1
1
~ Contos ~
2
Sumário BURACO DO TATU
5
A LENDA DO MOINHO MÁGICO
6
A MÃE D’ÁGUA
9
DOM MARUJÁ
13
OS QUATRO ALUNOS
16
OS TRÊS CONSELHOS
18
BRANCA DE NEVE
23
A POLEGARZINHA
32
AS 12 PRINCESAS DO FOLCLORE
42
BARBA AZUL
45
A MENINA DOS FÓSFOROS
50
A MOURA TORTA
53
A MENINA E O QUIBUNGO
56
AS FADAS
59
A BELA ADORMECIDA
62
A BELA E A FERA (A BELA E O MONSTRO)
65
CINDERELA
78
CHAPEUZINHO VERMELHO
86
DEUS É BEM BOM
89
FONTE DAS TRÊS COMADRES
92
FELICIDADE É SORTE
96
FESTA NO CÉU
98
A LEBRE ENCANTADA
100
A LENDA DA FORMIGA
103
RAPUNZEL
104
OS TRÊS PORQUINHOS
107 112
O PATINHO FEIO
113
O SOLDADINHO DE CHUMBO
118
PELE DE ASNO
124
O VESTIDO-MAR O VESTIDO-LUA O VESTIDO-SOL A PELE-DE-ASNO
134 135 136 137
3
A ILHA DOS SENTIMENTOS
138
MARIA BORRALHEIRA
140
O GATO DE BOTAS
145
A ROUPA NOVA DO IMPERADOR
150
A PRINCESA E A ERVILHA
156
RIQUETE DO TOPETE
158
O PEQUENO POLEGAR
164
URASHIMA TARÔ
168
A PEQUENA SEREIA
170
RUMPELSTILTSKIN
189
BIOGRAFIA
193
4
Buraco do Tatu O tatu cava um buraco a procura de uma lebre, quando sai pra se coçar, já está em Porto Alegre.
O tatu cava um buraco e some dentro do chão, quando sai pra respirar, já está lá no Japão.
O tatu cava um buraco, e fura a terra com gana, quando sai pra respirar já está em Copacabana.
O tatu cava um buraco com as garras muito fortes, quando quer se refrescar já está no Pólo Norte.
O tatu cava um buraco e retira a terra aos montes, quando sai pra beber água já está em Belo Horizonte.
O tatu cava um buraco um buraco muito fundo, quando sai pra descansar já está no fim do mundo.
O tatu cava um buraco, dia e noite, noite e dia, quando sai pra descansar, já está lá na Bahia.
O tatu cava um buraco perde o fôlego, geme, sua, quando quer voltar atrás, leva um susto, está na Lua.
O tatu cava um buraco, tira terra, muita terra, quando sai por falta de ar, já está na Inglaterra.
(Sérgio Caparelli)
5
A Lenda do moinho mágico (O porquê o mar é salgado)
Era uma vez dois irmãos, sendo um muito rico e mesquinho e outro muito pobre e humilde. Certo dia chegando ao natal o irmão pobre foi se ver com o irmão rico pois não tinha nada para comer. Assim chegou bateu na imensa porta da mansão de seu irmão. - O que venhas a fazer aqui? Não sabes que é natal? Vá embora! - disse o irmão rico - ô meu irmão tem piedade, só quero te pedir um pouco de comida para a ceia de natal. O irmão rico não queria dar, mas o irmão pobre tanto insistiu que ele atirou um pacote de presunto empurrando o irmão pobre para fora da casa. -Pegue esse presunto e não me procure nunca mais!- disse o irmão rico batendo a porta Lá foi então o pobre irmão levantando do chão e pegando o pacote de presunto e rumando á caminho de casa, satisfeito por ter encontrado algo para comer. No caminho de volta a sua casa um velho os chamou: -Pobre senhor venha cá. - disse o velho - Como conseguiste este presunto? Ao explicar a situação ocorrida ao velho este mesmo falou:
6
-Escute aqui, porque tu não vais à ilha dos anões, eles adoram presunto, com isso você tenta trocar por um moinho. O moinho dele é mágico. Se você conseguir poderá ter o que quiser. Depois de escutar o conselho do velho, o pobre irmão foi até a ilha dos anões. Os anões ao verem o pacotão de presunto invadiu o irmão pobre perguntando o que lhe trazia ali, cheio de água na boca com muita vontade de comer o presunto. -Venho trazer este presunto em troca de um moinho que vocês têm aqui. - disse o irmão pobre -Não, nós não podemos trocar aquele moinho! - disse um dos anões -Mas estou com tanta vontade de comer esse presunto - disse mais um dos anões Tanto falou, tanto insistiu que finalmente acabaram trocando o presunto com o moinho. Logo então um dos anões disse ao pobre irmão: - Aqui está o moinho senhor, para ele moer você diz: "mói, moinho! Moa arroz!" e ele moerá arroz, quando chegar á quantidade desejada ao parar você terá que dizer "obrigado moinho, obrigado". Entendendo tudo os conselhos dos anões e suas explicações, o pobre irmão saiu de lá muito contente com o resultado que acabara de conseguir, foi logo correndo pra casa para contar a novidade a sua mulher, que morrendo de fome, esperava o marido para a ceia de natal. Mal chegou já foi contando tudo o ocorrido para sua mulher que achou tudo muitíssimo interessante e um extremo milagre. Pediram o moinho para moer vários tipos de comidas, convidaram os vizinhos, e enfim, tiveram a melhor ceia de natal que um pobre poderia ter. O irmão pobre sempre ajudava as pessoas com utilização do moinho: - Mamãe mandou pedir arroz ela esta sem - dizia uma criança - Mói, moinho! Moa arroz - falou o irmão pobre
7
- Obrigado moinho! Obrigado! - disse ele novamente ao receber uma boa quantidade de arroz - Toma aqui leve pra sua mãe! - Obrigado tio! - falou a criança saindo contente A história do moinho espalhou para toda a vila, e depois, para toda a cidade até chegar aos ouvidos de um velho pescador, que ao pensar que o moinho podia moer tudo que quisesse, não resolveu perder tempo trabalhando ele queria já pegar o moinho para ele. E lá se foi o velho pescador na casa do pobre irmão. Lá ele viu eles mandarem o moinho moer porém não assistiu todo o processo, marcou o lugar, esperou anoitecer, quando todos estavam dormindo ele roubou o moinho, correu, entrou no seu barco e partiu para auto mar com uma imensa gargalhada. -Muhuahuahuha! Ninguém será mais rico que eu! Eu fabricarei sal e serei o homem mais rico deste planeta. Enfim ele colocou o moinho em cima de uma cadeira e disse: -Mói, moinho! Moa sal! E lá se foi o moinho moendo sal, sal e mais sal... Quando o velho pescador notou que ja estava bom a quantidade de sal ele ordenou: -Pare de moer moinho! E nada de acontecer, ele gritou tentou mudar de fala disse: "chega para de moer", "eu disse para de moer seu surdo", bateu no moinho e nada de parar de moer sal. O barco foi-se enchendo de sal, sal e mais sal. Afundou-se então e o velho pescador ficou mais pobre do que nunca pois perdera seu barco que era na verdade toda sua fortuna. E o moinho coitado foi parar no fundo do mar sem parar de moer sal, deve de estar lá até agora moendo sal, sal e mais sal... Dizem que por isso que o mar é salgado!
(Autor desconhecido. Releitura por Luha Biha.)
8
A Mãe D’água Era um homem muito pobre, que tinha sua plantação de favas na beira do rio; quando, porém, elas estavam boas de colher, não apanhava uma só, porque, da noite para o dia, desapareciam. Afinal, cansado de trabalhar para os outros comerem, tomou a resolução de ir espiar quem era que lhe furtava as favas. Um dia, estava de espreita, quando viu uma moça, bonita como os amores, no meio do faval, abaixo e acima, colhendo as favas todas. Foi, bem sutil, bem devagarinho e agarrou-a, dizendo: – Ah! É você que vem aqui apanhar as minhas favas? Você agora vai é para a minha casa, para se casar comigo. Gritava a moça, forcejando por se libertar das unhas do homem: – Me solte! Solte-me, que eu não apanho mais as suas favas, não. Porém o homem, sem querer largá-la. Finalmente, disse a moça: – Está bem. Eu me caso com você, mas nunca arrenegue de gente de debaixo d’água. O homem disse que sim. Levou-a e casou-se com ela. Tudo quanto possuía aumentou como milagre, num instante. Fez logo um sobrado muito bom, comprou escravos, teve muitas criações, muitas roças, muito dinheiro, enfim. Depois de passado bastante tempo, a mulher foi ficando desmazelada, que uma coisa era ver e a outra contar. Parecia de propósito. Não dava comida aos filhos, que viviam rotos e sujos. A casa estava sempre desarrumada, cheia de cisco. Os escravos, 9
sem ter quem os mandasse, não cuidavam do serviço e só andavam brigando uns com os outros. Ela, descalça, com o vestido esfarrapado, os cabelos alvoroçados, levava o dia inteiro dormindo. Enquanto o pobre do homem estava na rua, nos seus negócios, estava sossegado; mas, assim que punha o pé dentro de casa, era uma azucrinação em cima dele, que só lhe faltava endoidecer. Choravam os meninos, com fome: – Papai, eu quero comer... Papai, eu quero comer... Os escravos: – Meu senhor, fulano me fez isto. Beltrano me fez aquilo. Um inferno! Vivia zonzo de tal forma, que pouco parava em casa. Um dia, muito aporrinhado da vida, disse baixinho: – Arrenego de gente de debaixo d’água... Aí a moça, que só vivia esperando por aquilo mesmo para ir-se embora, porque ela era a "mãe-d’água" e andava doida por voltar para o seu rio, levantou-se mais que depressa e foi saindo pela porta a fora, cantando:
– Zão, zão, zão, zão, Calunga, Olha o munguelendô, Calunga, Minha gente toda, Calunga, Vamo-nos embora. Calunga, Para a minha casa, 10
Calunga, De debaixo d’água, Calunga, Eu bem te dizia, Calunga, Que não arrenegasses, Calunga, De gente de debaixo d’água, Calunga.
O homem, espantado, gritou: – Não vá lá não, minha mulher! Mas, qual! Em seguida à moça, foram saindo os filhos, os escravos e criações: bois, cavalos, carneiros, porcos, patos, galinhas, perus, tudo, tudo. E o pobre do homem, com as mãos na cabeça, gritando: – Não vá lá não, minha mulher! Ela, continuando o seu caminho, nem ao menos olhava para trás, cantando sempre:
– Zão, zão, zão, zão, Calunga ", etc.
Depois da gente e dos bichos, foram saindo pela porta a fora a mobília, a louça, as roupas, os baús e tudo o que estava em cima deles, comprado com o dinheiro dela. O homem correu atrás, vestido já na sua roupa do tempo em que era pobre, gritando: – Não vá lá não, minha mulher! 11
Foi o mesmo que nada. Por fim acompanharam-na a casa, telheiros, galinheiros, cercados, currais, plantações, árvores e o mais. Chegando à beira do rio, a moça e todo o seu acompanhamento foram caindo na água e desaparecendo. O homem foi viver pobremente, como dantes, do seu faval. Também nunca mais a "mãe-d’água" buliu na sua roça. (Henriqueta Lisboa)
12
Dom Marujá Era um dia um sujeito muito sovina. Tendo comprado um boi para abater e não querendo repartir-lhe o fato com os vizinhos, disse que ia matá-lo num lugar onde não houvesse moscas nem mosquito. Pegou o cavalo, botou os meninos dentro dos caçuás, amarrou o boi e saíram puxando-o, ele mais a mulher. Andaram o dia inteirinho. Quando já ia escurecendo, deram naquele campo muito grande. Olhou ao redor e não viu casa nem nada. Assim, não tinha onde mandar pedir lume para fazer o seu fogo, que era para preparar o de-comer. Afinal, enxergou duas luzinhas muito longe. Disse ao filho mais velho: – Menino, vai ali pedir um tição de fogo. A criança saiu correndo. Quando estremeceu, estava em cima daquele bichão, com os olhos que eram duas tochas. Tremendo de medo, foi dizendo: – Abença! Papai mandou dizer pra vosmencê ir tomar o fato do boi. O bicho levantou-se, sacudiu as orelhas –paco, paco, paco – e gritou:
– Matei tigre, matei onça, Matei leão, matei serpente. Eu sou Dom Marujá! Eu sou Dom Marujá!
13
O menino voltou voando. Foi chegando perto do pai e foi gritando: – Meu pai, meu pai! Vamos embora. Ai vem um bicho botando fogo pelos olhos, que vem desesperado. Si ele nos pegar aqui, nos come a nós todos. O homem largou boi, largou cavalo, caçuás, comida, tudo, metendo o pé no mundo, com a mulher e os filhos. Toca a correrem. Toca a correrem, ouvindo a voz do bicho atrás deles:
– Matei tigre, matei onça, etc.
Correram a noite inteira. Já era de madrugada e eles não podiam mais dar um passo, de cansados, quando passaram pela tenda de um sapateiro, que estava fazendo serão. Vendo-os naquela carreira doida, em termo de morrerem sem fôlego, o sapateiro gritou: – O que é isto, senhor? Aonde vai a esta hora, com essa mulher e esses meninos, correndo de semelhante jeito? – Ai, meu senhor, é um bicho que vem aí atrás para nos pegar. – Entre aqui para dentro e esconda-se com o seu povo. O sapateiro, que morava naqueles desertos, vivia sempre prevenido. Botou uma carga de chumbo bem grande na espingarda e disse: – Deixe o bicho vir para cá. Quando viu aquele monstro de bicho, botando fogo pelos olhos, chegou a espingarda bem para junto de si. Depois passou a mão na faquinha e começou a cortar sua sola assoviando. Lá vem o bicho com a sua lacantina:
– "Matei tigre, matei onça ", etc.
Foi chegando perto da tenda e foi gritando: 14
– Oh! seu sapateiro! Você não viu passar por aqui um homem, uma mulher e uns meninos correndo? O sapateiro assoviando. O bicho chegou-se mais e repetiu a pergunta. O sapateiro bem de seu. Quando o bicho foi querendo entrar na tenda, ele bateu mão na taboca, e – pou! O bicho revirou de pernas para o ar, dando um urro, que estrondou. Gritou o sapateiro: – Me ajude aqui, senhor... Saiu o homem de lá de dentro, com a mulher e os filhos, fazendo a festa ao bicho, de pau e de pedras. Quando acabaram de matá-lo, arrastaram-no para longe, a fim dos urubus darem cabo dele... O homem, então, contou ao sapateiro tudo quanto se tinha passado. Disse-lhe o sapateiro: – Pois bem, meu amigo, siga descansado para sua casa e nunca mais vá matar boi em lugar onde não haja mosca nem mosquitos. O homem deixou de ser cauíla. Matava os seus bois em sua casa mesmo, repartindo o fato com todos os vizinhos.
(Henriqueta Lisboa)
15
Os Quatro Alunos Uma fábula sobre as diferentes maneiras de ser estudante, escrita por um aluno. Esta é uma história que se passa em qualquer canto do Brasil, em qualquer escola, com qualquer aluno, comigo. Eram quatro rapazes que estudavam em uma mesma classe: Arrependido, Falso, Mínimo e Quero-tentar. Arrependido era um rapaz desanimado com os estudos, não fazia nada na sala de aula e muito menos os deveres de casa. Não pensava no seu futuro e vivia achando que estava perdendo tempo naquela escola e por isso arrependia-se por não poder ficar pelas ruas com seus colegas. Por não gostar de estudar, tirava notas baixas. Falso era um cara mentiroso e um pouco preguiçoso para com os estudos. Ou copiava de alguém ou falsificava o que fazia. Na realidade mesmo, nada fazia e era tão falso quanto sua própria nota. Apesar de ser razoável, pois tudo que precisava era "colar" ou confiar no amigo na hora da avaliação, raramente isso falhava. Mínimo era um rapaz que não pensava muito longe, para este o que importava era conseguir uma nota que o aprovasse, portanto, estudava pouco, mas não "colava" nas avaliações e não passa disso, 60% era o bastante e contentava-se com este mínimo. Sempre tinha um pensamento: "Tenho boas notas porque não perdi nenhuma". Quero-tentar gostava do que fazia. Quando lhe apresentavam algo novo, um problema que ele não soubesse, ele dizia: "vou tentar resolve-lo" e quase sempre conseguia mesmo. Não era nem mais, nem menos inteligente do que os outros, mas tinha força
16
de vontade. Suas notas eram boas, porém, não estudava para tirar notas e sim para ficar sabendo. Este era aluno todos os dias e sua persistência o ajudava vencer.
Assim Quero-tentar era o primeiro da classe. Em termos de aprendizagem, Mínimo era o penúltimo, Falso era o último, pois, só tinha nota e não sabia nada. Arrependido abandonou a escola. Hoje, todos já são homens feitos e cada um teve seu destino: Arrependido mora numa grande favela chamada TARDE DEMAIS Falso queria ser político, mas foi infeliz porque descobriram sua falsidade; foi julgdo e condenado por um juiz chamado VERDADE. Mínimo com seu conhecimento mínimo é soldado mínimo das Forças Armadas, ganha um salário mínimo e tem um comandante muito exigente chamado Máximo, que sempre lhe cobra 100%. Quero-tentar se saiu melhor e hoje é presidente de um país chamado "Republica Democrática dos Sucessos".
(Escrito por um aluno)
17
Os Três Conselhos Um casal de jovens recém-casados era muito pobre e vivia de favores num sítio do interior. Um dia o marido fez a seguinte proposta para a esposa: "Querida eu vou sair de casa, vou viajar para bem longe, arrumar um emprego e trabalhar até ter condições para voltar e dar-te uma vida mais digna e confortável. Não sei quanto tempo vou ficar longe, só peço uma coisa, que você me espere e enquanto eu estiver fora, seja FIEL a mim, pois eu serei fiel a você". Assim sendo, o jovem saiu. Andou muitos dias a pé, até que encontrou um fazendeiro que estava precisando de alguém para ajudá-lo em sua fazenda. O jovem chegou e ofereceu-se para trabalhar, no que foi aceito. Pediu para fazer um pacto com o patrão, o que também foi aceito. O pacto foi o seguinte: “Deixe-me trabalhar pelo tempo que eu quiser e quando eu achar que devo ir o senhor me dispensa das minhas obrigações”. EU NÃO QUERO RECEBER O MEU SALÁRIO. Peço que o senhor o coloque na poupança até o dia em que eu for embora. “No dia em que eu sair o senhor me dá o dinheiro e eu sigo o meu caminho”. Tudo combinado. Aquele jovem trabalhou DURANTE VINTE ANOS, sem férias e sem descanso. Depois de vinte anos chegou para o patrão e disse: "Patrão, eu quero o meu dinheiro, pois estou voltando para a minha casa". O patrão então lhe respondeu: 18
"Tudo bem, afinal, fizemos um pacto e vou cumpri-lo, só que antes quero lhe fazer uma proposta, tudo bem?” Eu lhe dou o seu dinheiro e você vai embora, ou LHE DOU TRÊS CONSELHOS e não lhe dou o dinheiro e você vai embora. Se eu lhe der o dinheiro eu não lhe dou os conselhos, se eu lhe der os conselhos, eu não lhe dou o dinheiro. “Vá para o seu quarto, pense e depois me dê a resposta". Ele pensou durante dois dias, procurou o patrão e disse-lhe: - "QUERO OS TRÊS CONSELHOS". O patrão novamente frisou: "Se lhe der os conselhos, não lhe dou o dinheiro". E o empregado respondeu: "Quero os conselhos". O patrão então lhe falou: 1. “NUNCA TOME ATALHOS EM SUA VIDA”. Caminhos mais curtos e desconhecidos podem custar a sua vida. 2. NUNCA SEJA CURIOSO PARA AQUILO QUE É MAL, pois a curiosidade pro mal pode ser mortal. 3. “NUNCA TOME DECISÕES EM MOMENTOS DE ÓDIO OU DE DOR, pois você pode se arrepender e ser tarde demais.” Após dar os conselhos, o patrão disse ao rapaz, que já não era tão jovem assim: "AQUI VOCÊ TEM TRÊS PÃES, estes dois são para você comer durante a viagem e este terceiro é para comer com sua esposa quando chegar a sua casa". O homem então seguiu seu caminho de volta, depois de vinte anos longe de casa e da esposa que ele tanto amava. Após primeiro dia de viagem, encontrou um andarilho que o cumprimentou e lhe perguntou: "Pra onde você vai?" - Ele respondeu: 19
"Vou para um lugar muito distante que fica a mais de vinte dias de caminhada por essa estrada". O andarilho disse-lhe então: "Rapaz, este caminho é muito longo, eu conheço um atalho que é dez, e você chega há poucos dias". O rapaz contente começou a seguir pelo atalho, quando se lembrou do primeiro conselho, então voltou e seguiu o caminho normal. Dias depois soube que o atalho levava a uma emboscada. Depois de alguns dias de viagem, cansado ao extremo, achou pensão à beira da estrada, onde pode hospedar-se. Pagou à diária e após tomar um banho deitou-se para dormir. De madrugada acordou assustado com um grito estarrecedor. Levantou-se de um salto só e dirigiu-se à porta para ir até o local do grito. Quando estava abrindo a porta, lembrou-se do segundo conselho. Voltou, deitou- se e dormiu. Ao amanhecer, após tomar café, o dono da hospedagem lhe perguntou se ele não havia ouvido um grito e ele disse que tinha ouvido. O hospedeiro: e você não ficou curioso? Ele disse que não. No que o hospedeiro respondeu: VOCÊ É O PRIMEIRO HÓSPEDE A SAIR DAQUI VIVO, pois meu filho tem crises de loucura, grita durante a noite e quando o hóspede sai, mata-o e enterra-o no quintal. O rapaz prosseguiu na sua longa jornada, ansioso por chegar a sua casa. Depois de muitos dias e noites de caminhada... Já ao entardecer, viu entre as árvores a fumaça de sua casinha, andou e logo viu entre os arbustos a silhueta de sua esposa. Estava anoitecendo, mas ele pode ver que
20
ela não estava só. Andou mais um pouco e viu que ela tinha entre as pernas, um homem a quem estava acariciando os cabelos. Quando viu aquela cena, seu coração se encheu de ódio e amargura e decidiu-se a correr de encontro aos dois e a matá-los sem piedade. Respirou fundo, apressou os passos, quando se lembrou do terceiro conselho. Então parou, refletiu e decidiu dormir aquela noite ali mesmo e no dia seguinte tomar uma decisão. Ao amanhecer, já com a cabeça fria, ele disse: “NÃO VOU MATAR MINHA ESPOSA E NEM O SEU AMANTE”. Vou voltar para o meu patrão e pedir que ele me aceite de volta. “Só que antes, quero dizer a minha esposa que eu sempre FUI FIEL A ELA”. Dirigiu-se à porta da casa e bateu. Quando a esposa abre a porta e o reconhece, se atira em seu pescoço e o abraça afetuosamente. Ele tenta afastá-la, mas não consegue. Então com as lágrimas nos olhos lhe diz: “Eu fui fiel a você e você me traiu”... Ela espantada lhe responde: - “Como? Eu nunca lhe trai, esperei durante esses vintes anos.” Ele então lhe perguntou: “E aquele homem que você estava acariciando ontem ao entardecer?” E ela lhe disse: "AQUELE HOMEM É NOSSO FILHO. Quando você foi embora, descobri que estava grávida. Hoje ele está com vinte anos de idade". Então o marido entrou, conheceu, abraçou o filho e contou-lhes toda a sua história, enquanto a esposa preparava o café. Sentaram-se para tomar café e comer junto o último pão. APÓS A ORAÇÃO DE AGRADECIMENTO, COM LÁGRIMAS DE EMOÇÃO, ele parte o pão e ao abri-lo encontra todo o seu dinheiro, o pagamento por seus vinte anos de dedicação. Muitas vezes achamos que o atalho "queima etapas" e nos faz chegar mais rápido, o que nem sempre é verdade...
21
Muitas vezes somos curiosos, queremos saber de coisas que nem ao menos nos dizem respeito e que nada de bom nos acrescentará... Outras vezes, agimos por impulso, na hora da raiva, e fatalmente nos arrependemos depois... Espero que você, assim como eu, não se esqueça desses três conselhos e que, principalmente, não se esqueça de CONFIAR em DEUS (mesmo que a vida muitas vezes já tenha te dado motivos para a desconfiança).
(Autor desconhecido.)
22
Branca de Neve (Conto Original dos Irmãos Grimms)
Há muito, muito tempo mesmo, no coração do inverno, enquanto flocos de neve caíam do céu como fina plumagem, uma rainha, nobre e bela, estava ao pé de uma janela aberta, cuja moldura era de ébano. Bordava e, de quando em quando, olhava os flocos caindo maciamente; picou o dedo com a agulha e três gotas de sangue purpurino caíram na neve, produzindo um efeito tão lindo, o branco manchado de vermelho e realçado pela negra moldura da janela, que a rainha suspirou e disse consigo mesma: “Quem me dera ter uma filha tão alva como a neve, carminada como o sangue e cujo rosto fosse emoldurado de preto como o ébano!”Algum tempo depois, teve uma filhinha cuja tez era tão alva como a neve,carminada como o sangue e os cabelos negros como o ébano. Chamaram a menina de Branca de Neve; mas, ao nascer a criança, a rainha faleceu. Decorrido o ano de luto, o rei casou-se em segundas núpcias, com uma princesa de grande beleza, mas extremamente orgulhosa e despótica; ela não podia suportar a ideia de que alguém a sobrepujasse em beleza. Possuía um espelho mágico, no qual se mirava e admirava frequentemente. E então, dizia: - Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza? O espelho respondia: – É Vossa Realeza a mulher mais bela desta redondeza.Ela, então, sentia-se feliz, porque sabia que o espelho só podia dizer a pura verdade. No entanto, Branca de Neve crescia e aumentava em beleza e graça; aos sete anos de idade era tão linda como a luz do dia e muito mais que a rainha. Um dia a rainha, sua madrasta, consultou como de costume o espelho. - Espelhinho, meu espelhinho, respondem-no com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza? O espelho 23
respondeu:- Real senhora, sois aqui a mais bela, Porém Branca de Neve é de vós ainda mais bela!A rainha estremeceu e ficou verde de ciúmes. E daí, então, cada vez que via Branca de Neve, por todos adorada pela sua gentileza, seu coração tinha verdadeiros sobressaltos de raiva. Sua inveja e seus ciúmes desenvolviam-se qual erva daninha, não lhe dando mais sossego, nem de dia, nem de noite. Enfim, já não podendo mais, mandou chamar um caçador e disse-lhe:- Leva essa menina para a floresta, não quero mais tornar a vê-la; leva-a como puderes para a floresta, onde tens de matá-la; traze-me, porém, o coração e o fígado como prova de sua morte. O caçador obedeceu. Levou a menina para a floresta, sob pretexto de lhe mostrar os veados e corças que lá haviam. Mas, quando desembainhou o facão para enterrá-lo no coraçãozinho puro e inocente, ela desatou a chorar, implorando: - Ah, querido caçador, deixa-me viver! Prometo ficar na floresta, e nunca mais voltar ao castelo; assim, quem te mandou matar-me, nunca saberá que me poupaste a vida.Era tão linda e meiga que o caçador, que não era mau homem, apiedou-se dela e disse: Pois bem, fica na floresta, mas livra-te de sair Iá, porque a morte seria certa. E, em seu íntimo, ia pensando:
“Nada arrisco, pois os animais ferozes vão devorá-la em breve e a vontade da rainha será satisfeita, sem que, eu seja obrigado a suportar o peso de um feio crime”. Justamente nesse momento passou correndo um veadinho; o caçador matou-o, tirou-lhe o coração e o fígado e levou-os à rainha como se fossem de Branca de Neve. O cozinheiro foi incumbido de prepará-los e cozê-los; e, no seu rancor feroz, a rainha comeu-os com alegria desumana, certa de estar comendo o que pertencera, a Branca de Neve… Durante esse tempo a pobre menina, que ficara abandonada na floresta, vagava trêmula de medo, sem saber o que fazer. Tudo a assustava, o ruído da brisa, uma folha que caía, enfim, tudo produzia nela um terrível pavor. Ouvindo o uivar dos lobos, pôs-se a correr cheia de terror; os pezinhos delicados feriam-se nas pedras pontiagudas e estava toda arranhada pelos espinhos. Passou ao pé de muitos animais ferozes, mas estes não lhe fizeram mal algum. Enfim, à noitinha, cansada e ofegante, encontrou-se diante de uma linda casinha situada no meio de uma clareira. Entrou, mas não viu ninguém. Contudo, a casa devia ser habitada, pois notou que tudo estavam muito asseado e arrumadinho, dando gosto de se ver. Numa graciosa mesa co24
berta com uma fina e alva toalha, achavam-se postos sete pratinhos, sete colherinhas e sete garfinhos, sete faquinhas e sete copinhos, tudo perfeitamente em ordem.
No quarto ao lado, viu sete caminhas uma junto da outra, com seus lençóis tão alvos. Branca de Neve, que morria de fome e sede, aventurou-se a comer um pouquinho do que estava servido em cada pratinho, mas, não querendo privar nem um só dono de seu alimento, tirou somente um bocadinho de cada. E bebeu apenas um golinho do vinho de cada um. Depois, não aguentando cansaço, foi deitar-se numa caminha, mas a primeira era curta demais, a segunda muito estreita, experimentando-as todas até que a sétima tinha a medida justa. Então fez sua oração, encomendou-se a Deus e em breve adormeceu profundamente. Ao anoitecer chegaram os donos da casa; eram os sete anões, que trabalhavam durante o dia na escavação de minério na montanha. Cada qual acendeu uma lanterninha e, quando a casa se iluminou, viram que alguém entrara em sua casa, porque não estava tudo na ordem perfeita conforme haviam deixado ao sair. Sentaram-se à mesa, e, então, disse o primeiro:
- Quem mexeu na minha cadeirinha? O segundo: – Quem, comeu do meu pratinho? O terceiro: – Quem tocou no meu pãozinho? O quarto: – Quem usou o meu garfinho? O quinto: – Quem tirou um pouco da minha verdurinha? O sexto: – Quem cortou com a minha faquinha? E o sétimo: – Quem bebeu do meu copinho?Depois da refeição, foram para o quarto; notaram logo as caminhas amassadas; o primeiro reclamou: - Quem deitou na minha caminha? - E na minha? - E na minha? - gritaram os outros, cada qual examinando a própria cama.Enfim, o sétimo descobriu Branca de Neve dormindo a sono solto na sua caminha.Correram 25
todos com suas lanterninhas e cheios de admiração exclamaram:- Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! que encantadora e linda menina!Sentiam-se tão transportados de alegria, que não quiseram acordá-la e deixaram-na dormir tranquilamente. O sétimo anão dormiu uma hora com cada um de seus companheiros; e assim passou a noite. No dia seguinte, quando Branca de Neve acordou e levantou-se, ficou muito assustada ao ver os sete anões. Mas eles sorriram-lhe e perguntaram com a maior amabilidade: - Como te chamas? - Chamo-me Branca de Neve, respondeu ela. - Como vieste aqui à nossa casa? Ela contou-lhes como sua madrasta mandara matála e como o caçador lhe permitira que vivesse na floresta. Após ter corrido o dia todo chegara aí e, vendo a linda casinha, entrara para descansar um pouco. Os anões perguntaram-lhe:- Queres ficar conosco? Aqui não te faltará nada, só tens que cuidar da casa, fazer nossa comida, lavar e passar nossa roupa, coser, tecer nossas meias e manter tudo muito limpo e em ordem; mas; quando tiver acabado o teu trabalho, será a nossa rainha. - Sim, anuiu a menina – ficarei convosco de todo o coração!E ficou morando com eles, procurando manter tudo sempre em ordem. Pela manhã, eles partiam para as cavernas em busca de ouro e minérios e, à noite, quando voltavam, todos jantavam juntos muito alegres. Como a menina ficava só durante ó dia, os anões advertiram-na que se acautelasse: - Toma cuidado com a tua madrasta; não tardará a saber onde estás, por isso, durante nossa ausência, não deixes entrar ninguém aqui. A rainha, entretanto, certa de ter comido o fígado e o coração de Branca de Neve, vivia despreocupada, ela pensava, satisfeita, que era, novamente, a primeira e mais bela mulher do reino. Certo dia, porém, teve a fantasia de consultar o espelho, e certa de que lhe responderia não ter mais nenhuma rival em beldade. Assim mesmo disse:- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-o com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza? Imaginem o seu furor quando o espelho respondeu: - Real senhora, do país sois a mais formosa. Mas Branca de Neve, que por trás dos montes vive e em casa dos sete anões, é de vós mil vezes mais formosa!
