ao lidar com o imaginário dos lugares, da sua arquitetura e dos atravessamentos que acontecem nas histórias, tanto dos espaços como da cidade. Dessa maneira, cada local ocupado influenciará o modo de pensar e articular o próximo, fazendo-nos imergir nas relações que circulam dentro desse projeto, cujas ocupações, consideradas efêmeras, duram apenas uma noite, e no aspecto colaborativo, pois traz como especificidade interferências e compartilhamento dos fazeres de outros. O posicionamento do Cine Fantasma, como nos diz Paola (2013a), é promover: uma série de intervenções efêmeras no espaço urbano, projetando documentação fotográfica de antigas salas de cinema da cidade

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na fachada dos prédios onde essas salas costumavam funcionar – trazendo, assim, os históricos edifícios ‘de volta à vida’ [...] Como não temos muita verba, o ideal é realmente mobilizar fantasmas apaixonados como nós, explicando que é um evento que acontece na rua, não cobra ingresso, não vende nada, apenas mistura imagens sobre a fachada dos prédios, não deixando nenhum resíduo além dos registros destas mixagens que forem captados. É tudo efêmero, etéreo, fantasmagórico....

O Cine Fantasma em Ação Organizamos um coletivo efêmero, cujo objetivo foi realizar um cortejo nas ruas do centro da cidade, no qual intervenções circulariam entre alguns prédios que abrigaram, um dia, cinemas de rua. Nosso processo começou por e-mail na formação de um grupo composto por artistas, pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Artes e estudantes de graduação do curso de Cinema e Audiovisual, ambos da Universidade Federal do Ceará, com disponibilidade e interesse para desenvolverem, ao longo de pouco menos de um mês, o projeto mencionado. Todo o processo de discussão da ação se daria por meio de e-mails, já que a idealizadora do Cine Fantasma morava no Rio de Janeiro e viria somente para o encontro, na primeira semana de abril, no qual falaria sobre seu trabalho e conduziria o cortejo final junto ao coletivo. Por ser uma proposta com estrutura que requer a realização de demandas de diferentes modos, mesmo que estas sejam intimamente ligadas, dividimos o coletivo nas seguintes funções1: produção, pesquisa, redes sociais, VJ, projecionista, câmera, repórter fantasma, still e motorista. Primeiramente, Paola propôs um cronograma, que consistia no seguinte: para a primeira semana, seriam definidos os cinemas onde a ação seria realizada, tendo em vista que o cortejo incluiria tanto um carro - com VJ, projecionista e motorista -, quanto a equipe e o público a pé. Na segunda semana, seriam realizadas pesquisas em acervos oficiais e de colecionadores privados, atentando para um eventual custo de compra

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de imagens. A proposta, no entanto, era ressaltar o caráter colaborativo da ação, cujo objetivo era projetar as imagens e não reproduzi-las. A partir do material coletado, seria lançada uma campanha nas redes sociais para cruzar histórias pessoais com a história dos próprios cinemas. Na terceira semana, ocorreriam os testes com carro no percurso mapeado (experimentações de angulação do projetor com algumas imagens, além de consolidação do trajeto do veículo) e seriam preparadas artes gráficas para interagir com as projeções. Na última semana, o Cine Fantasma seguiria em cortejo no circuito formado. Apesar desses direcionamentos, a artista se colocou como mediadora ao invés de assumir um posicionamento centralizador nas decisões, possibilitando a autonomia de cada participante para encontrar seu próprio modo de estar no processo. À medida que as atividades foram acontecendo, informações iam sendo compartilhadas, como a existência de sites com registros históricos, livros e documentário sobre o tema. Durante a pesquisa além de levantamento de imagens e informações, estabelecemos contato com três pesquisadores importantes da história de Fortaleza, ultrapassando o simples acesso aos materiais fotográficos. Entrevistamos Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez), Christiano Câmara e Ary Bezerra Leite, que nos contaram causos e curiosidades, ajudando-nos a compor o imaginário dos extintos cinema de rua de Fortaleza. Como resultado, produzimos um vídeo2, com cerca de seis minutos, para levantar questões relativas à extinção desses cinemas e divulgar o cortejo nas redes sociais. Uma das questões levantadas durante esse processo foi sobre direitos de imagem, que nesse caso poderiam compor-se como instâncias de privatização do conhecimento histórico produzido sobre a cidade, notadamente no âmbito do coletivo. Não houve problemas, já que as imagens não seriam utilizadas para reprodução, mas para projeção. Para facilitar o compartilhamento do material encontrado ao longo do processo (imagens, cartazes dos filmes exibidos, vídeos, textos), abrimos uma conta em um site de armazenamento de arquivos, e a pesquisa foi escrita de modo simultâneo em um programa de edição de texto que funciona online. Denota-se o uso de ferramentas que propiciaram a construção ampla e coletiva por parte de todos os envolvidos. Para tanto, um possível circuito do cortejo foi traçado por meio de um aplicativo online que possibilita a pesquisa e visualização de mapas, imagens e trajetos de lugares. Constatamos, por meio dessa pesquisa online, que existiram mais de 30 cinemas de rua em Fortaleza3.

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Uma visita técnica foi realizada, simultaneamente ao período da pesquisa, com base em alguns fatores: consideração da relevância histórica e afetiva dos cinemas, a partir do ponto de vista da produção; a proximidade entre as salas, com o intuito de construir um percurso que também pudesse ser feito a pé; a análise das fachadas, visando boa aderência para a realização de mapping; a iluminação de cada local e; finalmente, se havia obstáculos, como postes, logo à frente dos edifícios. As observações foram compartilhadas: Estabeleci um trajeto para esta pesquisa imagética inicial saindo do CCBNB (Rua Floriano Peixoto) em direção ao mar, passando pelo Cine Jangada, descendo a Rua Major Facundo, passando pelo Cine São Luiz, Cinema Moderno e Cine Samburá. Indo novamente em direção ao mar pela Rua Barão do Rio Branco, passando pelo Cinema Majestic e pelo Cine Diogo; e pela Rua General Sampaio, pelos Cinema Rex e Cine Toaçu. Na Guilherme Rocha, procurei o Salão da Sociedade Cearense de Fotografia e Cinema. Me deparei com o problema técnico de não ter uma lente tão aberta assim para fotografar os prédios (...) Pensando o trajeto a pé, me parece viável pensar nestes cinemas: Jangada, São Luiz, Moderno, Samburá, Majestic e Diogo. Talvez o Samburá não entrasse nessa lista da viabilidade do trajeto, mas o muro branco dele parece ansiar por uma projeção (BRITO, 2013). A partir da visita técnica e das imagens recolhidas, compomos o trajeto4 do nosso cortejo com seis cinemas: Jangada, Samburá (depois transformado em Cine Fortaleza), Majestic, Moderno, Diogo e São Luiz (antigo Cine Polytheama). Constatamos, após essa fase, que a memória materializada desses locais não foi conservada. O Cine Jangada se transformou em loja de móveis; o Samburá se tornou um ponto de comércio de artigos escolares; o Majestic foi demolido para a construção de um prédio, que abriga no térreo uma loja de departamento e nos outros andares, escritórios comerciais; o Moderno é atualmente uma sapataria; no Diogo, está em funcionamento

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um shopping que leva o mesmo nome do antigo cinema; e o Cine São Luiz, o único que se mantém como cinema e está fechado há mais de três anos, aguardando a recuperação a ser feita pela atual proprietária do prédio, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. A partir de então, utilizamos a página do Cine Fantasma em uma rede 5 social para estabelecer relações com seus participantes. As publicações incluíam acontecimentos marcantes, como data de inauguração dos cinemas, curiosidades e convite aos usuários para participarem, compartilhando suas experiências e histórias. Essa memória foi levantada para a composição do mapa de imagens, servindo não só para orientar a montagem das projeções nas fachadas, mas também para produzir uma identificação entre os passantes nas ruas e todo o imaginário que existiu nesses espaços antes invisíveis. No dia do cortejo, convidamos os participantes a comparecerem de branco, remetendo aos fantasmas e à ideia de paz, em virtude de discussão que tivemos se seria necessário acompanhamento policial para percorrer o Centro à noite. Atentando para a proposta do projeto de ocupar os espaços da cidade, ativando o caráter de liberdade da intervenção, optamos por não ter a presença da polícia. O cortejo foi transmitido ao vivo via recurso Tweetcam. Havia uma repórterfantasma provocando perguntas e registrando o depoimento dos passantes através de um gravador. No carro, vinham os aparatos técnicos e seus operadores - um projetor alimentado por gerador e manipulado pelo projecionista, que ajustava o equipamento durante as passagens e em cada local de parada; e o VJ, que criava as visualidades da intervenção através do software Modul8, interagindo com os acontecimentos do trajeto e reativando as memórias do cinema escolhido. Cada cinema de rua parecia voltar a funcionar, por meio das cenas e cartazes de filmes que ali já haviam sido apresentados e das projeções de fotografias, que aparentavam liberar espectros de pessoas que antes habitavam aqueles lugares.

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[Fig. 1] Coletivo Fantasma Fortaleza, Cine Fantasma Fortaleza, 2013. intervenção urbana. (Fonte: Fábio José)


[Fig. 2] Coletivo Fantasma Fortaleza, Cine Fantasma Fortaleza, 2013. intervenção urbana. (Fonte: Fábio José)


[Fig. 3] Coletivo Fantasma Fortaleza, Cine Fantasma Fortaleza, 2013. intervenção urbana. (Fonte: Annádia Leite Brito)


Pensar fazeres, levantar possibilidades A partir dessa experiência, emergem algumas discussões acerca das produções artísticas pensadas para intervenção e as relações que se estabelecem com a cidade e por quem nela habita. Nossa última parada durante o trajeto foi na Praça do Ferreira, que abriga o último cinema de rua de Fortaleza, o Cine São Luiz. O lugar estava repleto de cidadãos sem condições quaisquer de moradia. Algumas crianças e adultos assistiam a uma projeção pela primeira vez. A partir desse ponto, podemos perguntar: que espaços o fazer artístico ocupa e torna público? E como a cidade pode ser inserida ou participar dessas experimentações? Compuseram o cortejo pessoas de várias idades. A surpresa, para uns, era de ver a imponência e a beleza da arquitetura dos cinemas que já existiram em sua cidade, mas que não tiveram a oportunidade de vivenciar. Para outros, o encanto estava em resgatar a própria memória ao ver filmes assistidos e relembrar acontecimentos pessoais a partir da história de tais cinemas. Nesse sentido, ressaltamos a potência que uma intervenção urbana pode trazer para os espaços, pois mobiliza as invisibilidades contidas neles. A ação, efêmera, ganhou relevância por meio da articulação de pessoas de diversas áreas e, consequentemente, diversos modos de operar. Apesar de o projeto ter uma premissa já constituída, consideramos que cada participante contribuiu de modo autônomo para a realização e interferiu no processo de criação do Cine Fantasma, uma obra em movimento. Estavam reunidos artistas visuais, pesquisadores, jornalista, atrizes, estudantes de Cinema e Audiovisual, trazendo à tona diferenças, que se cruzaram em suas especificidades para o projeto acontecer na cidade. A proposta, vinda do Rio de Janeiro para interagir com Fortaleza, tanto no sentido de agir em uma coletividade quanto de sua intervenção propriamente dita, abriu espaço para discutir os lugares que ocupamos e como o fazemos. Ressaltou, pois, quanta potência há nas práticas artísticas e de que maneira provocam o emergir de invisibilidades que atravessam nosso imaginário, nossas relações com o lugar onde moramos e/ou o direcionamento de nossa atenção. As sensações e as possibilidades que surgem após intervenções como essas do Cine Fantasma são, dessa maneira, imprevisíveis. E há ainda o sentido de continuidade, pois fica em aberto o convite para quem desejar dar prosseguimento à intervenção e ao resgate das memórias dos outros cinemas de rua. No site destinado ao projeto, coloca-se

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o seguinte convite: “Todo e qualquer um pode reunir uma equipe fantasma, montar um projetor em um carro - ou bicicleta! - e sair pelas ruas assombrando os arredores dos cinemas extintos” (CINE..., 2013). A partir dessa discussão, referimo-nos a Fabiana Dultra Britto e a Paola Berenstein Jacques (2009), que se reportam à relação da cidade como corpo cartografado e à arte como lugar dessa experiência na promoção das percepções espaço-temporais. As autoras discutem as mudanças que acontecem nas cidades e a desvalorização da experiência urbana por seus habitantes, no sentido de vivência civil, criativa e afetiva. A partir de Jaques Rancière, as pesquisadoras propõem a relação entre arte e urbanismo, na produção de problemas e questionamentos de conformidades estabelecidas e, principalmente, como criadora de tensões no espaço público. Dessa maneira, abrimos espaço para tensionar a intervenção do Cine Fantasma em Fortaleza, e o significado de projetos realizados de modo colaborativo. Estamos nos referindo à formação de coletivos efêmeros, pois a efemeridade vem para dar sentido à disponibilidade de juntos realizarmos um objetivo comum. Assim, entendemos esse operar como uma micropolítica, como nos diz Suely Rolnik (2006), “forças que agitam a realidade, dissolvendo suas formas e engendrando outras”. Ou seja, traçamos desvios do individualismo como modo de fazer para abrir espaço para as singularidades em colaboração. Nesse momento afirmamos a potência que as intervenções urbanas e os modos de acontecimento colaborativo trazem, cruzando o corpo da cidade com o corpo de seus habitantes, na mobilização de diferentes fazeres que se enlaçam. Colocamos em questão as forças invisíveis que atravessam esses momentos: entre a proponente do projeto, o coletivo que se formou na cidade, as pessoas que foram encontradas para contribuir com suas memórias e materiais, as relações que fizemos e os desejos que ficam a partir desse imaginário que surge. Pensamos, então, nos modos de colaboração na arte como desvios ao posicionamento da figura do criador e da obra no seu caráter de objeto final, pois há operação de cruzamentos - que deslocam hierarquias e põem a obra em movimento - com as interferências no seu processo itinerante.

Notas 1 Apesar da divisão, alguns envolvidos no processo atravessaram com contribuições por mais de uma área, por isso optamos não explicitar nomes para cada função. Participaram do

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coletivo: Annádia Brito, Ana Cristina Mendes, Andrei Bessa, Clara Bastos, Chico Alencar, Emilly Gama, Hylnara Anny, Síria Mapurunga, Siba, Tarcísio Rocha Filho, Velentino Kmentt, Walmeri Ribeiro e Wilma Farias. 2 O vídeo se encontra no link http://vimeo.com/63261062. 3 Para visualização do mapa: https://maps.google.com/maps/ms?msid=2146377201491 61869323.0004d7955ac9aa658f8f1&msa=0. 4 Para visualização do trajeto: https://maps.google.com/maps/ms?msa=0&msid=214637 720149161869323.0004d9160271156b847cb. 5 O link para a página é https://www.facebook.com/cinefantasma?fref=ts.

Referências ABREU, Luis Alberto de. Processo Colaborativo: Relato e Reflexões sobre uma Experiência de Criação. Cadernos da ELT, Santo André, n. 2, jun. 2004. Disponível em: http://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia/uploadAddress/processo_colaborativo_ relato_e_reflexoes_%5B24544%5D.pdf>. Acesso em: 24/4/2013. BARRETO, Paola. Equipe de pesquisa e redes sociais [mensagem pessoal enviada para lista do coletivo]. Mensagem recebida por <annadialeite@gmail.com> em 10/3/2013a. BARRETO, Paola. Fotos do livro Fortaleza - a era do cinema, de Ary Bezerra Leite [mensagem pessoal enviada para lista do coletivo]. Mensagem recebida por <wilmafg@gmail.com> em 21/3/2013b. BRITO, Annádia Leite. Outras fotos [mensagem pessoal enviada para lista do coletivo]. Mensagem recebida por <siriabonfim@hotmail.com> em 20/3/2013. BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Corpocidade: arte enquanto micro-resistência urbana. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v.21, n.2, p. 337-350, Maio/Ago. 2009. Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/ index.php/Fractal/article/view/273>. Acesso em 10/5/2013. CINE FANTASMA. Quem somos. Disponível em: <http://www.cinefantasma. net/p/blog-page.html>. Acesso em 8/5/2013. MORIN, Edgar. O desafio da complexidade. In.: Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 175-194.

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PAIM, Claudia. Coletivos e iniciativas coletivas: modos de fazer na América Latina contemporânea. Tese (Pós-Graduação em Artes Visuais). 2009. 294f. Orientação: Profª. Drª.Blanca Brites. Instituto de Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. RIBEIRO, Walmeri. Poéticas do ator no audiovisual – O ator co-criador na produção brasileira contemporânea. Tese (Pós Graduação em Comunicação e semiótica). 2010. 139f. Orientação: Profº. Dr. Arlindo Machado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. 2006. Disponível em: http://www. pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf. Acesso em 8/5/2013. SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: Construção da obra de arte. Vinhedo: Ed. Horizonte, 2006. 2ª Edição.

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PROJETO VILA FLORES: PRÁTICAS ARTÍSTICAS COLABORATIVAS PELA REVITALIZAÇÃO DE PROCESSOS CRIATIVOS NO MEIO URBANO Antonia Wallig Lucas Sielski

Da estrutura a sua reocupação O Vila Flores é um conjunto arquitetônico construído na região central da cidade de Porto Alegre, na década de 20 no que hoje é chamado o bairro Floresta, inserido no do 4º distrito da cidade. O projeto foi feito pelo engenheiro-arquiteto José Franz Seraph Lutzenberger, que teve outras importantes contribuições para a arquitetura da cidade. Mais tarde o nome da família ficou muito conhecido pelo pioneiro ativismo ambiental de seu filho José Lutzenberger. As edificações foram originalmente projetadas para serem “casas de aluguel” para pessoas e famílias que vinham habitar o Bairro Floresta, em franca expansão industrial na época de sua construção, depois passaram por

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[Fig. 1] Aquarela feita pelo arquiteto Joseph Lutezenberger, projeto original do Vila Flores. (Fonte:http://urbsnova.wordpress.com/2013/01/10/projeto-de-revitalizacao-de-predio-do-arquitetolutzemberguer-na-floresta/)


uma longa fase de abandono pelos proprietários gerando grande degradação estrutural. O conjunto conta com dois pequenos edifícios alocados em uma esquina proporcionando assim a abertura de um pátio central com um galpão. Atualmente a construção esta inventariada com vista à preservação e listada como de interesse cultural para o município. A nova geração de proprietários está promovendo a reabilitação do conjunto e prevê junto a comunidade do local, artistas e coletivos da cidade a readequação do seu uso como um espaço cultural e núcleo de práticas colaborativas relacionadas à economia criativa, no intuito de contribuir para a revitalização cultural do 4º Distrito. O chamado 4º Distrito de Porto Alegre fica vizinho ao centro da cidade. Tratase de um bairro que, até em meados do séc. XIX não passava de uma área de chácaras, no ano de 1909, com a inauguração da linha dos bondes de tração elétrica, o bairro passou a ter um desenvolvimento constante. Posteriormente com a saída das indústrias do perímetro urbano os espaços ficaram em sua maioria abandonados e o bairro sofreu lentamente um processo de degradação tornando-se conhecido como uma zona violenta e o principal centro de prostituição da cidade. Há menos de uma década um novo olhar tem se lançado sobre a região, novos empreendimentos de cunho privado foram alojados no bairro e com isto o incentivo publico tornou-se também uma crescente. Ainda assim as iniciativas não são suficientes para a real transformação do bairro e a comunidade sofre com falta de segurança e de investimento em estrutura básica de lazer, coleta de lixo e manutenção dos espaços públicos e construções históricas do local. Dentro desta realidade artistas, arquitetos e coletivos de diversas áreas criativas tem voltado seu interesse para a região. A comunidade de moradores, sensibilizada, vem criando alternativas de convívio e espaços de discussão sobre as possibilidades de melhoria da vida no meio urbano. Foi criado recentemente o Refloresta que é a Associação de Moradores do Bairro Floresta e neste contexto diversas atividades já foram propostas; como a criação de um brechó comunitário que acontece todos os sábados e a feira que acontece as terças-feiras. Assim a apropriação dos espaços de convívio foi de alguma forma se ampliando ou pelo menos sendo reivindicada, e neste conjunto de ações o Projeto Vila Flores tornou-se mais uma possibilidade de alavancar praticas artísticas colaborativas em diálogo com a cidade, o bairro e a comunidade. Um forte núcleo de artistas de diversas áreas, designers, músicos, arquitetos, jornalistas, engenheiros, ambientalistas, professores, historiadores e moradores do bairro em suas diferentes atribuições profissionais tem juntado forças em prol da revitalização deste espaço e de sua transformação em um núcleo cultural que possibilite a produção colaborativa de

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[Fig. 2] Sr. Julio e Sra. Gema, antigos moradores do edifĂ­cio revisitando o lugar. (Foto: Antonia Wallig)


bens tangíveis e intangíveis, de produtos e saberes a serem compartilhados. O que era primordialmente uma estrutura física com seu histórico patrimônio material e arquitetônico passou a ser recheado de histórias e desejos. Estes desejos foram encontrando convergência em um tempo e espaço possível, demandando relatos, registros, encontros, solidariedade nas ideias, colaboração nas práticas e muito trabalho para se materializarem em simultaneidade. Muitos moradores voltaram a visitar o edifício e deixaram registradas suas narrativas. Pessoas que antigamente tinham seus estabelecimentos comerciais ali alocados ou que utilizavam dos serviços também foram se aproximando com seus relatos. Muitas pessoas surgiram, manifestando uma vontade comum de voltar a experienciar a vida neste lugar. Um extenso trabalho foi desempenhado pela equipe de arquitetos da Goma oficina para que a estrutura já tão descuidada pudesse sediar novamente encontros. Mapeamento das estruturas, retirada de muitas caçambas de entulho e reforma estrutural do telhado, que deixava passar a chuva, deteriorando ainda mais a construção. Descobriu-se que muitos trabalhos acadêmicos já haviam sido propostos com base nestas edificações. O contato com os professores do curso de arquitetura da Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul foi de grande serventia para compreender a realidade atual do conjunto e a sua importância para a cidade. Tendo mapeada a estrutura e história dos edifícios e também a realidade sócio econômica e histórico cultural da região, foi desenvolvido um projeto de reabilitação, prevendo uma ocupação de uso misto e contemporâneo: o galpão torna-se um centro cultural com diversas possibilidades de uso, como anfiteatro, espaço para exposições, eventos, palestras e cursos; o pátio interno se configura como um passeio publico ou praça, um espaço de convívio aberto; um dos prédios será internamente remodelado para abrigar estúdios, ateliês, oficinas e salas de aula; o outro prédio será readequado para residências artísticas transitórias. A fachada se mantém integralmente preservada e apenas serão anexadas à estrutura original outras estruturas “simbióticas”, que preveem a passagem do sistema hidráulico, elétrico e de águas sujas. O projeto também inclui o uso de placas solares para energia e o reaproveitamento de água da chuva e de águas cinzas. O primeiro encontro na Vila Flores aconteceu em dezembro de 2012. Dois grupos de pesquisa que tem trazido ao cotidiano a prática colaborativa como possibilidade de troca de saberes e descontinuidades no cotidiano estavam presentes: Arte e Vida nos limites da representação, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) que reúne artistas e colaboradores do coletivo Geodésica Cultural Itinerante, e o Transitar,

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[Fig. 3] Maquete do Vila Flores, com adaptações previstas. (Foto: João Wallig)


da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). De São Paulo participou a Goma Oficina responsável pelo Projeto Arquitetônico que também realiza intervenções urbanas na cidade por meio de projeções e video maping e de Porto Alegre o Projeto Vizinhança, que propõe a ocupação temporária de espaços ociosos através de projetos artísticoculturais como forma de oportunizar novas experiências, estimular encontros e trocas entre vizinhos. Os grupos vindos de fora da cidade pudéram escolheram um dos apartamentos para ocupar e o caráter do encontro se deu como uma residencia artistica. Três dias de convivência preparando um evento que se realizaria no ultimo dia. Discutindo as possibilidade para aquele espaço, trocando saberes, fazeres e prazeres na prática coletiva. Através da divulgação do evento pelas redes sociais e convites pessoais muitas pessoas foram se juntando ao encontro: moradores e artistas do bairro, vizinhos como o sapateiro, o estofador, amigos da associação Refloresta, curiosos, músicos, outros coletivos, grupos de teatro, fotógrafos, grafiteiros, outros arquitétos, enfim, pessoas interessadas neste encontro do passado com o presente e nas diversas possibilidades que seriam geradas a partir dali. No dia 11 de dezembro as portas da Vila Flores foram abertas para todos que quisessem conhecer. Foram propostas além de visitas guiadas, oficinas de construção de horta vertical, produção de horta em recipientes diversos, plantio de flores em lugares inusitados, um passeio vendado pelo espaço para desenvolver a percepção das sensações, confecção de pizzas, tocata visual aberta, projeção de vídeos e oficina de grafite. Além disso, a maquete do projeto ficou exposta durante todo o tempo no intuito de que o projeto Vila Flores fosse compartilhado, visualizado e rediscutido.