26
A rainha ficou furiosa, pois sabia que o espelho não podia mentir. Percebeu, assim, que o caçador a enganara e que Branca de Neve continuava a viver. Novamente devorada pelo ciúme e pela inveja, só pensava na maneira de suprimi-la encontrando algum alívio só quando julgou ter ao alcance o meio desejado. Pensou, pensou, pensou, depois tingiu o rosto e disfarçou-se em velha vendedora de quinquilharias, de maneira perfeitamente irreconhecível. Assim disfarçada, transpôs as sete montanhas e foi à casa dos sete anões; chegando lá, bateu à porta e gritou: - Belas coisas para vender, belas coisas; quem quer comprar? Branca de Neve, que estava no primeiro andar e se aborrecia por ficar sozinha todo o santo dia, abriu a janela e perguntou-lhe o que tinha para vender. - Oh! Coisas lindíssimas, – respondeu a velha – olhe este fino e elegante cinto. Ao mesmo tempo, mostrava um cinto de cetim cor de rosa, todo recamado de seda multicor. “Esta boa mulher posso deixar entrar sem perigo”,calculou Branca de Neve; então desceu, puxou o ferrolho e comprou o cinto. Mas a velha disse-lhe: - Tu não sabes abotoá-lo! Vem, por esta vez, eu te ajudarei a fazê-lo, como se deve. A menina postou-se confiante na frente da velha, deixando que lhe abotoasse o cinto; então a cruel inimiga, mais que depressa, apertou-o com tanta força, que a menina perdeu a respiração e caiu desacordada no chão.- Ah, ah! - exclamou a rainha, muito contente – Já foste a mais bela! E fugiu rapidamente, voltando ao castelo.Felizmente, os anões, nesse dia, tendo terminado o trabalho mais cedo que de costume, voltaram logo para casa. E qual não foi seu susto ao verem a querida Branca de Neve estendida no chão, rígida como se estivesse morta! Ergueram-na e viram que o cinto apertava demais sua cinturinha. Logo o desabotoaram e ela começou a respirar levemente e, pouco a pouco, voltou a si e pôde contar o que sucedera. Os anões disseram-lhe: - Foste muito imprudente; aquela velha era, sem dúvida, a tua horrível madrasta. Portanto, no futuro, tenha mais cuidado, não deixes entrar mais ninguém quando não estivermos em casa. A pérfida rainha, logo que chegou ao castelo, correu ao espelho, esperando, enfim, ouvi-lo proclamar a sua absoluta beleza, o que para ela soava mais deliciosamente que tudo, e perguntou: - Espelhinho, meu espelhinho, responde-me com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza? 27
Como da outra vez, o espelho respondeu: - Real senhora, do país sois a mais formosa. Mas Branca de Neve, que por trás dos montes vive o em casa dos sete anões… é de vós mil vezes mais formosa! A essas palavras a rainha sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias; empalideceu de inveja e, depois, torcendo-se de raiva, compreendeu que a rival ainda estava viva. Pensou novamente num meio de perder a inocente, causa de seu rancor. “Ah, desta vez hei de arranjar alguma coisa que será a tua ruína!”E, como entendia de bruxedos, pegou num magnífico pente, cravejado de pérolas e besuntou-lhe os dentes com o veneno feito por ela própria.Depois, disfarçando-se de outro modo, dirigiuse para a casa dos sete anões; aí bateu à porta, gritando:- Belas coisas para vender! Coisas bonitas e baratas; quem quer comprar? Branca de Neve abriu a janela e disse: - Podeis seguir vosso caminho boa mulher; eu não posso abrir a ninguém. - Mas olhar, apenas, não te será proibido! – disse a velha – Olha este pente cravejado de pérolas e digno de uma princesa. Pega nele e admira de perto, nada pagarás por isso! Branca de Neve deixou-se tentar pelo brilho das pérolas; depois de o ter bem examinado, quis comprá-lo e abriu a porta à velha, que lhe disse: - Espera, vou ajudar você a pôr o pente nos teus lindos e sedosos cabelos,para que estejas bem adornada. A pobre menina, sem saber, deixou-a fazer; a velha enterrou-lhe o pente com violência; mal os dentes tocaram na pele, Branca de Neve caiu morta sob a ação do veneno. A rainha maldosa resmungou satisfeita:- Enfim bem morta, Flor de Beleza! – Agora tudo se acabou para ti! Adeus! – exclamou, a rainha, soltando uma gargalhada medonha. E apressando-se a regressar ao castelo. Já estava anoitecendo e os anões não tardaram a chegar. Quando viram Branca de Neve estendida no chão, desacordada, logo adivinharam nisso a mão da madrasta. Procuraram o que lhe poderia ter feito e encontraram o pente envenenado. Assim que o tiraram da cabeça, a menina voltou a si e pôde contar que sucedera. Novamente a preveniram que tomasse cuidado e não abrisse aporta, dizendo:- Foi ainda a tua madrasta quem te pregou essa peça. Preciso que nos prometas que nunca mais abrirás a porta, seja lá a quem for. Branca de Neve prometeu tudo o que os anões lhe pediram. Apenas de volta ao castelo, a rainha correu a pegar no espelho e perguntou:- Espelhinho, meu espelhinho, responde-me com 28
franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza? Mas a resposta foi como das vezes anteriores. O espelho repetiu: - Real senhora, do país sois a mais formosa, Mas Branca de Neve, que por trás dos montes vive e em casa dos sete anões, é de vós mil vezes mais formosa! Ao ouvir tais palavras, ela teve um assomo de ódio, grito a raiva malvada: - Hás de morrer, criatura miserável, ainda que eu tenha que o pagar com minha vida! Levou vários dias consultando todos os livros de bruxaria; finalmente fechou-se num quarto, ciosamente oculto, onde jamais entrava alma viva e aí preparou uma maçã, impregnando-a de veneno mortífero.Por fora era mesmo tentadora, branca e vermelha, e com um perfume tão delicioso que despertava a gula de qualquer um; mas, quem provasse um pedacinho, teria morte infalível. Tendo assim preparado a maçã, pintou o rosto e disfarçou-se em camponesa e como tal encaminhou-se, transpondo as sete montanhas e indo bater à casa dos sete anões. Branca de Neve saiu à janela e disse: - Vai embora, boa mulher, não posso abrir a ninguém; os sete anões proibiram. - Não preciso entrar, – respondeu a falsa camponesa – podes ver as maçãs pela janela, se as quiseres comprar. Eu venderei alhures minhas maçãs, mas quero dar-te esta de presente. Vê como ela é magnífica! Seu perfume embalsama o ar. - Prova um pedacinho, estou certa de que a acharás deliciosa! - Não, não, – respondeu Branca de Neve - não me atrevo a aceitar. - Receias, acaso, que esteja envenenada? – disse a mulher – Olha, vou comer a metade da maçã e tu depois poderás comer o resto para veres que deliciosa é ela. Cortou a maçã e pôs-se a comer a parte mais tenra pois a maçã havia sido habilmente preparada, de maneira que o veneno estava todo concentrado na cor vermelha. Branca de Neve, tranquilizada, olhava cobiçosamente para a linda maçã e,quando viu a camponesa mastigar a sua metade, não resistiu, estendeu a mão e pegou a parte envenenada. Apenas lhe deu a primeira dentada, caiu no chão, sem vida. Então a pérfida madrasta contemplou-a com ar feroz. Depois, saltando e rindo com uma alegria infernal, exclamou:- Branca como a neve, rosada como o sangue e preta como o ébano! Enfim, morta, morta, criatura atormentadora! Desta vez nem todos os anões do 29
mundo poderão despertar-te! Apressou-se a voltar ao castelo; mal chegou, dirigiu-se ao espelho e perguntou: - Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza? Desta vez o espelho respondeu: - De toda a redondeza agora, Real senhora, sois vós a mais formosa! Sentiu-se transportada de júbilo e seu coração tranquilizou-se, enfim, tanto quanto é possível a um coração invejoso e mau. Os anões, regressando à noitinha; encontraram Branca de Neve estendida no chão, morta. Levantaram-na e procuraram, em vão, o que pudera causar-lhe a morte; desabotoaram-lhe o vestido, pentearam-lhe o cabelo. Lavaram-na com água e vinho, mas tudo foi inútil: a menina estava realmente morta. Então, colocaram-na num esquife e choraram durante três dias. Depois cuidaram de enterrá-la, porém ela conservava as cores frescas e rosadas como se estivesse dormindo. Eles então disseram:Não, não podemos enterrá-la na terra preta. Fabricaram um esquife de cristal para que fosse visível de todos os lados e gravaram – na tampa, com letras de ouro o seu nome e sua origem real; colocaram-na dentro e levaram-na para o cume da montanha vizinha, onde ficou exposta, e cada um por sua vez ficava ao pé dele para a guardar contra os animais ferozes. Mas podiam dispensar-se disso; os animais, todos da floresta, até mesmo os abutres, os lobos, os ursos, os esquilos e pombinhas, vinham chorar ao pé da inocente Branca de Neve.Muitos anos passou Branca de Neve dentro do esquife, sem apodrecer;parecia estar dormindo, pois sua tez era ainda como a desejara a mãe: branca como a neve, rosada como o sangue e os longos cabelos pretos como ébano; não tinha o mais leve sinal de morte. Um belo dia, um jovem príncipe, filho de um poderoso rei, tendo-se extraviado durante a caça na floresta, chegou à montanha onde Branca de Neve repousava dentro de seu esquife de cristal. Viu-a e ficou deslumbrado com tanta beleza, leu o que estava gravado em letras de ouro e não mais a esqueceu. Pernoitando em casa dos anões disse-lhes:- Dai-me esse esquife; eu vos darei todos os meus tesouros para poder levá-lo ao meu castelo. Mas os anões responderam: - Não; não cedemos a nossa querida filha nem por todo o ouro do mundo. O príncipe caiu em profunda tristeza e permaneceu extasiado na contemplação da beleza tão pura de Branca de Neve; tornou a pedir aos anões:- Fazei-me presente dele, pois já não posso mais viver sem a ter diante de meus olhos; quero dar-lhe as honras que só se prestam ao ser mais amado neste mundo. Ao ouvirem 30
essas palavras, e vendo a grande tristeza do príncipe, os anões compadeceram-se dele e deram-lhe Branca de Neve, certos de que ele não deixaria de colocá-la na sala de honra do seu castelo. O príncipe tendo encontrado seus criados, mandou que pegassem no caixão e o carregassem nos ombros. Aconteceu, porém, que um dos criados tropeçou numa raiz de árvore e, com o solavanco, pulou da boca meio aberta o bocadinho de maçã que ela mordera, mas não engolira. Então Branca de Neve reanimouse; respirou profundamente, abriu os olhos, levantou a tampa do esquife e sentou-se: estava viva. - Meu Deus, onde estou? – exclamou ela. O príncipe, radiante de alegria, disse-lhe: - Estás comigo. Agora acabaram todos os teus tormentos, bela garota; a mais preciosa que tudo quanto há no mundo; vamos ao castelo de meu pai, que é um grande e poderoso rei, e serás a minha esposa bem amada. Como o príncipe era encantador e muito gentil, Branca de Neve aceitou-lhe a mão. O rei muito satisfeito com a escolha do filho mandou preparar tudo para umas núpcias suntuosas. Para a festa, além dos anões, foi convidada também a rainha que, ignorando quem era a noiva, vestiu os seus mais ricos trajes, pensando eclipsar todas as damas e donzelas. Depois de vestida, foi contemplar-se no espelho, certa de ouvir proclamar sua beleza triunfante. Perguntou:- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza?Qual não foi seu espanto ao ouvi-lo responder: - Real senhora, de todas aqui solo a mais bela agora, mas a noiva do filho do rei é de vós mil vezes mais formosa! A perversa mulher soltou uma imprecação e ficou tão exasperada que não podia controlar-se e não queria mais ir à festa. Entretanto, como a inveja não lhe dava tréguas, sentiu-se arrastada a ver a jovem rainha. Quando fez a entrada no castelo, perante a corte reunida, Branca de Neve logo reconheceu sua madrasta e quase desmaiou de susto. A horrível mulher fitava-a como uma serpente ao fascinar um passarinho. Mas sobre o braseiro já estavam prontos um par de sapatos de ferro, que haviam ficado a esquentar em ponto de brasa; os anões apoderaram-se dela e, calçando-lhe à força aqueles sapatos quentes como fogo, obrigaram-na a dançar,a dançar, a dançar, até cair morta no chão. Em seguida, realizou-se a festa com um esplendor jamais visto sobre a terra, e todos, grandes e pequenos, ficaram profundamente alegres.
31
A Polegarzinha (Conto original de Andersen)
Era uma vez uma mulher que queria ter um filho muito pequenino, mas não sabia como havia de fazer para encontrar um. Então, foi ter com uma velha bruxa e disselhe: — Gostava tanto de ter um filho pequenino! Não sabes dizer-me onde posso arranjar um? — Oh, isso não é difícil — disse a bruxa. — Aqui tens um grão de cevada, e olha que não é da que cresce nos campos dos lavradores nem daquela que as galinhas comem. Planta este grão num vaso e verás o que acontece! — Oh, obrigada! — disse a mulher, dando uma moeda de prata à bruxa. Depois foi para casa e semeou o grão. Não foi preciso esperar muito tempo para que nascesse uma bela flor; parecia uma túlipa, mas as pétalas estavam muito fechadas como se fosse ainda um botão. — Que linda flor! — disse a mulher, dando um beijo nas pétalas vermelhas e amarelas. Nesse preciso momento, a flor abriu-se com um forte estalido. Era realmente uma túlipa — agora se via bem —, mas mesmo no centro da flor, no centro verde, estava sentada uma menina minúscula, graciosa e delicada como uma fada. Não era maior que metade de um polegar, e por isso ficou a chamar-se Polegarzinha.A cama em que dormia era uma casca de noz muito bem polida; tinha um colchão de pétalas de violeta azuis-escuros e o seu cobertor era uma pétala de rosa. 32
Dormia ali à noite, mas durante o dia brincava em cima da mesa, onde a mulher tinha posto um prato de sopa cheio de água com um círculo de flores à volta, com os caules virados para o meio. Dentro do prato, a flutuar, estava uma grande pétala de túlipa em que a Polegarzinha se podia sentar e remar de um lado para o outro usando dois pêlos brancos de cavalo como remos. Era lindo de se ver! Ela também sabia cantar, e tinha a vozinha mais frágil e mais doce que jamais se ouviu.Uma noite, quando estava deitada na sua linda cama, um sapo entrou no quarto através de um vidro partido da janela. O sapo parecia muito grande e estava molhado quando saltou para cima da mesa onde a Polegarzinha dormia profundamente debaixo da sua pétala de rosa. — Ora aqui está uma bela esposa para o meu filho! — disse o sapo.E pegou na cama de casca de noz em que a Polegarzinha estava a dormir e saltou com ela através da janela para o jardim. No fim do jardim corria um largo regato, de margens pantanosas e lamacentas; era aí que o sapo vivia com o seu filho.Este não era nada bonito; na realidade, era igualzinho ao pai. — Croc! Croc! Brec-rec-rec! — foi tudo quanto disse quando viu a linda menina na casca de noz. — Não fales tão alto, se não ela acorda — disse-lhe o pai. — Olha que pode fugir, porque é leve como uma pena de cisne. Já sei, vamos pô-la no meio do rio, em cima de uma daquelas grandes folhas de nenúfar! Assim, ela vai pensar que está numa ilha, porque é uma criaturinha minúscula. Entretanto, nós podemos começar a preparar o melhor quarto debaixo da lama, para vocês os dois lá viverem.No regato, havia muitos nenúfares com grandes folhas verdes que pareciam flutuar soltas na água. A folha que estava mais longe era também a maior de todas, e foi nela que o velho sapo poisou a casca de noz com a Polegarzinha. A pobre menina acordou muito cedo e, quando viu onde estava, começou a chorar amargamente, porque havia água a toda a volta da grande folha e era impossível voltar para terra.Entretanto, o velho sapo andava metido na lama, decorando atarefadamente o quarto com juncos e flores aquáticas amarelas, para ficar bonito e alegre para a sua futura nora. Depois, acompanhado pelo filho, nadou até à folha onde estava a Polegarzinha. Iam buscar a linda cama de casca de noz para a colocarem no quarto antes de a noivazinha ir para lá. O velho sapo, ainda dentro de água, fez uma profunda vênia e disse à Polegarzinha:
33
— Este é o meu filho. Vai ser o teu marido, e vocês os dois vão viver muito felizes numa bela casa debaixo da lama. — Croc! Croc! Brec-rec-rec! — foi tudo o que o filho disse. Então, pegaram na bonita caminha e lá foram a nadar com ela, enquanto a Polegarzinha ficava sozinha na folha verde, a chorar, porque não lhe apetecia nada viver com o velho sapo nem casar com o filho dele. Ora os peixinhos que nadavam ali por baixo tinham visto o sapo e ouvido o que ele dissera, de maneira que deitaram as cabeças de fora para verem a menina. Mas, assim que o fizeram, viram como era bonita e ficaram cheios de pena por ela ter de ir viver na lama com o sapo. Não, isso não podia acontecer! Juntaram-se em redor do pé verde da folha em que ela estava e puseram-se a roê-lo sem parar. Lá foi a folha, flutuando pelo regato, levando a Polegarzinha para longe, cada vez para mais longe, para onde o sapo não podia ir.Quando ela passava, os passarinhos nas árvores cantavam "Que linda criaturinha!" assim que a viam. E a folha lá ia a deslizar, cada vez para mais longe - e foi assim que a Polegarzinha chegou a outro país. Uma linda borboleta branca esvoaçava por cima dela e acabou por poisar na folha, porque tinha começado a gostar da menina. Como ela estava feliz agora! O sapo já não podia apanhá-la e era tudo maravilhoso à sua volta, para onde quer que olhasse. A água, onde o sol brilhava, parecia ouro a cintilar. A Polegarzinha tirou o seu cinto e deu uma ponta à borboleta amiga e atou a outra à folha. Agora é que ia mesmo depressa!Nesse momento, um grande escaravelho apareceu a voar por cima dela. Assim que viu a menininha, agarrou-a num ápice pela cintura e voou com ela para o cimo de uma árvore. A folha verde continuou a flutuar rio abaixo com a borboleta. Meu Deus! Como a Polegarzinha ficou assustada quando o escaravelho a levou para cima da árvore! E como teve pena da sua amiga, a borboleta branca! Mas o escaravelho não queria saber disso. Poisou na maior folha verde da árvore e largou-a aí. Deu-lhe pólen para comer e disse-lhe que ela era muito bonita, embora não tanto como um escaravelho. Em breve, todos os outros escaravelhos que viviam na árvore foram visitá-la. Olhavam para ela, e as jovens escaravelhas encolhiam as antenas, dizendo: "Mas só tem duas pernas, este insecto miserável! Não tem antenas! Tem uma cintura tão fina! Parece mesmo humana! Que feia que é!", e por aí fora, apesar de a Polegarzinha ser realmente uma criatura linda. O escaravelho que a tinha levado também era desta opinião, mas quando todas as escaravelhas disseram que ela era horrível, ele começou a pensar o mesmo e acabou por não querer saber dela; podia ir para onde quisesse. Várias escaravelhas pegaram nela e voaram até ao solo, deixando-a em cima 34
de uma margarida. Lá ficou ela a chorar, por ser tão feia que os escaravelhos não a queriam — e, no entanto, era a criaturinha mais bonita que se podia imaginar, mais bela que a mais perfeita pétala de rosa.Durante todo o Verão, a pobre Polegarzinha viveu completamente sozinha na grande floresta. Teceu uma cama com ervas e pendurou-a como se fosse uma rede por baixo de uma grande folha de azeda, para ficar abrigada da chuva. Para comer apanhava mel e pólen das flores e bebia as gotas de orvalho que encontrava todas as manhãs nas folhas. E assim passou o Verão e o Outono, mas depois chegou o Inverno, o longo e frio Inverno. Os passarinhos, que tão docemente tinham cantado, voavam agora para longe, as árvores perdiam as folhas, as flores murchavam. Depois, a grande folha de azeda que lhe fazia de telhado começou a enrolar-se e murchou, até que ficou apenas uma haste seca e amarela. A Polegarzinha tinha imenso frio, porque o seu vestido estava todo roto e ela era muito frágil e pequenina. Em breve morreria de frio. A neve começou a cair, e cada floco que caía sobre ela era tão pesado como uma pazada atirada a um de nós. Afinal, ela só tinha dois centímetros e meio de altura. Embrulhou-se numa folha murcha, mas não conseguiu aquecer-se, e tremia cada vez mais. Por essa altura, já tinha alcançado a orla da floresta. Mesmo ao lado havia um grande campo de trigo, mas este tinha sido ceifado há muito tempo e só se via o restolho seco na terra gelada. Para ela, aquilo era o mesmo que uma floresta para atravessar e oh! Como ela tremia de frio! Finalmente, chegou à porta de um rato do campo, que vivia numa casinha por baixo do restolho. Era aconchegada e confortável, com um armazém cheio de trigo, uma cozinha quente e uma sala de jantar. A pobre Polegarzinha parou à porta da casa do rato como se fosse uma mendiga e pediu se ele lhe dava um bocadinho de um grão, porque já há dois dias que não comia nada. — Pobrezinha! — disse o rato do campo, que tinha muito bom coração. — Vem para a cozinha, que está quente, e comes comigo. Gostou tanto da companhia da Polegarzinha que acabou por lhe dizer: — Podes ficar comigo durante o Inverno, mas tens de limpar e arrumar a casa e contar-me histórias. Gosto muito de histórias. A Polegarzinha fez o que o velho rato do campo lhe disse; e o tempo foi passando agradavelmente. — Em breve teremos uma visita — disse o rato do campo. — O meu vizinho vem visitar-me todas as semanas. A casa dele ainda é melhor do que a minha, com grandes e belos quartos, e ele usa um lindo casaco de veludo preto! Se conseguisses que ele 35
casasse contigo, nunca mais te faltaria nada. Mas ele é quase cego, de maneira que tens de te preparar para lhe contar as melhores histórias que souberes. A Polegarzinha não gostou muito da ideia. Não lhe apetecia nada casar com o vizinho rico; era um toupeiro, e veio fazer a sua visita com o casaco de veludo preto. O rato do campo lembrou à Polegarzinha como ele era rico e culto; disse-lhe que a casa dele era vinte vezes maior do que a sua.Que ele sabia muitas, muitas coisas, embora não gostasse do sol e das lindas flores, porque nunca os tinha visto. A Polegarzinha teve de cantar para ele, e cantou Tive uma nogueirazinha e Joaninha voa, voa. O toupeiro apaixonou-se pela sua linda voz, mas não disse nada, porque era muito cauteloso. Ele tinha escavado recentemente uma passagem muito longa, que ia da sua casa à do vizinho, e disse ao rato do campo e à Polegarzinha que podiam ir visitá-lo quando quisessem. Mas pediu-lhes que não tivessem medo da ave morta que estava na passagem. Contou-lhes que a ave não tinha qualquer marca nem ferida, não lhe faltavam penas, e o bico estava intacto; devia ter morrido há muito pouco tempo, com a chegada do Inverno, e, de alguma maneira, tinha caído na sua passagem subterrânea. Então, o toupeiro agarrou num pedaço de madeira podre com a boca (porque a madeira podre brilha como fogo no escuro) e foi à frente para iluminar a longa passagem para os seus convidados. Depressa chegaram ao sítio onde estava a ave, e o toupeiro empurrou o tecto com o focinho largo, levantando a terra para fazer um buraco que deixou entrar a luz do dia. E lá estava uma andorinha, com as lindas asas encostadas ao corpo, as pernitas e a cabeça escondidas nas penas; a pobre ave de certeza que tinha morrido de frio. A Polegarzinha teve muita pena dela, porque amava todas as avezinhas, que tinham cantado e chilreado para ela de uma maneira tão encantadora durante todo o Verão. Mas o toupeiro empurrou a andorinha para o lado com as suas pernitas curtas e disse: — Esta já não assobia mais! Que pouca sorte nascer ave! Felizmente que nenhum dos meus filhos será como elas. Uma ave não sabe fazer nada a não ser dizer tuit-tuit e depois morrer de fome no Inverno! — Sim, lá nisso tens razão — disse o rato do campo. — Com todo o seu tuit-tuit, que é que elas fazem quando chega o Inverno? Morrem de fome e de frio. E, no entanto, toda a gente as acha muito importantes.
36
A Polegarzinha não disse uma palavra, mas, quando os outros recomeçaram a andar, baixou-se, afastou meigamente as penas da cabeça da andorinha e beijou-lhe os olhos fechados. — Talvez esta seja a que cantou tão suavemente para mim durante o Verão — pensou. — Que felicidade me deu esta pobre avezinha da floresta!Então, o toupeiro tapou o buraco que tinha feito para deixar entrar a luz do dia e acompanhou as visitas a casa. Mas nessa noite a Polegarzinha não conseguia dormir, de maneira que levantou-se e teceu uma cobertazinha de feno. Quando acabou, foi pô-la em cima da ave. Ao lado, deixou um pouco de lanugem de cardo que tinha encontrado na sala de estar do rato do campo, para que a ave pudesse repousar quentinha sobre a terra fria. — Adeus, linda andorinha! — disse ela. — Adeus e obrigada pelas tuas belas canções no Verão, quando as árvores estavam verdes e o Sol brilhava tão alegremente sobre nós todos!Depois encostou a cabeça ao coração da andorinha — mas ficou logo muito espantada, porque parecia que alguma coisa batia lá dentro. Era o coração da andorinha a bater. Não estava morta, apenas entorpecida pelo frio, e, como tinha sido aquecida, começava a voltar a si.No Outono, as andorinhas voam todas para terras mais quentes, mas, se uma delas se atrasa, o frio pode fazê-la gelar; então cai no chão e depressa fica coberta de neve.A Polegarzinha tremia, assustada; a ave era muito maior do que ela, que só tinha dois centímetros e meio de altura. Mas encheuse de coragem e aconchegou a lanugem de cardo ao corpo da pobre andorinha. Depois, foi a correr buscar a sua coberta, uma folha de hortelã, para lhe tapar a cabeça.Na noite seguinte, esgueirou-se outra vez para visitar a andorinha — ela estava realmente viva, mas tão fraca que mal pôde abrir os olhos para olhar para a Polegarzinha. Ali estava ela, com um pedacinho de madeira podre na mão, porque não tinha outra lanterna. — Obrigada, obrigada, linda menina — disse a andorinha doente. — Aqueceste-me tão bem que depressa estarei suficientemente forte para voar ao sol brilhante. — Oh! — exclamou a Polegarzinha — ainda está muito frio lá fora! Há neve e gelo por todo o lado. Fica aí na tua caminha quente que eu trato de ti.Depois levou-lhe água numa folha, e a andorinha bebeu e contou-lhe como tinha magoado uma asa numas silvas e, por isso, não tinha conseguido voar tão depressa como as outras andorinhas quando partiram para terras mais quentes. Por fim, acabara por cair, e não se lem37
brava de mais nada. Não fazia a menor ideia de como tinha ido parar ali.Durante todo o Inverno, a andorinha ficou na passagem subterrânea. A Polegarzinha tratou dela e tornou-se muito sua amiga. Mas não disse nada ao toupeiro nem ao rato do campo, porque eles não gostavam de avezinhas. Por fim, chegou a Primavera e os raios de Sol começaram a atravessar a terra. A andorinha disse adeus à Polegarzinha e reabriu o buraco que o toupeiro tinha feito no tecto da passagem. A luz do Sol encheu ambas de alegria, e a andorinha pediu à Polegarzinha que fosse com ela; podia subir para as suas costas e voariam para a floresta cheia de verdura. Mas a Polegarzinha sabia que o velho rato do campo ficaria triste se ela se fosse embora assim sem mais nem menos. — Não, não posso ir — disse ela. — Então adeus, adeus, linda menina bondosa! — respondeu a andorinha, voando em direcção ao Sol.A Polegarzinha viu-a subir no céu, e os seus olhos encheram-se de lágrimas, porque se tinha tornado muito amiga da pobre andorinha. — Tuit, tuit! — cantou a avezinha, voando em direcção à floresta verde. A Polegarzinha estava agora muito triste. Não a deixavam sair para a claridade do Sol, e, nos campos onde vivia, o trigo era tão alto que, para ela, era como uma floresta que se erguia muito acima da sua cabeça. — Tens de ter o teu enxoval pronto este Verão — disse o rato do campo, porque, entretanto, o vizinho toupeiro do casaco de veludo tinha proposto casamento à Polegarzinha. — Precisas de roupas de linho e lã e de muitos cobertores e lençóis quando fores casada com o toupeiro. A Polegarzinha teve de trabalhar arduamente com a roca, e o toupeiro contratou quatro aranhas para tecerem para ela de dia e de noite. Todas as tardes lhe fazia uma vista e dizia sempre que, quando o Verão acabasse e o Sol não estivesse tão terrivelmente quente e deixasse de queimar a terra até a deixar dura com uma pedra, então casariam. Mas a Polegarzinha não estava nada satisfeita, porque não gostava daquele velho toupeiro tão pomposo. Todas as manhãs, quando o Sol se erguia, e todas as noites, quando se punha, ela esgueirava-se lá para fora; quando o vento fazia ondular as espigas de trigo, conseguia ver o céu azul e pensava sempre como era bom e belo viver ao ar livre. Desejava imenso ver de novo a sua a-
38
miga andorinha, mas ela não voltou a aparecer; tinha voado para o bosque verde coberto de folhas.Quando o Outono chegou, o enxoval da Polegarzinha estava pronto. — Casas daqui a quatro semanas — disse o rato do campo.Mas a Polegarzinha começou a chorar e disse que não queria casar com o toupeiro. — Que disparate! — respondeu o rato do campo. — Não te ponhas com problemas. Arranjaste um marido esplêndido, pois nem a rainha tem um casaco de veludo preto tão bom como o dele! E pensa naquela cozinha e cave tão bem fornecidas! Deves agradecer a tua boa sorte.E, assim, chegou o dia do casamento. O toupeiro já tinha ido buscar a Polegarzinha, pois ela ia viver com ele bem debaixo do solo; nunca mais poderia apanhar a luz radiante do Sol, porque o toupeiro não a suportava. Cheia de tristeza, foi dizer o último adeus ao Sol brilhante; enquanto vivera com o rato do campo, sempre a tinham deixado ir pelo menos até à porta. — Adeus, Sol brilhante! — disse ela, erguendo os braços em direção a ele e dando alguns passos no campo imenso, pois o trigo tinha sido ceifado e só ficara restolho. — Adeus, adeus — disse ela outra vez, abraçando uma florzinha vermelha que crescia por entre os caules. — Se alguma vez tornares a ver a andorinha, diz-lhe que lhe mando saudades! Nesse preciso momento ouviu um som — tuit, tuit — mesmo por cima de si. Era a andorinha. Como estava contente por ver a sua amiga Polegarzinha! Então esta contou-lhe que tinha de casar nesse mesmo dia com o toupeiro e ir viver com ele debaixo da terra, onde o Sol nunca brilhava. E as lágrimas saltaram-lhe dos olhos só de pensar nisso. — Vem aí o frio Inverno — disse a andorinha. — Vou voar para longe, para os países quentes. Por que não vens comigo? Podes subir para as minhas costas e atares-te mim com o teu cinto. Deixamos o toupeiro e a sua casa escura e voamos para muito,muito longe, por cima das montanhas, para um país onde o Sol brilha ainda mais do que aqui, onde é sempre Verão e onde as matas e as florestas estão cobertas das mais belas flores. Ah, vem comigo, querida Polegarzinha, tu que me salvaste a vida quando eu estava gelada na escura passagem debaixo da terra! — Sim, vou contigo — acabou por dizer a Polegarzinha. Sentou-se nas costas da ave e atou o cinto a uma das suas penas mais fortes. Então, a andorinha ergueu-se muito alto no céu e voou por cima de florestas, lagos e montanhas onde há sempre neve. O 39
ar gelado fazia a Polegarzinha tremer, mas ela enfiava-se debaixo das penas quentes da ave e só espreitava para olhar, assombrada, para as belas coisas lá em baixo. Por fim, chegaram aos países quentes. Aí, o Sol brilhava com muito mais intensidade do que a Polegarzinha supunha ser possível; o céu parecia duas vezes mais alto. Ao longo das estradas, havia deliciosas uvas brancas e roxas; limões e laranjas pendiam das árvores; o ar estava perfumado de mirto e de muitas outras plantas aromáticas; e, pelos caminhos, corriam muitas crianças lindas, a brincar por entre coloridas borboletas. Mas a andorinha voou ainda para mais longe, para onde a paisagem era também ainda mais bonita. E então, à sombra de enormes árvores verdes, na margem de um lago azul-safira, viram um palácio muito antigo construído em mármore branco, com videiras enroladas nas suas altas colunas. Mesmo no cimo das colunas havia muitos ninhos de andorinhas, e num deles vivia a amiga da Polegarzinha. — A minha casa é esta — disse ela. — Mas, se quiseres escolher uma daquelas lindas flores ali em baixo, eu ponho-te lá, e podes viver feliz à tua vontade. — Ah, como vou gostar! — gritou a Polegarzinha, batendo as mãozinhas. Uma grande coluna branca estava caída por terra, partida em três bocados, e entre eles cresciam altas e belas flores brancas. A andorinha voou até lá abaixo com a Polegarzinha e poisou-a numa pétala. Então, a Polegarzinha teve uma grande surpresa. Ali, no centro da flor, estava um principezinho, tão belo e delicado que parecia feito de vidro. Tinha na cabeça a coroa de ouro mais bonita que pode imaginar-se e nos ombros um par de asas coloridas e brilhantes, e não era maior do que a própria Polegarzinha. Era o espírito que guardava a flor. Em cada flor havia uma criaturinha igual, mas ele era o rei de todas. — Que bonito que ele é! — sussurrou a Polegarzinha à andorinha. O principezinho ao princípio ficou muito assustado com a ave, que lhe parecia gigantesca, mas quando viu a Polegarzinha ficou cheio de alegria. Achou que ela era a mais bela de todas as criaturas que jamais tinha visto, mesmo entre as fadas das flores. Tirou a coroa de ouro da sua cabeça e colocou-a na dela e perguntou-lhe como se chamava e se queria ser sua mulher e rainha de todas as flores. Bem, este marido podia ela amar de verdade — era muito diferente do filho do sapo ou do velho toupeiro com o seu casaco de veludo. E por isso disse que sim ao belo príncipe. Então, ergueu-se de cada flor uma criaturinha, rapaz ou rapariga, homem ou mulher, tão pequeninas e tão bonitas que era emocionante vê-las. Todas deram uma prenda à Polegarzinha, mas a melhor 40
de todas foi um lindo par de asas. Prenderam-nas aos ombros da Polegarzinha, e agora também ela podia voar de flor em flor. Toda a gente estava cheia de alegria: era como uma maravilhosa festa de Verão. A andorinha, lá em cima no seu ninho, cantou-lhes a canção mais bonita que sabia, mas no fundo estava triste, porque gostava tanto da Polegarzinha que não queria separar-se dela. — Nunca mais te chamarás Polegarzinha — declarou o príncipe das flores. — Não é um nome suficientemente bonito para uma criatura tão bela como tu. A partir de agora, vamos chamar-te Maia! — Adeus, adeus — disse a andorinha, quando chegou a altura de voar de novo dos países quentes para a Dinamarca. Aí, ela tinha um pequeno ninho ao lado da janela do homem que escreve contos de fadas. — Ouve, ouve — trinou a andorinha para o escritor de contos de fadas... E foi assim que soubemos esta história.