Processos Artísticos Colaborativos O que podemos perceber é que neste campo alargado das colaborações na arte contemporânea o artista já não mais atua em isoladamente no campo da arte, mas contribui e recebe contribuições das mais diversas áreas do conhecimento para realizar o que chamamos de processo colaborativo. As linguagens estão em constante interação e não há maior ou menor grau de importância entre elas. Neste caso a fusão da vivência com a experiência do dia a dia vai ditar as regras de responsabilidades coletivas e os espaços físicos junto com as relações interpessoais começam a ser vistos com outro olhar, um olhar de coletividade.

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Na perspectiva de Luis Sérgio de Oliveira, participação é uma palavra chave em arte contemporânea, a qual se juntam outras tantas como: colaboração, interação, intervenção, parceria e acima de tudo diálogo. Segundo Oliveira a produção de arte contemporânea que temos chamado de geovanguarda interessa-se justamente por este diálogo com o “outro”, aquele que tradicionalmente tem estado alijado dos processos de arte por mecanismos de elitização que transformaram a arte em assunto para poucos (OLIVEIRA.p.40,41). Este retorno a um diálogo explícito com a sociedade complementa o autor, identifica-se com práticas que ao se instaurarem fora do abrigo e das regras explicitas das instituições de arte, articulam-se diretamente com os contextos locais e suas comunidades em um processo que anula noções de pureza e autonomia da arte. Oliveira pauta-se em GROYS (2008, p. 19) para afirmar que as chamadas geovanguardas, ou nova arte publica cravada em seus respectivos contextos, tem estado em evidência nas produções de arte publica mais ambiciosas desde 1980, tornando-se uma das principais características da arte contemporânea. (OLIVEIRA, 2010, p.40) Neste aspecto ao falar de arte publica estaríamos nos referindo a esta linha que nos remete a história da arte critica, mais relacionada a arte politizada dos anos 60 e 70 e que tem suas origens situadas no ativismo dos anos 60 e na arte conceitual, assim como no importante papel da performance e das práticas feministas dos anos 70, caracterizadas nos anos 80 e 90 como esfera publica de oposição. Paloma Blanco em Explorando o terreno, texto introdutório do livro Modos de Hacer (2001) situa esta arte em uma linha genealógica que chama de mais quente, ou cálida, dentro da arte publica de novo gênero. Falando com base na abordagem de Suzanne Lacy a autora nos mostra práticas a partir de uma concepção de artista como experimentador, informador, analista e ativista, sinalizando que estas não são posições fixas de um esquema, senão uma investigação das estratégias estéticas possíveis para o artista contemporâneo. Sobre o artista experimentador Blanco aborda a subjetividade e a empatia e coloca que segundo Lacy: Numa arte tradicional a experiência subjetiva do artista está representada num objeto visual, tal subjetividade se considera algo fundamental para a arte (...). A arte conceitual e a performance ajudaram a isolar este processo da arte, substituindo de fato o objeto pelo processo. Lacy sugere começar a investigar a capacidade de mediação e interação que os artistas visuais tem para contribuir com

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a agenda publica, valorizando estas capacidades como uma maneira de relacionar-se com públicos mais amplos. Nas obras que se colocam dentro do domínio da experiência, em um sentido ampliado, o artista penetra no território do outro e apresenta a suas observações sobre as pessoas e os lugares através de denuncias que procedem de sua própria interioridade(...) Deste modo, se converte em um meio para a experiência de outros e a obra em uma metáfora desta relação. (BLANCO,2001, p.33-tradução nossa) Blanco aborda, ainda de acordo com Lacy, a subjetividade como algo que se tende a classificar como apolítico, mas esclarece que o pensamento feminista da década de 70 demonstrou que a experiência individual tem profundas implicações sociais. A experiência tem sido ao longo do tempo manipulada a serviço da publicidade e da política, a experiência privada perdeu, portanto sua autenticidade no âmbito publico e Lacy sugere que talvez a arte possa nos ajudar a devolvê-la, pois o artista no movimento de empatia por um grupo social pode oferecer-se como um meio de expressão. Na mesma perspectiva da nova arte publica, Blanco caracteriza o artista informador, que não se centra simplesmente na experiência, mas sim na sua reelaboração, o que envolve relatar a situação e reunir toda a informação possível com fim de fazê-la acessível a outros. As práticas deste artista dependem de sua intenção, sendo assim, informar implica que se faça uma seleção consciente da informação, ainda que não necessariamente uma análise da situação. Esta análise caberia ao artista analista e a autora afirma que da informação à sua analise há somente um passo de distância, porém uma grande mudança no papel do artista. Nos modos de trabalho do artista experimentador e informador, abordados acima, notamos a ênfase nas capacidades intuitivas, receptivas, experimentadoras e observadoras do artista já “aqueles que começam a analisar situações sociais através de sua prática artística assumem uma série de habilidades que normalmente estão mais associadas ao trabalho das Ciências Sociais, do jornalismo investigativo ou da filosofia. Tais práticas, sempre de acordo com Lacy, situam a estes artistas em colaboração com atividades intelectuais muito diversas e “desviam a nossa apreciação estética para a valorização da forma ou do significado de suas construções teóricas” (BLANCO,2001, p.34 -tradução nossa). Neste sentido o artista que adota a análise como meio de trabalho coloca mais ênfase sobre o texto verbal na obra e desafia

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as convenções de beleza. A sua analise assume um caráter estético a partir da coerência de suas ideias ou de sua relação com as imagens visuais, ao invés de caracterizar a sua expressão através das imagens como tais. Já o artista como ativista, ainda na concepção de Lacy, mostra um posicionamento no qual as práticas artísticas se inserem em contextos locais, nacionais ou globais e o publico se converte em participante ativo. Deste modo os artistas se posicionam como cidadãos ativistas, em oposição as práticas estéticas do artista individualista e isolado. Este artista ativista necessita desenvolver práticas não normalmente associadas à prática artística e atuar em colaboração com as pessoas a partir de uma compreensão dos sistemas e instituições locais. Deve aprender táticas completamente novas: como colaborar, como desenvolver públicos específicos e de múltiplos estratos, como cruzar para outras disciplinas, como eleger locais que ressoem com um significado publico e como clarear o simbolismo visual e o processo de pessoas não educadas em arte.” (BLANCO, 2001, p.35 e 36 - tradução nossa). Como vemos, os caminhos de uma possível arte publica de novo gênero baseia-se muito na experiência e propõe efetivamente tanto práticas de participação, de integração, parceria e inclusão como de experimentação, informação, análise e ativismo. O desafio quando a arte se insere em determinada comunidade é justamente pensar a unidade na sua relação com a diversidade de experiências e a diversidade dentro de uma possível unidade, no sentido de procurar o que pode ser fator de união nas diferenças entre cada membro do processo e o que pode gerar este sentido de pertencimento, mas não de homogeneização.

Sobre a experiência Pode-se afirmar que o os processos que vem sendo desenvolvidos desde o primeiro encontro na Vila Flores tem um caráter essencialmente baseado na experiência. A ideia central é que muitas experiências possam se juntar em deferentes linguagens e maneiras de articular saberes e que o processo se faça a partir e através destas. Alguns autores, no entanto vem analisando a dificuldade em ter experiências

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profundas nos tempos atuais e classificando-as como experiências superficiais. Esta dificuldade de envolvimento em experiências profundas já tem sido abordada por Walter Benjamim em textos como O narrador (1985) e Experiência e Pobreza (1985) em que o autor diferencia a experiência (Erfahrung) da vivência (Erlebnis), trazendo à consciência um processo que denuncia uma nova maneira nas formas de comunicação, o que irá representar o que vivemos hoje como o coroamento da informação como forma comunicativa e a vivência como forma de relação. Jorge Larossa Bondia parte da critica de Benjamin para nos dizer que tudo o que passa está organizado para que nada nos aconteça (...) nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.(2002, p.21). O autor nos convida a pensar sobre o saber da experiência separadamente ou em oposição ao saber das coisas, sendo este saber das coisas o que ele se refere com informação, mas também fala sobre a velocidade dos acontecimentos e a sua característica fragmentada.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar,parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspendera opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.( BONDIA, 2002,p 24). Bondia continua a falar sobre experiência do ponto de vista do sujeito da experiência. Quem é afinal este sujeito que tem uma experiência em tempos de escassez? O sujeito experiência é um ponto de chegada, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. O sujeito da experiência é aonde a experiência é acolhida, encontra um lugar, a onde passam os acontecimentos, onde se armam dispositivos. O sujeito da experiência é, portanto um sujeito ex-posto, como define Larossa, pois do

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ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição”(nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. (p.25). O conhecimento da experiência trata-se, portanto de um saber distinto do saber científico e do saber da informação, e de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho. O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana e a experiência é uma espécie de mediação entre ambos. José Luiz Kinceler (2012, p.1034) considera que nossa presente condição no mundo gera seu próprio paradigma estético que se caracteriza pelo entrelaçamento de vidas marcado por múltiplas formas de representação. Para Kinceler, provocar acontecimentos que produzam devires complexos na subjetividade individual e coletiva é de urgência vital. Para isto é importante reconhecermos que a arte procura incentivar formas de traduzir esta realidade a partir da experiência, agenciando processos criativos com a intenção de produzir sentido para um cotidiano que necessita ser reinventado ecosoficamente, como aponta Guatarri (1996). Partindo da experiência como mediadora entre arte e vida, podemos compreender melhor o que diz Kinceler quando nos fala sobre a atual condição da Arte na qual o artista costura relações articulando criativamente ciência, ética e ecologia, gerando com seu processo criativo verdadeiras descontinuidades que se instalam na realidade. O autor se refere ainda as palavras de Reinaldo Laddaga (2006) nas quais estes processos criativos formam verdadeiras “ecologias culturais” capazes de articular criativamente o sujeito frente a reinvenção de outras relações com o outro e com seu próprio contexto. Kinceler indica, com base em Miwon Kwon (2002) que o processo criativo da Arte se implementa quando o artista abandona seu espaço de conforto representacional, a especificidade de suas disciplinas, sua autonomia na criação de signos, seja por meio do monumento, de esculturas em lugares públicos, ou de intervenções em lugares-específicos e passa a invadir e a usar em suas propostas os próprios referentes de uma realidade que se faz a cada dia mais complexa (Kinceler, 2012. p.1035). Neste sentido podemos olhar para uma série de projetos desenvolvidos por artistas latino-americanos, norte-americanos e europeus nos últimos dez anos. As chamadas Comunidades Experimentais estão buscando estruturar a partir da colaboração

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entre grupos, novas formas de experienciar o mundo reativando novas regras para o jogo representacional da Arte, Ladagga cita propostas como, o “Projeto Venus”, “Park Fiction”, “What’s the time in Vyborg?” e do filme “A comuna - París 1871”, nas quais são geradas representações artísticas resultantes de experiências que buscam a transformação da e na realidade e nas quais outras formas experimentais de socialização estão acontecendo. Para melhor compreensão: Estes projetos são entendidos como “Comunidades experimentais”, pois atuam durante períodos prolongados em situações de interesse compartilhado, a partir dos quais são produzidos textos, filmes, vídeos, arquiteturas. Ou seja, diferentemente de uma estética apropriacionista, ou apenas crítica-reflexiva da representação, que caracterizou certa condição pós-moderna, na qual o artista é um semionauta da cultura reutilizando signos culturais e os dotando de novos sentidos, nestas comunidades experimentais a produção de imagens acontece em função dos interesses vivenciados. (KINCELER, 2012, p.136) Este olhar possibilita a troca de saberes, a simultaneidade afetiva e a criatividade compartilhada. Kinceler nos proporciona o entendimento de que o jogo representacional da arte contemporânea como acontecimento, existe a partir de articulações em arte comprometidas com experimentar outras formas de relação com o contexto, e na materialização de propostas colaborativas, espaços de convívio e de encontro pautados em uma forma relacional, bem como no uso direto dos referentes de outros campos representacionais, onde o artista costura relações em rede fazendo uso da ciência, da filosofia, se apropriando de seu contexto político social, dilatando o tempo da experiência artística e promovendo descontinuidades nas relações humanas dentro de determinada comunidade e nas suas relações com o seu contexto sociocultural. É neste aspecto que se constroem espaços dialógicos criativos.

Relato de uma experiência Geodésica Cultural Itinerante, eu e o Projeto Vila Flores. Por Lucas Sielski. Em Dezembro de 2012 foi realizado o primeiro encontro nos prédios que se

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chamou “Visita aos prédinhos do José Lutzenberger”. Uma das propostas do Coletivo Geodésica Cultural Itinerante durante o evento foi realizar uma Oficina de Construção de Horta Vertical a partir da reutilização de pneus. Esta foi construída compartilhando o saber com os interessados em um processo colaborativo. Este processo exige diferentes materiais para sua confecção que foram surgindo a partir da colaboração de pessoas do próprio contexto local. Descobrimos uma oficina mecânica em frente ao local, o dono sensibilizado com a causa nos levou à borracharia. As mudas e a terra foram disponibilizadas por amigos, os pregos e martelo pelo caseiro, Seu Amável. As madeiras encontradas no próprio local tinham ao acaso medidas propícias para tal. A dinâmica ocorreu de forma livre. Os interessados se aproximavam e se envolviam na proposta. Ao final do processo de confecção da Horta Vertical ocorreu espontaneamente a integração com uma Oficina de Grafite. Realizou-se uma pintura colaborativa onde cada pessoa se expressou livremente tendo como suporte a Horta. É interessante perceber os diversos envolvimentos em uma proposta como a Horta. Neste caso os participantes colaboraram em diferentes etapas do processo. Assim após sua instalação, o plantio e cuidado ficaram a cargo de Seu Amável. Me alegrou muito saber que em um segundo encontro realizado outras pessoas puderam comer uma “salada da horta”. Mostrando um primeiro fruto da proposta. Durante o primeiro encontro ocorreram também momentos de Tocata Visual Aberta, música intuitiva e de improvisação onde se interagiu com uma fachada dos prédios. Esta possuía certas aberturas em diferentes andares, formando pequenas varandas para um pátio interno. Transformaram-se em pequenos palcos onde cada membro participante posicionou-se com um instrumento musical na tentativa de produzir um momento sonoro. O espaço é muito rico. Suscita diversos desdobramentos e explorações por diferentes linguagens. Este primeiro encontro foi muito enriquecedor já que além das propostas planejadas, surgiram pequenos experimentos que poderão se desenvolver em futuros encontros: projeções, saídas fotográficas, atos performáticos e um roteiro para um pequeno curta-metragem experimental, já que lugar possui grande potencial cinematográfico. Ter participado do primeiro Encontro na Vila Flores foi uma experiência muito especial. O convívio gerado durante os dias de residência ampliou minha subjetividade. Conhecemos novas pessoas, novas propostas, saberes, trocas, individualidades. Foi

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possível dar início a um processo de conhecer também o entorno dos prédios. Certas propostas que realizamos nos levaram à vizinhança presente. Um prédio que passou por diferentes períodos, com muita história, fez e faz parte do imaginário de diversas pessoas. Colaborar em prol de um espaço que visa revitalizar culturalmente um bairro é uma satisfação. Mais um ponto criando-se dentro de uma rede que vêm se ampliando. Certo colega comentou durante o primeiro Encontro que “a semente foi plantada”, eu acredito que a planta “Vila Flores” está surgindo, se fortalecendo cada vez mais e começando a florescer. Assim vejo as colaborações como regadores que vêm de diversos sentidos e como mãos que estão plantando mais flores e uma gama maior de plantas para que floresça uma Vila Flores heterogênea, forte e ativa.

Desdobramentos. Projeto Simultaneidade. Deste primeiro encontro surgiram novas articulações. Foi criado o Simultaneidade, ocupação cultural que está sendo organizada para o segundo semestre de 2013 envolvendo em sua organização os grupos de pesquisa Arte e Vida nos limites da Representação, Transitar, Goma Oficina e o Projeto Vizinhança. Diversos artistas, coletivos e a comunidade estão representados nas áreas artes visuais, artes cênicas, música, áudio visual, projetos comunitários e projetos de sustentabilidade e realizarão oficinas, exposições e apresentações no intuito de promover espaços de convivência valorizar o conhecimento e a troca de saberes entre as pessoas, dando lugar à solidariedade afetiva e à coletividade, levando desta forma, maior força e visibilidade ao processo de revitalização do bairro, a humanização do espaço urbano e seu desenvolvimento artístico e cultural. Será lançada uma campanha de financiamento coletivo (crowd funding) via internet para que o evento possa ser viabilizado. Desde então novos encontros tem acontecido no Vila Flores para agenciar este evento e a construção de uma experiência coletiva em processos colaborativos em arte tem sido prática constante.

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[Fig. 4] Primeiro encontro no Vila Flores. (Foto: Antonia Wallig)


[Fig. 5] Logo Projeto Simultaneidade (Arte: Christie Medistch)


[Fig. 6] Encontro Projeto Simultaneidade (Foto: Ricardo Braescher)


Referências BLANCO, Paloma. Explorando el terreno. In: BLANCO, Paloma; CARRILO, Jesus; CLARAMONTE, Jordi; EXPOSITO, Marcelo. Modos de Hacer. Arte critico, esfera publica y ación directa. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2001. BONDIA, Jorge Larossa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002. Disponível em http://www.anped.org.br/ rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_jorge_larrosa_bondia.pdf. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1996 KINCELER, José Luiz. Relatos de um jogo: Panorâmica Monte Serrat: uma experiência em arte relacional em sua forma complexa. Anais da ANPAP, 2012. Disponível em http://www.anpap.org.br/anais/2012/pdf/simposio6/jose_luiz_kinceler. pdf. OLIVEIRA, Luiz Sérgio de. Arte, democracia, inclusão do artista, geovanguardas e outras conversas. In: LAMPERT, Jociele; e MACEDO, Silvana Barbosa (orgs.). Arte e política: inquietações, reflexões e debates contemporâneos (Simpósio de Integraçao das Artes Visuais: arte e política). Florianópolis: UDESC, 2010.

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AS TENSÕES DO EFÊMERO: QUANDO A APROPRIAÇÃO COLETIVA REVELA A NATUREZA DA ARTE PÚBLICA EM OBJETOS IDENTITÁRIOS EM COMUNIDADES POPULARES José Cirillo

Introdução Pensar Arte e cidade é inicialmente admitir-lhes uma natureza híbrida e interconectante. Elas se mesclam numa relação simbiôntica na qual um objeto sensível (obra ou cidade) somente pode ser percebido por um olhar sensível (do sujeito ou da coletividade) que se forma a partir do momento que se coloca frente a frente com outros objetos sensíveis do mundo sensível – o que necessariamente não significa que estes objetos sensíveis tenham uma alcunha de arte, parte –se aqui da ideia de que todo objeto significativamente apreendido pela percepção é um objeto sensível -. Assim, a

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obra, a cidade e o sujeito (edificado em sua coletividade significante) constituem uma tríade inseparável que torna perceptível o mundo (CIRILLO & MENDES, 2009). Podese pensar que as características de uma cidade definem-se pelo acúmulo dos resultados dos modos de vida de sua população. Esse modo de vida é moldado pelas relações culturais, políticas, econômicas e sociais, gradualmente estruturadas pela própria sociedade em correlação com outras estruturas sociais de influência constante ou apenas histórica em variáveis graus de importância na construção de sua identidade. Enquanto habitante de um local, muitas vezes se é levado a pensar na existência de um lugar melhor ao que se está. Materialmente falando, é possível fazer um ranking das melhores cidades para se viver baseando-se geralmente nas condições socioeconômicas. No entanto, existe uma força que se torna muito mais influente em cada local, devido a sua característica de autenticidade. Essa força é a identidade social pertencente a cada local, cidade ou região, oferecendo acima de tudo a visualização de sua realidade (a quem se dá o tempo de observar), tornando possível vislumbrar, de forma generalizada, o tipo de sentimento que se produz ali. Nesse caso, torna-se impossível observar sem vivenciar, pois local e identidade no contexto da cidade constroem-se mutuamente. Esse conceito é fundamental para a interação entre os objetos, os sujeitos e a cidade. Ao que parece, a construção da identidade social parte de um projeto poético coletivo que encontra na cultura, em seus traços e padrões, os elementos fomentadores do seu processo de constituição. Retrato da cultura, a cidade é uma obra composta por fragmentos, fragmentos sintonizados e em constante movimento, um mosaico de peças flutuantes interligadas pela malha da identidade social. Mosaico esse ao qual a obra se configurará como tessela. A cultura de uma cidade estabelece-se, então, a partir de um conjunto de tendências que evidenciam a intencionalidade do projeto de criação dessa identidade e de uma obra que é a cidade e suas evidências (fragmentos de imagens mentais organizadas em mosaico). A investigação dessas tendências e intencionalidades aproxima o estudo dos monumentos urbanos e da Arte Pública com os estudos do processo de criação, numa perspectiva dos estudos da semiótica de base pierceana, para qual os signos colocam-se em constante movimento, numa semiose que, no caso, permite perceber essas mediações sensíveis como evidências do projeto poético das cidades, como índices desse organismo urbano – lembra-se aqui que este organismo somente existe à medida que não perde de si sua natureza rizomática e interconectante. Segundo Lemos (1985, p.47),

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“ ... a cidade tem que ser encarada como um bem cultural de um povo [...] um artefato que pulsa, que vive, que permanentemente se transforma, se auto-devora e expande em novos tecidos recriados para atender a outras demandas sucessivas de programas em permanente renovação”. Assim, a arte no espaço da cidade, mais especificamente aquela tomada como equipamento urbano, deve ser pensada a partir desse tecido em sua completude e contrastes. Na continuidade desse pensamento, podem-se destacar alguns apontamentos de Lucrecia D’Alessio Ferrara, segundo os quais, “a transformação da cidade é a história do uso urbano como significado da cidade. Sua vitalidade nos ensina o que o usuário pensa, deseja, despreza, revela suas escolhas tendências e prazeres” (FERRARA, 1988, p.04). É a percepção dessa intencionalidade e atividade do “usuário” – aqui entre aspas por se entender que o sujeito coletivo da cidade exerce uma ação mais ampla que a utilitária – que significa a cidade, que lhe confere uma imagem mental forte capaz de demarcar-lhe uma identidade coletiva e assegurar um sentimento de pertencimento nos sujeitos coletivos que lhe habitam. Outro ponto teórico fundamental a ser considerado para a reflexão e análise que se seguem é o que Hall e Robertson (2001) apontam como reivindicações do projeto ou da natureza da arte pública: - Promover um senso de comunidade e de uma consciência de locais - Promover o desenvolvimento de redes sociais e combater a exclusão social - Promover sentidos de lugar e as conexões entre as comunidades e lugares - Desenvolver e promover a identidade cívica - Têm uma função educativa - Agir como uma provocação para a mudança social Daí concluir-se que são vários os motivos que podem sugerir a idealização e construção de uma intervenção urbana, de uma obra de Arte Pública, ou de um monumento ou em espaço coletivo numa relação de interação com esse usuário/fazedor da cidade contemporânea. Os interesses nesse sentido vão desde projetos poéticos de curadorias para intervenção em espaços urbanos – tão comuns nos últimos anos -, passando por interesses coorporativos, privados ou públicos de intervir num determinado espaço por motivos diversos – quase sempre norteados por algum tipo de interesse econômico -, entre eles um fato ou personalidade valorizada por uma comunidade, temas lendários ou

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históricos, ou interesse do poder público para a busca de valorização e/ou popularização de um fato ou personalidade por meio desse tipo representação (a obra de arte). Tomados para este fim como monumentos, essas obras tendem a demonstrar traços culturais, como aqueles que ilustram costumes de certas regiões, ou simplesmente podem ser incentivados por leis municipais; nesse caso, propondo via o poder público maior integração do público com a arte, entre outros motivos – na maioria dos casa sempre alienados do interesse da população que ocupa as cercanias desse site, e frequentemente exigindo uma noção de pertença que não encontra no todo coletivo do espaço, uma identificação que realmente a torne significativa e imaginativamente forte -. Daí concluir-se que a maioria dos monumentos nas cidades contemporâneas atende mais a interesses políticos e econômicos que a valores antropológicos ou culturais. Raramente uma obra pública para um espaço público efetivamente se constrói a partir de um diálogo com a comunidade dos arredores de sua futura localização. Muitas das vezes essa comunidade sequer sabe do que se trata; apenas recebem mais este equipamento urbano na expectativa de que junto com ele venha uma esperada urbanização do terreno baldio vizinho. O objeto externo instaurado, normalmente não gera uma relação mais afetiva com esses sujeitos e passa a ser mais um algo esvaziado de sentido naquele contexto.