41
As 12 princesas do Folclore (Conto original de Andersen)
Era uma vez um rei que tinha doze filhas muito lindas. Dormiam em doze camas, todas no mesmo quarto; e quando iam para a cama, as portas do quarto eram trancadas a chave por fora. Pela manhã, porém, os seus sapatos apresentavam as solas gastas, como se tivessem dançado com eles toda a noite; ninguém conseguia descobrir como acontecia isso. Então, o rei anunciou por todo o país que se alguém pudesse descobrir o segredo, e saber onde as princesas dançavam de noite, casaria com aquela de quem mais gostasse e seria o seu herdeiro do trono; mas quem tentasse descobrir isso, e ao fim de três dias e três noites não o conseguisse, seria morto. Apresentou-se logo o filho de um rei. Foi muito bem recebido e à noite levaram-no para o quarto ao lado daquele onde as princesas dormiam nas suas doze camas. Ele tinha que ficar sentado para ver onde elas iam dançar; e, para que nada se passasse sem ele ouvir, deixaram-lhe aberta a porta do quarto. Mas o rapaz daí a pouco adormeceu; e, quando acordou de manhã, viu que as princesas tinham dançado de noite, porque as solas dos seus sapatos estavam cheias de buracos. O mesmo aconteceu nas duas noites seguintes e por isso o rei ordenou que lhe cortassem a cabeça. Depois dele vieram vários outros; nenhum teve melhor sorte, e todos perderam a vida da mesma maneira. Ora, um ex-soldado, que tinha sido ferido em combate e já não mais podia guerrear, chegou ao país. Um dia, ao atravessar uma floresta, encontrou uma velha, que lhe perguntou aonde ia. — Quero descobrir onde é que as princesas dançam, e assim, mais tarde, vir a ser rei. — Bem, disse a velha, isso não custa muito. Basta que tenhas cuidado e não bebas do vinho que uma das princesas te trouxer à noite. Logo que ela se afastar, deves fingir estar dormindo profundamente. E, dando-lhe uma capa, acrescentou: — Logo que puseres esta capa 42
tornar-te-ás invisível e poderás seguir as princesas para onde quer que elas forem. Quando o soldado ouviu estes conselhos, foi ter com o rei, que ordenou lhe fossem dados ricos trajes; e, quando veio a noite, conduziram-no até o quarto de fora. Quando ia deitar-se, a mais velha das princesas trouxe-lhe uma taça de vinho, mas o soldado entornou-a toda sem ela o perceber. Depois estendeu-se na cama, e daí a pouco pôs-se a ressonar como se estivesse dormindo. As doze princesas puseram-se a rir, levantaram-se, abriram as malas, e, vestindo-se esplendidamente, começaram a saltitar de contentes, como se já se preparassem para dançar. A mais nova de todas, porém, subitamente preocupada, disse: — Não me sinto bem. Tenho certeza de que nos vai suceder alguma desgraça. — Tola!, replicou a mais velha. Já não te lembras de quantos filhos de rei nos têm vindo espiar sem resultado? E, quanto ao soldado, tive o cuidado de lhe dar a bebida que o fará dormir. Quando todas estavam prontas, foram espiar o soldado, que continuava a ressonar e estava imóvel. Então julgaram-se seguras; e a mais velha foi até a sua cama e bateu palmas: a cama enfiou-se logo pelo chão abaixo, abrindo-se ali um alçapão. O soldado viu-as descer pelo alçapão, uma atrás das outra. Levantou-se, pôs a capa que a velha lhe tinha dado, e seguiu-as. No meio da escada, inadvertidamente, pisou a cauda do vestido da princesa mais nova, que gritou às irmãs: — Alguém me puxou pelo vestido! —Que tola! Disse a mais velha. Foi um prego da parede. Lá foram todas descendo e, quando chegaram ao fim, encontraram-se num bosque de lindas árvores. As folhas eram todas de prata e tinham um brilho maravilhoso. O soldado quis levar uma lembrança dali, e partiu um raminho de uma das árvores. Foram ter depois a outro bosque, onde as folhas das árvores eram de ouro; e depois a um terceiro, onde as folhas eram de diamantes. E o soldado partiu um raminho em cada um dos bosques. Chegaram finalmente a um grande lago; à margem estavam encostados doze barcos pequeninos, dentro dos quais doze príncipes muito belos pareciam à espera das princesas. Cada uma das princesas entrou em um barco, e o soldado saltou para onde ia a mais moça. Quando iam atravessando o lago, o príncipe que remava o barco da princesa mais nova disse: —Não sei por que é, mas apesar de estar remando com quanta força tenho, parece-me que vamos mais devagar do que de costume. O barco parece estar hoje muito pesado. — Deve ser do calor do tempo, disse a jovem princesa. Do outro lado do lago ficava um grande castelo, de onde vinha um som de clarins e trompas. Desembarcaram todos e entraram no castelo, e cada príncipe dançou com a sua princesa; o soldado invisível dançou entre eles, também; e quando punham uma taça de vinho junto a qualquer 43
das princesas, o soldado bebia-a toda, de modo que a princesa, quando a levava à boca, achava-a vazia. A mais moça assustava-se muito, porém a mais velha fazia-a calar. Dançaram até as três horas da madrugada, e então já os seus sapatos estavam gastos e tiveram que parar. Os príncipes levaram-nas outra vez para o outro lado do lago - mas desta vez o soldado veio no barco da princesa mais velha - e na margem oposta despediram-se, prometendo voltar na noite seguinte. Quando chegaram ao pé da escada, o soldado adiantou-se às princesas e subiu primeiro, indo logo deitarse.As princesas, subindo devagar, porque estavam muito cansadas, ouviam-no sempre ressonando, e disseram: —Está tudo bem. Depois despiram-se, guardaram outra vez os seus ricos trajes, tiraram os sapatos e deitaram-se. De manhã o soldado não disse nada do que tinha visto, mas desejando tornar a ver a estranha aventura, foi ainda com as princesas nas duas noites seguintes. Na terceira noite, porém, o soldado levou consigo uma das taças de ouro como prova de onde tinha estado. Chegada a ocasião de revelar o segredo, foi levado à presença do rei com os três ramos e a taça de ouro. As doze princesas puseram-se a escutar atrás da porta para ouvir o que ele diria. Quando o rei lhe perguntou: —Onde é que as minhas doze filhas gastam seus sapatos de noite? Ele respondeu: —Dançando com doze príncipes num castelo debaixo da terra. Depois contou ao rei tudo o que tinha sucedido, e mostrou-lhe os três ramos e a taça de ouro que trouxera consigo. O rei chamou as princesas e perguntoulhes se era verdade o que o soldado tinha dito. Vendo que seu segredo havia sido descoberto, elas confessaram tudo. O rei perguntou ao soldado com qual delas ele gostaria de casar. —Já não sou muito novo, respondeu, - por isso quero a mais velha. Casaram-se nesse mesmo dia e o soldado tornou-se herdeiro do trono. Quanto às outras princesas e seus bailes no castelo encantado... Pelos buracos nas solas dos sapatos, elas continuam dançando até hoje...
44
Barba Azul (Conto original de Charles Perrault)
Era uma vez um homem que tinha belas casas na cidade e no campo, baixela de ouro e prata, móveis trabalhados e carruagens douradas; mas, por desventura, esse homem tinha a barba azul: isto o fazia tão feio e tão terrível que não havia mulher nem moça que não fugisse ao vê-lo. Uma de suas vizinhas, dama de alta linhagem, tinha duas filhas absolutamente belas. Ele pediu-lhe uma delas em casamento, deixando a escolha à vontade materna. Nenhuma das duas o queria, e cada uma o passava à outra, pois nenhuma podia decidirse a aceitar um homem de barba azul. Aborrecia-as também a circunstância de ele já ter desposado várias mulheres sem que ninguém soubesse o que era feito delas. Para travar relações com as moças, Barba-Azul levou-as, juntamente com a mãe e as três ou quatro melhores amigas, e algumas jovens da vizinhança, a uma das suas casas de campo, onde passaram nada menos de oito dias. E eram só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e merendas: ninguém dormia, levavam a noite a pregar peças uns aos outros; afinal, tudo correu às mil maravilhas, e a mais nova das meninas começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul, e que era homem muito digno. E, logo que tornaram à vaidade, realizou-se o casamento. Ao cabo de um mês, Barba-Azul disse à mulher que tinha de fazer uma viagem à província, de seis semanas, no mínimo, para um negócio de importância; que lhe pedia se divertisse à vontade durante a ausência dele – mandasse buscar suas boas amigas, levasse-as ao campo, se quisesse, comesse do bom e do melhor. - Aqui estão – disse-lhe – as chaves dos dois grandes guarda-móveis; aqui as da baixela de ouro e de prata que só se usa nos grandes dias; aqui as dos meus cofres, onde 45
está o meu ouro e a minha prata, as dos cofres de minhas jóias e aqui a chave de todas as dependências da casa. Esta chavezinha é a chave do gabinete que fica no extremo da grande galeria do porão: pode abrir tudo, pode ir aonde quiser, mas neste pequeno gabinete eu lhe proíbo de entrar, e o proíbo de tal maneira que, se acontecer abri-lo, não há nada que você não possa esperar da minha cólera. Ela prometeu cumprir à risca tudo quanto acabava de ser ordenado: e ele, depois de beijá-la, toma sua carruagem e parte. As vizinhas e as boas amigas não esperaram, para ir à residência da jovem esposa, que as mandassem buscar, tão sôfregas estavam de ver-lhe todas as riquezas da casa, não havendo ousado ir lá enquanto o marido se achava por causa de sua barba azul, que lhes fazia medo. E ei-las, sem perda de tempo, a percorrer os quartos, gabinetes, vestiários, cada um mais belo que os outros. Subiram depois aos guarda-móveis, onde não se cansavam de admirar o número e a beleza das tapeçarias, dos leitos, dos sofás, dos guarda-roupas, dos veladores, das mesas e dos espelhos, nos quais a gente se via da cabeça aos pés, e cujos ornatos, uns de vidro, outros de prata, ou de prata dourada, eram os mais belos e magníficos que já se poderiam ter visto. Não cessavam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, a quem, no entanto, não alegravam todas essas riquezas, ansiosa que estava de abrir o gabinete do porão. Sentiu-se tão premida pela curiosidade que, sem refletir que era uma indelicadeza deixas sozinhas as visitas, desceu até lá por uma escadinha oculta, e com tamanha precipitação que por duas ou três vezes pensou em quebrar o pescoço. Chegando à porta do gabinete, aí se deteve algum tempo, lembrando-se da proibição que o marido lhe fizera e considerando que lhe poderia acontecer uma desgraça por haver sido desobediente; mas a tentação era tão forte que ela não a pôde vencer: tomou da chavezinha e abriu trêmula, a porta do gabinete. A princípio não viu coisa alguma, porque as janelas se achavam fechadas; momento depois começou a notar que o soalho estava todo coberto de sangue coalhado, no qual se espelhavam os corpos de várias mulheres mortas, presas ao longo das paredes (eram todas mulheres que Barba-Azul desposara e que havia estrangulado). Cuidou morrer de susto, e a chave do gabinete que acabava de retirar da fechadura, caiu-lhe da mão. Após haver recobrado um pouco o ânimo, apanhou a chave, fechou a porta e subiu ao quarto para refazer-se; não o conseguia, porém, devido à sua grande perturbação.
46
Tendo notado que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue não desaparecia; lavou-a, esfregou-a com sabão e pedrapomes; debalde: o sangue ficava sempre, pois a chave era fada, e não havia meio de limpá-la inteiramente: quando se tirava o sangue de um lado, ele voltava do outro. Barba-Azul regressou de sua viagem logo nessa noite, e disse haver recebido, no caminho, notícias de que o negócio que o levara a partir acabara de realizar-se com vantagem para ele. A mulher fez quanto pôde para se mostrar encantada com esse breve retorno. No dia seguinte ele pediu-lhe as chaves, e ela as entregou, porém a mão tremia tanto que Barba-Azul adivinhou sem esforço todo o ocorrido. - Por que é – perguntou-lhe – que a chave do gabinete não está junto com as outras? - Devo tê-las deixado lá em cima, sobre a minha mesa. - Quero a chave aqui, já! Depois de várias delongas, a mulher teve que levá-la. Barba-Azul examinou-a e disse: - Por que há sangue nesta chave? - Não sei nada disso – respondeu a pobre criatura, mais pálida que a morte.> - Você não sabe nada – continuou ele – mas eu sei muito bem; você quis entrar no meu gabinete! Está certo, senhora, lá entrará e irá ter o seu lugar ao lado das que lá encontrou. Ela se atirou aos pés do marido, chorando e pedindo-lhe perdão, com todos os sinais de um arrependimento sincero de não haver sido obediente. Bela e aflita como estava, seria capaz de enternecer um rochedo; mas Barba-Azul tinha o coração mais duro que um rochedo: - Tem de morrer, senhora, e imediatamente. - Visto que tenho que morrer – respondeu ela, fitando-o com os olhos banhados de lágrimas – dê-me um pouco de tempo para rezar a Deus. - Dou-lhe meio quarto de hora – replicou Barba-Azul – e nem um momento a mais. Quando ela se viu sozinha, chamou a irmã e disse-lhe: - Minha irmã, sobe ao alto da torre, eu te suplico, para ver se meus irmãos não vêm; eles me prometeram que me viriam ver hoje, e, se os vires, faze-lhes sinal para que se apressem. A irmã subiu ao alto da torre, e a pobre aflita gritava-lhe de vez em quando: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? E a irmã respondia: 47
- Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja. Entrementes, Barba-Azul, com um grande cutelo na mão, gritava para a esposa com toda a força: - Desce depressa, ou eu subirei aí. - Mais um momento, por favor -, respondia-lhe a mulher. E logo, baixinho: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? E a irmã Ana respondia: - Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja. - Desce depressa – bradava Barba-Azul -, ou eu subirei aí. - Já vou – respondeu a mulher. E depois: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? - Só vejo – respondeu a irmã Ana – uma grossa poeira que vem desta banda. - São meus irmãos? - Infelizmente não, minha irmã; é um rebanho de carneiros. - Não queres descer? – bradava Barba Azul. - Mais um momento – respondia a mulher. E depois: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? - Vejo – respondeu ela – dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda estão muito longe... Louvado seja Deus! – exclamou um instante depois. – São meus irmãos; estou lhes fazendo sinal, tanto quanto me é possível, para que se apressem. Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que a casa estremeceu. A pobre mulher desceu e atirou-se-lhe aos pés, desgrenhada e em prantos. - Isto não adianta nada – disse Barba Azul. – Tens de morrer. Em seguida, segurando-a com uma das mãos pelos cabelos e erguendo-a com a outra o cutelo no ar, ia cortar-lhe a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele, rogou-lhe que lhe concedesse um breve momento para se recolher. - Não, não – disse ele -, e encomenda bem tua alma a Deus. E erguendo o braço... Neste momento bateram à porta com tanta força que Barba Azul se deteve instantaneamente. Abriram e logo se viu entrar dois cavaleiros que, sacando da espada, correram direto a Barba Azul. Ele reconheceu que eram os irmãos da esposa, um deles dragão e o outro mosqueteiro, e fugiu sem demora para salvar-se; mas os dois irmãos o perseguiram tão de perto que o alcançaram antes que ele pudesse atingir a escada externa. Atravessaram-no a 48
fio de espada, e o deixaram morto. A pobre dama estava quase tão morta quanto o marido, nem lhe restavam forças para beijar os irmãos. Verificou-se que Barba-Azul não tinha herdeiros, razão por que sua mulher se tornou dona de todos os seus bens. Empregou parte deles no casamento de sua irmã Ana com um jovem fidalgo, que a amava desde muito tempo; outra parte na compra do posto de capitão para seus dois irmãos, e o resto no casamento dela própria com um homem muito distinto, que lhe fez esquecer o mau tempo que ela passara com Barba Azul. Moralidade: A curiosidade é tão cheia de encantos! Mas custa às vezes dores, prantos... Cada instante se vê disso exemplo bem claro. É – perdoe, belo-sexo – um deleite fugaz, Mal o gozamos se desfaz. E custa sempre muito caro.
49
A menina dos fósforos Estava tanto frio! A neve não parava de cair e a noite aproximava-se. Aquela era a última noite de Dezembro, véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre rapariguinha seguia pela rua fora, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar. Por isso, a rapariguinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando: — Quem compra fósforos bons e baratos? — Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre rapariguinha! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava. Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de um portal. Sentia cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de 50
fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia calor. A família morava numa água-furtada, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos! Pegou num fósforo e: Fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a arder! Parecia a chama quente e viva de uma candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas, que luz era aquela? A menina julgou que estava sentada em frente de um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom! Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se apagou e o fogão desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na mão. Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-se transparente como tule. E a rapariguinha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de loiças finas, e mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de ameixas e puré de batata, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! De repente, o ganso saltou da travessa e rolou para o chão, com o garfo e a faca espetados nas costas, até junto da rapariguinha. O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria. E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que enfeitam as montras das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direcção à terra, deixando atrás de si um comprido rasto de luz. Foi alguém que morreu», pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez: «Quando vires uma estrela cadente, é uma alma que vai a caminho do céu.» 51
Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade! — Avó! — gritou a menina — leva-me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como o fogão de sala, como o ganso assado, e como a árvore de Natal, tão linda. Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus. Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma rapariguinha, com as faces roxas, um sorriso nos lábios… mor ta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. — Coitadinha, parece que tentou aquecer-se! — exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da avó, no Ano Novo.
(Andersen)
52
A Moura Torta Era uma vez um rei que tinha um filho único, e este, chegando a ser rapaz, pediu para correr mundo. Não houve outro remédio senão deixar o príncipe seguir viagem como desejava. Nos primeiros tempos nada aconteceu de novidades. O príncipe andou, andou, dormindo aqui e acolá, passando fome e frio. Numa tarde ia ele chegando a uma cidade quando uma velhinha, muito corcunda, carregando um feixe de gravetos, pediu uma esmola. O príncipe, com pena da velhinha, deu dinheiro bastante e colocou nos ombros o feixe de gravetos, levando a carga até pertinho das ruas. A velha agradeceu muito, abençoou e disse:- Meu netinho, não tenho nada para lhe dar: leve essas frutas para regado mas só abra perto das águas correntes. Tirou da sacola suja três laranja e entregou ao príncipe, que as guardou e continuou sua jornada.Dias depois, na hora do meio-dia, estava morto de sede e lembrou-se das laranjas. Tirou uma, abriu o canivete e cortou. Imediatamente a casca abriu para um lado e outro e pulou de dentro uma moça bonita como os anjos, dizendo:- Quero água! Quero água!Não havia água por ali e a moça desapareceu. O príncipe ficou triste com o caso. Dias passados sucedeu o mesmo. Estava com sede e cortou a Segunda laranja. Outra moça, ainda mais bonita, apareceu, pedindo água pelo amor de Deus.O príncipe não pôde arranjar nem uma gota. A moça sumiu-se como uma fumaça, deixando-o muito contrariado. Noutra ocasião o príncipe tornou a Ter muita sede. Estava já voltando para o palácio de seu pai. Lembrou-se do sucedido com as duas moças e andou até um rio corrente. Parou e descascou a última laranja que a velha lhe dera. A terceira moça era bonita de fazer raiva. Muito e muito mais bonita que as duas outras. Foi logo pedindo água e o príncipe mais que depressa lhe deu. A moça bebeu e desencantou, começando a 53
conversar com o rapaz e contando sua história. Ficaram namorados um do outro. A moça estava quase nua e o príncipe viajava a pé, não podendo levar sua noiva naqueles trajes. Mandou subir para uma árvore, na beira do rio, despediu-se dela e correu para casa. Nesse momento chegou uma escrava negra, cega de um olho, a quem chamavam a Moura Torta. A negra baixou-se para encher o pote com água do rio mas avistou o rosto da moça que se retratava nas águas e pensou que fosse o dela. Ficou assombrada de tanta formosura. Meu Deus! Eu tão bonita e carregando água? Não é possível... Atirou o pote nas pedras, quebrando-o e voltou para o palácio, cantando de alegria. Quando a viram voltar sem água e toda importante, deram muita vaia na Moura Torta, brigaram com ela e mandaram que fosse buscar água, com outro pote. Lá voltou a negra, com o pote na cabeça, sucumbida. Meteu o pote no rio e viu o rosto da moça que estava na árvore, mesmo convencida da própria beleza. Sacudiu o pote bem longe e regressou para o palácio, toda cheia de si. Quase a matam de vaias e de puxões. Deram o terceiro pote e ameaçaram a negra de uma surra de chibata se ela chegasse sem o pote cheio d'água. Lá veio a Moura Torta no destino. Mergulhou o pote no rio e tornou a ver a face da moça. Esta, não podendo conter-se com a vaidade da negra, desatou uma boa gargalhada. A escrava levantou a cabeça e viu a causadora de toda sua complicação. - Ah! É você, minha moça branca? Que está fazendo aí, feito passarinho? Desça para conversar comigo. A moça, de boba, desceu, e a Moura Torta pediu para pentear o cabelo dela, um cabelão louro e muito comprido que era um primor. A moça deixou. A Moura Torta deitou a cabeça no seu colo e começou a catar, dando cafuné e desembaraçando as tranças. Assim que a viu muito entretida, fechando os olhos, tirou um alfinete encantado e fincou-o na cabeça . Esta deu um grito e virou-se numa rolinha, saindo a voar. A negra trepou-se na mesma árvore e ficou esperando o príncipe, como a moça lhe tinha dito, de boba. Finalmente o príncipe chegou, numa carruagem dourada, com os criados e criadas trazendo roupa para vestir a noiva. Encontrou a Moura Torta, feia como a miséria. O príncipe assim que a viu, ficou admirado e perguntou a razão de tanta mudança. A Moura Torta disse:- O sol queimou minha pele e os espinhos furaram meu olho. Vamos esperar que o tempo melhore e eu fique como era antes.O príncipe acreditou e lá se foi a Moura Torta de carruagem dourada, feito gente. O rei e a rainha ficaram de caldo vendo uma nora tão horrenda como a negra. Mas, palavra de rei não volta atrás e o prometido seria cumprido. O príncipe anunciou seu casamento e mandou convite aos amigos A Moura Torta não acreditava nos olhos. Vivia toda coberta de seda e perfumada, 54
dando ordens e ainda mais feia do que carregando o pote d'água. Todos antipatizavam com a futura princesa.Todas as tardes o príncipe vinha descansar no jardim e notava que uma rolinha voava sempre ao redor dele, piando triste e fazer fpena. Aquilo sucedeu tantas vezes que o príncipe acabou ficando impressionado. Mandou um criado armar um laço num galho e a rolinha ficou presa. O criado levou a rolinha ao príncipe e este a segurou com delicadeza, alisando as peninhas. Depois coçou a cabecinha da avezinha e encontrou um caroço duro. Puxou e saiu um alfinete fino. Imediatamente a moça desencantou-se e apareceu bonita como os amores. O príncipe ficou sabendo da malvadeza da negra escrava. Mandou prender a Moura Torta e contou a todo o mundo a perversidade dela, condenando-a a morrer queimada e as cinzas serem atiradas ao vento. Fizeram uma fogueira bem grande e sacudiram a Moura Torta dentro, até que ficou reduzida a poeira. A moça casou com o príncipe e viveram como Deus com seus anjos, querida por todos. Entrou por uma perna de pinto e saiu por uma de pato, mandou dizer El-Rei Meu Senhor que me contassem quatro...
(Henriqueta Lisboa)
55
A Menina e o Quibungo No tempo do quibungo, menino não podia sair à noite sozinho. O quibungo andava ao redor das casas, gemendo: – hum! hum! hum! Quando encontrava algum menino, pegava para comer. Havia uma mulher que tinha uma filha. A menina gostava muito de sair todas as noites para andar abaixo e acima, pela casa dos parentes e dos vizinhos. A mãe dela sempre dizia: – Minha filha, não saia de casa de noite, que o quibungo lhe pega e lhe come!... A pequena, porém, que era muito teimosa e mal-ouvida, não se importava. Até que, uma noite, o quibungo agarrou-a, botou-a as costas, levando-a para comer. A menina pegou a cantar:
– Minha mãezinha, Quibungo tererê, Do meu coração, Quibungo tererê, Acudi-me depressa, Quibungo tererê, Quibungo quer-me comê.
56
A mãe da menina respondeu:
– Eu bem te dizia, Quibungo tererê, Que não andasses de noite, Quibungo tererê.
Ouvindo isso, ela chamou pelos demais de casa; mas ninguém quis acudir-lhe, respondendo todos da mesma maneira. Lá se foi a pobrezinha chorando, nas costas do quibungo. Passou pela casa dos outros parentes, e nenhum veio tomá-la das mãos do quibungo. Foi quando a avó ouviu aquela alaúza do povo, correndo e gritando: – O quibungo carregou fulana... É vem ele com fulana nas costas... Aí, a velha correu mais que depressa, botou um tacho d'água no fogo para ferver e meteu um espeto nas brasas. Quando foi chegando perto da casa da avó, a menina foi cantando: – Minha avozinha, Quibungo tererê, Do meu coração, Quibungo tererê, Acudi-me depressa, Quibungo tererê, Quibungo quer-me comê.
57
Respondeu a avó como os demais parentes haviam respondido. O quibungo, então, foi passando muito satisfeito. A velha agarrou o tacho d'água fervendo, saiu atrás dele e – zás – sacudiu-lho nas canelas. O quibungo deu um pinote muito grande, atirando a menina no chão. Foi quando a velha deu de mão no espeto, que estava vermelho em brasa e fincou-lhe no pescoço, matando-o. Tomou a neta para si e nunca mais deixou que ela fosse a casa dos pais. Também a menina não quis mais sair de noite, para andar abaixo e acima.
(Henriqueta Lisboa)
58
As Fadas Era uma vez uma viúva que tinha duas filhas. A mais velha era tal e qual a mãe, tanto na aparência como no mau feito. Eram ambas tão mal-humoradas e orgulhosas que ninguém podia viver com elas. A mais nova, pelo contrário, era gentil, boa e muito linda. Era tal e qual o pai. Como cada um prefere o seu igual, a mãe gostava muito da mais velha e detestava a mais nova, obrigando-a a tomar as refeições na cozinha e a trabalhar o dia todo. Entre outras tarefas, a pobre menina tinha que ir duas vezes por dia buscar água a uma fonte que ficava a meia milha de distância. De regresso, vinha carregada com a bilha cheia de água. Certo dia, quando estava na fonte, acercou-se dela uma pobre mulher que lhe implorou um pouco de água. - Sim, avozinha – respondeu a menina delicadamente. Lavou cuidadosamente a bilha, encheu-a no sítio onde a água era mais límpida e ofereceu de beber à velhinha, segurando na bilha para que ela pudesse beber com calma. Depois de saciar a sede, a boa senhora disse-lhe:
- És tão bela, tão boa e tão gentil que não resisto a conceder-te um dom. A velhinha era, afinal, uma fada que tinha tomado a forma de uma pobre mulher para ver até que ponto a menina era gentil e bondosa. - Concedo-te o dom – continuou a fada – de lançares pela boca uma flor ou uma pedra preciosa sempre que proferires uma palavra. 59
Quando a menina chegou a casa, a mãe ralhou-lhe muito porque se atrasara. - Peço perdão por ter chegado tão tarde, mãe – disse a menina, ao mesmo tempo que lhe saíam da boca duas rosas, duas pérolas e dois diamantes enormes. - O que se passa? – exclamou a mãe muito admirada. – Parece que te estão a sair da boca pérolas e diamantes. Como é possível, minha filha? (Foi a primeira vez que lhe chamou filha). A pobre menina contou-lhe o que acontecera, enquanto lhe saíam da boca uma infinidade de diamantes. - Tenho que lá mandar a minha filha. Olha, Joaquina, vê o que sai da boca da tua irmã quando fala. Gostarias de ter o mesmo dom? Só tens que ir buscar água à fonte e dar de beber a uma velhinha quando ela te pedir. - Havia de ter graça, ir agora à fonte… – respondeu a malcriada. - Faz imediatamente o que te mando – repreendeu-a a mãe. Ela assim fez, mas de muito mau modo. Pegou na jarra de prata mais bonita que havia em casa e partiu. Assim que chegou à fonte viu aproximar-se uma senhora que saíra do bosque. Vinha magnificamente vestida e pediu-lhe de beber. Era a mesma fada que aparecera à sua irmã, mas que agora tinha o aspecto de uma princesa. Pretendia averiguar até que ponto chegava a rudeza daquela rapariga. - Então julgas que vim aqui para te dar de beber? – perguntou a malcriada. – Trouxe um jarro de prata de propósito para dar de beber a sua excelência! Ora sirva-se sozinha, se tem sede! - Não és nada gentil – repreendeu-a a fada, sem se zangar. – Muito bem! Já que és tão pouco afável dou-te o dom de te saírem sapos ou serpentes pela boca, sempre que falares. Assim que a mãe a viu chegar a casa gritou-lhe: - Então, minha filha? - Então, minha mãe? – respondeu-lhe a malcriada, cuspindo duas víboras e dois lagartos.