Do conceito de monumento Popularmente, a palavra monumento pode remeter a várias interpretações que vão desde a noção de uma grande obra arquitetônica, notável por suas dimensões, natureza ou antiguidade, ou até mesmo a uma escultura fixada em local de acesso público. No entanto, essa compreensão evoluiu teórica e esteticamente quando se reflete sobre sua origem e especificidade. Do latim, monumentum, deriva do verbo monere ou monio, o qual possui uma conotação mística que significa revelar, predizer, sinalizar ou advertir; monio indicava a existência de um perigo, um mal, e monere era o mal propriamente dito. Ou seja, o primeiro indicava a existência de um perigo qualquer e o segundo revelava qual o perigo ou mal indicado. A forma física, ou visível desse mal se traduz em monstrum. Daí o surgimento do termo Monumentum que originalmente seria um sinal, um monstrum em seu sentido visível, concreto e que foi visualmente eternizado, cuja contemplação evoca, revela, sinaliza, adverte (monere) que existiu ou aconteceu algo

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ou alguém. Para Françoise Choay, em “A Alegoria do Patrimônio”, o termo monumento: “Chamar-será monumento, tudo o que for edificado por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças” (CHOAY, 2001 p.18). Para a autora, atualmente, são classificados como monumentos obras construídas com finalidade memorial desde seu projeto de concepção, às quais Choay denomina “monumento original”, e também obras concebidas para outros propósitos, porém que possuem em sua natureza, potencialidade evocativa de um tempo ou de um fato que foi capaz de inspirar relevância em cada geração. Assim, pode-se dizer que um monumento se constitui de características próprias que o diferem das demais construções por seu projeto poético que tem tendência de rememoração e, como observa Choay, também por sua capacidade de apelo à afetividade, além de simplesmente transmitir uma informação. A especificidade do monumento devese precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar (CHOAY, 2001; p.18). Estas possíveis condições podem conduzir à reflexão sobre a comum divisão do termo em duas vertentes: monumentos históricos e artísticos. Riegl (1987), considera verdadeiramente monumento, as obras que possuem desde sua concepção uma função memorizadora, no sentido de eternizar certa memória coletiva, certos atos ou acontecimentos, os quais chama de monumentos intencionais, por seu valor de rememoração intencional – por si só esse tipo garante o pertencimento da obra ao espaço urbano em que se coloca, por se tratar diretamente da memória e da identidade da cidade (mas ainda não está em análise esse problema). Por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do termo, entende-se uma obra criada pela mão o homem e edificada com o objetivo preciso de conservar sempre presente e viva na consciência das gerações futuras a lembrança de um ato ou de um destino” (RIEGL, 1987; p. 36). Riegl destaca, entretanto, obras concebidas originalmente sem esse propósito, mas que a sociedade atribui valores supostamente dignos de preservação, os quais denominam de monumentos não intencionais. Essas obras, Riegl não as enquadram

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em seu conceito de monumento, mas considera sua elevação a tal denominação. “(...) o caráter e o significado de monumento não correspondem a essas obras em virtude do seu destino de origem, mas somos nós, sujeitos modernos, quem os atribuímos” (idem, idem). Ao longo do tempo, a esses conceitos de monumento se ampliaram pra dar conta da ampliação do próprio campo das artes na contemporaneidade, mas de modo geral, os monumentos contemporâneos, ou as intervenções urbanas, amplamente retomadas e redefinidas como Arte Pública – principalmente a partir dos anos de 1980 (Moody, 1990). Finalizando esta primeira parte do raciocínio neste texto, precisamos destacar aqui um acréscimo que Hall faz posteriormente aos desdobramentos e anseios da natureza da arte pública (2001, p. 176): esteticamente a arte pública tende a melhorar o ambiente (espaço), agindo como um meio para a comunicação de significados simbólicos e atuando como um veículo para a atividade participativa e cooperativa. Aproximamo-nos, então, do objeto tema deste artigo: as torres iluminadas no Morro Jesus de Nazareth, em Vitória (ES).

O morro de Jesus de Nazaré e as suas torres Localizado na parte central da Ilha de Vitória, voltado para a baia que conduz os navios ao porto da cidade, o Morro de Jesus de Nazareth surgiu como um comunidade de pescadores ainda no período colonial. Desenvolveu-se pouco urbanamente até os anos de 1950, quando do boom econômico do Espírito Santo e de efetivação do processo de aterros e modificações na parte centro norte da ilha, visando seu desenvolvimento social e econômico. Essas transformações afetaram as comunidades tradicionais do entorno, sendo que Jesus de Nazareth se tornou um foco de resistência social ao processo de especulação imobiliária dos anos de 1970. Porém, a comunidade pagou um preço alto por isto, tendo sido esquecida pelo poder público e se transformado ao longo da década de 1980 uma área socialmente em risco, com alto índice de violência e tráfico – realidade que será questionada apenas em meados da década de 1990 quando olhares antropológicos voltam-se par a comunidade destacando sua principalmente sua riqueza gastronômica. Porém, sua recolocação como área urbana de interesse coletivo esteve ao longo das ultimas décadas limitado ao sitiamento de violência na comunidade. Ao longo dos anos de 2000, a comunidade viveu o conflito nas mídias e na

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[Fig. 1] Torres Iluminadas. Morro de Jesus de Nazareth. (Fonte: Banco de Dados do LEENA, 2012)


[Fig. 2] Morro de Jesus de Nazareth. (Fonte: imagem do Google Earth. DisponĂ­vel no Banco de Dados do LEENA, 2012)


imprensa como sendo um dos melhores locais para degustação da gastronomia tradicional capixaba, em contraste com o alto índice de criminalidade que resultava em tiroteios que afastaram os turistas da boa comida da pare baixa do bairro. Porém, no final do ano de 2009 um ato ocasional voltou a dar visibilidade À comunidade, a qual viu nessa ação uma possibilidade de autoconstrução identitária: a iluminação ornamental das duas torres de transmissão de energia que, instaladas no alto do morro, levam a energia elétrica do continente para a ilha. Assim como outros locais da cidade, suas torres foram iluminadas pela Cia Elétrica do Estado para o natal de 2009, o que deveria ser um evento esporádico. Entretanto, essa intervenção permaneceu forte na imagem da Ilha, destacando um ponto de luz no alto da noite da capital. Assim, a Prefeitura Municipal aparentemente entendeu e assumiu a manutenção da iluminação. Mas, pode-se perguntar a esta altura: se as torres foram iluminadas temporariamente por um órgão público que também decidiu que elas permaneceriam, o que as diferencia de um objeto ordinário ou de uma intervenção na cidade que se desconecta dos interesses da população circundante? É exatamente como a população vai se apropriar desta intervenção temporária e ilustrativa dos órgãos públicos que as resignifica, buscando construir uma imagem mental forte da localidade na cidade e, automaticamente, reforçando o morro de Jesus de Nazareth como território estético e ético. Essas torres, que ainda cumprem a sua função de transmissão de energia, estão se consolidando como um grande monumento urbano não intencional. Mas, obviamente, antes de qualquer significação coletiva, elas têm uma função econômica e social: conduzir energia entre continente para a ilha. São elas que elevam os cabos para que eles possam cruzar a Bahia de Vitória. Porém, outra função, desta vez simbólica lhes está sendo atribuída, o que nos leva de volta a alguns dos apontamentos de Hall e Robertson, pois elas estão sendo apropriadas pela comunidade para promover um senso de comunidade e de uma consciência de locais, possibilitando um re-olhar da própria comunidade para si mesma e mais que isto, da cidade para o local, o que podemos considerar, promove o desenvolvimento de redes sociais e combate à exclusão urbana que o local e seus moradores foram relegados no final do século XX. Nos parece fato que essa apropriação como monumento tem promovido a noção de legitimidade e legibilidade da comunidade, proprietárias de um patrimônio simbólico urbano que estabelece conexões entre a comunidades e a cidade. De ornamento, essas torres assumiram um lugar de monumento. Daí a reflexão

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[Fig. 3] Morro de Jesus de Nazareth. Vista da Avenida Beira Mar. (Fonte: Banco de Dados do LEENA, 2012)


que se coloca no sentido de ponderar sobre este movimento de apropriação coletiva de um ato intencionalmente ornamental – como toda iluminação natalina pelas ruas. As torres de eletrificação se tornaram monumentos não-intencionais, para usar uma definição de Riegl. Assim como a Torre Eiffel, construída para uma exposição no final do século XIX para exibir as possibilidades da engenharia pós-revolução industrial, as torres iluminada do Nazareth estão se consolidado como marca identitária, como evidencia de uma apropriação coletiva do sistema e da produção das artes que ultrapassa os limites do próprio morro. Não nascidas para serem monumento, elas estão se configurando como tal por ação colaborativa da comunidade que lhe agrega valores estéticos e afetivos que lhes aproxima das reflexões de Riegl sobre o que ele define como monumentos nãointencionais – aqueles que não nascem para ser monumentos mas que se tornam. Hoje, mas que os moradores da comunidade, a própria sociedade capixaba parece estar tomando para si essa imagem como monumento. Nas redes sociais é comum a presença de fotos dessas torres como lembranças significativas da cidade de Vitória. No próprio Google Earth o tratamento dado às torres as redesenha como um elemento humano que se interpõem na paisagem natural da ilha. Desenhos que as constroem como esqueletos de uma forte estrutura que promove um forte enlace entre a comunidade e sua identidade, entre a cidade e suas imagens, entre a obra e os sujeitos. Neste cenário contemporâneo da cidade e da arte, o papel e o lugar do artista são deslocados, deixando de ser assenhoreado como o criador único da obra de arte, ou mesmo – como no caso de Jesus de Nazareth – como o único agente da produção da obra. Talvez apontemos aqui para uma obra que se produza em outro plano de autoria que não esteja pautado na expressão da subjetividade autógrafa do artista, mas no sentimento de pertencimento, na construção do que Linch chama de imagem mental forte e de sua natureza coletiva e social. As torres de Jesus de Nazareth não são somente um objeto estético, elas promovem, para alem dos que a tomaram (a comunidade local), uma rede de conexões e promoção da identidade cultural, passando a definirem-se como aquele conjunto de representações simbólicas que mediam o processo de identificação e realização dos desejos difusos que permeiam nossos cotidianos saberes atraídos para uma investigação transversal da natureza da arte. Entre a arte e sua capacidade de revelar novas antigas relações de construção do mundo. Como imagem, as Torres são um sonho dourado, uma utopia de coletividade

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[Fig. 4] Morro de Jesus de Nazareth. Vista tomada da Baia de Vit贸ria. (Fonte: http://www.panoramio.com/photo/66836126. Banco de Dados do LEENA, 2012)


[Fig. 5] Morro de Jesus de Nazareth. Vista tomada de zoom no Google Earth. (Fonte: Banco de Dados do LEENA, 2012)


edificante. Uma tênue bruma que talvez nos aproxime, ou reaproxime da percepção da arte pública como um forte catalisador e veículo de provocação da mudança social. O que de fato se altera na alteração do conceito de propriedade instaurada pelo modo liberalista que assola a humanidade? Se a autoria como propriedade virou uma amarra, a ação colaborativa e autônoma em relação ao sistema das artes talvez seja a brisa leve das noites de verão que refrescam o pensamento.

Referências ALVES, José Francisco. Transformações do espaço urbano. Fundação Bienal Mercosul: Porto Alegre, 2006. CIRILLO, Aparecido José; JERONIMO, Ciliane. Corografia da Cidade: o monumento como documento de processo. In: CIRILLO, Aparecido José; e GRANDO, Angela. Processo de criação e interações. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. MARGOTTO, S. 8ª Bienal do Mar. Vitória : PMV, 2009. MOODY, E. Introduction. In: Public Art Forum Public Art Report Public Art Forum. Londres: 1990. CHOAY, F. A Alegoria do Patrimônio, Trad. Luciano V. Machado. São Paulo: Liberdade & Unesp, 2001. 2001.

DUKE, Felix. Arte Publico y espacio político (Arte e Estética). Madrid: Akal, FERRARA, Lucrecia Dàlessio. Ver a Cidade. São Paulo: Nobel, 2000.

HALL, T. ROBERTSON. Public Art and Urban regeneration: advocacy, claims and critical debates. Landscap Research, n. 26, p. 5-26. LYNCH, Kevin. A imagem da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006 . RIEGL, A. Culto Moderno a los Monumentos. Madrid: Visor, 1987.