60
- Céus! Que vejo eu? – gritou a mãe, horrorizada. – A culpa é da tua irmã, mas ela paga-mas. Como a mãe lhe queria bater, a menina fugiu para a floresta. O filho do rei, que voltava da caça, encontrou-a e ficou deslumbrado com a sua beleza. Perguntou-lhe o que fazia ali sozinha e porque estava a chorar. - Ai de mim, senhor! Foi a minha mãe que me expulsou de casa… O filho do rei, que viu saírem-lhe da boca cinco ou seis pérolas e outros tantos diamantes, pediu-lhe que lhe dissesse de onde vinham aquelas riquezas. A menina contou-lhe a sua aventura. O príncipe, que entretanto se apaixonara por ela, achou que um dom assim valia muito mais do que qualquer dote. Então, levou-a consigo para o palácio do rei seu pai e casou com ela. Quanto à irmã, tornou-se tão horrorosa que até a mãe a expulsou de casa. Como ninguém queria estar com ela, acabou por se esconder num canto do bosque onde morreu sozinha.
(Charles Perrault)
61
A Bela Adormecida Há muito tempo, viviam um rei e uma rainha que todos os dias diziam: "Ah, se nós tivéssemos uma criança!", e nunca conseguiam uma. Aí aconteceu que, uma vez em que a rainha estava se banhando, um sapo rastejou para fora da água e lhe disse "Seu desejo será realizado; antes que se passe um ano, você dará à luz uma menina". Aquilo que o sapo dissera aconteceu, e a rainha teve uma menina que era tão formosa que o rei mal se continha de felicidade, e preparou uma grande festa. Ele não apenas convidou seus parentes, amigos e conhecidos, como também as fadas, a fim de obter suas boas graças para a criança. Havia treze delas em seu reino, mas como ele só possuía doze pratos de ouro, nos quais elas poderiam comer, uma delas teria de ficar em casa. A festa foi celebrada com toda a pompa e, quando chegou ao fim, as fadas presentearam a criança com dotes mágicos: uma com a virtude, outra com a formosura, a terceira com riqueza, e assim com tudo o que há de desejável no mundo. Quando onze já tinham falado, entrou de repente a décima terceira. Ela queria se vingar por não ter sido convidada e, sem cumprimentar ou mesmo olhar para quem quer que seja, exclamou aos brados: "A princesa deverá espetar-se em um fuso quando tiver quinze anos, e cair morta." E sem dizer mais nada, virou as costas e deixou o salão. Todos estavam assustados, e então adiantou-se a décima segunda, que ainda não tinha feito seu desejo, e como não podia anular a maldição, mas apenas abrandá-la, ela disse: "A princesa não morrerá, apenas cairá em um sono profundo que durará cem anos." O rei, que queria salvar sua querida criança do infortúnio, ordenou que todos os fusos do reino inteiro fossem queimados. Na menina, entretanto, realizaram-se plenamente todos os dons das fadas, pois ela era tão bela, educada, gentil e sensata que 62
todos que a viam não podiam deixar de gostar dela. Sucedeu que, justamente no dia em que ela completava quinze anos, o rei e a rainha não estavam em casa, e a menina estava sozinha no castelo. Ela andou então por todos os cantos, examinou à vontade aposentos e câmaras, e finalmente chegou até uma velha torre. Subiu a estreita escada em espiral e deparou-se com uma pequena porta. Na fechadura havia uma chave enferrujada e, quando ela a girou, a porta se abriu de um só golpe e lá, em um quartinho, estava sentada uma velha com um fuso, fiando diligentemente seu linho. "Bom dia, velha mãezinha", disse a princesa, "o que você está fazendo aí?" "Eu estou fiando," disse a velha, e balançou a cabeça. "O que é isto, que pula tão alegremente?" perguntou a menina, e pegou o fuso querendo também fiar. Mal ela tinha tocado o fuso, a maldição se realizou, e ela espetou-se no dedo. Mas, no mesmo instante em que foi picada, ela caiu na cama que ali estava, e foi tomada de um profundo sono. E este sono estendeu-se por todo o castelo: o rei e a rainha, que tinham acabado de chegar e entrado no salão, começaram a dormir, e com eles toda a Corte. Dormiram então também os cavalos no estábulo, os cachorros no pátio, as pombas no telhado, as moscas na parede, e até o fogo, que chamejava no fogão, ficou imóvel e adormeceu, e o assado parou de crepitar, e o cozinheiro, que queria puxar seu ajudante pelos cabelos porque ele havia feito uma coisa errada, soltou o menino e dormiu. E o vento assentou-se, e nas árvores defronte ao castelo nem uma folhinha se movia. ao redor do castelo começou porém a crescer uma cerca de espinhos, que a cada ano ficava mais alta e que, por fim, estendeu-se em volta de todo o castelo e cobriu-o de tal forma que nada mais se podia ver dele, nem mesmo a bandeira sobre o telhado. Começou então a correr no país a lenda da bela adormecida, pois assim era chamada a princesa, de modo que de tempos em tempos chegavam príncipes que tentavam penetrar no castelo através da cerca viva. Mas nenhum deles conseguiu, pois os espinhos estavam tão entrelaçados como se tivessem mãos, e os jovens ficavam presos neles e não conseguiam se soltar, sofrendo uma morte lastimável. Depois de muitos anos, chegou mais uma vez um príncipe ao reino e ouviu quando um velho contava da cerca de espinhos, e que havia um castelo atrás dela, no qual uma linda princesa, chamada Bela Adormecida, já dormia há cem anos, e com ela dormia o rei e a rainha e toda a corte. Ele também sabia pelo seu avô que muitos príncipes já haviam vindo e tentado penetrar pela cerca viva de espinhos, mas haviam ficado presos nela e mor63
rido tristemente. O jovem então disse: "Eu não tenho medo, eu quero ir lá e ver a Bela Adormecida." O bom velho tentou dissuadi-lo de todos os modos, mas ele não deu ouvidos às suas palavras. Mas agora os cem anos tinham justamente acabado de transcorrer, e havia chegado o dia em que Bela Adormecida deveria acordar. Quando o príncipe se aproximou da cerca de espinhos, estes não eram agora mais do que flores grandes e bonitas que por si sós se abriram e o deixaram passar ileso, e se fecharam atrás dele, formando novamente uma cerca. No pátio do castelo ele viu os cavalos e os cães de caça malhados deitados e dormindo, no telhado estavam pousadas as pombas, e tinham a cabecinha metida debaixo da asa. E quando ele entrou na casa, as moscas dormiam na parede, o cozinheiro na cozinha ainda levantava a mão como se quisesse agarrar o menino, e a criada estava sentada diante da galinha preta que deveria ser depenada. Ele então continuou andando, e avistou no salão toda a corte deitada e dormindo, e lá em cima, perto do trono, estavam deitados o rei e a rainha. Aí ele continuou andando ainda mais, e tudo estava tão quieto que se podia ouvir sua respiração, e chegou finalmente à torre e abriu a porta do quartinho, no qual Bela Adormecida dormia. Lá estava ela deitada, e era tão bela que ele não conseguia desviar os olhos, e ele se inclinou e beijou-a. Quando ele a tinha tocado com os lábios, Bela Adormecida abriu os olhos, acordou e olhou para ele amavelmente. Então os dois desceram, e o rei acordou, e a rainha e toda a corte, e se olharam espantados. E os cavalos no pátio se levantaram e se sacudiram; os cães de caça pularam e abanaram suas caudas; as pombas no telhado tiraram a cabecinha de sob a asa, olharam ao redor e voaram para o campo; as moscas nas paredes recomeçaram a rastejar; o fogo na cozinha levantou-se, chamejou e cozinhou a comida; o assado voltou a crepitar; e o cozinheiro deu um tamanho tabefe no menino que este gritou; e a criada terminou de depenar a galinha. E aí foram festejadas com todas as pompas as bodas do príncipe com a Bela Adormecida, e eles viveram felizes até o fim.
(Publicado em 1812 tradução de Karin Volobuef)
64
A Bela e a Fera (A Bela e o Monstro) Era uma vez um rico negociante que tinha seis filhos, três rapazes e três moças. Amava muito seus filhos e deu a eles excelente educação com ótimos instrutores. Suas filhas eram muito bonitas e a caçula se destacava em beleza e bondade. Desde o nascimento todos a chamavam de “bela menina”, assim ela acabou sendo batizada como “Bela” – o que deixava suas irmãs com cheias de inveja. A caçula, além de mais bela era também melhor que suas irmãs. As mais velhas eram muito orgulhosas de sua riqueza e de sua beleza. Davam-se ares de grandes damas e não permitiam que outras filhas de comerciantes as visitassem, pois só gostavam da companhia de pessoas da nobreza. Tinham uma vida muito agitada, todos os dias iam aos bailes, ao teatro e zombavam da caçula, que possuía riqueza interior e ocupava a maior parte de seu tempo lendo bons livros. Como a família era muito rica não lhes faltava pretendentes, filhos de ricos negociantes que as pediam em casamento. As duas mais velhas esnobavam todos os rapazes que se aproximavam delas dizendo que nunca se casariam, a não ser que fosse com duques, ou pelo menos, com condes. Bela agradecia delicadamente aos que queriam desposá-la, mas dizia que era muito jovem e que desejava continuar na companhia de seu pai por mais alguns anos. Num golpe do destino, da noite para o dia o negociante perdeu tudo que tinha, ficando sem sua fortuna. Só lhe restou uma pequena casa de campo, bem longe da cidade. Desolado contou aos filhos o que sucedera e que teriam de ir morar no campo, trabalhando como camponeses para sobreviver. As duas filhas mais velhas ficaram furiosas, disseram que não deixariam a cidade, que tinha, vários admiradores que fi65
cariam felicíssimos em se casar com elas, apesar de não terem mais fortuna. Bem se vê que essas pobres criaturas nada conheciam da vida e estavam completamente enganadas. Seus admiradores não queriam mais nem olhar pra elas agora que estavam pobres. Ninguém gostava delas por causa de sua soberba e agora diziam: “Chegou a hora das grandes damas pastorearem carneiros no pasto”. Mas ao mesmo tempo todo o mundo repetia: “Quanto a Bela temos muita pena de seu infortúnio. É uma moça tão boa! Trata os pobres com tanta bondade, é tão carinhosa, tão virtuosa...”. Muitos fidalgos quiseram se casar com Bela, embora ela não tivesse mais nem um tostão, e a todos ela explicava que não podia abandonar seu pai agora que estava na miséria, que iria com ele para o campo e o ajudaria em tudo que precisasse. No começo Bela ficou muito abatida por sua família ter perdido a fortuna, mas refletiu e percebeu que chorar e sofrer não devolveria sua antiga situação de opulência: “Tenho tratar de ser feliz sem ela”. Já morando em sua casa nova no campo o negociante e os filhos passavam o dia lavrando a terra. Bela acordava de madrugada e já começava a limpar toda a casa e fazer o café da manhã para toda família. No começo foi muito difícil, pois não estava acostumada a trabalhar como uma criada, mas com o passar do tempo o trabalho tornou-a forte e mais saudável. Quando terminava seus afazeres ainda lia, tocava cravo ou cantava enquanto fiava. Suas duas irmãs, por outro lado, passavam o dia sem fazer nada, não davam a menor ajuda e morriam de tédio. Acordavam quando a manhã já ia alta e passeavam o dia inteiro pela propriedade só se lamentando pela perda da posição, das festas e roupas que não tinham mais. “Veja só a nossa irmã”, diziam, referindo-se a Bela, “é tão grosseira e estúpida que está contente com a sua situação! O bom negociante ficava muito incomodado com o jeito das filhas mais velhas tratarem Bela, pois sabia que ela era uma moça especial, ao contrário das irmãs, tão frívolas. Admirava as virtudes dessa filha, e, sobretudo a sua paciência, pois as irmãs, além de descarregar todo trabalho doméstico nas costas da caçula, insultavam-na a todo instante. Já se passara um ano desde que a família estava nesta situação quando o negociante recebeu uma carta informando que um navio, que trazia mercadorias suas, acabava de atracar com segurança. As irmãs mais velhas ficaram alucinadas com essa notícia, 66
achando que finalmente iriam voltar à cidade e se libertar da vida no campo que tanto odiavam. Acompanharam o pai até a porta pedindo que ele lhes trouxesse ricos presentes, vestidos, jóias, perucas, adornos e tudo de caro que pudessem carregar. Bela não pediu nada, pois pensou consigo mesma que todo dinheiro que seu pai ganhasse com as mercadorias não seria suficiente para comprar tudo que as irmãs desejavam “Bela, o que você quer de presente?”, perguntou o pai. “A única coisa que eu gostaria de ganhar é uma rosa, pois essa flor não cresce aqui”. As irmãs começaram a zoar chamando Bela de simplória, mas como sempre A jovem ignorou-as. O negociante partiu. Chegando ao porto teve a triste surpresa de descobrir que estava pobre como antes, pois suas mercadorias tinham problemas legais e só lhe deram contrariedades. Só faltavam poucos quilômetros para chegar a casa e ele já sentia o prazer de rever os filhos. Antes de chegar, porém, tinha de atravessar um enorme bosque ela ele se perdeu. Andou em círculos por muitas horas em meio a uma terrível tempestade de neve e sob um vento tão forte que mais de uma vez chegou a derrubá-lo do cavalo. Quando a noite caiu, exausto, faminto e meio desesperado pensava que morreria de fome ou de frio, ou que seria comido pelos lobos que ouvia uivar à sua volta. Inesperadamente, ao fim de um comprido túnel de árvores, viu uma forte luz que brilhava, mas parecia estar ainda muito distante. Segui rumo àquela direção e viu que a luz saia de um grande palácio, todo iluminado. O negociante agradeceu à Deus pelo socorro que lhe enviara e tratou de chegar o mais rápido possível àquele castelo. Ficou surpreso ao notar que os pátios estavam desertos, não tinha uma viva alma. Seu cavalo, que o seguia, entrou sozinho ao ver um grande estábulo vazio. Lá encontrou feno e aveia, e o pobre animal, que estava morto de fome, pôs-se a comer com apetite voraz. O negociante o amarrou no estábulo e dirigiu-se ao castelo. Não havia ninguém à vista, mas, tendo entrado num amplo salão, encontrou um bom fogo e uma mesa farta de boa comida, com prato e talheres para apenas uma pessoa. Como estava encharcado até os ossos pela neve e chuva que tomara, aproximou-se do fogo para se aquecer, pensando consigo mesmo: “O dono da casa ou seus criados perdoarão a liberdade que tomei. Provavelmente logo vão aparecer”! 67
Esperou durante longo tempo, aproximava-se a meia-noite e cansado de esperar e faminto não resistiu mais: comeu com gosto um frango apetitoso que estava a sua frente, serviu-se do vinho e comeu até fartar-se. Já refeito do cansaço e mais animado, saiu da sala e atravessou vários salões magnificamente mobiliados. Finalmente encontrou um quarto onde havia uma cama. Passava da meia-noite, ele estava exausto, fechou a porta e foi dormir. No dia seguinte quando se levantou passava das dez horas da manhã. Para sua surpresa encontrou uma roupa nova e limpinha no lugar da sua, que havia se estragado na tempestade. “Com certeza”, pensou consigo mesmo, “este palácio pertence a uma boa fada que teve piedade da minha situação”. Olhou pela janela e viu que não havia mais o menor resquício da terrível tempestade da noite anterior, não havia mais neve, mas alamedas rodeadas por flores que encantavam a vista. Voltou para o salão onde ceara na noite anterior e encontrou um chocolate quente sobre a mesa. “Muito obrigada senhora fada”, falou em voz alta, “por ter tido a bondade de me servir esse café da manhã”. Tomou seu chocolate e foi em busca de seu cavalo, preparando-se para partir. Ao passar pelo canteiro de rosas lembrou - se do pedido da filha e colheu um ramo com várias flores. No mesmo instante ouviu soar um barulho assustador e aproximou-se dele uma fera tão medonha que ficou petrificado, não conseguia se mover. Com um vozeirão terrível a fera lhe disse: “O senhor é um ingrato. Salvei sua vida, recebi-o no meu castelo e, para minha decepção o senhor rouba minhas rosas, que amo mais do que tudo no mundo. Só a morte para reparar esse erro. Dou-lhe dez minutos para rezar à Deus ou ao Diabo, o senhor é quem escolhe, antes de morrer.” O negociante ficou desesperado, ajoelhou-se e suplicou ao monstro: “Perdoai-me Vossa Alteza, colhi uma rosa na melhor das intenções apenas para atender ao pedido de uma das minhas filhas, não tive intenção de ofendê-lo.” “Não me chamo Vossa Alteza”, respondeu o monstro, “não tenho nome, pode me chamar de Fera”. E não tolero elogios, gosto da franqueza, que se diga o que pensa. Não tente me comover puxando meu saco com bajulações, mas disponho-me a perdoá-lo com a condição que sua filha, a que pediu a rosa ,voluntariamente se ofereça 68
para morrer em seu lugar. E não me venha com histórias. Parta imediatamente e jure que se sua filha se recusar a morrer por você, estará de volta daqui a três dias. O negociante não tinha intenção de sacrificar nenhum de seus filhos àquele monstro malvado, mas pensou: “Ao menos poderei abraçar meus filhos ainda uma vez antes de morrer”. Jurou ao monstro tudo que ele queria e a fera lhe deu permissão para partir quando quisesse. “Não quero que chegue a sua casa de mãos vazias. Volte ao quarto onde dormiu e lá encontrará um grande cofre vazio. Encha-o com tudo que desejar, mandarei levá-lo à sua casa.” A Fera retirou-se o deixando sozinho e o negociante pensou: “Já que vou morrer pelo menos levarei tudo que puder para ajudar meus filhos”. Voltou a seu quarto e, encontrando ali grande quantidade de moedas de ouro e jóias valorosas, encheu até a borda o cofre que a Fera havia falado. Fechou-o, foi buscar seu cavalo no estábulo e partiu do palácio com uma tristeza tão grande que seu coração doía. Seu cavalo instintivamente escolheu o caminho certo no meio da floresta, e em poucas horas o negociante chegava enfim em sua casa. Seus seis filhos vieram correndo ao seu encontro a abraçá-lo, mas, em vez de se alegrar com seus carinhos, pôs-se a chorar. Tinha nas mãos o ramo de rosas que trazia para Bela. Ao entregá-lo disse: “Bela, cuide bem dessas rosas. Elas custaram muito caro ao seu pobre pai.” E prontamente contou à família a extraordinária aventura por que passara. Ao ouvir seu relato as filhas mais velhas ficaram furiosas. Gritavam, esbravejavam e lançavam insultos contra Bela, que chorava sem parar. “Vejam o resultado da idiotice dessa criatura”, disseram, “Por que não pediu artigos de toalete como nós? Mas não, a senhorita queria ser diferente e por causa disse vai causar a morte do nosso pai.” “Por que eu deveria chorar a morte do meu pai”, perguntou Bela, se refazendo do primeiro choque, “ele não vai morrer. Como o monstro está disposto a aceitar a filha que pediu a rosa em troca dele, vou me entregar a sua fúria. Estou muito feliz, porque morrendo, terei a alegria de salvar meu pai e lhe provar o meu amor.” Prontamente respondiam seus três irmãos: “Não minha irmã. Você não vai morrer. Vamos encontrar esse monstro e matá-lo, ou morrer lutando!”.
69
“Não se enganem meus filhos”, disse-lhes o negociante. “A força da Fera é tal que não tenho a menor esperança que possamos matá-la. Fico comovido com o coração abnegado de Bela, mas não quero entregá-la a morte. Já estou velho e provavelmente não tenho mais muito tempo de vida. Só lamento porque não estarei mais com vocês, meus queridos filhos.” “Não permitirei que vá sozinho a esse palácio”, disse Bela. Prefiro ser devorada por essa fera a ter de aguentar a dor que sentiria com a sua perda.” Não adiantou argumentar, Bela estava irremovível na decisão de partir para o palácio. Suas irmãs, pelo contrário, ficaram encantadas por essa idéia, já que iriam se livrar da caçula por quem nutriam grande inveja. O negociante estava tão absorvido com a dor de perder a filha que não se lembrou do cofre repleto de ouro que trouxera. Porém, assim que se fechou em seu quarto para dormir, ficou muito espantado por encontrálo junto à sua cama. Decidiu esconder dos filhos que estavam ricos novamente, porque as moças iriam imediatamente querer voltar para a cidade e ele queria viver o tempo que lhe restara no campo. Mas, confiou o segredo a Bela, que por sua vez lhe contou que, durante o tempo em que estivera fora, foram visitados por fidalgos. Dois desses ricos homens eram apaixonados por suas irmãs, e ela pediu ao pai que as casasse. Era tão boa que apesar de tudo que elas lhe faziam, ainda gostava delas, e as perdoava de todo coração pelo mal que lhe haviam feito. Quando na manhã seguinte Bela partiu como pai, as duas irmãs tão falsas esfregaram cebola nos olhos para parecer que choravam, mas os três irmãos choravam de verdade, desolados, assim como o negociante. Bela agüentava firme para não piorar ainda mais a situação que era tão dolorosa. Os cavalos rumaram pelo caminho que levava ao palácio e, ao anoitecer, puderam vê-lo iluminado como da primeira vez. Deixaram os cavalos no estábulo e o negociante e a filha entraram no salão, onde encontraram uma mesa magnificamente servida, com pretos e talheres para dois. O negociante não conseguia comer nada diante desta situação, mas Bela, esforçando-se para parecer tranqüila, sentou-se à mesa e o serviu. Enquanto isso pensava: “A Fera que me engordar antes de me comer, por isso me serve essa farta refeição.” Assim que acabaram de comer ouviram um barulho estrondoso e o negociante, em lágrimas, despediu-se da filha, porque sabia que a Fera se aproximava. Bela não pode conter um arrepio ao ver aquela terrível figura. Após 70
o susto do primeiro contato controlou-se o melhor que pôde, e quando o monstro lhe perguntou se viera espontaneamente, respondeu tremendo que sim. “Você é muito bondosa”, disse a Fera, “e sou-lhe muito agradecido. Quanto ao senhor, meu bom homem, parta pela manhã, e nunca mais ouse voltar aqui. Até mais Bela.” “Até mais Fera, Bela respondeu, e o ser fantástico retirou do aposento”. “Ah, minha filha!” disse o negociante dando um abraço apertado em Bela, “Já estou arrependido de ter concordado com você, parta e deixe que eu fique aqui.” “Não meu pai”, disse Bela com firmeza, “O senhor partirá amanhã assim que o dia clarear, e me entregará à misericórdia de Deus. Que Ele tenha piedade de mim!” Os dois se recolherem muito atormentados achando que não conseguiriam pregar os olhos a noite inteira, porém, mal havia se deitado caíram no mais profundo dos sonos. Enquanto dormia Bela sonhou com uma dama que lhe dizia: “Estou contente com seu bom coração e com sua coragem Bela. Sua boa ação, oferecendo a sua própria vida para salvar a do seu pai não ficará sem recompensa.” Logo que acordou Bela contou o sonho a seu pai, e mesmo com esse consolo não conseguiu conter um choro muito sofrido ao se separar de sua querida filha. Depois da partida do pai Bela sentou-se no grande salão e começou a chorar também. Porém, como era muito corajosa entregou-se nas mãos de Deus e decidiu que não adiantava se atormentar mais com algo que já estava determinado, e resolveu esperar em paz a hora em que a Fera a devoraria. Enquanto esperava, resolveu visitar o castelo, pois era muito bonito. Foi andando pelos corredores e teve a maior surpresa ao se deparar com uma porta onde estava escrito: “Aposentos de Bela”. Em um impulso abriu a porta e ficou com a magnificência que encontrou ali, onde não faltava um grande armário repleto de bons livros, um cravo e várias partituras de música. “Alguém que me agradar”, murmurou. Em seguida pensou: “Se eu tivesse só um dia para passar aqui não estariam me cobrindo com tantos presentes.” Esse pensamento a alegrou. Abriu um armário e encontrou um livro onde estava escrito em letras douradas: “Vossos desejos são ordens. Aqui, sois a rainha e a senhora. 71
“Com um longo suspiro pensou: “Tudo que desejo é rever meu pai e saber o que está fazendo agora.” Foi só um pensamento, mas para sua surpresa, ao olhar para um grande espelho a sua frente, viu nele a sua casa e seu pai chegando com um semblante arrasado. As irmãs correram para abraçá-lo fazendo caretas para parecerem tristes, enquanto seus olhos transbordavam de felicidade por não precisarem mais rever a irmã da qual morriam de inveja. Essa cena durou apenas alguns instantes, desaparecendo logo em seguida, e Bela admitiu que a Fera era bem indulgente, e que ela não devia temê-la. Ao meio-dia encontrou a mesa posta e almoçou ouvindo um concerto arrebatador, embora não visse ninguém a tocar nenhum instrumento. Na hora do jantar, assim que se sentou à mesa ouviu o barulho que antecedia a chegada da Fera e não pode conter um calafrio. “Bela”, disse o monstro, “minha presença durante sua ceia lhe incomoda”? “O senhor é que é o dono deste reino”, disse Bela, tremendo. “Não”, respondeu a Fera, Não há aqui outra senhora além de Bela. Se a aborreço é só dizer uma só palavra e irei embora. Diga, a senhorita me acha muito feio?” “Sim, eu acho”, disse Bela. “Não sei mentir. Mas acredito que é muito bom.” “Tem razão”, disse o monstro, “sou feio e acho que não tenho inteligência, apesar não passo de um animal.” “Não pode ser um animal se acha que não tem inteligência, respondeu Bela. “Um tolo nunca sabe que é tolo.” “Então coma Bela”, disse a Fera, “tudo que está aqui é seu, não quero que tenha nenhum aborrecimento, pois eu ficaria desolado se você não estivesse contente.” “O senhor é muito bondoso e atenciosos”, disse Bela. Confesso que seu coração me atinge profundamente. “Quando penso nele o senhor não me parece tão feio.” “A senhorita está certa”, respondeu a Fera, “Tenho um bom coração, mas apesar disso sou um monstro.”
72
“Muitos homens são mais monstruosos”, disse Bela, “e gosto mais do senhor com essa aparência que daqueles que, atrás de uma boa aparência de homens, escondem um coração falso, corrompido, cruel.” “Gostaria de lhe agradecer com um grande elogio”, respondeu a Fera, “mas como sou um estúpido tudo que posso dizer é que fico muito grato.” Bela ceou com apetite a gostosa refeição que estava a sua frente. Quase não tinha mais medo da Fera, mas levou o maior susto quando esta lhe perguntou de repente: “ Bela, quer ser minha mulher?” Bela ficou parada, sem resposta por algum tempo. Temia provocar a cólera da Fera recusando-o. Mesmo assim foi franca, respondendo: “Não, Fera.”. Ouvindo isso o pobre monstro soltou um profundo suspiro, tão triste e tão alto que ressoou por todo castelo. Mas Bela logo se acalmou porque a Fera lhe disse tristemente: “Adeus, Bela”, e saiu da sala, virando-se de vez em quando para olhar para ela mais uma vez. Novamente sozinha Bela sentiu grande compaixão por aquela pobre Fera: “Que pena que seja tão feio, é tão bom, tão querido.” Três meses se passaram que Bela chegara àquele palácio, na mais completa tranqüilidade. Todas as noites a Fera a visitava durante a ceia, onde tinham conversas deliciosas. Aos poucos Bela se acostumara com sua feiúra e. longe de temer o momento de sua visita, esperava ansiosa às nove horas, a hora em que a Fera aparecia. Só uma coisa afligia Bela: é que o monstro diariamente, antes de se retirar sempre perguntava se ela queria se casar com ele e parecia profundamente ferido se a resposta era não. Certo dia Bela falou: “ O senhor está me fazendo sofrer, Fera. Gostaria de poder aceitar seu pedido de casamento, mas sou muito sincera para iludi-lo, afirmando que um dia isso acontecerá. Por enquanto o que posso dizer é que sempre serei sua amiga.” “Não me resta outra coisa”, respondeu o monstro, “não tenho ilusões a respeito da minha aparência, sei que sou horrível, mas a amo muito e, seja como for, fico muito feliz por permanecer aqui comigo. Prometa que não me deixará!”
73
Bela ficou perturbada com esse pedido. Soubera através do espelho que seu pai estava doente de tristeza por tê-la perdido e desejava revê-lo. “Prometo que nunca vou abandoná-lo”, disse Bela, “mas tenho muita vontade de rever meu pai, mesmo que só por algum tempo, e sofreria muito se não me deixasse.” “Prefiro morrer a fazê-la sofrer”, respondeu a Fera, “Vou enviá-la à casa de seu pai, mas se a senhorita não voltar, sua pobre Fera morrerá de dor.” “Não”, disse Bela, chorando só em pensar nessa possibilidade, “Meu amor é muito grande para causar a sua morte. Prometo voltar em oito dias. Pelo senhor já estou sabendo que minhas irmãs estão casadas e que meus irmãos partiram para o exército. Meu pai está completamente só, permita que eu passe uma semana com ele. “Estará em sua casa amanhã cedo”, disse a Fera, “Mas não esqueça da sua promessa. Quando quiser voltar só precisa pôr seu anel sobre uma mesa ao se deitar.” Ao dizer essas palavras a Fera suspirou como era de seu costume e Bela foi se deitar triste por tê-lo feito sofrer. Bela acordou na casa do pai, nesse momento entrou uma criada que se assustou ao vê-la e deu um grande grito. O negociante veio correndo ver o que estava acontecendo e quase morreu de alegria ao ver sua querida filha. Pulavam de alegria e se abraçaram por muito tempo. Após o alvoroço do reencontro, Bela percebeu que não trouxera suas roupas e que não tinha com o que se vestir, quando seus olhos se depararam com um grande baú ao lado de sua cama, repleto de lindos vestidos enfeitados com pedras preciosas. Imediatamente Bela mandou, em pensamento, agradecimentos à Fera por suas atenções. Pegou o vestido mais simples e ordenou à criada que guardasse os outros, pois tinha a intenção de dá-los de presente as suas irmãs. Foi só ela dizer isso e o baú desapareceu da sua frente. Seu pai, com sabedoria, alertou que a Fera deu aquele presente para Bela, e que não queria que ela os desse a ninguém e, prontamente o baú com os vestidos voltou para o mesmo lugar.