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[Fig. 6] Morro de Jesus de Nazareth. Vista noturna. (Fonte: Banco de Dados do LEENA, 2012. DisponĂ­vel em http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1358201)



CIDADE LUZ: AÇÕES POÉTICAS NO PRESTES MAIA Marcos Martins

Introdução Este artigo apresenta um relato de experiência vivenciada na cidade de São Paulo entre os anos de 2002 e 2007. Naquela ocasião, a Ocupação Prestes Maia se estabelecia como um rico processo colaborativo que unia artistas, coletivos de artistas, a comunidade ocupante daquele edifício abandonado e as entidades e associações operantes na região central de São Paulo. O edifício Prestes Maia encontrava-se vazio desde a década de 1980 e em 2002 teve suas duas torres (com 22 e 13 pavimentos) ocupadas pelas famílias em situação de

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rua vinculadas ao Movimento dos Sem Teto do Centro de São Paulo (MSTC). Ali funcionou por muitos anos a sede de uma indústria têxtil que desocupara o prédio ao deslocar-se para outras centralidades de São Paulo. Desta forma, o edifício ficou em desuso por cerca de 20 anos até sua ocupação pelo MSTC com a presença de cerca de duas mil pessoas sem-teto (entre jovens, adultos, velhos e crianças) que ali, no interior dos vãos das lajes livres do edifício, criaram suas moradias com vedações dos mais diversos materiais, como tábuas, lonas plásticas e papelões, muitos deles recolhidos das ruas, com fins de criação de habitações para as 468 famílias envolvidas no processo de ocupação. A primeira manifestação que envolveu a parceria entre artistas e a comunidade de moradores do edifício deu-se um ano após a ocupação, ou seja, em 2003. Na oportunidade foi concebido o movimento intitulado “Arte Contemporânea no Movimento Sem-Teto do Centro” – ACMSTC. O encontro dos artistas com a comunidade ocorrera em forma de imersão de um final de semana, quando o prédio foi tomado por ações de arte como performances, intervenções, instalações e outras formas de manifestações colaborativas que tinham como mote a busca pela conscientização política da sociedade, diante dos delicados processos que envolviam (e ainda envolvem) os problemas de moradia e de exclusão em São Paulo. Dois anos após a ação do ACMSTC e já na iminência da efetiva reintegração de posse pela justiça, alguns coletivos de arte, dentre eles o Bijari, Esqueleto coletivo, Contra Filé, Frente 3 de Fevereiro, Cia. Cachorra, Experiência Imersiva Ambiental, para citar apenas alguns, uniram-se se em apoio à questão do direito à moradia no Centro, especificamente no Prestes Maia. O grupo formado denominou a ação conjunta de “Integração Sem Posse”, em resposta a reintegração de posse em processo na Justiça. Dessa forma, outros artistas e coletivos de artistas de todo o país foram convocados, além dos movimentos sociais, dos intelectuais, da imprensa, dos ativistas e dos próprios cidadãos. Formou-se assim uma rede de força em torno das 468 famílias que ali moravam e que somavam uma população de duas mil pessoas, todosna iminência de ser despejadas pela reintegração da Justiça. Os coletivos e os artistas envolvidos fizeram um ajuntamento transdisciplinar, formando diálogos relevantes entre a população em despejo e a sociedade civil por meio de debates constantes e de ações artísticas que eram mediadas em paralelo às negociações entre as famílias em processo de despejo, a polícia e os organismos públicos

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[Fig. 1] Eduardo Verderame. Registro da Ação no Prestes Maia, 2003. (Fonte: Túlio Tavares)


[Fig. 2] Reintegração Sem Posse. Registro da Ação no Prestes Maia, 2005. (Fonte: Túlio Tavares)


que solicitavam a reintegração do imóvel. Nesse sentido, o trabalho colaborativo parecia ser a peça mestra que movia os ideais de experimentações e as ações poéticas desenvolvidas com a comunidade moradora do Prestes Maia. Tais coletivizações de pensamentos, de desejos e de ações buscavam agir criticamente na situação posta como realidade, anulando a autoria e a individualidade em favor de um corpo coletivo que pensava coesamente a situação em questão. Dentre as ações no Prestes Maia, nesse segundo momento de interlocução entre artistas e comunidade, destaco o trabalho do coletivo paulista EIA (Experiência Imersiva Ambiental). Assim, as experiências aqui compartilhadas são aquelas que se colocam como constructo da formação de um caráter e de um pensamento críticos diante da cidade e de suas alteridades. As ações buscavam questionar a especulação imobiliária e as forças correntes que buscavam gestar a gentrificação (ou enobrecimento) do centro urbano, expelindo para as periferias as populações menos favorecidas em favor das classes abastadas. Com esse ímpeto, o grupo passou a agir estrategicamente contra os processos de especulação, apropriando-se das placas imobiliárias de anúncios de condomínios de luxo que se espraiavam ilegalmente pela cidade de São Paulo, contribuindo para a poluição visual da cidade. De posse de 80 placas retiradas em uma ação ao longo de uma madrugada, o grupo elaborou um salão de arte denominado de “Salão de Placas Imobiliárias” – SPLAC. Por meio de um edital divulgado nas redes sociais e mailings, vários artistas de diversas cidades brasileiras estiveram em São Paulo atendendo à convocatória do grupo EIA para intervir nas placas apropriadas pelo coletivo e retiradas das ruas. As ações desenvolvidas pelos artistas, tendo como suporte as placas metálicas apropriadas com dimensões 180 x 90 cm, passaram a se erguer em formas de ações plásticas com criticidade de cada artista participante, abordando questões relevantes a respeito da moradia e da especulação no centro de São Paulo. O evento inicialmente partiu da Praça Cornélia, seguindo para a ocupação Prestes Maia como forma de ali se fazer uma concentração das propostas juntando-se às famílias moradoras do edifício ocupado. Vale ressaltar que o movimento pela moradia no centro da cidade reivindicava a inclusão das famílias de baixa renda em programas habitacionais. Em 2007, o edifício fora desocupado por ordem judicial, concedendo ao proprietário a reintegração de posse do imóvel, o qual permanece até hoje selado e novamente em desuso, sem cumprir sua função social.

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[Fig. 3] EIA. Folder Sal達o de Placas - SPLAC, 2005. (Fonte:www.mapeia.wordpress.com)


[Fig. 4] EIA. Registro da Ação SPLAC, 2005. 92 x 130 cm (Fonte: Túlio Tavares)


É interessante observar que o público que passou a habitar a região da Luz, onde se situa o Edifício Prestes Maia, o fez depois da década de 1990 em um momento em que os movimentos sociais no centro ganharam voz, corpo e força ao reivindicarem do Estado o direito à moradia digna, com infraestrutura básica e próxima aos locais de trabalho de seus usuários, que na grande maioria participam do mercado informal da região central. Isso revela-nos que os centros históricos, que na contemporaneidade passam por processos de enobrecimento, ou seja, por inserções de novas centralidades e de investimentos do capital, vêm sendo objetos das políticas públicas que buscam, através da cultura e do turismo, inserir as cidades no hall da concorrência intercidades, conforme nos afirma Rogério Leite (2007, p.61) quando “transformamos paisagem em cenário”. Assim, o enobrecimento dos centros tende a expelir a população que ali vive, alienando o espaço público e a cultura pelo consumo desses lugares, agora postos a mercê de sua espetacularização. A cidade de São Paulo vem passando por um processo denominado de “Nova Luz”. A prefeitura, em parceria com agentes privados com interesses na área do centro e financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), desde 2005 vem implantando no Bairro da Luz a operação de requalificação homônima. O plano é parte de um processo de retomada do centro para enobrecimento da área, com a chegada de um novos moradores, empresas e serviços, o que demonstra como as áreas públicas são rapidamente absorvidas e transformadas, fazendo crescer a mancha da segregação social na cidade. Nesse processo esconde-se um dado curioso: a existência de pelo menos 40 mil unidades de imóveis vazios só na região do centro, como já apontou a urbanista Raquel Rolnik em debate com o antropólogo Manuel Delgado sobre “A museificação dos centros urbanos”. Essa realidade nas cidades vem sendo discutidas pelas artes através de práticas inseridas no tecido urbano para tangenciar as problemáticas insurgentes e possibilitar ao corpo cidadão uma consciência crítica desses processos que transformam a cidade e as pessoas. Daí a relevância do artista, da instituição de arte e da sociedade no fomento dessas aproximações com o espaço público. Como exemplo dessas práticas artísticas pode-se fazer uma reflexão a partir da obra do artista catalão Antoni Muntadas, mais especificamente La Sala del Control, realizado no Centro de Cultura Contemporânea, Barcelona, em 1996. Na obra, o artista problematizou questões relativas à vigilância e ao controle das cidades, tomando como

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partido os então recentes processos de requalificação urbana de Barcelona. Criou para isso uma obra que replicava os sistemas de vigilância ao deslocar o público do Centro Cultural, de sua posição de espectador à partícipe, colocando-os como “vigilantes” da cidade e do próprio sistema de segurança do equipamento cultural, por meio de câmeras que apontavam estrategicamente para as ruas da cidade. Assim, os próprios cidadãos se postavam como guardas a vigiar a segurança pública. Havia ainda um vídeo que exibia os depoimentos, com opiniões e relatos de pessoas que moravam em bairros que passaram por processos de requalificação, além de opiniões de urbanistas e de políticos. Em outro espaço, imagens de demolições de prédios eram apresentadas de forma a criar uma narrativa discursiva sobre esses processos. O trabalho de Muntadas parecia buscar uma esfera que envolvesse todos os implicados no processo a fim de formar uma conscientização do problema e uma coresponsabilidade política. As práticas desses artistas e coletivos de arte esmeram-se muitas vezes na imersão, pesquisa, levantamento, mapeamento, vivência e mediação entre os agentes da cidade e a população. Dentre as ações ocorridas na Região da Luz, em São Paulo, pontuo a ação “Cidade Luz” (2008), realizada pelo coletivo Política do Impossível (PI) logo após a efetivação da reintegração de posse no Prestes Maia.

Cidade Luz A ação do coletivo PI deu-se com uma caminhada com a comunidade que fora desabrigada com a operação “Nova Luz”. Na ação, os participantes levaram suas luzes (velas e lanternas), pontuando simbolicamente que o bairro da Luz é constituído pelas luzes de seus habitantes e usuários, ou seja, da vida em sua essência. A caminhada promoveu um encontro com os diferentes movimentos de arte que se voltaram para a problemática do centro, tal como fizera o EIA frente ao Prestes Maia. Desta forma, “a caminhada foi uma ação crítica de valorização do bairro e da Luz, estigmatizado pela construção da imagem-ideia de cracolândia” (PI, 2008, p. 111). A caminhada deu-se a partir da Estação da Luz até o local onde foram desapropriados os primeiros imóveis, com a demolição arrasa-quarteirão. A retirada desmedida daquela população parece não resolver os problemas do lugar, repetindo os mesmos erros de outrora quando não se preocupou com o contexto social envolvido nessas tramas. Esses planos estabelecidos entre o poder público e o

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privado são provas de uma política contígua de exclusão social. E decerto, a vinda de um novo público (enobrecido) para a “Nova Luz” não será garantia de resolução dos problemas reais da região nem tampouco do apagamento da paisagem real e da memória existente. Assim, as paisagens urbanas das cidades refletem-se nas segregações espaciais que se evidenciam nos acessos, no uso do solo e nos determinados serviços essenciais à vida de onde ela contribui para a construção da linguagem de um povo com objetivo de formar uma imagem de sua cultura, uma vez que a cultura humana é o objeto produzido pelas operações de linguagem, sejam elas verbais ou não verbais onde “todo o conjunto de relações com os objetos disponíveis no universo da cultura pressupõe uma interpretação, uma decodificação, inclusive o uso, sua face mais operativas”. (BASSANI, 2003, p. 23) Outro ponto pertinente foi a substituição dos espaços de circulação e de convívio por novas formas de pseudoespaços públicos, como as arquiteturas-monumentos que se ergueram na paisagem a partir da segunda metade do século XX. Impostas como imagemreferência (LYNCH, 1999, p. 51) da modernização da cidade e como representativas ou simbólicas desse crescimento e desenvolvimento estabelecido, transformaram não somente a paisagem urbana mas também a cidade de São Paulo no centro corporativo da América Latina através de headquarters de empresas multinacionais; arquiteturasfortificações que se avizinham das comunidades mudando rapidamente a paisagem do lugar, agora refletida nas “peles de vidro” das verticalizações a desafiar os céus, arranhando as nuvens para se imporem como símbolo desse poder. Lucrécia Ferrara (2008), ao relacionar as verticalizações como valor simbólico do poder e da mídia de uma cidade, declara que esses pontos coexistem entre si por se colocarem como referências do domínio de um grupo frente a outros. Desta forma, ela afirma que a verticalidade de uma cidade, ou sua skyline, está associada diretamente a uma arquitetura midiática que tenciona estabelecer-se como dominante e global. Na esteira do pensamento de Sharon Zukin (2000) posso refletir sobre a constituição dessa skyline que se ergue na cidade e que compõe, segundo a autora, uma “paisagem do poder” que é constituída primeiramente pela formação de uma nova centralidade a partir da re-apropriação de certos espaços que comporão uma nova arquitetura feita de uma paisagem gentrificadora. Sobre esse pensamento, Sharon Zukin, em “O espaço da diferença”, designa que: [...] a paisagem dá forma material a uma assimetria entre o poder

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[Fig. 5] Política do Impossível. Nova Luz, 2008. ação de caminhada na região da Luz, São Paulo (Fonte: Coletivo Política do Impossível. Cidade Luz: uma investigação – ação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008).


econômico e o cultural. Essa assimetria de poder modela o sentido dual da paisagem. [...] o termo “paisagem” diz respeito à chancela especial de instituições dominantes na topografia natural e no terreno social, bem como a todo o conjunto do ambiente construído, gerenciando ou reformulando de algum modo. No primeiro sentido, a paisagem dos poderosos se opõe claramente à chancela dos sem poder, ou seja, à construção social que escolhemos chamar de vernacular, ao passo que a segunda acepção de “paisagem” combina esses impulsos antitéticos em uma visão única e coerente no conjunto. (ZUKIN, 2000, p.84). O conceito de paisagem empregado pela autora faz uma interlocução com a dimensão simbólica presente no poder, de onde a gentrificação não se coloca apenas como empreendimento econômico no território, mas também, e sobretudo, como afirmação desse poder institucionalizado mediante suas antiarquiteturas e a higienização social que se estabelece contribuindo para forjar e formar essas “paisagens de poder”. Conclusão Pode-se perceber que as implicações que envolvem o espaço urbano não escapam nemtampouco estão alheias às ações criticas de artistas e coletivos. O que se vê é, que cada vez mais, a arte adentra o cotidiano das pessoas, estabelecendo forças que, somadas, potencializam as relações inter-humanas. O desdobramento dessa postura são intervenções cientes de seu público e do contexto social envolvido, de forma que a arte tem buscado não somente subverter a ordem estabelecida para se viver, mais também, e sobretudo, tem buscado aproximar as experimentações artísticas das questões do campo cultural, social e político. Estabelecendo uma esfera discursiva diante dos problemas da cidade ou mesmo uma audiência e mediação dessas problemáticas com os agentes públicos gestores da cidade. Nesse sentido, público e artista gestam uma experiência que atua sobre a existência humana para indagar sobre as questões do corpo, do afeto e da percepção que se tem do mundo. Suas ações promovem pensamentos que interpelam sobre a vida para se aproximar da realidade. Nesta relação entre corpo, arquitetura e cidade as alteridades se manifestam nas construções, nos traçados urbanos, nas formas e materiais adotados pelas arquiteturas, nos quais de forma estratégica se repele ou se controla as ações e os

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deslocamentos deste corpo. Esta sobreposição da paisagem social é oriunda tanto do tempo quanto da linguagem estabelecida e têm se constituído a partir da síntese dos elementos presentes nos lugares de sua apreensão através das imagens existentes, pois a cidade, realidade objetiva com suas ruas, edificações, monumentos e praças,- é, em essência, uma ambiência a partir da qual se desenvolvem as subjetividades e de onde se constrói suas representações, portadoras de propriedades comunicativas, materializadas pelos signos, cores, formas, tamanhos, mobiliários e intervenções. Este pensamento encontra lugar na arte através das ações poéticas de intervenções urbanas, performances, trabalhos colaborativos e ações que possibilitam a construção de um corpo coletivo. Este corpo manifesta-se e subverte os engessamentos e controles instituídos pela sacralização das obras, ao mesmo tempo em que se coloca como agente de transformação da experiência da cidade, ao perceber estruturas de poder que manipulam a dinâmica social com estratégias que buscam emudecer as vozes dos cidadãos e desumanizar os espaços públicos.

Referencias ARANTES, Otilia B. Fiori. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: Edusp, 2001. BASSANI, Jorge. As linguagens artísticas e a cidade: cultura urbana do século XX. São Paulo: FormArte, 2003. COLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação – ação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008. FERRARA, Lucrécia D’alessio. Cidade: meio, mídia e mediação. Matrizes (Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP), São Paulo, v. 1, n. 2, 2008. LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Editora Unicamp/UFS, 2007. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. Campinas: Papirus, 2000.

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UMA IMAGEM, VÁRIOS OLHARES: COLABORAÇÃO, CONSTRUÇÃO E NEGOCIAÇÃO NO TRABALHO DA CIA. DE FOTO Camila Schenkel

As transformações sociais e culturais das últimas décadas apontam para um crescente interesse do campo das artes por novas dinâmicas de criação e sociabilização de suas práticas. De duplas ou casais a redes flutuantes compostas por centenas de pessoas, a produção coletiva e a atenção que ela recebe em estudos da área multiplica-se a partir dos anos 90. Tais grupos atuam em um cenário marcado tanto pela perda da utopia modernista em relação a uma arte universal, quanto pela complexificação do sistema da arte. Reunindo-se, somam forças para explorar novas possibilidades de criação, desenvolver estratégias de afirmação e conquistar espaço em meio a um mercado cada vez mais acelerado e profissionalizado.

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Em alguns casos, especialmente no de produções que circulam com maior evidência no circuito artístico, essa soma das partes acaba constituindo uma personalidade ou persona artística de maior impacto. Uma “supercolaboração” que, se de início pretende desconstruir a noção de autoria e romper com as barreiras da individualidade, por vezes corre o risco, como aponta Maria Lind, de criar um sujeito “superartístico” fechado em si mesmo (2011, p. 107). Alguns coletivos tornam-se sensação não exatamente por aquilo que propõe ou como produzem, mas como se anunciam, jogando muitas vezes com mistério, suspense, humor e táticas de mídia. Em outras situações, o anonimato dos integrantes de um coletivo é um dos fatores que lhes garante um grau maior de ousadia, crítica e combatividade. A produção desses grupos costuma ser multimídia e muitas vezes extrapola a atuação nas instituições artísticas tradicionais em busca de um impacto mais direto na realidade em que se inserem. De qualquer forma, a desconstrução do estatuto moderno do artista abre caminho para uma produção artística elaborada em um contexto de intersubjetividade, seja a partir do encontro com pares artísticos, com profissionais de outras áreas ou com aqueles que entram em contato com a obra. Amplia-se, assim, a noção de autoria, acrescentando outros elementos à relação obra ─ criador. Tais processos apontam tanto para uma transformação nos modos de produzir e socializar a arte quanto para um desejo contemporâneo de criar novos espaços para trocas, procurando restabelecer laços sociais. Diante de tal cenário, como coloca Ronaldo Entler, as práticas coletivas que envolvem fotografia podem assumir aspectos divergentes: Os coletivos fotográficos podem se confundir com uma cooperativa ou agência de fotografia, um banco de imagens, uma ‘indústria’ que otimiza a produção de obras visuais complexas; também podem atuar como uma laboratório de experimentação de linguagens, um grupo de estudos e pesquisas, uma produtora de eventos culturais. (2011, p. 1) Essas diferentes formas de atuação podem, ainda, ocorrer de forma combinada, como coloca Entler em relação ao trabalho de um dos grupos que acompanha, a Cia de Foto. A Cia de Foto foi criada em 2003, época na qual Rafael Jacinto e Pio Figueiroa se conheceram na redação do jornal paulista Valor Econômico e, entre uma pauta e outra, decidiram estabelecer um tipo diferente de produção a partir do diálogo. O grupo desenvolve trabalhos em jornalismo, publicidade e, desde 2006, também em artes visuais.

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Em 2004, juntou-se à dupla João Kehl e, em 2006, Carol Lopes, encarregada de fazer o tratamento de imagens. O coletivo atualmente ainda conta com o trabalho de Flávia Padrão (coordenadora de produção), Deborah Linadau (coordenadora administrativa) e Kosuke (assistente de fotografia). Conforme o trabalho, podem se associar ainda outros profissionais, como o DJ Guab, responsável pelo som de seus vídeos. A produção conjunta em diferentes esferas impõe uma dinâmica especial de criação. Conforme relatam, os integrantes discutem tudo o que é produzido pelo grupo, seja no âmbito da arte ou da comunicação. O diálogo desenvolvido em grupos de estudos e eventos culturais ou sociais, inclusive com profissionais exteriores ao grupo, também alimenta sua produção. A autoria de todo o processo, do planejamento à apresentação, é atribuída ao coletivo. Mesmo no século XXI, essa opção ainda pode gerar problemas jurídicos ou contratuais. Em 2006, a Cia de Foto foi convidada a integrar a Coleção Pirelli/MASP de fotografia, mas acabou não entrando em acordo com sua direção por recusar-se a assinar sua obra como pessoa física, adotando o nome de um de seus integrantes. Quatro anos depois, o trabalho foi finalmente incorporado à coleção como Cia de Foto. Sua atuação, de certa forma, parece tensionar um direito conquistado a duras penas pela fotografia ao longo do século XIX, uma vez que caráter técnico da imagem fotográfica levantou grandes suspeitas em relação a seus méritos como criação subjetiva. A Cia de Foto “é uma caixa de sapato coletiva”, afirma Pio Figueroa (LACERDA, 2010), aludindo a um trabalho do grupo que será analisado ao longo deste artigo. Uma vez que o assunto, a locação e a abordagem de determinado ensaio são definidos, a fotografia pode ser feita por um ou pelos três fotógrafos do grupo. (LEGRAMANTE, 2013) O coletivo entende que, a partir de suas experiências anteriores e da discussão que antecede cada foto, seus membros já podem responder individualmente ao que o grupo deseja. Sua prática dialógica acaba constituindo, estética e conceitualmente, uma espécie de “marca registrada”, lembrando-nos que compartilhar a autoria não significa necessariamente negá-la. Depois que a foto é realizada, os integrantes partem para a discussão das escolhas relativas ao processamento da imagem. Essa etapa é de suma importância dentro da concepção de seus trabalhos. É o momento em que se joga com as limitações da câmera e a situação de registro para transformar a imagem captada em imagem imaginada. “É difícil nos contermos com a foto propriamente dita. A vontade que temos é, de certa forma, iconoclasta. Morremos de vontade de matar a imagem que criamos, sempre”,

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explica o grupo (LEGRAMANTE, 2013, p 131). Dessa forma, o computador acaba se constituindo como uma plataforma na qual se conjuga e se reconfigura o trabalho de diferentes pessoas, em diferentes tempos. Explicando seu processo de criação, o coletivo aproxima seu trabalho da pintura, no qual a constituição da imagem se dá por meio de camadas, combinação de matizes e sobreposições. O desenvolvimento da fotografia digital ampliou e facilitou a tradição de manipulação de imagens, acentuando antes a ideia de escritura, ou seja, de uma imagem que se constrói ponto a ponto, como acontece no desenho ou na pintura, do que a ideia de inscrição, a gravação instantânea e irreversível da realidade que caracterizou o entendimento comum da fotografia ao longo do século XX (FONTCUBERTA, 2012). A fotografia digital acentuou a maleabilidade das imagens técnicas, conferindo cada vez mais importância ao trabalho de pós-produção, convertendo-se, como coloca Ritchin, “na investigação inicial, em um esboço da imagem”. (2010, p. 43) A ideia de construir uma imagem fotográfica, no entanto, remonta a tempos bem mais antigos. O crítico norte americano A.D. Coleman, em artigo publicado na revista ArtForum nos anos 70, apresenta uma história da fotografia que questiona a ideia cristalizada durante o século XIX da fotografia como uma imagem neutra e automática da realidade. Coleman estabelece uma importante ligação entre trabalhos de artistas de sua época, como Les Krims e Duane Michals, com nomes como Oscar Gustave Rejlander, Julia Margareth Cameron e fotógrafos pictorialistas, destacando aquilo que ele identifica como o método dirigido em suas obras. Operando com escolhas de composição e construção de cenas, esses fotógrafos organizavam o que acontecia diante da câmera em busca da imagem planejada. O resultado desse tipo de operação oscila entre o documental e o ficcional, “já que ainda que o que pretendem descrever como ‘pedaços de vida’ nunca tivesse acontecido se não fosse pelo fotógrafo, por outro lado, esses acontecimentos (ou seu convincente fac-símile) de fato aconteceram, tal e como demonstram as fotografias”. (COLEMAN, 2004, p. 135) Dando continuidade a essa tradição diretiva, o trabalho de edição ganha importância especial na produção da Cia de Foto voltada para as artes visuais, uma vez que o mercado jornalístico ainda trabalha uma série de parâmetros estéticos ligados à ideia de documento. A obra Carnaval, que tem como ponto de partida fotografias feitas como cobertura jornalística do Carnaval da Bahia, em 2010, reflete essa distinção. É apenas no âmbito artístico que as imagens, por meio do enquadramento e da manipulação de luz e de cores, isolam indivíduos em meio à multidão, transformando o dia em noite e