Enquanto Bela se aprontava para o café da manhã a criada foi avisar suas irmãs de sua chegada. Essas, apesar de casadas com ricos fidalgos estavam infelizes. A mais velha se casara com um belíssimo rapaz, e este amava muito a si mesmo, passava o dia cuidando de sua própria aparência e não tinha olhos para a esposa. A segunda se 74
casara com um homem assaz inteligente, e este usava a inteligência apenas para, com uma língua muito ferina, espicaçar todos que passavam na sua frente, a começar pela própria esposa. As irmãs de Bela quase morreram de amargura ao vê-la mais bela ainda do que antes e vestida como uma princesa, nem conseguiam disfarçar. Bela tentou alegrá-las, mas nada adiantou, ao contrário, piorou, elas quase explodiram de inveja quando Bela lhes contou como era feliz. As duas invejosas assim que se viram a sós começaram a falar de Bela: “Como essa criatura se atreve a ser mais feliz do que nós? Somos mais belas e mais encantadoras!”. “Irmã”, disse a mais velha, “ tive uma idéia para destruir com a alegria dela. Só temos que conseguir segurar Bela aqui por mais de oito dias. Aquela Fera idiota ficará furiosa por ela ter lhe faltado com a palavra e a devorará”. “Ótima idéia”, respondeu a outra, “com jeito, lhe fazendo mil agrados vamos atingir o nosso intento!”. Felizes com sua idéia maligna foram ao encontro de Bela e foram tão afetuosas com ela, que esta comovida chorou de felicidade acreditando que as irmãs tinham mudado. Passado os oito dias as irmãs começaram a fazer um teatro, se mostrando profundamente consternadas com a partida de Bela, implorando-lhe que ficasse mais um pouco com elas, e choraram até que Bela prometesse permanecer por mais oito dias. Bela assim o fez para acalmar as irmãs, ao mesmo tempo em que se martirizava pensando na Fera, a quem amava de todo coração, e de quem sentia muita falta. Na décima noite em que passou na casa de seu pai, Bela sonhou que estava no jardim do palácio e deitado na grama, à morte estava a Fera, triste por sua ingratidão. Bela acordou sobressaltada e em prantos com a imagem do sofrimento de sua querida Fera. “Estarei sendo perversa”, disse ela consigo mesma, “fazer sofrer a Fera que é tão bondosa comigo? Ele não tem culpa por ser tão feio, o mais importante é que tem um coração de ouro! Por que não quis me casar com ele? Seria mais feliz ao lado dele do que minhas irmãs com seus lindos maridos. Não é a inteligência ou beleza de um marido o que faz uma mulher feliz, mas sim seu caráter, sua bondade, sua cumplicidade, e a Fera tem de sobra todas essas boas qualidades. Não agüento fazê-lo infeliz, é ingratidão da minha parte. Eu me condenaria por isso para o resto da minha vida”. Pensando assim Bela imediatamente se levantou, pôs seu anel sobre a mesa próxima e voltou para a cama. Adormeceu assim que se deitou e, ao acordar pela manhã, viu 75
com grande alegria que estava no palácio da Fera. Vestiu-se rapidamente para reencontrar a Fera, colocando o vestido mais bonito que encontrou só para agradá-lo, e ficou ansiosamente aguardando as dar nove horas da noite. Enfim o relógio começou a dar as badaladas, mas quando acabou a Fera não apareceu. Bela se assustou, temeu que com seu atraso em retornar tivesse causado a morte da Fera, e saiu em desabalada correria percorrendo todo palácio, procurando por toda parte, gritando pela Fera. Desesperada de repente lembrou-se do seu sonho e correu para o jardim na direção do canal, onde o tinha visto. Encontrou a pobre Fera caída no chão, já inconsciente, e pensou que ele estivesse morto. Atirou-se em prantos sobre seu corpo, não sentindo mais a menor repulsa pela sua aparência, e abraçando-se nele percebeu que seu coração ainda batia fracamente. Com as mãos pegou água do canal e jogou sobre seu rosto. A Fera abriu os olhos e disse a Bela: “ Você esqueceu sua promessa. A dor de perdê-la deixou-me nesse estado, mas morrerei feliz porque tive o prazer de revê-la mais uma vez”. “Não querido, você não vai morrer não”, respondeu Bela, Vai viver para se tornar meu esposo. Neste momento lhe concedo minha mão, e juro que pertencerei somente a você. Ai de mim, por muito tempo acreditei que o que sentia por você era só amizade, mas a dor que sinto ao vê-lo assim me faz ver que o amo e que não poderei viver sem a sua presença”. Mal pronunciara essas palavras, diante dos olhos assustados de Bela, o castelo resplandeceu em luz, surgindo uma explosão de lindíssimos fogos de artifício, com uma música maravilhosa vinda não se sabe de onde. Apesar disso, Bela só conseguia olhar para a Fera, cujo estado a inquietava. Que surpresa ela teve! A Fera desaparecera e tudo que Bela viu foi um príncipe mais belo que o amor a seus pés, agradecendo-lhe por ter desfeito o encantamento. Bela olhou atônita para o príncipe e perguntou onde estava a Fera. “Está a seus pés”, disse-lhe o príncipe, “a Fera sou eu, ou melhor, era”. “Há muito tempo atrás eu era o poderoso príncipe de um reino distante, e apesar de ter boas qualidades, era mau, grosseiro e impiedoso. Um dia minha fada madrinha, disfarçada de mendiga, bateu à minha porta pedindo alimento e acolhida. Eu mesmo a joguei pra fora a pontapés. Naquele instante ela se deu a conhecer e me condenou a viver sob essa forma, até que meu coração se transformasse pelo sofrimento e pelo amor a 76
uma bela moça, que me amasse e consentisse em se casar comigo. Proibiu-me também de deixar minha inteligência aparecer. Você foi a única pessoa no mundo bondosa o bastante para se deixar tocar pelo meu coração. Nem lhe oferecendo minha coroa posso saldar toda a dívida de gratidão que tenho com você”. Bela deu a mão ao príncipe e foram juntos para o castelo, e para sua surpresa e alegria ela encontrou no salão o pai e sua família, que a linda dama de seu sonho tinha transportado pra lá. “Bela”, disse-lhe essa dama, que era uma fada, está na hora de você colher a recompensa por sua boa escolha: você preferiu a virtude à beleza e à inteligência, portanto merece encontrar todas essas qualidades reunidas numa mesma pessoa. Vai se tornar uma grande rainha. Espero que o trono não destrua suas virtudes. “Quanto às senhoritas”, disse a fada para as irmãs de Bela, “serão transportadas cada uma para um castelo onde, convertidas em feras, passarão pela mesma experiência do príncipe até que seus corações perversos e invejosos se convertam em bondade, ou até que morram de velhice, ou até que alguém, horrorizado com a aparência de vocês, as mate”.E assim foi feito. Depois a fada moveu sua varinha, transportando todos que ali estavam para o reino do príncipe, onde seus súditos o receberam com grande alegria. Ele se casou com Bela, que viveu com ele por muitos e muitos anos, numa felicidade tão perfeita quanto a que é possível aos mortais.
(Madame Jeanne-Marie de Beaulmont)
77
Cinderela (Versão original dos irmãos Grimms)
A mulher de um homem rico ficou muito doente. Quando ela percebeu que a morte se aproximava, chamou sua única filha ao seu leito e disse "Filha querida, seja boa e piedosa que o bom deus sempre lhe protejerá. Eu estarei no céu olhando pra você e nunca te abandonarei." Dito isso, ela fechou os olhos e morreu. Todos os dias a moça visitava o túmulo de sua mãe. Ela chorava e se mantinha piedosa e boa. Quando o inverno veio, a neve cobriu o túmulo com uma manta branca e quando o sol da primavera a derreteu, o homem encontrou uma nova esposa. A mulher trouxe consigo duas filhas que eram bonitas e agradáveis de rosto, mas más e feias de coração. Começava um período ruim para a pobre moça. "Essa pata-tonta vai sentar-se na sala de visitas conosco?," elas perguntavam. "Se quer comer o pão, terá que trabalhar para ganhá-lo. Trabalhará na cozinha." Elas tiraram suas belas roupas, vestiram-na com um camisolão cinza e velho e lhe calçaram com sapatos de madeira. "Olhem só para a princesa orgulhosa! Como está fora de moda," elas gritavam, riam e a levavam para a cozinha. Lá ela tinha que trabalhar pesado durante todo o dia, se acordava antes de o sol nascer, carregava água, acendia o fogo, cozinhava e lavava. Além disso, as irmãs ainda a maltratavam de todas as formas imagináveis - gozavam dela e derramavam as ervilhas e lentilhas nas cinzas do fogão para que ela tivesse que catar tudo de novo. Ao anoitecer, quando ela já estava cansada de tanto trabalhar, ela não tinha uma cama onde dormir e acabava deitando-se ao lado do forno, 78
nas cinzas. Por isso ela sempre parecia suja e empoeirada e foi então que começaram a chamá-la Cinderela. Um dia, o pai estava indo para a feira e perguntou às duas irmãs o que queriam que ele trouxesse para elas. "Belos vestidos," disse uma delas, "Pérolas e jóias," disse a outra. "E você, Cinderela," perguntou ele, "o que você quer?" "Pai, traga-me o primeiro galho de árvore que bater em seu chapéu quando estiver voltando para a casa." Então ele comprou belos vestidos, pérolas e jóias para as enteadas, voltando para a casa, quando cavalgava por um bosque, um ramo de uma aveleira passou pelo seu chapéu. Então ele quebrou o ramo e levou consigo. Quando chegou em casa, ele deu às enteadas o que haviam pedido, e para Cinderela ele deu o ramo da aveleira. Cinderela agradeceu, foi até o túmulo de sua mãe, plantou o ramo que ganhou de seu pai, e chorou tanto que as lágrimas chegaram ao chão e regaram a planta. O pequeno ramo cresceu e transformou-se em uma árvore frondosa. Três vezes por dia Cinderela sentava-se sob a árvore, chorava e rezava. Um passarinho branco sempre vinha para a árvore e se Cinderela expressasse um desejo, o passarinho jogava para ela o que ela pedira. Um dia o rei anunciou que haveria uma festa que duraria três dias para a qual todas as moças jovens e bonitas do reino estavam convidadas para que o príncipe escolhesse sua noiva. Quando as duas irmãs souberam que estavam convidadas, ficaram eufóricas, chamavam Cinderela e diziam, "pentei nossos cabelos, engraxe nossos sapatos e ajude-nos a nos vestir, porque nós vamos ao casamento no palácio real." Cinderela obedecia e chorava, porque ela queria ir com elas para o baile, e implorava à madrasta que deixasse-a ir. "Você, Cinderela," disse ela, "coberta de pó e sujeira como você sempre está. Você não tem roupas nem sapatos, e nem ao menos sabe dançar." E mesmo assim Cinderela continuava pedindo. Depois de um tempo a madrasta disse, "E despejei um prato
79
de lentilhas nas cinzas, se você conseguir catar todas em duas horas, deixarei você vir conosco." A moça foi até a porta dos fundos e chamou "Mansas pombinhas e rolinhas E todas as aves do céu Venham me ajudar a catar as lentilhas. As boas no prato, As ruins no papo." Logo duas pombinhas brancas entraram pela janela da cozinha, em seguida as rolinhas, e por último todas as aves do céu, vieram numa revoada e pousaram nas cinzas. As pombinhas balançavam a cabeça e começaram a catar e os outros passarinhos fizeram o mesmo. Logo juntaram todos os grãos bons no prato. Não tinha passado nem uma hora quando acabaram o serviço e se foram. A moça, contente, levou o prato para a madrasta. Ela acreditava que com isso poderia ir ao baile com elas. Mas a madrasta disse, "Não, Cinderela, você não tem roupas e não sabe dançar. Você seria motivo de risos." Como Cinderela começou a chorar, a madrasta disse: se você conseguir catar dois pratos de lentilhas das cinzas em uma hora, poderá ir conosco. Ela achava que desta vez, Cinderela não conseguiria. Quando a madrasta derramou os dois pratos de lentilhas nas cinzas, a moça foi até a porta dos fundos e chamou "Mansas pombinhas e rolinhas E todas as aves do céu Venham me ajudar a catar as lentilhas. As boas no prato, As ruins no papo." Logo duas pombinhas brancas entraram pela janela da cozinha, em seguida as rolinhas, e por último todas as aves do céu, vieram numa revoada e pousaram nas cinzas. As pombinhas balançavam a cabeça e começaram a catar e os outros passarinhos fi80
zeram o mesmo. Logo juntaram todos o grãos bons no prato. Não tinha passado nem meia hora quando acabaram o serviço e se foram. A moça estava muito feliz achando que agora ela teria permissão para ir ao baile. Mas a madrasta disse: "Isso não adianta nada. Você não pode ir conosco, pois não tem roupas e não sabe dançar. Só nos faria passar vergonha." Dito isso, ela virou as costas e partiu com suas orgulhosas filhas. Enquanto não tinha ninguém em casa, Cinderela foi ao túmulo de sua mãe, sentou-se sob a árvore e disse "Balance e se agite, árvore adorada, Me cubra toda de ouro e prata." O passarinho entregou-lhe um vestido de ouro e prata e sapatos de seda com bordados de prata. Ela vestiu-se com pressa e foi ao baile. A madrasta e as irmãs não a reconheceram e pensaram que deveria ser uma princesa estrangeira de tão bela que ela estava em seu vestido dourado. Elas nem imaginavam que podia ser Cinderela, e acreditavam que ela estava suja em casa, sentada ao lado do fogão catando lentilhas. O príncipe se aproximou dela, pegou sua mão e dançou com ela. Ele não quis dançar com nenhuma outra moça, não soltou a mão dela por um único instante e, se alguém a convidava para dançar, ele dizia "Ela é minha dama." Dançaram até tarde da noite, e então ela quis ir embora. Mas o príncipe disse: "Eu te acompanho," pois ele queria saber a que família tão bela moça pertencia. Ela conseguiu escapar-se dele e se escondeu no pombal. O príncipe esperou em frente à casa até que o pai de Cinderela veio e ele disse que a moça desconhecida havia se escondido no pombal. O pai de Cinderela pensou, "Deve ser Cinderela." Trouxeram um machado e uma picareta e quebraram o pombal em pedacinhos, mas já não tinha ninguém lá dentro. Quando chegaram em casa, encontraram Cinderela com suas roupas sujas deitada nas cinzas à luz mortiça de uma lamparina. 81
O que aconteceu foi que Cinderela se escapou rápido pela parte de trás do pombal e correu até a aveleira. Lá ela tirou suas belas vestes, deixou-as sobre o túmulo de sua mãe e o passarinho as levou. Então ela voltou pra casa e deitou-se nas cinzas vestida com seu camisolão. No dia seguinte, a festa recomeçou. A madrasta e as irmãs foram de novo. Cinderela foi até a aveleira e disse: "Balance e se agite, árvore adorada, Me cubra toda de ouro e prata." Logo o passarinho lhe entregou um vestido ainda mais bonito que o da noite anterior. E quando Cinderela apareceu no baile com seu vestido, todos ficaram espantados com tanta beleza. O príncipe, que estava esperando por ela, logo pegou sua mão e não dançou com nenhuma outra moça. Quando outros vinham e a convidavam para dançar, ele dizia "Ela é minha dama." Quando anoiteceu, ela quis ir embora e o príncipe a seguiu para ver em que casa ela entraria. Mas ela se escapou se escondendo no jardim de sua casa. Lá havia uma árvore alta e bela que dava peras maravilhosas. Ela subiu ágil como um esquilo e o príncipe não sabia onde ela estava. Ele esperou até que o pai dela veio e disse a ele, "A moça desconhecida se escapou de mim e acredito que ela tenha subido na pereira." O pai pensou: "Deve ser Cinderela." Trouxeram um machado e derrubaram a árvore, mas já não havia ninguém lá. Quando chegaram em casa, encontraram Cinderela com suas roupas sujas deitada nas cinzas à luz mortiça de uma lamparina. O que aconteceu foi que Cinderela se escapou rápido pela parte de trás do pombal e correu até a aveleira. Lá ela tirou suas belas vestes, deixou-as sobre o túmulo de sua mãe e o passarinho as levou. Então ela voltou pra casa e deitou-se nas cinzas vestida com seu camisolão. No terceiro dias, quando madrasta e as irmãs já tinham saído, Cinderela foi mais uma vez até o túmulo de sua mãe e disse para a aveleira "Balance e se agite, árvore adorada, Me cubra toda de ouro e prata."
82
E o passarinho lhe trouxe um vestido que ainda mais esplêndido e magnificente que os outros e sapatinhos de ouro. E quando ela chegou ao baile, todos emudeceram de admiração. O príncipe dançou apenas com ela e para todos que a convidavam para dançar, ele dizia: "Ela é minha dama". Quando a noite chegou, Cinderela quis ir embora e o príncipe estava ansioso para ir com ela. Mas ela escapou-se tão rápido que ele não conseguiu segui-la. O príncipe, desta vez, usou a inteligência: mandou que passassem piche na escadaria e, quando a moça passou, o sapato do pé esquerdo ficou grudado. O príncipe pegou o sapatinho: era pequenino, gracioso e todo de ouro. Na manhã seguinte, ele disse a seu pai que não se casaria com nenhuma moça, a não ser a dona do pé que coubesse neste sapato. As duas irmãs estavam felizes pois tinham pás pequenos. A mais velha entrou no quarto com o sapato e tentava calçá-lo enquanto sua mãe olhava. Mas ela não conseguiu colocar o sapato por causa de seu dedão do pé. O sapato era muito pequeno para ela. Então a mãe lhe deu uma faca e disse: "Corta o dedão, quando você for rainha, não precisará andar muito a pé." A moça cortou fora o dedão, forçou o pé para dentro do sapato, disfarçou a dor e foi ver o príncipe. Ele colocou-a na garupa de seu cavalo e saiu com ela como se fosse sua noiva. Eles tinham que passar pelo túmulo da mãe de Cinderela, e quando por lá passaram, da aveleira duas pombinhas cantaram "Olhe para trás, olhe para trás, há sangue no sapato, o sapato é pequeno demais, sua noiva lhe espera muito atrás." Então ele olhou para o pé dela e viu o sangue pingando. Ele deu meia volta com o cavalo e levou a falsa noiva de volta para a casa, e disse para a outra irmã calçar o sapato. Ela colocou seus dedos do pé sem problemas, mas deu calcanhar era largo demais. A madrasta deu-lhe uma faca e disse: "Corta fora um pedaço do teu calcanhar, quando fores rainha não precisarás andar a pé." 83
A moça cortou um pedaço de seu calcanhar, forçou seu pé para dentro do sapato, disfarçou a dor e foi ver o príncipe. Ele colocou-a na garupa de seu cavalo e saiu com ela como se fosse sua noiva. Quando passaram pela aveleira, duas pombinhas cantaram "Olhe para trás, olhe para trás, há sangue no sapato, o sapato é pequeno demais, sua noiva lhe espera muito atrás." Ele olhou para o pé dela e viu o sangue escorrendo pelo sapato e manchando a meia de vermelho. Ele deu meia volta com o cavalo e levou a noiva falsa de volta para casa. "Esta também não é a noiva certa," disse ele, "vocês não têm outra filha?" "Não," disse o homem, "temos apenas a pequena e raquítica ajudante de cozinha, filha de minha ex-mulher, mas não é possível que ela seja a noiva." O príncipe pediu para vê-la, mas a mulher disse "oh, não! Ela está sempre muito suja. Não está apresentável. Mas o príncipe insistiu e Cinderela foi chamada. Ela primeiro lavou suas mãos e o rosto, e curvou-se diante do príncipe que entregoulhe o sapatinho de ouro. Ela sentou-se em um banquinho, tirou o pesado sapato de madeira, e calçou o sapatinho de ouro, que serviu como uma luva. Ela ergueu-se e o príncipe olhou para o seu rosto e reconheceu a bela moça com quem tinha dançado e disse: "Esta é a noiva verdadeira." A madrasta e suas filhas estavam horrorizadas e ficaram pálidas de raiva, ele, entretanto, colocou Cinderela sobre seu cavalo e levou-a consigo Quando passaram pela aveleira, as duas pombinha cantaram: "Olhe para trás, olhe para trás, não tem sangue no sapato, que não lhe é apertado, É com a noiva certa que estás." E depois de cantar, as duas pombinhas pousaram nos ombros de Cinderela, uma no direito, a outra no esquerdo, e ficaram sentadinhas lá. 84
Na cerimônia do casamento do príncipe, as duas irmãs falsas foram e queriam ficar de bem com Cinderela e dividir com ela a boa fortuna que teve. Quando os noivos chegaram à igreja, a mais velha estava à direita e a mais nova à esquerda, e as pombinhas arrancaram um olho de cada uma das irmãs. Depois, quando voltavam, a mais velha estava à esquerda e a mais nova à direita, e as pombinhas arrancaram o outro olho de cada uma delas. E então, por sua maldade e falsidade, elas foram punidas com a cegueira até o fim de suas vidas.
85
Chapeuzinho Vermelho Era uma vez uma meninazinha mimosa, que todo o mundo amava assim que a via, mas mais que todos a amava a sua avó. Ela não sabia mais o que dar a essa criança. Certa vez, ela deu-lhe de presente um capuzinho de veludo vermelho, e porque este lhe ficava tão bem, e a menina não queria mais usar outra coisa, ficou se chamando Certo dia, sua mãe lhe disse:– Vem cá, Chapeuzinho Vermelho; aqui tens um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho, leva isto para a vovó; ela está doente e fraca e se fortificará com isto. Sai antes que comece a esquentar, e quando saíres, anda direitinha e comportada e não saias do caminho, senão podes cair e quebrar o vidro e a vovó ficará sem nada. E quando chegares lá, não esqueças de dizer bom-dia, enão fiques espiando por todos os cantos.– Vou fazer tudo como se deve, – disse Chapeuzinho Vermelho à mãe,dando-lhe a mão como promessa.A avó, porém, morava lá fora na floresta, a meia hora da aldeia.E quando Chapeuzinho Vermelho entrou na floresta, encontrou-se com o lobo. Mas Chapeuzinho Vermelho não sabia que fera malvada era aquela, e nãoteve medo dele.– Bom dia, Chapeuzinho Vermelho, – disse ele.– Muito obrigada, lobo.– Para onde vai tão cedo, Chapeuzinho Vermelho?– Para a casa da vovó.– E o que trazes aí debaixo do avental?– Bolo e vinho. Foi assado ontem, e a vovó fraca e doente vai saboreá-lo e se fortificar com o vinho.– Chapeuzinho Vermelho, onde mora a tua avó?– Mais um bom quarto de hora adiante no mato, debaixo dos três grandes carvalhos, lá fica a sua casa; embaixo ficam as moitas de avelã, decerto já sabes isso, – disse Chapeuzinho Vermelho.O lobo pensou consigo mesmo: “Esta coisinha nova e tenra, ela é um bom bocado que será ainda mais saboroso do que a velha.Tenho de ser muito esperto, para apanhar as duas”.Então ele ficou andando ao lado de Chapeuzinho Vermelho e logo falou:
86
– Chapeuzinho Vermelho, olha só para as lindas flores que crescem aqui em volta! Por que não olhas para os lados? Acho que nem ouves o mavioso canto dos passarinhos! Andas em frente como se fosses para a escola, e no entanto é tão alegre lá no meio do mato.Chapeuzinho Vermelho arregalou os olhos e, quando viu os raios de sol dançando de lá para cá por entre as árvores, e como tudo estava tão cheio deflores, pensou: “Se eu levar um raminho de flores frescas para a vovó, ela ficará contente; ainda é tão cedo, que chegarei lá no tempo certo”.Então ela saiu do caminho e correu para o mato, à procura de flores. E quando apanhava uma, parecia-lhe que mais adiante havia outra mais bonita, e ela corria para colhê-la e se embrenhava cada vez mais pela floresta adentro.O lobo, porém, foi direto para a casa da avó e bateu na porta.– Quem está aí fora?– É Chapeuzinho Vermelho, que te traz bolo e vinho, abre!– Aperta a maçaneta, – disse a vovó – eu estou muito fraca e não posso me levantar.O lobo apertou a maçaneta, a porta se abriu, e ele foi, sem dizer uma palavra, direto para a cama da vovó e engoliu-a. Depois, ele se vestiu com a roupa dela, pôs a sua touca na cabeça, deitou-se na cama e puxou o cortinado.Chapeuzinho Vermelho, porém, correu atrás das flores, e quando juntou tantas que não podia carregar mais, lembrou-se da vovó e se pôs a caminho da sua casa. Admirou-se ao encontrar a porta aberta, e quando entrou, percebeu alguma coisa tão estranha lá dentro, que pensou: “Ai, meu Deus, sinto-me tão assustada, eu que sempre gosto tanto de visitar a vovó!” E ela gritou:– Bom-dia!Mas não recebeu resposta. Então ela se aproximou da cama e abriu as cortinas. Lá estava a vovó deitada, com a touca bem afundada na cabeça e um aspecto muito esquisito.– Ai, vovó, que orelhas grandes que você tem!– É para te ouvir melhor!– Ai, vovó, que olhos grandes que você tem!– É para te enxergar melhor.– Ai, vovó, que mãos grandes que você tem!– É para te agarrar melhor.– Ai, vovó, que bocarra enorme que você tem!– É para te devorar melhor.E nem bem o lobo disse isso, deu um pulo da cama e engoliu a pobre Chapeuzinho Vermelho. Quando o lobo satisfez a sua vontade, deitou-se de novo na cama,adormeceu e começou a roncar muito alto. O caçador passou perto da casa e pensou: “Como a velha está roncando hoje! Preciso ver se não lhe falta alguma coisa”. Então ele entrou na casa, e quando olhou para a cama, viu que o lobo dormia nela.– É aqui que eu te encontro, velho malfeitor, – disse ele – há muito tempo que estou à tua procura.Aí ele quis apontar a espingarda, mas lembrou-se de que o lobo podia ter devorado a vovó, 87
e que ela ainda poderia ser salva. Por isso, ele não atirou, mas pegou uma tesoura e começou a abrir a barriga do lobo adormecido. E quando deu algumas tesouradas, viu logo o vermelho do chapeuzinho, e mais um par de tesouradas, e a menina saltou para fora e gritou:– Ai, como eu fiquei assustada, como estava escuro lá dentro da barriga do lobo!E aí também a velha avó saiu para fora ainda viva, mal conseguindo respirar. Mas Chapeuzinho Vermelho trouxe depressa umas grandes pedras,com as quais encheu a barriga do lobo. Quando ele acordou, quis fugir correndo, mas as pedras eram tão pesadas, que ele não pôde se levantar e caiu morto.Então os três ficaram contentíssimos. O caçador arrancou a pele do lobo elevou-a para casa, a vovó comeu o bolo e bebeu o vinho que Chapeuzinho Vermelho trouxera, e logo melhorou, mas Chapeuzinho Vermelho pensou:“Nunca mais eu sairei do caminho sozinha, para correr dentro do mato, quando a mamãe me proibir fazer isso”.
(Conto de Jakob e Wilhelm Grimm. Tradução de: Tatiana Belinky)
88
Deus é Bem Bom Havia um pescador, casado, pobre como Jó, mais que vivia com sua mulher, sempre alegre e satisfeito, dizendo: -Deus é bem bom mulher! -bem bom marido! – respondia ela. Todas as vezes que ele ia vender peixe no palácio do rei, este, que não gostava de ouvir falar no nome de Deus, ficava aborrecido com aquela cantilena dos pobres pescadores. Um dia disse o rei consigo: -deixem estar, que faço vocês acabarem com esse Deus é bem bom...
De uma feita quando o pescador foi vender o seu peixe, o rei pegou numa jóia muito rica e disse-lhe: -Toma esta jóia e me guarda ela até o dia em que eu te pedir. Assim que o pobre saiu o rei mandou um criado acompanhá-lo de longe para ver onde ele guardava a jóia, roubando-a depois e atirando-a ao mar. Isso mesmo o criado fez. Quando o pescador chegou na choupana, foi dizendo á mulher: -Deus é bem bom mulher! -Bem bom marido! Em seguida, contou o que lhe havia acontecido em palácio rematando:
89
-Onde é que a gente vai guardar essa jóia aqui? Pode chegar um ladrão e roubar ela. Depois nem nós vendidos temos dinheiro para comprar outra. Afinal, saíram pela praia e, chegando a um pé de coqueiro, cavaram um buraco bem fundo, no qual deitaram a jóia, metida dentro de um saquinho. Em seguida, taparam bem o buraco. Quando acabaram o trabalho, disse o homem: -Deus é bem bom mulher! -Bem bom marido! E, satisfeitíssimos, foram embora. O criado do rei que estava escondido, espiando onde eles iam esconder a jóia, quando o pescador e a mulher estavam bem longe, cavou de novo o buraco, tirou a jóia, sacudiu-a ao mar e correu para o palácio. Ora, meu senhor, lá continuaram os dois pobres muito contentes da vida, sempre com o “Deus é bem bom” na boca. Dias depois, o rei mandou-os chamar e ordenoulhes que fossem buscar a jóia que lhes dera para guardar. -Deus é bem bom mulher! -Bem bom marido! Diziam eles, descendo as escadas do palácio. Encaminharam-se para o lugar onde haviam enterrado a jóia. Lá chegando cavaram, cavaram, sem nada encontrar. Puseram as mãos na cabeça exclamando: -Estamos perdidos! O rei nos manda passar o cutelo. Saíram por ali a fora chorando, contudo, deixarem de afirmar: -Deus é bem bom mulher! -Bem bom marido! Chegando em casa, não tiveram mais coragem para nada. Passado algum tempo, o homem disse: -Mulher, eu sei que nos espera a morte. Vamos nos despedir dos nossos peixes.
90
Chegando no mar, deram um lanço e pegaram uma pescada grande e gorda que fazia gosto. Então voltaram para casa, dizendo um para o outro, na forma do costume, q Deus é bem bom. Em casa o pescador propôs: -Mulher vamos tratar essa pescada para nós comer. Quando acabar vamos nos apresentar ao rei. Ao menos havemos de morrer com barriga cheia. A mulher escamou o peixe, e, quando lhe passou a faca na barriga para abri-la, sentiu uma coisa ranger, perguntando de si para si o q seria aquilo. Abrindo a barriga da pescada, encontrou a jóia do rei dentro dela. Gritou a pobre, doida de alegria: -Deus é bem bom marido! Olha aqui a jóia do rei meu senhor! Deus é bem bom marido!... -Bem bom mulher! Cozinharam o peixe, comeram, descansaram bem, depois coseram a jóia num cinto bem cosida. O homem amarrou o cinto no corpo e lá se foram os dois para o palácio, dando pinotes de contentamento. Assim que o rei os foi avistando foi logo perguntando: -Cadê minha jóia? O homem desabotoou o cinto, descoseu-o, tirou a jóia, apresentou-a ao rei, que ficou friinho de espanto, vendo semelhante coisa. Então intimou-os, sob pena de morte, a contarem como tinham encontrado a jóia, referindo os dois que se havia passado. O rei, convencido de que Deus é mesmo bom, mandou-os embora, depois de lhes ter dado tanto dinheiro, que chegou para eles passarem descansados o resto da vida, sempre contentes e dizendo sempre: -Deus é bem mulher! -Bem bom marido!