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[Fig. 1] Cia de Foto. Carnaval, 2010 (detalhe) 6 imagens impressas em jato de tinta e paisagem sonora. 160 cm x 110 cm cada (Fonte: http://www.ciadefoto.com)


a alegria em uma emoção perturbadora. “Fotografia é fotojornalismo; o resto é pintura”, como já havia provocado Christian Boltanski. (FONTCUBERTA, 2012, p. 184) Um dos trabalhos mais “coletivos’ do grupo é Caixa de sapato, obra que acaba constituindo uma metáfora do modo como a Cia de Foto pensa e produz imagens. Caixa de sapato é um work in progress que desde 2008 mistura as imagens, o cotidiano e os afetos dos integrantes do grupo em um site de armazenamento e compartilhamento de imagens, o Flickr. Ter em nosso coletivo uma Caixa de Sapato faz com que fotografemos o tempo todo. Uma produção sistemática onde o instante mais corriqueiro, o mais ordinário, tem uma marca fotográfica. É comum ter uma coleção de fotos numa caixa de sapato. Um lugar que guarda uma relação muito íntima com a fotografia. [...] Não importa o fotógrafo mas sim o momento e, principalmente, quem abre essa caixa. Quem a está vendo e na hora que está vendo. No exato instante da apreciação. No momento em que vagamos em toda história que uma imagem nos faz contar. Um veículo de organização coletiva. [...] Estamos construindo uma Caixa de Sapato para nossa fantasia. Um objeto que relate nossa imaginação. (CIA DE FOTO, 2008) As fotografias são postadas sem identificação ou legenda, contendo apenas um número conforme a ordem em que são carregadas. As imagens são oriundas principalmente de seu cotidiano familiar e círculo de amigos: os filhos brincando, cachorros, esposas. Vidas cruzadas de um grupo de amigos cujas memórias vão se misturando. Ao mesmo tempo, mesmo que formado de maneira mais despretensiosa, é evidente no conjunto a mesma sofisticação formal que caracteriza os outros trabalhos do grupo. A luz, as cores, as poses e os enquadramentos marcam a distância temporal entre o trabalho do coletivo e as micronarrativas que aparecem na arte dos anos 70 por meio da foto em trabalhos como o de Nan Goldin. Caixa de Sapatos pode assumir diferentes montagens e suportes. Para atender a uma demanda do Clube de Colecionadores do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o grupo criou uma versão em vídeo do trabalho, com duração de cerca de cinco minutos. Esta se tornou a versão mais consagrada deste ensaio, como afirma a Cia de

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[Fig. 2] Cia de Foto. Flickr do grupo. Acesso: nov 2013. (Fonte: http://www.flickr.com/photos/ciadefoto)


[Fig. 3] Cia de Foto. Caixa de sapato, 2008 (detalhe). dimensĂľes variĂĄveis (Fonte: http://www.ciadefoto.com)


Foto, mas seus desdobramentos que articulam as mudanças que o sistema digital e a Internet introduziram à produção e à circulação de imagens me parece mais interessante. A estrutura do Flickr é utilizada como um espaço para testar, avaliar, organizar e compartilhar as imagens do grupo. Entre as fotografias compartilhadas por Caixa de Sapato, muitas vezes estão incluídas imagens que constituíram ou serão outros trabalhos do coletivo. As fotografias de sexo, por exemplo, foram usadas para ilustrar de um caderno especial da Folha de São Paulo dedicado ao tema, publicado em fevereiro de 2012. Diferente daquela caixa de sapatos no fundo do maleiro de um armário, que recebe fotografias e é aberta apenas em ocasiões especiais, a versão digital desse receptáculo é alimentada ao mesmo tempo em que é compartilhada. “A Caixa é um pacto. Uma construção de linguagem e fantasia. A vida que queremos ter está ali, para além da que temos. [...] Nosso passado é uma ficção. Faz com que nosso futuro resulte de uma invenção”, explica a Cia de Foto (2009a). O sucesso da fotografia polaroid nos anos 70 anunciou os novos desejos da sociedade do final do século XX em relação à imagem: instantaneidade, portabilidade, privacidade. A partir desse momento, lúdico e privado puderam se combinar, introduzindo “uma dimensão de brincadeira e colorido ao ato fotográfico de aspectos lúdicos” (FONTCUBERTA, 2012, p. 28). A popularização da fotografia digital, poucas décadas depois, amplamente supera em quantidade e velocidade aquilo que nós e Andy Warhol apenas vislumbrávamos algumas décadas atrás. A fotografia se transformou em uma virtualidade imediatamente compartilhável, conectando-se a pessoas e lugares diferentes em questão de segundos. As imagens de nosso tempo, nosso mundo compartilhado, “flutuam de maneira isolada, movendo-se dentro e fora de contextos, livres de sua origem e da história de sua proveniência”, como coloca Susan Buck-Morss (2009, p. 34). Seu sentido não lhe é imanente, mas criado por suas utilizações. “A tarefa não é descobrirmos o que está por trás da superfície da imagem, mas enriquecê-la, darlhe uma definição, dar-lhe tempo”. (BUCK-MORSS, 2009, p. 42) A fotografia de Caixa de sapato, apesar de acompanhar a vida íntima dos integrantes do grupo, se apresenta antes como um instrumento de percepção do que como um documento. Sua sistemática instaura pequenas fraturas na continuidade do cotidiano de quem fotografa e é fotografado: Toda vez que fotografamos, um instante rotineiro se perde e volta em

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[Fig. 4] Sexo – fazer é mais fácil que falar. Caderno Especial, Folha de São Paulo, São Paulo, 21/2/2010 (Fonte: http://www.ciadefoto.com.br/blog)


[Fig. 5] Cia de Foto. Caixa de sapato, 2008 (detalhe). dimensĂľes variĂĄveis (Fonte: http://www.ciadefoto.com)


1 segundo. Recriamos assim um espaço em nossas vidas [...]. É que quando esse clique acontece, nos faz cego, o que a câmera nos mostra é um preto. E essa escuridão, essa ausência temporária do assunto, é o que faz com que um próximo momento seja mais decisivo. E isso vai determinando o movimento de nossas cenas, transformando-as em instantes não precisos. (CIA DE FOTO, 2009b) Constituindo uma espécie de piscar de olhos mecânico em uma época cada vez mais mediada por imagens, a fotografia talvez nos ajude, afinal, a vermos melhor, ou ao menos com mais afeto.

Bibliografia BUCK-MORSS, Susan. Estudios visuales e imaginación global. Antípoda, Bogotá, n. 9, dez. 2009. CIA de Foto. Caixa de sapato. FotoRevista: fotografía y realidad, Buenos Aires, 8 de dez. 2009a. Disponível em: http://www.fotorevista.com.ar/Exposiciones/ Exposiciones-Fotografia-CIA-de-Foto-Brasil-Caixa-de-Sapato_091219101327.html. Acesso em 8/5/2013. CIA de Foto. Processo de criação: Cia de Foto - parte 2, 2009b. Disponível em: http://olhave.com.br/blog/processo-de-criacao-cia-de-foto-2/. Acesso em 9/5/2013. CIA de Foto. Caixa de sapato, 21 nov. 2008. Disponível em: http://ciadefoto. com.br/blog/2008/09/caixa-de-sapato/. Acesso em 8/5/2013. COLEMAN, A.D. El método dirigido: notas para una definición. In: RIBALTA, Jorge (ed.). Efecto real: debates posmodernos sobre fotografía. Barcelona: Gustavo Gili, 2004. ENTLER, Ronaldo. Os coletivos e o redimensionamento da autoria fotográfica. Studium, Campinas, n° 32, p. 1. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp. br/32/3.html. Acesso em: 10/7/2013. FABRIS, Annateresa, Da reivindicação de Nadar a Sherrie Levine: Autoria e direitos autorais na fotografia. ARS, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 59-64, 2003.

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HEINICH, Nathalie. As reconfigurações do estatuto de artista na época moderna e contemporânea. Porto Arte, Porto Alegre, v. 13, n. 22, maio 2005, p. 137-147. LIND, Maria. Why Mediate Art? Ten Fundamental Questions of Curating. Mousse Magazine, Milan, April 23, 2011. LACERDA, Daniela. Caixa de surpresas. Revista Aurora, Pernambuco, 2010. Disponível em: http://www.old.diariodepernambuco.com.br/revistas/aurora/20101113/ semanario.shtml.Acesso em 20/7/2013. FILHO, Omar Gonçalves; VASCONCELOS, Larissa. Da porta para dentro: Nan Goldin, Cia de Foto e as poéticas da intimidade na fotografia contemporânea. Em Questão, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 229- 245, jan./jun. 2012. FONTCUBERTA, Joan. A câmara de Pandora: a fotografi@ depois da fotografia. São Paulo: Gustavo Gilli, 2012. KESTER, Grant. The One and the Many: Contemporary Collaborative Art in a Global Context. Londres: Duke University Press, 2011. LEGRAMANTE, Niura. Entre a lente e o pincel: interfaces de linguagem. Tese de doutorado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, 2013. QUEIROGA, Eduardo. Coletivo fotográfico contemporâneo e a prática colaborativa na pós-fotografia. Dissertação de mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, 2012. RITCHIN, Fred. Después de la fotografía. México: Editorial Oceano, 2010. ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2009. STIMSON, Blake; SHOLETTE, Gregory (Ed.). Collectivism after Modernism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007.

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INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES

José Cirillo Artista plástico e pesquisador do GEPPC/LEENA-UFES; Professor Permanente do Programa de Mestrado em Artes da UFES. Graduado em Artes pela UFU (1990), mestre em Educação pela UFES (1999) e doutor em Semiótica PUC-SP (2004). Tem experiência em Artes Visuais e Teorias e História da Arte com foco em arte pública e teoria do processo de criação. É membro do conselho científico da Revista: Estúdio (ISSN 1647-6158/e ISSN 1647-7316) e da Revista Manuscrítica (ISSN 1415-4498).

Annádia Leite Brito Mestranda em Artes no PPGARTES – Universidade Federal do Ceará e bolsista CAPES. Trabalha na realização de obras audiovisuais e enfatiza estudos teóricos e práticos no campo da imagem. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre as imbricações entre cinema e arte contemporânea.

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Antonia Wallig Pedagoga (FAED-UDESC), terapeuta artística (Associação Sagres, Florianópolis) e mestra em artes visuais pelo PPGAV-UDESC. Atua junto ao grupo de pesquisa Arte e Vida nos Limites da Representação e integra o coletivo Geodésica Cultural. Vem atuando em projetos artísticos colaborativos e também pesquisando sobre processos de inclusão e acessibilidade.

Gisele Ribeiro Artista, pesquisadora e professora do Departamento de Artes Visuais da UFES. Seu doutorado, na Espanha, foi defendido com a tese “PROJETO URUBU: opacidad y transparencia en el arte y en la esfera pública”. Desde o início de 2012 integra o Programa de Pós-Graduação em Artes do Centro de Artes da UFES. Sua pesquisa tem como foco as implicações políticas da arte.

Janice Martins Sitya Appel Artista multimídia, doutoranda em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS, mestre em Processos Artísticos Contemporâneos pelo Centro de Artes da Universidade da UDESC. É bacharel em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da UFRGS. Professora Colaboradora do CEART – UDESC. Membro dos grupos de pesquisa Veículos da Arte (Departamento de Artes Visuais da UFRGS) e Arte e Vida nos Limites da Representação (Departamento de Arte, Centro de Artes, UDESC).

José Luiz Kinceler Graduado em Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal de Santa Catarina (1984). Doutorado em Escultura como práctica y límite - Universidad del País Vasco (2001). Pós-Doutorado em Arte Pública pela UFF-RJ (2010). Professor associado do Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes - UDESC. Tem experiência na área de Artes Visuais com ênfase em processos criativos complexos.

Leonardo Lima Bolsista de iniciação científica - Transita entre as linguagens da música e do vídeo. Atualmente se dedica a área de produção musical.

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Lucas Sielski Kinceler Bolsista Voluntário de Iniciação Científica. Bolsista de Extensão do Projeto VIDEAR Laboratório Aberto de Animação e Vídeo Arte (2009 – 2011). Vem atuando em processos onde a criatividade é compartilhada de maneira ecosófica na reinvenção criativa do cotidiano.

Marcelo Wasem Doutor em Poéticas Interdisciplinares (UFRJ). Atua como professor no curso de Artes Visuais e Produção Cultural (UFF) e em disciplinas eletivas de rádio e multimídia na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (UERJ). É coordenador do projeto Sala Futura Maré, possui pesquisas relacionando arte pública, jogo e sonoridades e integra o coletivo Interofônica, com projetos já executados em cidades de cinco estados diferentes.

Mariana Novaes de Medeiros Doutoranda pelo PPGARTES/UERJ e mestre pelo PPGAV/EBA/UFRJ. Artivista, atua com mídia-educação e processos colaborativos com não artistas. Integra o Coletivo Rádio Interofônica e, em 2012, foi contemplada pela FUNARTE no 8º Prêmio Rede Artes Visuais, desenvolvendo o projeto “Descartografias Visuais, Sonoras e Audiovisuais em Cachoeira – BA”.

Paulo Villalva Bolsista de iniciação científica. Pesquisa com o objetivo de conciliar ensino das artes visuais a partir de processos criativos de autoria compartilhada. Atualmente se dedica a criações de narrativas visuais como livros ilustrados e histórias em quadrinhos.

Síria Mapurunga Bonfim Graduada Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (2008). Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde é bolsista de dedicação exclusiva da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Interesse pelos temas de ciência, arte e linguagem.

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Wilma Farias Gois Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), na linha de pesquisa “Arte e Pensamento: das obras e suas interlocuções”, na qual pesquisa as relações entre arte e vida a partir das obras do artista Leonilson. Bolsista de dedicação exclusiva da Fundação Cearense de Apoio e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).

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