(Henriqueta Lisboa)
91
Fonte das Três Comadres Havia um rei que cegou. Depois de ter empregado todos os recursos da medicina, deixou de usar de remédios, e já estava desenganado de que nunca mais chegaria a recobrar a vista. Mas uma vez foi uma velhinha a palácio pedir uma esmola, e, sabendo que o rei estava cego, pediu para falar com ele, para lhe ensinar um remédio. O rei mandou-a entrar, e então ela disse: -Saberá vossa real majestade, que lhe possa fazer voltar a vista, e vem a se banhar os olhos com a água tirada da “fonte das três comadres”. Mas é muito difícil ir-se a essa fonte, que fica no reino mais longe que há daqui. Quem for buscar a água, deve-se entender com uma velha que existe perto da fonte, e ela é quem deve indicar se o dragão está acordado ou dormindo. O dragão é um monstro que guarda a fonte, que fica atrás de umas montanhas. O rei deu uma quantia á velha e a despediu. Mandou preparar uma esquadra pronta de tudo e enviou o seu filho mais velho para ir buscar a água, dando-lhe um ano para estar de volta, não devendo ele saltar em parte alguma para não se distrair. O moço partiu. Depois de andar muito foi aportar a um reino muito rico, saltou para terra e namorou-se lá das festas e das moças, despendeu tudo quanto levava, contraiu dividas, e, passado um ano, não voltou para casa de seu pai. O rei ficou muito maçado e mandou preparar nova esquadra e enviou seu filho do meio para buscar a água das fontes das três comadres. O moço partiu, e, depois de muito andar, foi ter justamente o reino em que estava já arrasado seu irmão mais velho. Meteu-se lá também no pagode e nas festas, pôs fora tudo que levava, e, no fim de um ano, tam92
bém não voltou. O rei ficou muito desgostoso. Então o seu filho mais moço, que ainda era menino, se lhe apresentou e disse: -Agora eu quero ir, meu pai, lhe garanto que hei de trazer a água! O rei mancou com ele dizendo: -Se teus irmãos que eram homens, nada conseguiram, o que farás tu? Mas o principezinho insistiu, e a rainha aconselhou o rei de mandá-lo dizendo: -Muitas vezes donde não se espera daí é que vem. O rei anuiu e mandou preparar uma esquadra, e enviou o príncipe pequeno. Depois de muito navegar, o mocinho foi dar á terra onde estavam presos por dívidas os seus irmãos, pagou as dividas deles, que foram soltos. Quiseram dissuadi-lo de continuar a viagem e o convidaram para ali ficar com eles, mais o menino não quis e continuou sua derrota. Depois de muito ainda navegar, o príncipe chegou ao lugar indicado pela velha. Desembarcou sozinho levando uma garrafa, e foi ter á casa da velha, vizinha da fonte, a qual, quando o viu, ficou muito admirada, dizendo: -Ó meu netinho, o que veio cá fazer?!Isto é um perigo você talvez não escape. O monstro que guarda a fonte, que fica ali entre aquelas montanhas, é uma princesa encantada que tudo devora. Você procure uma ocasião em que ela esteja dormindo para poder chegar, e repare bem que quando a fera está com os olhos abertos é que ela está dormindo, e quando está com eles fechados é que está acordada. O príncipe tomou suas precauções e partiu. Chegando lá na fonte avistou a fera com os olhos abertos. Estava dormindo. O mocinho se aproximou e começou a encher sua garrafa, quando já ia retirando a fera acordou e lançou-se sobre ele dizendo: -Quem te mandou vir a meus reinos mortal seu atrevido? O moço ia-se defendendo com sua espada até que feriu a fera, e com o sangue ela se desencantou; e então disse: -Eu devo me casar com aquele que me desencantou; dou te um ano para vires me buscar para casar, senão eu te irei ver. A fera era uma princesa a coisa mais linda que dar-se podia. Em sinal para ser o príncipe conhecido quando viesse, a princesa lhe deu uma de suas camisas. 93
O príncipe partiu de volta para a terra de seus pais, quando chegou ao reino onde estavam seus irmãos, os levou para bordo para voltarem para seus pais. Os outros príncipes seguiram com ele. O menino tinha guardado sua garrafa no seu baú e os irmãos queriam roubá-la para lhe fazer mal e se apresentarem ao pai como se tinha sido eles que tinham alcançado a água das fontes das três comadres. Para isso propuseram ao pequeno dar-se um banquete a bordo da esquadra a toda oficialidade, em comemoração a ter ele conseguido arranjar o remédio para o rei. O pequeno consentiu, e no banquete os seus irmãos, de propósito, propuseram muitas saúdes, com o fim de o embriagarem e poderem roubar-lhe a garrafa do baú. O pequeno de fato bebeu demais e ficou ébrio; os manos então tiraram a chave do baú, que ele trazia consigo, e abriram-no e tiraram a garrafa d’água, e botaram outra no lugar, cheia de água do mar. Quando a esquadra se apresentou na terra do rei, todos ficaram muitos satisfeitos, sendo o príncipe menino recebido com muitas festas, mas quando foi botar a água nos olhos do rei, este desesperou com o ardor, e então os seus outros dois filhos se apresentaram, dizendo que o pequeno era um impostor, e que tinham trazido a verdadeira água, deitaram ela nos olhos de pai, o qual sentiu logo o mundo se clarear e ficou vendo, como dantes. Houve grandes festas no palácio e o príncipe mais moço foi mandado matar. Mais os matadores tiveram pena de matar e o deixaram numas brenhas cortando-lhe apenas um dedo, que levaram ao rei. O menino foi dar á casa de um roceiro, que o tomou como seu escravo e muito o maltratava. Passado um ano chegou o tempo em que ele tinha de voltar para se ir casar, segundo tinha prometido á princesa da fonte das três comadres e, não aparecendo ela mandou aparelhar uma esquadra muito forte e partiu para o reino do moço príncipe. Chegando lá mandou á terra um parlamentar avisar ao rei para lhe mandar o príncipe, que há um ano tinha ido á seus reinos buscar um remédio, e que ele tinha prometido casamento, isto sobre pena de mandar fazer fogo sobre a cidade. O rei ficou muito agoniado e o mais velho de seus filhos se apresentou a bordo, dizendo que era ele. Chegando a bordo a princesa lhe disse: -Homem atrevido que é do sinal de nosso reconhecimento? Ele que nada tinha, nada respondeu e voltou para terra muito enfiado.Mova intimação para terra e então foi o segundo filho do rei , mais o mesmo lhe aconteceu. A 94
princesa mandou acender os morrões e mandou nova intimação á terra. O rei ficou aflitíssimo, supondo que tudo se ia acabar, porque seu ultimo filho tinha sido morto por sua ordem. Aí os dois encarregados de o matar declararam que o tinham deixado com vida, cortando-lhe apenas um dedo. Então mais que depressa, se mandaram comissário por toda a parte procurando o príncipe, dando os sinais dele, e prometendo um premio a quem o trouxesse . o roceiro que o tinha em casa ficou mais morto do que vivo, quando soube que ele era filho do rei; botou o logo nas costas e o levou para o palácio chorando. O príncipe foi logo lavado e preparado com sua roupa, que a rainha tinha guardado, e que já lhe estava um pouco apertada e curta. O prazo que a princesa tinha concedido já estava a expirar, e já se iam acendendo os morrões para bombardear a cidade, quando o príncipe fez sinal de que já ia. Chegando á esquadra, foi logo reconhecido pela princesa, que lhe exigiu o sinal do reconhecimento e ele lho apresentou. Então seguiu com ela com quem se casou e foi governar um dos mais ricos reinos do mundo. Descoberta assim a pabulagem dos dois filhos mais velhos do rei, foram eles amarrados ás caudas de cavalos brabos e morreram despedaçados.
(Henrriqueta Lisboa)
95
Felicidade é Sorte Era um dia um sapateiro muito pobre e carregado de filhos, que apesar de trabalhar como um condenado vivia na miséria. De uma feita estava ele batendo sola quando passaram dois amigos, muito ricos, que vinham discutindo sobre a fortuna. Um dizia que a fortuna era dada pela felicidade e o outro pelos auxílios. Viram o sapateiro e tiveram piedade dele ao mesmo tempo que resolveram experimentar a opinião de cada um. O que sustentava a fortuna pelos auxílios, foi ao sapateiro e lhe deu cinqüenta moedas de ouro. O sapateiro quase morre de alegria. Acabou depressa o serviço e voltou para sua choupana. Aí enterrou o dinheiro num vaso que tinha um pé de manjericão, deixando para depois estudar como empregava aquele ouro. No outro dia acordou mais tarde e foi ver o pé de manjericão. Não o encontrou. Perguntou, já assustado, à mulher, onde pusera o vaso e soube que ela vendera a um homem que passava, apurando com que almoçar. O sapateiro botou as mãos na cabeça e contou sua desgraça, chorando os dois a falta de sorte que os perseguia. Tempos depois estava o sapateiro na sua ocupação quando os dois amigos ricos cruzaram a rua e vieram saber notícias das cinquenta moedas de ouro. O sapateiro contou sua desventura. - É minha vez de provar o que penso. Tome este pedaço de chumbo que encontrei no chão. Pode ser que seja mais feliz com o chumbo do que foi com o ouro. Foram embora e o sapateiro trouxe o pedaço de chumbo para casa, cada vez mais triste. Lá para as tantas da noite acordou com a voz da mulher de um pescador seu vizinho. Abriu a porta e perguntou o que desejava. A mulher vinha pedir um pedaço de chumbo para completar a chumbada da tarrafa do marido que ia pescar. O sapateiro entregou o que recebera e a mulher do pescador agradeceu muito, retirando-se. 96
Ao anoitecer, o sapateiro estava em casa quando veio a mulher do pescador com um grande peixe na mão. Era um presente pelo chumbo. O sapateiro agradeceu e mandou sua mulher preparar o peixe para a ceia. Quando a mulher abriu a barriga do peixe encontrou um enorme diamante. Como não conhecia diamantes, julgou-o um pedaço de vidro. Depois da ceia, como a mulher levasse a lamparina de uma sala para a cozinha, o tal vidro ficou iluminando todo o aposento, divertindo os meninos e assombrando o sapateiro. No dia seguinte a mulher do sapateiro, não se contendo, contou a história do vidro luminoso e essa notícia foi-se espalhando pelo bairro. Muita gente veio ver e admirar. Um homem, depois de olhar muito o tal vidro, ofereceu cem moedas de ouro por ele. O sapateiro, espantado por uma quantia dessas achou que o vidro devia valer muitíssimo mais. Fez-se de rogado e o homem foi oferecendo mais e mais dinheiro, até que ficou em mil moedas de ouro. O sapateiro não quis e foi mostrar a pedra ao rei que ficou estatelado quando viu o tamanho do diamante. Comprou-o por uma riqueza. O sapateiro mandou construir casa confortável para morar, colocou os filhos nas melhores escolas, e começou a viver como uma pessoa rica. Estava uma tarde na janela de sua casa quando os dois amigos passaram. O antigo sapateiro chamou-os, abraçando-os, agradecendo o que fizeram por ele e contando tudo. O amigo que pensava nos auxílios reconheceu que estava errado e disse: - Tens razão, amigo. Felicidade é fortuna. Mais vale quem Deus ajuda do quem cedo madruga...
(Henriqueta Lisboa)
97
Festa no Céu Entre todas as aves espalhou-se a notícia de uma festa no Céu. Todas as aves compareceriam e começaram a fazer inveja aos animais e outros bichos da terra incapazes de vôo. Imaginem quem foi dizer que ia também à festa... O sapo! Logo ele, pesadão e nem sabendo dar uma carreira, seria capaz de aparecer naquelas alturas. Pois o sapo disse que tinha sido convidado e que ia sem dúvida nenhuma. Os bichos só faltaram morrer de rir. Os pássaros, então, nem se fala. O sapo tinha seu plano. Na véspera, procurou o urubu e deu uma prosa boa, divertindo muito o dono da casa. Depois disse: - Bem, camarada urubu, quem é coxo parte cedo e eu vou indo porque o caminho é comprido. O urubu respondeu: - Você vai mesmo? - Se vou? Até lá, sem falta! Em vez de sair, o sapo deu uma volta, entrou na camarinha do urubu e vendo a viola em cima da cama, meteu-se dentro, encolhendo-se todo. O urubu, mais tarde, pegou na viola, amarrou-a a tiracolo e bateu asas para o céu, rru-rru-rru... Chegando ao céu o urubu arriou a viola num canto e foi procurar as outras aves. O sapo botou um olho de fora e vendo que estava sozinho, deu um pulo e ganhou a rua,
98
todo satisfeito. Nem queiram saber o espanto que as aves tiveram vendo o sapo pulando no céu! Perguntaram, perguntaram, mas o sapo só fazia conversa mole. A festa começou e o sapo tomou parte de grande. Pela madrugada, sabendo que só podia voltar do mesmo jeito da vinda, mestre sapo foi se esgueirando e correu para onde o urubu havia se hospedado. Procurou a viola e acomodou-se como da outra feita. O sol saindo, acabou-se a festa e os convidados foram voando, cada um no seu destino. O urubu agarrou a viola e tocou-se para a terra, rru-rru-rru... Ia pelo meio do caminho quando, numa curva, o sapo mexeu-se e o urubu espiando para dentro do instrumento viu o bicho lá no escuro, todo curvado, feito uma bola. - Ah! Camarada sapo! É assim que você vai a festa no céu? Deixe de ser confiado... E naquelas lonjuras emborcou a viola. O sapo despencou-se para baixo que vinha zunindo. E dizia, na queda: Béu-Béu! Se eu desta escapar Nunca mais bodas ao céu!... E vendo as serras lá em baixo: - Arreda pedras, senão eu te rebento!B Bateu em cima das pedras como um genipapo, espapaçando-se todo. Ficou em pedaços. Nossa Senhora, com pena do sapo, juntou todos os pedaços e o sapo enviveceu de novo. Por isso o sapo tem o couro todo cheio de remendos.
(Henriqueta Lisboa)
99
A Lebre Encantada Havia em um reino um rei que tinha um filho. Um dia o rei estava muito doente e disse ao filho que fosse matar uma caça para ele comer. O príncipe saiu com uma espingarda e quando viu, foi sair do mato uma lebre toda branca. O príncipe correu atrás dela para pegá-la, quando de repente abriu-se um buraco no chão e a lebre entrou, levando consigo o príncipe. Quando este viu, estava dentro de um palácio muito bonito e rico, tendo nele uma princesa também muito formosa. O príncipe ficou tão encantado da beleza da princesa, que nunca mais e lembrou do palácio do pai e nem deste. Passado muito tempo, vai um dia o príncipe lavar as suas mãos e tira do dedo uma jóia que o pai tinha lhe dado. Ai ele lembra de seu palácio e da família, e diz a princesa que ia vê-los. A princesa instou muito para que ele não fosse, mais ele disse que ia e tornava a voltar. A princesa então bateu com uma vara no lugar onde ela tinha entrado com o príncipe e o chão logo abriu-se e o príncipe passou. Quando chegou ao palácio do pai, achou-o todo coberto de luto e abandonado, pois já tinha morrido toda a família de desgosto por causa do desaparecimento do príncipe. Este ficou muito triste e não quis voltar mais pro palácio da princesa. Saiu sem destino tendo trocado a ropa de príncipe por a de um sapateiro, e deu a uma cidade que estava toda em festa; ele foi e perguntou que festa era aquela; então disseram que era pq a princesa deste lugar era uma moça mais bonita do mundo. O príncipe que estava mudado em sapateiro, pediu que lhe mostrasse a princesa, e disse quando a viu que já tinha visto uma moça muito mais bonita. Correram e foram logo dizer ao rei que aquele sapateiro disse que tinha conhecido uma princesa muito mais bonita do que a filha dele. O rei mandou chamar o sapateiro e disse, que sob pena de morte ele havia de trazer a princesa à presença dele. O sapateiro pediu o prazo de quinze 100
dias e saiu. Quando chegou ao lugar onde a lebre tinha entrado com ele, principiou a cavar. Levou muito tempo cavando pq a terra estava muito dura, mais afinal conseguiu passar. Ai encontrou o palácio da princesa todo fechado. Ele bateu na porta e apareceu uma criada. Quando esta viu o príncipe disse: -Príncipe meu senhor, a princesa esta muito doente por sua causa só o que diz é: “Ah! Ingrato, que foste e nunca mais viste quebrar meus encantos” A criada disse mais que naquele dia à meia noite o mar crescia muito e afogava todo o palácio, e então entrava um peixe muito grande e engolia a princesa, mas se tivesse uma pessoa que matasse o peixe, quebrava os encantos da princesa. O príncipe quis ir falar com a princesa mais a criada disse que não, porque ela podia morrer mais depressa. Aí o mar principiou a crescer e a princesa a ficar pior. O príncipe foi ver uma espada e escondeu-se atrás de uma janela o mar foi tomando o palácio, e quando foi meia noite, que o peixe entrou para engolir a princesa, o príncipe meteu-lhe a espada e o matou. O mar foi diminuindo outra vez a princesa escapou. Então o príncipe apareceu e a princesa ficou muito alegre e houve muita festa. Depois o príncipe disse: -Princesa eu já lhe salvei a vida, agora é você que vai salvar a minha. E contou, que sobre pena de morte, havia de mostrar uma princesa mais bonita que a filha do rei. A princesa disse que ele fosse descansado. Ele saiu e chegou no outro reino no dia marcado. Já estava a forca armada para ele morrer. Então ele pediu ao rei que esperasse mais um pouco, quando se viu foi aparecer uma nuvem de prata. Veio descendo, descendo, quando chegou no meio do povo apareceu uma criada toda coberta de prata dizendo:
-Arreda povo deixa botar a cadeirinha de minha sinhá. Aí o povo ficou pasmado. O sapateiro tornou a pedir ao rei que esperasse mais um bocadinho, que ainda não era aquela. Apareceu outra nuvem de ouro e foi descendo e quando chegou no meio do povo apareceu uma criada toda coberta de ouro e disse: 101
-Arreda povo deixa eu botar a cadeirinha da minha sinhá. O sapateiro tornou a pedir ao rei que esperasse, quando apareceu uma nuvem de brilhante e foi descendo. Quando chegou no meio do povo apareceu uma moça linda e toda coberta de brilhantes, que era a princesa, e assentou-se no meio das duas criadas. Quando o rei e a princesa viram aquela beleza, reviraram de cima das janelas do palácio e caíram mortos.
(Henriqueta Lisboa)
102
A Lenda da Formiga A formiga cosia muitas costuras de ganho e ensinava também a filha a coser. Quando saía, deixava tarefa de costura para ela; mas a bichinha arriava o trabalho, ia para o mato, ajuntava aquela porção de folhas e trazia para casa, começando então a cortálas com a tesoura. Quando a mãe chegava, que achava aquele montão de folhas cortadas, agarrava-a e dava-lhe muita pancada. Isso era todos os dias. A formiga já não sabia o que fizesse para corrigir a filha. Até que um dia, muito zangada, pegou numa corda e amarrou-a pela cintura ao pé, de uma mesa. Em seguida, foi para a rua, trancando a porta. Tanto fez a formiguinha, tanto sungou, tanto espinoteou, que o nó da corda foi-se apertando, arrochando-lhe a cintura, de modo que quase a tora em dois pedaços. Quando a formiga chegou, que viu a filha naquele estado, com a cintura tão fina devida ao arrocho da corda, teve pena dela e soltou-a. Mal se apanhou solta, a formiguinha não teve mais conversa. Correu para o mato, e toca a carregar folhas para cortar em casa com a tesoura. Vendo que não podia mais corrigi-la daquele mau costume, a mãe botou-a de casa para fora, dizendo: – Árre! Vai-te! Tua sina há de ser cortar folhas, até o mundo se acabar. Por isso é que a formiga saúva só vive cortando folhas para carregar para o formigueiro, tem a cintura tão fina e uma tesoura na cabeça.
103
Rapunzel Era uma vez um lenhador que vivia feliz com sua esposa. Os dois estavam muito contentes porque a mulher estava grávida do primeiro filho do casal. Ao lado da casa do lenhador morava uma bruxa muito egoísta. Ela nunca dava nada para ninguém. O quintal de sua casa era enorme e tinha um pomar e uma horta cheios de frutas e legumes saborosos, mas a bruxa construiu um muro bem alto cercando seu quintal, para ninguém ver o que tinha lá dentro! Na casa do lenhador havia uma janela que se abria para o lado da casa da bruxa, e sua esposa ficava horas ali olhando para os rabanetes da horta, cheia de vontade... Um dia a mulher ficou doente. Não conseguia comer nada que seu marido lhe preparava. Só pensava nos rabanetes... O lenhador ficou preocupado com a doença de sua mulher e resolveu ir buscar os rabanetes para a esposa. Esperou anoitecer, pulou o muro do quintal da bruxa e pegou um punhado deles. Os rabanetes estavam tão apetitosos que a mulher quis comer mais. O homem teve que voltar várias noites ao quintal da bruxa pois, graças aos rabanetes, a mulher estava quase curada. Uma noite, enquanto o lenhador colhia os rabanetes, a velha bruxa surgiu diante dele cercada por seus corvos. — Olhem só! — disse a velhota — Agora sabemos quem está roubando meus rabanetes! O homem tentou se explicar, mas a bruxa já sabia de tudo e exigiu em troca dos rabanetes a criança que ia nascer. O pobre lenhador ficou tão apavorado que não conseguiu dizer não para a bruxa. 104
Pouco tempo depois, nasceu uma linda menina. O lenhador e sua mulher estavam muito felizes e cuidavam da criança com todo o carinho. Mas a bruxa veio buscar a menina. Os pais choraram e imploraram para ficar com a criança, mas não adiantou. A malvada a levou e lhe deu o nome de Rapunzel. Passaram-se os anos. Rapunzel cresceu e ficou muito linda. A bruxa penteava seus longos cabelos em duas traças, e pensava: “Rapunzel está cada vez mais bonita! Vou prendê-la numa torre da floresta, sem porta e com apenas uma janela, bem alta, para que ninguém a roube de mim, e usarei suas tranças como escada.” E assim aconteceu. Rapunzel, presa na torre, passava os dias trançando o cabelo e cantando com seus amigos passarinhos. Todas as vezes que a bruxa queria visitá-la ia até a torre e gritava: — Rapunzel! Jogue-me suas tranças! A menina jogava as tranças e a bruxa as usava para escalar a torre. Um dia passou por ali um príncipe que ouviu Rapunzel cantarolando algumas canções. Ele ficou muito curioso para saber de quem era aquela linda voz. Caminhou as redor da torre e percebeu que não tinha nenhuma entrada, e que a pessoa que cantava estava presa. O príncipe ouviu um barulho e se escondeu, mas pôde ver a velha bruxa gritando sob a janela: — Rapunzel! Jogue-me suas tranças! O príncipe, então, descobriu o segredo. Na noite seguinte foi até a torre e imitou a voz da bruxa: — Rapunzel! Jogue-me suas tranças! Rapunzel obedeceu o chamado, mas assustou-se ao ver o príncipe entrar pela janela. — Oh! Quem é você? — perguntou Rapunzel. O príncipe contou o que acontecera e declarou seu amor por Rapunzel. Ela aceitou se encontrar com ele, mas pediu que os encontros fossem às escondidas, pois a bruxa era muito ciumenta.
105
Os dois passaram a se ver todos os dias, até que Rapunzel, muito distraída, disse um dia para a bruxa: — Puxa! A senhora é bem mais pesada que o príncipe! A bruxa descobriu os encontros da menina com o príncipe e cortou suas tranças. Chamou seus corvos e ordenou que levassem Rapunzel para o deserto para que ela vivesse sozinha. O príncipe, que não sabia de nada, foi visitar Rapunzel. A bruxa segurou as tranças da menina e as jogou para baixo. Quando ele chegou na janela, a bruxa o recebeu com uma risada macabra e largou as tranças. Ele despencou, caindo sobre uma roseira. Os espinhos furaram seus olhos, e ele ficou cego. Mesmo assim, o príncipe foi procurar sua amada Rapunzel, tateando e gritando seu nome. Andou por dias, até chegar ao deserto. Rapunzel ouviu o príncipe chamar por ela e correu ao seu emcontro. Quando descobriu que o príncipe estava cego começou a chorar. Duas lágrimas caíram dentro dos olhos do rapaz e ele voltou a enxergar! Assim, os dois jovens foram para o palácio do príncipe, se casaram e viveram felizes. Os pais de Rapunzel foram morar no palácio e a bruxa egoísta ficou com tanta raiva que se trancou na torre e nunca mais saiu de lá.
(Irmãos Grimms)
106
Os Três Porquinhos Era uma vez, na época em que os animais falavam, três porquinhos que viviam felizes e despreocupados na casa da mãe. A mãe era ótima, cozinhava, passava e fazia tudo pelos filhos. Porém, dois dos filhos não a ajudavam em nada e o terceiro sofria em ver sua mãe trabalhando sem parar. Certo dia, a mãe chamou os porquinhos e disse: — Queridos filhos, vocês já estão bem crescidos. Já é hora de terem mais responsabilidades para isso, é bom morarem sozinhos. A mãe então preparou um lanche reforçado para seus filhos e dividiu entre os três suas economias para que pudessem comprar material e construírem uma casa. Estava um bonito dia, ensolarado e brilhante. A mãe porca despediu-se dos seus filhos: — Cuidem-se! Sejam sempre unidos! - desejou a mãe. Os três porquinhos, então, partiram pela floresta em busca de um bom lugar para construírem a casa. Porém, no caminho começaram a discordar com relação ao material que usariam para construir o novo lar. Cada porquinho queria usar um material diferente. O primeiro porquinho, um dos preguiçosos foi logo dizendo: — Não quero ter muito trabalho! Dá para construir uma boa casa com um monte de palha e ainda sobra dinheiro para comprar outras coisas. O porquinho mais sábio advertiu: — Uma casa de palha não é nada segura. O outro porquinho preguiçoso, o irmão do meio, também deu seu palpite:
107
— Prefiro uma casa de madeira, é mais resistente e muito prática. Quero ter muito tempo para descansar e brincar. — Uma casa toda de madeira também não é segura - comentou o mais velho- Como você vai se proteger do frio? E se um lobo aparecer, como vai se proteger? — Eu nunca vi um lobo por essas bandas e, se fizer frio, acendo uma fogueira para me aquecer! - respondeu o irmão do meio- E você, o que pretende fazer, vai brincar conosco depois da construção da casa? — Já que cada um vai fazer uma casa, eu farei uma casa de tijolos, que é resistente. Só quando acabar é que poderei brincar. – Respondeu o mais velho. O porquinho mais velho, o trabalhador, pensava na segurança e no conforto do novo lar. Os irmãos mais novos preocupavam-se em não gastar tempo trabalhando. — Não vamos enfrentar nenhum perigo para ter a necessidade de construir uma casa resistente. - Disse um dos preguiçosos. Cada porquinho escolheu um canto da floresta para construir as respectivas casas. Contudo, as casas seriam próximas. O Porquinho da casa de palha, comprou a palha e em poucos minutos construiu sua morada. Já estava descansando quando o irmão do meio, que havia construído a casa de madeira chegou chamando-o para ir ver a sua casa. Ainda era manhã quando os dois porquinhos se dirigiram para a casa do porquinho mais velho, que construía com tijolos sua morada. — Nossa! Você ainda não acabou! Não está nem na metade! Nós agora vamos almoçar e depois brincar. – disse irônico, o porquinho do meio. O porquinho mais velho porém não ligou para os comentários, nem par a as risadinhas, continuou a trabalhar, preparava o cimento e montava as paredes de tijolos. Após três dias de trabalho intenso, a casa de tijolos estava pronta, e era linda! Os dias foram passando, até que um lobo percebeu que havia porquinhos morando naquela parte da floresta. O Lobo sentiu sua barriga roncar de fome, só pensava em comer os porquinhos. 108
Foi então bater na porta do porquinho mais novo, o da casa de palha. O porquinho antes de abrir a porta olhou pela janela e avistando o lobo começou a tremer de medo. O Lobo bateu mais uma vez, o porquinho então, resolveu tentar intimidar o lobo: — Vá embora! Só abrirei a porta para o meu pai, o grande leão!- mentiu o porquinho cheio de medo. — Leão é? Não sabia que leão era pai de porquinho. Abra já essa porta. – Disse o lobo com um grito assustador. O porquinho continuou quieto, tremendo de medo. — Se você não abrir por bem, abrirei à força. Eu ou soprar, vou soprar muito forte e sua casa irá voar. O porquinho ficou desesperado, mas continuou resistindo. Até que o lobo soprou um a vez e nada aconteceu, soprou novamente e da palha da casinha nada restou, a casa voou pelos ares. O porquinho desesperado correu em direção à casinha de madeira do seu irmão. O lobo correu atrás. Chagando lá, o irmão do meio estava sentado na varanda da casinha. — Corre, corre entra dentro da casa! O lobo vem vindo! – gritou desesperado, correndo o porquinho mais novo. Os dois porquinhos entraram bem a tempo na casa, o lobo chegou logo atrás batendo com força na porta. Os porquinhos tremiam de medo. O lobo então bateu na porta dizendo: — Porquinhos, deixem eu entrar só um pouquinho! — De forma alguma Seu Lobo, vá embora e nos deixe em paz. — disseram os porquinhos. — Então eu vou soprar e soprar e farei a casinha voar. O lobo então furioso e esfomeado, encheu o peito de ar e soprou forte a casinha de madeira que não aguentou e caiu.
109
Os porquinhos aproveitaram a falta de fôlego do lobo e correram para a casinha do irmão mais velho. Chegando lá pediram ajuda ao mesmo. — Entrem, deixem esse lobo comigo!- disse confiante o porquinho mais velho. Logo o lobo chegou e tornou a atormentá-los: — Porquinhos, porquinhos, deixem-me entrar, é só um pouquinho! — Pode esperar sentado seu lobo mentiroso.- respondeu o porquinho mais velho. — Já que é assim, preparem-se para correr. Essa casa em poucos minutos irá voar! O lobo encheu seus pulmões de ar e soprou a casinha de tijolos que nada sofreu. Soprou novamente mais forte e nada. Resolveu então se jogar contra a casa na tentativa de derrubá-la. Mas nada abalava a sólida casa. O lobo resolveu então voltar para a sua toca e descansar até o dia seguinte. Os porquinhos assistiram a tudo pela janela do andar superior da casa. Os dois mais novos comemoraram quando perceberam que o lobo foi embora. — Calma , não comemorem ainda! Esse lobo é muito esperto, ele não desistirá antes de aprende ruma lição.- Advertiu o porquinho mais velho. No dia seguinte bem cedo o lobo estava de volta à casa de tijolos. Disfarçado de vendedor de frutas. — Quem quer comprar frutas fresquinhas?- gritava o lobo se aproximando da casa de tijolos. Os dois porquinhos mais novos ficaram com muita vontade de comer maçãs e iam abrir a porta quando o irmão mais velho entrou na frente deles e disse: -__ Nunca passou ninguém vendendo nada por aqui antes, não é suspeito que na manhã seguinte do aparecimento do lobo, surja um vendedor? Os irmãos acreditaram que era realmente um vendedor, mas resolveram esperar mais um pouco. O lobo disfarçado bateu novamente na porta e perguntou:
110
— Frutas fresquinhas, quem vai querer? Os porquinhos responderam: — Não, obrigado. O lobo insistiu: Tome peguem três sem pagar nada, é um presente. — Muito obrigado, mas não queremos, temos muitas frutas aqui. O lobo furioso se revelou: — Abram logo, poupo um de vocês! Os porquinhos nada responderam e ficaram aliviados por não terem caído na mentira do falso vendedor. De repente ouviram um barulho no teto. O lobo havia encostado uma escada e estava subindo no telhado. Imediatamente o porquinho mais velho aumentou o fogo da lareira, na qual cozinhavam uma sopa de legumes. O lobo se jogou dentro da chaminé, na intenção de surpreender os porquinho entrando pela lareira. Foi quando ele caiu bem dentro do caldeirão de sopa fervendo. — AUUUUUUU!- Uivou o lobo de dor, saiu correndo em disparada em direção à porta e nunca mais foi visto por aquelas terras. Os três porquinhos, pois, decidiram morar juntos daquele dia em diante. Os mais novos concordaram que precisavam trabalhar além de descansar e brincar. Pouco tempo depois, a mãe dos porquinhos não aguentando as saudades, foi morar com os filhos. Todos viveram felizes e em harmonia na linda casinha de tijolos.
(Joseph Jacobs)
111
Quem tem medo do Lobo Mau (Desenho do Walt Disney)
Com palha eu faço a casa
Só o que sabe é trabalhar
Pra não me esforçar
Podem rir, dançar e brincar
Na minha casinha
Que não vou me aborrecer
Eu toco a flautinha
Mas não vai ser brincadeira
Eu gosto é de brincar!
Quando o lobo aparecer
De vara é minha casa
Quem tem medo do Lobo mau, Lobo mau, Lobo mau------------ Bis
É onde eu vou morar
Dou um soco no nariz
Mas eu não me amofino
Eu dou-lhe um bofetão
Vou tocando violino
Eu dou-lhe um pontapé
O que eu gosto é de dançar!
Derrubo ele no chão
Eu faço a minha casa
Quem tem medo do Lobo mau, Lobo mau, Lobo mau------------ Bis
Com pedra e com tijolo Pra trabalhar não sei dançar Pois não sou nenhum tolo Ele não sabe brincar, nem cantar, nem dançar.
112
O Patinho Feio A mamãe pata tinha escolhido um lugar ideal para fazer seu ninho: um cantinho bem protegido, no meio da folhagem, perto do rio que contornava o velho castelo. Mais adiante estendiam-se o bosque e um lindo jardim florido. Naquele lugar sossegado, a pata agora aquecia pacientemente seus ovos. Por fim, após a longa espera, os ovos se abriram um após o outro, e das cascas rompidas surgiram, engraçadinhos e miúdos, os patinhas amarelos que, imediatamente, saltaram do ninho. Porém um dos ovos ainda não se abrira; era um ovo grande, e a pata pensou que não o chocara o suficiente. Impaciente, deu umas bicadas no ovão e ele começou a se romper. No entanto, em vez de um patinho amarelinho saiu uma ave cinzenta e desajeitada. Nem parecia um patinho. Para ter certeza de que o recém-nascido era um patinho, e não outra ave, a mãe-pata foi com ele até o rio e o obrigou a mergulhar junto com os outros. Quando viu que ele nadava com naturalidade e satisfação, suspirou aliviada. Era só um patinho muito, muito feio. Tranqüilizada, levou sua numerosa família para conhecer os outros animais que viviam nos jardins do castelo. Todos parabenizaram a pata: a sua ninhada era realmente bonita. Exceto um. O horroroso e desajeitado das penas cinzentas! — É grande e sem graça! — falou o peru. — Tem um ar abobalhado — comentaram as galinhas. O porquinho nada disse, mas grunhiu com ar de desaprovação. Nos dias que se seguiram, as coisas pioraram. Todos os bichos, inclusive os patinhos, perseguiam a criaturinha feia. A pata, que no princípio defendia aquela sua estranha cria, agora também sentia vergonha e não queria tê-lo em sua companhia. O pobre patinho crescia só, 113
malcuidado e desprezado. Sofria. As galinhas o bicavam a todo instante, os perus o perseguiam com ar ameaçador e até a empregada, que diariamente levava comida aos bichos, só pensava em enxotá-lo. Um dia, desesperado, o patinho feio fugiu. Queria ficar longe de todos que o perseguiam. Caminhou, caminhou e chegou perto de um grande brejo, onde viviam alguns marrecos. Foi recebido com indiferença: ninguém ligou para ele. Mas não foi maltratado nem ridicularizado; para ele, que até agora só sofrera, isso já era o suficiente. Infelizmente, a fase tranquila não durou muito. Numa certa madrugada, a quietude do brejo foi interrompida por um tumulto e vários disparos: tinham chegado os caçadores! Muitos marrequinhos perderam a vida. Por um milagre, o patinho feio conseguiu se salvar, escondendo-se no meio da mata. Depois disso, o brejo já não oferecia segurança; por isso, assim que cessaram os disparos, o patinho fugiu de lá. Novamente caminhou, caminhou, procurando um lugar onde não sofresse. Ao entardecer chegou a uma cabana. A porta estava entreaberta, e ele conseguiu entrar sem ser notado. Lá dentro, cansado e tremendo de frio, se encolheu num cantinho e logo dormiu. Na cabana morava uma velha, em companhia de um gato, especialista em caçar ratos, e de uma galinha, que todos os dias botava o seu ovinho. Na manhã seguinte, quando a dona da cabana viu o patinho dormindo no canto, ficou toda contente. — Talvez seja uma patinha. Se for, cedo ou tarde botará ovos, e eu poderei preparar cremes, pudins e tortas, pois terei mais ovos. Estou com muita sorte! Mas o tempo passava, e nenhum ovo aparecia. A velha começou a perder a paciência. A galinha e o gato, que desde o começo não viam com bons olhos recém-chegado, foram ficando agressivos e briguentos. Mais uma vez, o coitadinho preferiu deixar a segurança da cabana e se aventurar pelo mundo. Caminhou, caminhou e achou um lugar tranqüilo perto de uma lagoa, onde parou. Enquanto durou a boa estação, o verão, as coisas não foram muito mal. O patinho passava boa parte do tempo dentro da água e lá mesmo encontrava alimento suficiente. Mas chegou o outono. As folhas começaram a cair, bailando no ar e pousando no chão, formando um grande tapete amarelo. O céu se cobriu de nuvens ameaçadoras e o vento esfriava cada vez mais. Sozinho, triste e esfomeado, o patinho pensava, preocupado, no inverno que se aproximava. Num final de tarde, viu surgir entre os arbustos um bando de grandes e lindíssimas aves. Tinham as plumas alvas, as asas grandes e um longo pescoço, delicado e sinuoso: eram cisnes, emigrando na direção de regiões quentes. Lançando es114
tranhos sons, bateram as asas e levantaram vôo, bem alto. O patinho ficou encantado, olhando a revoada, até que ela desaparecesse no horizonte. Sentiu uma grande tristeza, como se tivesse perdido amigos muito queridos. Com o coração apertado, lançou-se na lagoa e nadou durante longo tempo. Não conseguia tirar o pensamento daquelas maravilhosas criaturas, graciosas e elegantes. Foi se sentindo mais feio, mais sozinho e mais infeliz do que nunca. Naquele ano, o inverno chegou cedo e foi muito rigoroso. O patinho feio precisava nadar ininterruptamente, para que a água não congelasse em volta de seu corpo, criando uma armadilha mortal. Mas era uma luta contínua e sem esperança. Um dia, exausto, permaneceu imóvel por tempo suficiente para ficar com as patas presas no gelo. — Agora morrerei — pensou. — Assim, terá fim todo meu sofrimento. Fechou os olhos, e o último pensamento que teve antes de cair num sono parecido com a morte foi para as grandes aves brancas. Na manhã seguinte, bem cedo, um camponês que passava por aqueles lados viu o pobre patinho, já meio morto de frio. Quebrou o gelo com um pedaço de pau, libertou o pobrezinho e levou-o para sua casa. Lá o patinho foi alimentado e aquecido, recuperando um pouco de suas forças. Logo que deu sinais de vida, os filhos do camponês se animaram: — Vamos fazê-lo voar! — Vamos escondê-lo em algum lugar! E seguravam o patinho, apertavam-no, esfregavam-no. Os meninos não tinham más intenções; mas o patinho, acostumado a ser maltratado, atormentado e ofendido, se assustou e tentou fugir. Fuga atrapalhada! Caiu de cabeça num balde cheio de leite e, esperneando para sair, derrubou tudo. A mulher do camponês começou a gritar, e o pobre patinho se assustou ainda mais. Acabou se enfiando no balde da manteiga, engordurando-se até os olhos e, finalmente se enfiou num saco de farinha, levantando uma poeira sem fim. A cozinha parecia um campo de batalha. Fora de si, a mulher do camponês pegara a vassoura e procurava golpear o patinho. As crianças corriam atrás do coitadinho, divertindo-se muito. Meio cego pela farinha, molhado de leite e engordurado de manteiga, esbarrando aqui e ali, o pobrezinho por sorte conseguiu afinal encontrar a porta e fugir, escapando da curiosidade das crianças e da fúria da mulher. Ora esvoaçando, ora se arrastando na neve, ele se afastou da casa do camponês e somente parou quando lhe faltaram as forças. Nos meses seguintes, o patinho vi115
veu num lago, se abrigando do gelo onde encontrava relva seca. Finalmente, a primavera derrotou o inverno. Lá no alto, voavam muitas aves. Um dia, observando-as, o patinho sentiu um inexplicável e incontrolável desejo de voar. Abriu as asas, que tinham ficado grandes e robustas, e pairou no ar. Voou. Voou. Voou longamente, até que avistou um imenso jardim repleto de flores e de árvores; do meio das árvores saíram três aves brancas. O patinho reconheceu as lindas aves que já vira antes, e se sentiu invadir por uma emoção estranha, como se fosse um grande amor por elas. — Quero me aproximar dessas esplêndidas criaturas — murmurou. — Talvez me humilhem e me matem a bicadas, mas não importa. É melhor morrer perto delas do que continuar vivendo atormentado por todos. Com um leve toque das asas, abaixou-se até o pequeno lago e pousou tranquilamente na água. — Podem matar-me, se quiserem — disse, resignado, o infeliz. E abaixou a cabeça, aguardando a morte. Ao fazer isso, viu a própria imagem refletida na água, e seu coração entristecido deu um pulo. O que via não era a criatura desengonçada, cinzenta e sem graça de outrora. Enxergava as penas brancas, as grandes asas e um pescoço longo e sinuoso. Ele era um cisne! Um cisne, como as aves que tanto admirava. — Bem-vindo entre nós! — disseram-lhe os três cisnes, curvando os pescoços, em sinal de saudação. Aquele que num tempo distante tinha sido um patinho feio, humilhado, desprezado e atormentado se sentia agora tão feliz que se perguntava se não era um sonho! Mas, não! Não estava sonhando. Nadava em companhia de outros, com o coração cheio de felicidade. Mais tarde, chegaram ao jardim três meninos, para dar comida aos cisnes. O menorzinho disse, surpreso: — Tem um cisne novo! E é o mais belo de todos! E correu para chamar os pais. — É mesmo uma esplêndida criatura! — disseram os pais. E jogaram pedacinhos de biscoito e de bolo. Tímido diante de tantos elogios, o cisne escondeu a cabeça embaixo da asa. Talvez um outro, em seu lugar, tivesse ficado en-
116
vaidecido. Mas não ele. Seu coração era muito bom, e ele sofrera muito, antes de alcançar a sonhada felicidade.
(Andersen)
117
O Soldadinho de Chumbo Numa loja de brinquedos havia uma caixa de papelão com vinte e cinco soldadinhos de chumbo, todos iguaizinhos, pois haviam sido feitos com o mesmo molde. Apenas um deles era perneta: como fora o último a ser fundido, faltou chumbo para completar a outra perna. Mas o soldadinho perneta logo aprendeu a ficar em pé sobre a única perna e não fazia feio ao lado dos irmãos. Esses soldadinhos de chumbo eram muito bonitos e elegantes, cada qual com seu fuzil ao ombro, a túnica escarlate, calça azul e uma bela pluma no chapéu. Além disso, tinham feições de soldados corajosos e cumpridores do dever. Os valorosos soldadinhos de chumbo aguardavam o momento em que passariam a pertencer a algum menino. Chegou o dia em que a caixa foi dada de presente de aniversário a um garoto. Foi o presente de que ele mais gostou: — Que lindos soldadinhos! — exclamou maravilhado. E os colocou enfileirados sobre a mesa, ao lado dos outros brinquedos. O soldadinho de uma perna só era o último da fileira. Ao lado do pelotão de chumbo se erguia um lindo castelo de papelão, um bosque de árvores verdinhas e, em frente, havia um pequeno lago feito de um pedaço de espelho. A maior beleza, porém, era uma jovem que estava em pé na porta do castelo. Ela também era de papel, mas vestia uma saia de tule bem franzida e uma blusa bem jus118
ta. Seu lindo rostinho era emoldurado por longos cabelos negros, presos por uma tiara enfeitada com uma pequenina pedra azul. A atraente jovem era uma bailarina, por isso mantinha os braços erguidos em arco sobre a cabeça. Com uma das pernas dobrada para trás, tão dobrada, mas tão dobrada, que acabava escondida pela saia de tule. O soldadinho a olhou longamente e logo se apaixonou, e pensando que, tal como ele, aquela jovem tão linda tivesse uma perna só. “Mas é claro que ela não vai me querer para marido”, pensou entristecido o soldadinho, suspirando. “Tão elegante, tão bonita… Deve ser uma princesa. E eu? Nem cabo sou, vivo numa caixa de papelão, junto com meus vinte e quatro irmãos”. À noite, antes de deitar, o menino guardou os soldadinhos na caixa, mas não percebeu que aquele de uma perna só caíra atrás de uma grande cigarreira. Quando os ponteiros do relógio marcaram meia-noite, todos os brinquedos se animaram e começaram a aprontar mil e uma. Uma enorme bagunça! As bonecas organizaram um baile, enquanto o giz da lousa desenhava bonequinhos nas paredes. Os soldadinhos de chumbo, fechados na caixa, golpeavam a tampa para sair e participar da festa, mas continuavam prisioneiros. Mas o soldadinho de uma perna só e a bailarina não saíram do lugar em que haviam sido colocados. Ele não conseguia parar de olhar aquela maravilhosa criatura. Queria ao menos tentar conhecê-la, para ficarem amigos. De repente, se ergueu da cigarreira um homenzinho muito mal-encarado. Era um gênio ruim, que só vivia pensando em maldades. Assim que ele apareceu, todos os brinquedos pararam amedrontados, pois já sabiam de quem se tratava. O geniozinho olhou a sua volta e viu o soldadinho, deitado atrás da cigarreira. — Ei, você aí, por que não está na caixa, com seus irmãos? — gritou o monstrinho. 119
Fingindo não escutar, o soldadinho continuou imóvel, sem desviar os olhos da bailarina. — Amanhã vou dar um jeito em você, você vai ver! - gritou o geniozinho enfezado. Depois disso, pulou de cabeça na cigarreira, levantando uma nuvem que fez todos espirrarem. Na manhã seguinte, o menino tirou os soldadinhos de chumbo da caixa, recolheu aquele de uma perna só, que estava caído atrás da cigarreira, e os arrumou perto da janela. O soldadinho de uma perna só, como de costume, era o último da fila. De repente, a janela se abriu, batendo fortemente as venezianas. Teria sido o vento, ou o geniozinho maldoso? E o pobre soldadinho caiu de cabeça na rua. O menino viu quando o brinquedo caiu pela janela e foi correndo procurá-lo na rua. Mas não o encontrou. Logo se consolou: afinal, tinha ainda os outros soldadinhos, e todos com duas pernas. Para piorar a situação, caiu um verdadeiro temporal. Quando a tempestade foi cessando, e o céu limpou um pouco, chegaram dois moleques. Eles se divertiam, pisando com os pés descalços nas poças de água. Um deles viu o soldadinho de chumbo e exclamou: — Olhe! Um soldadinho! Será que alguém jogou fora porque ele está quebrado? — É, está um pouco amassado. Deve ter vindo com a enxurrada. — Não, ele está só um pouco sujo. — O que nós vamos fazer com um soldadinho só? Precisaríamos pelo menos meia dúzia, para organizar uma batalha. — Sabe de uma coisa? — Disse o primeiro garoto. —Vamos colocá-lo num barco e mandá-lo dar a volta ao mundo.
120
E assim foi. Construíram um barquinho com uma folha de jornal, colocaram o soldadinho dentro dele e soltaram o barco para navegar na água que corria pela sarjeta. Apoiado em sua única perna, com o fuzil ao ombro, o soldadinho de chumbo procurava manter o equilíbrio. O barquinho dava saltos e esbarrões na água lamacenta, acompanhado pelos olhares dos dois moleques que, entusiasmados com a nova brincadeira, corriam pela calçada ao lado. Lá pelas tantas, o barquinho foi jogado para dentro de um bueiro e continuou seu caminho, agora subterrâneo, em uma imensa escuridão. Com o coração batendo fortemente, o soldadinho voltava todos seus pensamentos para a bailarina, que talvez nunca mais pudesse ver. De repente, viu chegar em sua direção um enorme rato de esgoto, olhos fosforescente e um horrível rabo fino e comprido, que foi logo perguntando: — Você tem autorização para navegar? Então? Ande, mostre-a logo, sem discutir. O soldadinho não respondeu, e o barquinho continuou seu incerto caminho, arrastado pela correnteza. Os gritos do rato do esgoto exigindo a autorização foram ficando cada vez mais distantes. Enfim, o soldadinho viu ao longe uma luz, e respirou aliviado; aquela viagem no escuro não o agradava nem um pouco. Mal sabia ele que, infelizmente, seus problemas não haviam acabado. A água do esgoto chegara a um rio, com um grande salto; rapidamente, as águas agitadas viraram o frágil barquinho de papel. O barquinho virou, e o soldadinho de chumbo afundou. Mal tinha chegado ao fundo, apareceu um enorme peixe que, abrindo a boca, engoliu-o. O soldadinho se viu novamente numa imensa escuridão, espremido no estômago do peixe. E não deixava de pensar em sua amada: “O que estará fazendo agora sua linda bailarina? Será que ainda se lembra de mim?”.
121
E, se não fosse tão destemido, teria chorado lágrimas de chumbo, pois seu coração sofria de paixão. Passou-se muito tempo — quem poderia dizer quanto? E, de repente, a escuridão desapareceu e ele ouviu quando falavam: — Olhe! O soldadinho de chumbo que caiu da janela! Sabem o que aconteceu? O peixe havia sido fisgado por um pescador, levado ao mercado e vendido a uma cozinheira. E, por cúmulo da coincidência, não era qualquer cozinheira, mas sim a que trabalhava na casa do menino que ganhara o soldadinho no aniversário. Ao limpar o peixe, a cozinheira encontrara dentro dele o soldadinho, do qual se lembrava muito bem, por causa daquela única perna. Levou-o para o garotinho, que fez a maior festa ao revê-lo. Lavou-o com água e sabão, para tirar o fedor de peixe, e endireitou a ponta do fuzil, que amassara um pouco durante aquela aventura. Limpinho e lustroso, o soldadinho foi colocado sobre a mesma mesa em que estava antes de voar pela janela. Nada estava mudado. O castelo de papel, o pequeno bosque de árvores muito verdes, o lago reluzente feito de espelho. E, na porta do castelo, lá estava ela, a bailarina: sobre uma perna só, com os braços erguidos acima da cabeça, mais bela do que nunca. O soldadinho olhou para a bailarina, ainda mais apaixonado, ela olhou para ele, mas não trocaram palavra alguma. Ele desejava conversar, mas não ousava. Sentia-se feliz apenas por estar novamente perto dela e poder amá-la. Se pudesse, ele contaria toda sua aventura; com certeza a linda bailarina iria apreciar sua coragem. Quem sabe, até se casaria com ele… Enquanto o soldadinho pensava em tudo isso, o garotinho brincava tranqüilo com o pião. De repente como foi, como não foi — é caso de se pensar se o geniozinho ruim da cigarreira não metera seu nariz —, o garotinho agarrou o soldadinho de chumbo e atirou-o na lareira, onde o fogo ardia intensamente. 122
O pobre soldadinho viu a luz intensa e sentiu um forte calor. A única perna estava amolecendo e a ponta do fuzil envergava para o lado. As belas cores do uniforme, o vermelho escarlate da túnica e o azul da calça perdiam suas tonalidades. O soldadinho lançou um último olhar para a bailarina, que retribuiu com silêncio e tristeza. Ele sentiu então que seu coração de chumbo começava a derreter — não só pelo calor, mas principalmente pelo amor que ardia nele. Naquele momento, a porta escancarou-se com violência, e uma rajada de vento fez voar a bailarina de papel diretamente para a lareira, bem junto ao soldadinho. Bastou uma labareda e ela desapareceu. O soldadinho também se dissolveu completamente. No dia seguinte. a arrumadeira, ao limpar a lareira, encontrou no meio das cinzas um pequenino coração de chumbo: era tudo que restara do soldadinho, fiel até o último instante ao seu grande amor. Da pequena bailarina de papel só restou a minúscula pedra azul da tiara, que antes brilhava em seus longos cabelos negros.
(Andersen)
123
Pele de Asno (Conto Original de Charles Perrault – Obra Completa)
Era uma vez um boníssimo rei, a quem o povo muito amava e os visinhos muito respeitavam, sendo por isso o rei mais feliz do mundo. Além do mais, ele teve a sorte de casar-se com uma princesa linda e igual virtuosa que lhe deu apenas uma filha, porém tão encantadora, que os pais viviam num verdadeiro êxtase. No palácio real, havia abundância de tudo e muito bom gosto. Os ministros eram muito sagazes e habilidosos, os cortesão, muito dedicados, e os empregados, muito leais. Na grande estrebaria, havia os mais soberbos cavalos jamais vistos e com os melhores arreios, embora todos estranhassem que o mais importante animal fosse um asno com orelhas compridíssimas . Mas não fora por um mero capricho que o rei lhe dera tamanha distinção. O asno era merecedor de todas as regalias e honras, pois, na verdade, se tratava de um asno com poderes mágicos. Todo dia, ao nascer do sol, a sua baia estava coberta de moedas de ouro, que o rei mandava colher. Mas como a vida não é para sempre um mar de rosas, certo dia a rainha caiu de cama, com uma doença desconhecida que nenhum médico era capaz de curar. No palácio, baixou uma intensa tristeza. O rei foi a todos os templos do castelo e fez promessas, em que se comprometia a dar sua própria vida em troca da cura da amada rainha. Mas tudo foi em vão. Certo dia, sentindo que ia morrer, a rainha chamou o marido e lhe disse, aos prantos: - Meu fiel esposo e amigo, quero fazer-lhe antes de ir-me um pedido: se de novo se casar... 124
Nesse ponto, o rei a interrompeu, apartando-lhe as mãos e desfazendo-se em lágrimas, como que para dizer-lhe que jamais sequer pensara nisso. - Não, não, minha fiel esposa e amiga, em vez disso, peça-me que a siga na tumba! - O reino - continuou a rainha com tranqüila firmeza - precisa de sucessores e eu só lhe dei uma filha. Portanto terá que se casar de novo, e eu lhe peço que só se case se encontrar uma princesa mais bonita e mais bem-dotada do que eu. Se me jurar isso morrerei feliz e em paz. Parece que a rainha tinha muito amor próprio , e que se forçou o marido a essa promessa, foi porque não cogitava que pudesse haver outra princesa que excedesse em beleza e dotes. Porém, o rei jurou e ela, alguns minutos depois, morreu. O rei sofreu imensamente. Durante vários dias, só chorou e se lamentou. Mas, com o tempo, se foi conformando, e, certo dia, os seus ministros lhe mandaram uma representação, pedindo-lhe que se casasse de novo. Tal pedido o fez desfazer-se em lágrimas pelo pesar reavivado e respondeu que jurara à esposa que só voltaria a se casar quando aparecesse uma princesa mais bonita e mais bem-dotada do que a falecida o que era praticamente impossível. Os ministros disseram que a beleza era algo supérfluo, e que para o bem do reino bastava uma rainha virtuosa e fértil, que lhe desse muitos filhos homens e, assim, tranqüilizasse o povo quanto a sucessão. Também disseram que a princesa real tinha todos os atributos para se tornar uma grande rainha, mas, por ser mulher, logo se casaria com um príncipe estrangeiro, o que poria em risco a coroa, já que o rei não tinha filhos que lhe sucedessem. O rei ouviu tudo e meditou sobre aqueles argumentos racionais, prometendo que voltaria a se casar. E, de fato, procurou, entre as princesas em idade de casar uma que lhe fosse conveniente. Todos os dias, os ministros lhe traziam retratos de princesas dos reinos das cercanias - porém o rei respondia negativamente com a cabeça. Nenhuma chegava aos pés da sua amada falecida. O tempo passava e, à medida que passava, a princesa real ficava cada vez mais linda, excedendo a própria mãe. O rei reparava naquilo, e como já não estava muito no seu juízo perfeito, começou a sentir pela filha um amor profundo e forte, que não se assemelhava ao amor paterno. Enfim, não conseguindo mais esconder os seus sentimentos, declarou que só se casaria com ela. 125
A jovem princesa, que era muito virtuosa, quase desfaleceu quando ouviu a declaração de rei seu pai. Lançou-se-lhe aos pés e lhe suplicou eloqüentemente a não cometer aquele crime hediondo. O rei foi consultar um druida para ficar com a consciência tranqüila, e o druida, que era muito ambicioso e só queria tornar-se um dos favoritos do rei, convenceu-o de que não havia mal algum naquele casamento e que, além de ser vantajoso para todos, era até mesmo um ato de crueldade. O rei o abraçou e retornou ao palácio mais decidido ainda, e mandou que a princesa se preparasse para as bodas. A princesa, em desespero, só ocorreu uma idéia: ir consultar a fada Lilás, sua madrinha. Então, partiu naquela noite mesmo, numa espécie de carro puxado por um cordeiro que conhecia todos os caminhos. A fada gostava muito da princesa e logo que a viu chegar lhe disse que já sabia tudo. - É claro, minha menina, que seria um grande erro casar-se com o seu pai. Porém, eu vejo um jeito de arranjar as coisas sem que haja um confronto. Concorde com as bodas, mas lhe exija como condição que ele lhe dê um vestido da cor do tempo. Nem com todas as riquezas que possui, nem com todo o seu poder, ele conseguirá semelhante vestido. A princesa agradeceu à sua madrinha, retornou ao palácio e disse ao rei que se casaria com ele, contando que lhe desse um vestido com a cor do tempo. O rei ficou tão maravilhado com a resposta, que mandou vir os mais habilidosos costureiros do reino, e lhes ordenou que fizessem o vestido, sob pena de serem enforcados. Mas isso não foi necessário, porque após dois dias os costureiros trouxeram o vestido, leve como as manhãs e azul como o céu. A princesa ficou desapontada e correu de novo ao encontro da madrinha: - O que fazer agora? - Perguntou-lhe. - Peça gora um vestido da cor da lua - responde-lhe a fada. E a princesa real pediu ao rei o vestido da cor da lua, que foi encomendado de imediato. No dia seguinte, o vestido foi entregue e era tal e qual da cor da lua. A princesa se desesperou e de novo se lamentava quando a fada apareceu e disse:
126
-Se pedir um vestido da cor do sol, tenho certeza de que o rei ficará muito embaraçado, pois é impossível fazer um vestido da cor do sol - e, pelo menos, você ganhará tempo. A princesa fez o que a fada lhe recomendou - pediu ao rei um vestido da cor do sol, que foi, de pronto, encomendado. E para que os costureiros o pudessem fazer, o rei lhes deu todos os diamantes e rubis da sua própria coroa para enfeitar o vestido. Quando trouxeram, todos os habitantes do palácio tiveram que fechar os olhos, tamanho era o seu esplendor. A moça se sentiu perdida, e sob o pretexto de que o vestido lhe havia feito mal aos olhos, retirou-se para seus aposentos, onde a guardava a boa fada. -Minha menina, não se desespere! Nem tudo está perdido! - disse-lhe ela. - O rei está obcecado e nossos estratagemas falharam. Mas acho que se pedir a pele do asno que fornece todo o ouro que é sustento da riqueza dessa corte, ele negará. Vá pedir-lhe a pele do asno. A jovem, alegre e cheia de esperanças, correu e foi pedir ao pai a pele do asno. O rei ficou espantado com aquele capricho, mas na hora ordenou que sacrificassem o asno, cuja pele foi dada à princesa. A princesa subiu, correndo para seus aposentos e se desfez em lágrimas, mas sua madrinha conseguiu acalmá-la facilmente. -Mas o que há menina? Pois fique sabendo que isso foi ótimo. Envolva-se na pele do asno e saia pelo mundo. Deus recompensa quem tudo sacrifica pela virtude. Vá. Tudo o que lhe pertence a acompanhará, eu lhe garanto. Fique com a minha varinha de condão. Sempre que a bater no chão, verá surgirem as coisas de que estiver precisando. A princesa deu um abraço apertado na madrinha, suplicando-lhe que não a abandonasse jamais. Em seguida, envolveu-se na pele do asno, passou fuligem no rosto e saiu do palácio despercebida. O desaparecimento da princesa foi um verdadeiro escândalo. O rei, que já ordenara uma esplêndida festa para o dia de suas bodas, mergulhou no desespero. Mandou mais de mil mosqueteiros saírem à procura da filha. Mas tudo foi em vão . A varinha 127
de condão tinha a fantástica propriedade de tornar a princesa invisível a todos seus perseguidores. Assim que saiu do palácio, a princesa foi andando sem rumo, até muito longe, à procura de uma casa onde pudesse empregar-se. Todo mundo lhe dava esmolas, mas ninguém a recebia na sua casa. Aquele rosto cheio de fuligem e aquela pele de asno fazia as pessoas se sentirem nojo dela. Por fim, chegou ás cercanias de uma cidade onde havia granja. Naquele exato local, estavam a procura de uma empregada que executasse as tarefas mais grosseiras, como lavar a pocilga, guardar os gansos e outras coisas do tipo. Vendo aquela maltrapilha tão suja, a dona da granja se dispôs a empregá-la, coisa que a princesa aceitou de pronto, de tão cansada que estava. A mísera princesa teve de ficar num canto da cozinha, com toda a criadagem a caçoar dela da maneira mais estúpida - tudo devido à pele de asno que ela usava. Enfim, acabou por se acostumar com aquilo, e caprichava tanto na execução das suas tarefas, que a dona da granja começou a vê-la com melhores olhos. Certo dia em que sentara à beira de um tanque, resolveu mirar-se no espelho d'água e assustou-se com sua horrível aparência. Lavou-se e ficou clara como era - linda e branca como a lua. Algum tempo depois, teve que vestir de novo a medonha pele de asno a fim de voltar para casa. No dia seguinte, não havia trabalho, porque era dia de festa, então a princesa tocou a varinha, e a sua frente surgiram os seus pertences, e ela se divertiu em pentear-se e enfeitar-se com os seus mais lindos ornamentos. O seu quarto era tão pequenininho que as caldas dos vestidos não se podiam desdobrar. Com justo mérito, a princesa se admirou no espelho e teve, dessa forma, um dia feliz. Depois desse dia, resolveu que em todas as horas vagas poria os seus lindos vestidos e se enfeitaria - mas sempre às escondidas, dentro das quatro paredes do seu quartinho. Por vezes, ficava tão encantadoramente linda que até suspirava por não haver ninguém que a visse. Num dia de folga , em que Pele de Asno (chamavam-na por esse nome) pusera o seu vestido da cor do sol, ocorreu de ali parar o filho do rei, que fora à caça. Era um belo príncipe, o poso idolatrava e os seus pais o adoravam. A dona da granja mostrou-lhe tudo, as aves, as plantações, e como o príncipe era muito curioso, percorreu a propriedade toda, examinando tudo. Mas quando passava por um corredor, encontrou uma porta trancada e resolveu espiar pelo buraco da fechadura: vislumbrou, lá den128
tro, uma beleza que o deixou fascinado. Era Pele de Asno com seu vestido da cor do Sol. Muito intrigado, o príncipe saiu dali e foi perguntar quem ocupara aquele quarto escuro. Responderam-lhe que era uma pastora imunda chamada Pele de Asno, pois sempre vestia uma pele desse animal; disseram também que era tão suja que ninguém tinha vontade de aproximar-se dela, nem de falar-lhe, e que só por caridade a tinham empregado como pastora de carneiros e gansos. O príncipe logo percebeu que era inútil inquirir aquelas pessoas tolas e voltou para a corte com o coração palpitando de transtorno. Não conseguia tirar da cabeça a fascinante deusa vislumbrada por alguns segundos pelo buraco da fechadura. Arrependeu-se amargamente de não ter arrombado a porta. E tamanha foi a sua excitação que ficou com uma febre altíssima. A rainha se desesperou com o estado do seu filho único e prometeu milhões de recompensa quem pudesse curá-lo. Todos os melhores médicos do reino acudiram e, depois de vários exames, concluíram que a doença do príncipe provinha de uma inquietude moral. Assim que a rainha ficou sabendo disso foi perguntar ao filho o que realmente se passava no seu coração. Disse-lhe que o que quer que fosse, ela faria tudo por amor a ele; que se queria a coroa, com certeza o seu pai daria sem problema algum; que se queria tomar por esposa alguma princesa, a tomaria, mesmo que fosse necessário declarar uma guerra. Mas que, pelo amor de Deus, não continuasse daquele jeito e lhe confessasse tudo, senão também ela morreria. -Minha querida mamãe - respondeu o príncipe com voz agonizante - não sou um filho desnaturado que quer subir ao trono quando seu pai ainda está vivo. Pelo contrário: quero que ele viva por muitos anos mais. -Eu sei meu filhinho, mas sua vida é o que temos de mais precioso e queremos saber qual é o motivo do seu desassossego, que tudo faremos para salvar a vida, pois salvando a sua vida estaremos salvando também a nossa. -Tudo bem mamãe, vou contar-lhe a verdade. O que quero é que Pele de Asno me faça um bolo para saciar a minha vontade. A rainha ficou estupefata ao ouvir aquele pedido tão estranho, ainda mais com a menção de uma pessoa toda desconhecida e de nome tão feio. 129
-Meu filho, quem é Pele de Asno? Um dos palacianos que já estivaram na granja respondeu: -Majestade, Pele de Asno é uma pastora imunda, encardida, que guarda os carneiros e gansos numa granja de propriedade real. -Pouco importa! - disse a rainha. - Talvez o meu filho numa das suas caçadas, tenha comido um bolo feito por ela e agora está com desejo doentio. Mandem Pele de Asno preparar o mais rápido possível, o bolo. Cumpre dizer que, no instante em que o príncipe olhou pelo buraco da fechadura, quando visitou a granja, a princesa o percebeu, e depois, pela janelinha, pode vê-lo quando ele se afastava - e admirou o porte e a beleza viril do príncipe. Alguns dizem até que suspirou - e que desse dia em diante sempre suspirava quando se lembrava daquela cena. O que quer que seja, quando Pele de Asno recebeu a ordem de preparar o bolo, ficou agitadíssima e foi correndo fechar no seu quartinho para pôr a mão na massa. Para tanto, lavou-se, penteou-se pôs seu vestido mais bonito e começou a amassar a mais branca e pura farinha com a manteiga e os ovos mais frescos e amarelinhos. Num dado momento, não se sabe se por obra do acaso ou se de propósito, deixou cair na massa um anel que tinha no dedo. Uma vez pronto o bolo, escondeuse de novo sob a medonha e repugnante pele, e abriu a porta para entregar aos mensageiros o que lhe fora encomendado, e, tímida, lhes perguntou como passava o príncipe. Os mensageiros, muito soberbos, nem lhe responderam. Pegaram o bolo e se foram a galope para o palácio. O príncipe recebeu, ávido, o bolo, e o comeu com tamanha voracidade que os médicos ficaram estupefatos, não achando aquilo nem um pouco natural. Alguns segundos depois começou a tossir desesperadamente, como se algo o asfixiasse. Era o anel. Tirou-o da boca e viu que se tratava de uma jóia rara e linda, que só poderia caber num dedinho de extrema delicadeza. O príncipe o beijou inúmeras vezes e pôs à sua cabeceira, para de novo contemplá-lo e beijá-lo sempre que ficava sozinho. Agora o que atormentava era o desejo de conhecer a dona do anel, porém recava contar o que vira pelo buraco da fechadura, pois tinha a certeza de que todos zombariam dele. E, torturando por sentimentos tão contraditórios, acabou piorando. A fe130
bre aumentou. Então, os médicos disseram a rainha que a doença do príncipe era simplesmente amor. Na hora, a rainha e o rei foram ao quarto do adorado doente. - Meu filho! - disseram-lhe. - Seja bom conosco e nos diga o nome daquela que conquistou seu coração, porque juramos aceitar a sua escolha, mesmo que seja a mais humilde serva. O príncipe, comovido com as palavras dos pais, respondeu-lhes: - Meus queridos pais, eu não quero casar-me com alguém que lhes desagrade, e para provar o que digo declaro que só me casarei com a dona deste anel. Acho que a dona de um dedinho que nele caiba não pode ser nenhuma aldeã indigna de nós. O rei e a rainha pegaram o anel, examinaram-no com atenção e concordaram com o filho. Em seguida, o rei beijou o filho e se retirou, fez um decreto em que se proclamava que a moça cujo dedo coubesse o anel seria a esposa do príncipe. Houve uma verdadeira peregrinação de moças em idade de casar ao palácio. Vieram, primeiro, as princesas, que eram muitas; em seguida , as duquesas, as marquesas e as baronesas, mas em nenhum dos seus dedos coube o anel. Depois, vieram as mais belas moças da cidade, que não pertenciam à nobreza, e tampouco nos dedos coube o anel. O príncipe melhorara e ele próprio fazia a prova. Por fim, chegou a vez das milhares moças de baixa condição, criadas, camareiras, e o mesmo aconteceu com elas. Então, o príncipe mandou vir também as cozinheiras e as guardadoras de gado, mas foi em vão. - Agora só resta vir a tal Pele de Asno que me preparou o bolo - disse o príncipe - e todos riram, dizendo que uma criatura daquela tão suja não era digna sequer de pôr os pés no palácio. - Ordeno que a tragam - declarou o príncipe - Não há porque venham todas menos ela. Os cortesãos lhe obedeceram e foram buscá-la porém dando gargalhadas daquela excentricidade do príncipe. Pele de Asno, que já amava o príncipe, sentiu o coração pular quando soube do tumulto que ocorria na Corte por causa de seu anel e, desconfiada de que também a 131
viria buscar, arrumou-se o melhor que pôde e pôs o seu mais lindo vestido. Em seguida, envolveu-se na pele do asno e aguardou. Algum tempo depois, chegaram os mensageiros com a ordem de levá-la, e os tais mensageiros não conseguiram parar de rir daquele horrendo ser. "Chamaram-na ao palácio, ó imunda! Para casar-se com o filho do rei, ah! Ah! Ah! ". O príncipe ficou desapontado quando Pele de Asno entrou no seu quarto. - É você mesma que ocupa aquele quartinho no fundo da granja? - Sim, senhor príncipe - respondeu ela. - Mostre-me a mão - disse-lhe o príncipe por desencargo de consciência, e suspirando de desânimo. Então, o que se sucedeu foi qualquer coisa. Assim que recebeu a ordem de mostrar a mão, Pele de Asno pôs para fora da medonha pele que a cobria a mais delicada mão do mundo, rósea, em cujo dedo médio o anel coube como se tivesse sido feito especialmente para ele. De súbito, a pele de asno lhe caiu dos ombros e aos olhos de todos surgiu uma criatura de beleza exuberante. O príncipe pulou da cama e, ajoelhando aos seus pés, abraçou-a com ternura. Em seguida, o rei e a rainha fizeram o mesmo, perguntando-lhe se aceitava o príncipe por esposo. A princesa, toda confusa, já abria a boca para responder, quando o teto se abriu e a fada Lilás apareceu numa carruagem maravilhosa, tecida de pétalas de lilases, e contou a todos a história da princesa Tim-Tim por Tim-Tim. A alegria do rei e da rainha foi imensa quando ficaram sabendo que Pele de Asno era uma princesa real e, portanto, digna de ser a esposa do herdeiro do trono, e de novo, a abraçaram e beijaram. O príncipe estava tão impaciente para se casar que mal houve tempo para preparar uma festa à altura do faustoso acontecimento. O rei e a rainha, que tinham adoração pela nora, não paravam de mimá-la e de beijá-la. Porém, a moça estava triste e disse que não poderia casar-se sem o consentimento do pai. Assim sendo, ele foi o primeiro a receber o convite para as bodas, que, a conselho da fada Lilás, não mencionava o nome da noiva. Às núpcias, compareceram reis de todas as regiões: alguns foram de liteira, outros de cabriolé, e os de terras mais longínquas, montados em elefantes, em tigres e em águias. Porém , o mais poderoso e magnificente era o pai da princesa, que, 132
para alegria geral, havia esquecido aquele amor impossível e descabido e se havia casado com uma bela rainha viúva, com a qual não teve filhos. A princesa assim que o viu, correu ao seu encontro, e ele logo a reconheceu e a beijou ternamente, antes que ela pudesse ajoelhar-se aos seus pés. O rei e a rainha lhe apresentaram o filho, de quem se tornou muito amigo. As bodas se deram com pompa e circunstâncias, mas os noivos nem perceberam isso, pois só tinham olhos um para o outro. Então, o rei, pai do príncipe, aproveitou a ocasião para passar o trono ao adorado filho. Este não o queria, mas o rei o forçou, e, para comemorar tão majestoso acontecimento, decretou três meses de festas contínuas que ficaram célebres nos anais do reino.
133
Oficialmente Peau D'Âne (pele de asno em Frances) foi escrito em versos. Segue abaixo a história de Pele de Asno escrita em versos antes de originar-se a uma linda história:
I O VESTIDO-MAR
Bom Rei Meu Pai me quis para núpcias Porque sou bela e sósia da Morta. Em vão razão à paixão exorta, Ele diz qu’há de ter a pelúcia.
Aconselhada por Aia, astúcia Emprego a fim de detê-lo à porta: Capinar-me-á livremente a horta Se me doado em cada minúcia
Vestido-Mar, azul de marugem. Penso impossível cumpra mas surgem À minha frente as vagas, escumas
Maravilhantes da veste em brumas, Índiga, seda e babados, plumas. Bom Pai Meu Rei me exige a penugem.
134
II O VESTIDO-LUA
Meu Bom Rei Pai bufa, treme, sua, Sanha fazer-me esposa, Rainha. Por sugestão da Fada Madrinha Prominto breve inteira ser Sua.
Cederei, caso um Vestido-Lua Me seja entregue até manhãzinha. Feito nos contos da Carochinha O fato, ali, lunando, flutua.
Leve tecido, argênteo cetim, Exato corte, meu manequim. Reflete o brilho dos paetês
O olhar paterno imerso em lamês (Dá medo ver como ele me vê): Meu Rei Bom Pai não tresolhe assim.
135
III O VESTIDO-SOL
Mau Rei Meu Pai quase me domina, Por triz escapo à real loucura. Tamanho o ardor com que me procura, Será, pegar-me, carnificina.
Porém clemente Madre me ensina Estrataclara contra a diabrura. Dou-me, se vem cobrir-me a brancura Vestido-Sol de luz sulfurina.
Nem bem formulo o pedido, ai, ei-lo, Plissês perfeitos, traje modelo. Flamê, arrasta-se a cauda e sei
O que, dourada, evoca: o Astro-Rei! E os raios sob os quais queimarei... Mau Pai Meu Rei, Sátiro Amarelo.
136
IV A PELE-DE-ASNO
Mau Rei Mau Pai de luxúria insã A violar meu casto sossego. Quando me avista fica já cego De tão querer bruto, fauno afã.
Adeus Castelo, adeus todo Clã, Vou correr léguas do Ogro, Morcego. Sob este couro de burro, arrego Encontro, oculta no cardigã.
Vou virar pobre, sem roupa, ceia, Vou ser a louca-escárnio d’aldeia: Beleza soube engendrar Horror?
Há de Beleza vir do Pavor. Na Pele d’Asno o meu pundonor... Mau Pai Mau Rei, amar-me-ás, feia?!
137
A Ilha dos Sentimentos Era uma vez uma ilha onde moravam os sentimentos. Num dia de muita tempestade a ilha toda foi inundada e cada um procurou salvar-se como pode. O AMOR, no entanto, não se apressou, pois queria ficar um pouco mais com sua ilha tão querida. Mas a situação ficou feia e ele começou a se afogar. O AMOR ao ver a RIQUEZA passando em seu luxuoso iate, pediu ajuda. A RIQUEZA respondeu: - Não posso levar você, não cabe. Meu barco está cheio de ouro e prata! Ao ver a VAIDADE passar, também pediu ajuda. A VAIDADE respondeu: -Não posso, você está todo sujo e vai sujar meu barquinho! Ao ver a TRISTEZA passar, também pediu ajuda. A TRISTEZA respondeu: -Ah! AMOR, estou tão triste… prefiro ficar sozinha! A INDIFERENÇA nem sequer respondeu ao seu pedido de socorro. Foi então que passou um velhinho e o socorreu. -Sobe, AMOR, eu levo você. O AMOR ficou tão feliz e aliviado que até se esqueceu de perguntar o nome do seu benfeitor. Chegando ao alto de um morro, onde estavam os sentimentos que se haviam salvado, ele perguntou à SABEDORIA. -Quem é aquele velhinho que me salvou? Ela respondeu:
138
-O TEMPO. Somente o TEMPO é capaz de dar valor a um grande AMOR. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; 1 Coríntios 13:8 Ainda que eu fosse bondoso, dador, mui caridoso, sem amor só seria um fútil, um tolo inútil, um traidor.
(Autor desconhecido)
139
Maria Borralheira (Versão de Henriqueta Lisboa)
Havia um homem viúvo que tinha uma filha chamada Maria; a menina, quando ia para a escola, passava por uma casa de uma viúva que tinha duas filhas. A viúva costumava sempre chamar a pequena e agradá-la muito. Depois de algum tempo começou lhe dizer que falasse e rogasse a seu pai para casar com ela. A menina pegou e falou ao pai para casar com a viúva, porque “ela era muito boa e agradável”. O pai respondeu: -Minha filha ela hoje te dá papinhas de mel; amanha te dará fel. Mas a menina sempre vinha com os mesmos pedidos, até que o pai contratou o casamento com a viúva. Nos primeiros tempos ela ainda agradava a pequena e, ao depois, começou a maltratá-la. Tudo o que havia de mais aborrecido e trabalhoso no trato da casa, era a órfã que fazia. Depois de mocinha era ela que ia a fonte buscar água e ao mato buscar lenha; era quem acendia o fogo, vivia muito suja no borralho. Daí lhe veio o nome de Maria Borralheira. Uma vez, para judiá-la a madrasta lhe deu uma tarefa muito grande de algodão para fiar e lhe disse que naquele dia devia ficar pronta. Marinha tinha uma vaquinha, que sua mãe lhe tinha deixado; vendo-se assim tão atarefada, correu e foi ter com a vaquinha e lhe contou, chorando, os seus trabalhos. A vaquinha lhe disse: -Não tem nada; traga o algodão que eu engulo, e quando botar fora é fiado e pronto em novelos.
140
Assim foi. Enquanto a vaquinha engolia o algodão, Maria estava brincando. Quando foi de tarde, a vaquinha deitou para fora aquela porção de novelos tão alvos e bonitos!... Maria, muito contente botou-os no cesto e levou-os para casa. A madrasta ficou muito admirada e no dia seguinte lhe deu uma tarefa ainda maior. Maria foi ter com sua vaquinha e ela fez o mesmo que a outra vez. No outro dia a madrasta deu a mocinha uma grande tarefa de renda para fazer; a vaquinha como sempre, foi a quem a salvou, engolindo as linhas e botando para fora a renda pronta e muito alva e bonita. A madrasta ainda mais admirada ficou. Doutra vez mandou ela buscar um cesto cheio d’água. Maria Borralheira saiu muito triste para a fonte, e foi ter com a vaquinha que lhe encheu o cesto, que ela levou para casa. Daí por diante a madrasta de Maria começou a desconfiar, e mandou as suas duas filhas espiassem a moça. Elas descobriram que era a vaquinha que faziam tudo para a Borralheira. Daí á tempos a mulher se fingiu pejada e com antojos e desejou comer a vaquinha de Maria. O marido não quis consentir; mas por fim teve de ceder á vontade da mulher, que era uma tarasca desesperada. Maria Borralheira foi e contou à vaca o que ia acontecer; ela disse que não tivesse medo; que, quando fosse o dia de a matarem, Maria se oferecesse para ir lavar o fato; que dentro dele havia de encontrar a uma varinha que lhe havia de dar tudo que ela pedisse; e que, depois de lavado o fato, largasse a gamela pela corrente abaixo e a fosse acompanhando; que mais adiante havia de encontrar um velhinho muito chagado e com fome; lavasse-lhe as feridas e a roupa, lhe desse de comer; que mais adiante haveria de encontrar uma casinha com uns gatos e cachorrinhos muito magros e com fome, e a casinha muito suja, varresse os ciscos e desse de comer ao bichos, e depois de tudo isso voltasse para casa. Assim mesmo foi. No dia que a madrasta de Maria quis que se matasse a vaquinha, a moça se ofereceu para ir lavar o fato no rio. A madrasta lhe disse com desprezo: -Ó gente!quem havia de ir senão, tu porca? Morta a vaca a borralheira a borralheira seguiu com o feto lá no rio, lá achou nas tripas a varinha de condão, e guardou-a. Depois de lavado o fato botou-o na gamela e largou pela correnteza abaixo, e a foi acompanhando. Adiante encontrou um velhinho muito chagado e morto de fome e sujo. Lavou-lhe as feridas e a roupa, e deu-lhe de comer. Este era nosso senhor. Seguiu com a gamela. Mais adiante encontrou uma 141
casinha muito suja e desarrumada, e com os cachorros gatos e galinhas muito magros e mortos de fome. Maria borralheira deu de comer aos bicos, varreu a casa, arrumou todos os trastes e escondeu-se atrás da porta. Daí a pouco chegaram as donas da casa, que eram três velhas tatas. Quando viram aquele benefício, a mais moça disse: -Manas, faiemos; faiemos, manas: permita a Deus que quem tanto bem nos fez, lhe aparece uns chapins de ouro nos pés. A do meio disse: -Manas, faiemos, manas: permita a Deus que quem tanto bem nos fez lhe nasça uma estrela de ouro na testa. A mais velha disse: -Faiemos manas: permita a Deus que quem tanto bem nos fez quando falar lhe saim faísca de ouro da boca. Maria que estava atrás da porta apareceu toda formosa com seus chapins de ouro e estrela de ouro na testa, e quando falava saiam-lhe faíscas de ouro pela boca. Amarrou um lenço na cabeça fingindo doença, para esconder a estrela e tirou os chapins dos pés e foi se embora para casa, quando lá chegou entregou o fato e foi para seu borralho. Passou alguns dias, as filhas da madrasta lhe viram a estrela e perceberam as faíscas de ouro que lhe saiam da boca, e foram contar à mãe. Ela ficou com muita inveja, e disse as filhas que indagassem a borralheira o que é que se devia fazer para se ficar assim. Elas perguntaram e Maria disse: -É muito fácil; vocês peçam para ir também por sua vez lavar o fato de uma vaca no rio; depois de lavado botem a gamela com ele pela correnteza abaixo e vão acompanhando; quando encontrarem um velhinho muito ferido, meta-lhe o pau, e dêem muito; mais adiante quando encontrarem uma casa com uns cachorros e gatos muito magros, emporcalhem a casa, desarrumem tudo e dêem nos bichos todos, e escondam-se atrás da porta e deixe estar que, quando vocês saírem hão de vir com chapins e estrelas de ouro. Assim foi... 142
As moças contaram a mãe, e elas lhes deu um fato para irem lavar no rio, as moças fizeram tudo como Maria borralheira lhe tinha ensinado.Deram muito no velhinho, emporcalharam a casa e deram muito nos bichos das velhas e se esconderam atrás da porta. Quando as donas da casa chegaram e viram aquele destroço, a mais moça disse: -Manas, faiemos, manas: permita a Deus que quem tanto mal nos fez lhe apareça cascos de cavalo nos pés . A do meio disse: -Permita a Deus que quem tanto mal nos fez lhe nasça um rabo de cavalo na testa. A terceira disse: -Permita a Deus que quem tanto mal nos fez lhe saia porqueira de cavalo pela boca. As duas moças quando saíram detrás da porta já vinha preparada com seus enfeites. Quando falaram ainda mais sujaram a casa das velhinhas. Largaram-se para casa e quando a mãe as viu ficou muito triste. Passou-se. Quando foi depois houve três dias de festas na cidade, e todos de casa iam á igreja menos a borralheira, que ficava na cinza. Mais depois de todos saírem, ela logo no primeiro dia pegou sua varinha de condão e disse: -Minha varinha de condão, pelo condão que Deus vos deu , dai me um vestido da cor do campo com todas as suas flores. De repente apareceu o vestido. Maria pediu também uma linda carruagem. Aproximou-se e seguiu. Quando entrou na igreja todos ficaram pasmados, e sem saber quem seria aquela moça tão bonita e tão rica. Aí uma das filhas da madrasta disse à mãe: -Olhe minha mãe, parece Maria. A mãe botou-lhe o lenço na boca por causa da sujidade que estava saindo, mandando que ela se calasse, que as vizinhas já estavam percebendo. Acabada a festa, quando chegaram lá Maria já estava lá velha metida no borralho. A mãe lhes disse: -Olhem minhas filhas aquela porca ali está; não era ela não, onde ia ela achar uma roupa tão rica? 143
No outro dia foram todas para a festa e Maria ficou, mais quando todas se ausentaram, ela pegou a varinha de condão e disse: -Minha varinha de condão, pelo condão que Deus vos deu daí me um vestido da cor do mar com todos os seus peixes, e uma carruagem ainda mais rica e bela do que a primeira. Apareceu logo tudo e ela se aprontou e seguiu. Quando lá chegou, o povo ficou abasbacado por tão rica e linda moça e o filho do rei ficou morto por ela. Botou se cerco para pegar na volta e nada de a poderem pegar. Quando as outras pessoas chegaram em casa, Maria já estava lá metida no seu borralho. Aí uma das moças lhe disse: -Hoje vi uma moça na igreja que se parecia contigo Maria! Ela respondeu: -Eu? Quem sou eu para ir á festa?... Uma pobre cozinheira! No terceiro dia a mesma coisa; Maria então pediu um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas e uma carruagem ainda mais rica. Assim foi, e apresentou-se na festa. Na volta o rei tinha mandado por um cerco muito apertado para agarrá-la; porem ela escapuliu e na carreira lhe caiu um chapim do pé, que o príncipe apanhou. Depois o rei mandou correr toda a cidade para ver se achava a dona daquele chapim e o outro seu companheiro. Experimentou-se o chapim nos pés de todas as moças e nada. Afinal só faltava ir a casa de Maria borralheira. Lá foram. A dona da casa apresentou as filhas que tinha; elas com seus cascos de cavalo, quase machucaram o chapim todo, e os guardas gritaram: -Virgem Nossa Senhora! Deixem deixem... Perguntaram se não tinha ali mais ninguém. A dona da casa respondeu: -Não, ai tem somente uma pobre cozinheira porca que não vale a pena mandar chamar. Os encarregados da ordem do rei responderam que a ordem era para todas as moças sem exceção, e chamaram a bela Borralheira. Ela veio lá de dentro toda pronta como no ultimo dia de festa; vinha encantando tudo; foi metendo o pezinho no chapim e mostrando o outro. Houve muita alegria e festas; a madrasta teve um ataque e caiu para trás, Maria foi para o palácio e casou-se com o filho do rei. 144
O Gato de Botas Havia há muito tempo, em um país distante, um moleiro chamado Augusto, que tinha três filhos, o primeiro se chamava Daniel, o segundo Tiago e o terceiro Constantino. O moleiro possuía três bens: um moinho, um asno e um gato. Um dia ele sentiu que a morte se aproximava, já que estava muito velho e doente, e resolveu fazer um testamento, por meio do qual deixou a Daniel, o filho mais velho, o moinho; para Tiago, ele deixou o asno, e para o mais novo, Constantino, restou apenas deixar como herança o gato. Desesperado com sua sorte, Constantino disse: ”Só me resta matar e devorar esse gato inútil, fazer alguma roupa com seu couro, e depois ir procurar algum modo de me sustentar”. O gato, é claro, ficou bastante preocupado com essa conversa, e disse: “Meu amo, não me mate, a carne de gato não é boa para humanos comerem, e, além disso, eu sou muito mais útil vivo – basta me dar um saco e mandar fazer para mim um par de botas para que eu possa caminhar livremente no mato sem medo de me ferir, e daí verá que com minha ajuda acabará rico”. Constantino se lembrou então que já vira o gato apanhar ratos e camundongos com auxílio de muita esperteza e malandragem, e resolveu que não custava nada experimentar. Ele não ganharia praticamente coisa nenhuma com a morte do gato, e as botas sairiam quase de graça. Quando recebeu o que havia pedido, o gato calçou com orgulho suas botas novas. Depois, meteu um monte de farelo e uma porção de alfaces no saco e o pendurou nas costas. Foi então para um bosque onde sabia que havia muitos coelhos. Quando 145
chegou, se deitou no chão se fingindo de morto, e ficou esperando que algum coelho entrasse no saco atraído pelo farelo e alfaces. Logo após ter se deitado, um jovem coelho entrou no saco, e o gato puxou os cordões para prendê-lo, o agarrou e matou imediatamente. Orgulhoso de sua proeza foi até o castelo do rei e pediu para falar com ele. O rei o recebeu, e o gato, após fazer uma profunda reverência, disse: “Trago um coelho da floresta que o senhor Marquês de Carabá (foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça) me encarregou de vos oferecer como presente” “Agradeço o presente que seu amo me oferece, e diga-lhe que fico muito grato”, disse o rei. No dia seguinte, o gato foi de novo para o mato, e repetiu tudo de novo, se fingindo de morto com o saco aberto e cheio de trigo e alface. Só que desta vez foram duas perdizes que se enfiaram dentro do saco. O gato as matou, e levou para o rei, falando novamente em nome do Marquês de Carabá. Isso durou uns três meses, nos quais, quase diariamente, o gato levava caças ao rei em nome de seu amo. Até que um dia o gato ficou sabendo que o rei pretendia na manhã seguinte sair a passeio, com sua linda filha, pela margem do rio. O gato disse então a seu amo “Se quiser se dar bem siga agora o meu conselho, e sua fortuna está feita; tudo que precisa fazer é ir tomar banho no rio no lugar que eu lhe mostrarei. Relaxe e deixe que eu tome conta de todo o resto”. O Marquês de Carabá fez tudo que o gato o aconselhava, mesmo não fazendo a menor idéia do que ia acontecer. Enquanto se banhava no rio, o rei passou por ali, e o gato, que estava preparado para esse momento, começou a gritar com toda a força que podia: “Socorro! Socorro! Meu senhor, o Marquês de Carabá, está se afogando!” Gritou tão alto que acabou chamando a atenção do rei, que pôs a cabeça para fora da carruagem e reconheceu o gato que tantas vezes lhe levara caça como presente em nome do Marquês de Carabá. O rei então ordenou a seus guardas que fossem ajudar, e rapidamente o pobre Marquês de Carabá foi salvo da morte, segundo acreditava o rei.
146
Enquanto isso o gato foi até o rei e disse que, enquanto o seu amo tomava banho, ladrões haviam aparecido e roubado todo o dinheiro e todas as roupas, e o gato ainda disse que por mais que gritasse com todas as suas forças: “Ladrões! Alguém ajude!”, ninguém apareceu para ajudar, até que por sorte o rei passasse por ali para salvar seu amo. Na verdade, o gato havia escondido as roupas debaixo de uma pedra, e dinheiro não havia nenhum. Assim que o Marquês de Carabá estava salvo, o rei ordenou a seus serviçais que fossem buscar o mais belo traje que fosse encontrado em seu guarda-roupa para cobrir a nudez do Marquês. O rei o cumprimentou, e as belas roupas que o Marquês estava vestindo realçavam sua beleza natural e faziam com que ninguém fosse capaz de imaginar que não fosse nobre. A filha do rei o achou muito atraente, e mal o rapaz lhe dirigiu um olhar mais intenso e ela já ficou loucamente apaixonada. O rei quis que o Marquês fosse passear com ele e com sua filha. O gato ficou encantado ao ver que tudo acontecia conforme o seu plano, e conforme já havia planejado, seguiu na frente, e encontrando alguns camponeses ceifando em um prado, disse a eles “Minha boa gente que está aqui ceifando este campo, se quiserem continuar vivos digam ao rei quando passar por aqui que o prado que estão ceifando pertence ao senhor Marquês de Carabá. Se não disserem isso, serão picados em pedacinhos como recheio de lingüiça”. Logo chegou o rei e de fato teve curiosidade de perguntar aos camponeses de quem era aquele campo que ceifavam. “Pertence ao senhor Marquês de Carabá” responderam todos, porque ficaram com muito medo das ameaças do gato e não tinham o menor desejo de morrer. “É um belo patrimônio, esse que o senhor tem”, disse o rei ao Marquês de Carabá. “Saiba Vossa Majestade” respondeu o Marquês, “que esse prado produz uma grande colheita todos os anos”. O gato continuou indo à frente, e logo encontrou alguns camponeses colhendo, e disse a eles “Minha boa gente que está aqui colhendo, se quiserem continuar vivos digam ao rei quando passar por aqui que todo este trigo que estão pertence ao senhor
147
Marquês de Carabá. Se não disserem isso, serão picados em pedacinhos como recheio de lingüiça”. Logo chegou o rei e de fato teve curiosidade de perguntar aos camponeses de quem era aquele campo que ceifavam. “Pertence ao senhor Marquês de Carabá” responderam todos, já que estavam apavorados com as ameaças do gato. Novamente, o rei felicitou o Marquês pela sua imensa riqueza. O gato, que ia sempre adiante da carruagem, dizia sempre as mesmas coisas, ameaçando de morte todos os camponeses que não dissessem que as terras em que estavam trabalhando pertenciam ao Marquês de Carabá. E o rei foi se tornando cada vez mais espantado com as riquezas gigantescas do Marquês, que a essa altura do passeio ele já calculava ser muito maior do que a sua. O gato então chegou a um belo castelo que pertencia a um ogro. O ogro era riquíssimo, pois todas aquelas propriedades pelas quais o rei havia passado e que acreditava serem propriedades do Marquês na verdade pertenciam ao ogro. O gato pediu uma audiência alegando que desejava conhecer um senhor tão rico e poderoso. Na verdade o gato já havia se informado sobre o ogro e tinha um plano em mente. O ogro o recebeu com toda a cortesia e o convidou a sentar. “Ouvi dizer”, disse o gato, “que o senhor tem o poder de se transformar em qualquer tipo de animal, que poderia se quisesse, por exemplo, se transformar em um leão ou em um elefante”. “É a mais pura verdade”, respondeu bruscamente o ogro, “e para provar isso agora mesmo, vou me transformar em leão, como você sugeriu”. No instante em que terminou de falar, o ogro se transformou em um leão. O gato ficou apavorado e foi se esconder no telhado, no qual subiu com grande dificuldade por causa das botas. Pouco tempo depois, o ogro voltou à sua forma original, e o gato desceu e confessou estar muito impressionado com o poder do ogro. “Ouvi também dizerem”, disse o gato, “Que o senhor é capaz de se transformar em animais muito pequenos, com um corpo muito menor que o seu original, com um camundongo, por exemplo. Confesso que nisso não acredito, já que deve ser impos148
sível que o seu poder seja tanto que seja capaz de modificar seu corpo dessa maneira”. “Isso não é nada impossível para mim”, disse o ogro, “veja”, e se transformou em um pequeno camundongo em um instante. O gato aproveitou esse momento para pular sobre ele e mata-lo instantaneamente.
Enquanto isso o rei viu o belo castelo do ogro e decidiu conhecer o dono de tão magnífica propriedade. O gato ouviu o ruído da carruagem passando sobre a ponte levadiça e correu para frente do castelo para receber o rei. Assim que o rei chegou, o gato disse: “Vossa Majestade é bem-vinda ao castelo do Marquês de Carabá” “Senhor Marquês, escondeu de mim que este castelo também é seu? Creio que queria me surpreender! Pois saiba que conseguiu, jamais vi castelo com pátio tão belo nem construções tão magníficas. Gostaria de ver como ele é por dentro, se o senhor me permitir”. O Marquês deu a mão à princesa e os dois seguiram o rei subindo a escadaria do palácio e entrando em um grande salão, onde encontraram servida uma deliciosa refeição, que o ogro havia mandado servir para um grupo de convidados que, quando souberam que o rei estava lá, não ousaram interromper nem quiseram questionar o que estava acontecendo no castelo. Encantado com as riquezas do Marquês de Carabá, e vendo que sua filha estava apaixonada, o rei resolveu unir o útil ao agradável e disse “Se quiser ser meu genro, só precisa dizer sim”. O Marquês disse “sim!” e nesse mesmo dia ocorreu o casamento. O gato passou a ser um grande senhor e passou a só caçar ratos e camundongos por esporte.
(Charles Perrault)
149
A Roupa Nova do Imperador Há muitos e muitos anos havia um Imperador tão apaixonado pelas roupas novas, que gastava com elas todo o dinheiro que possuía. Pouco se incomodava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios pelos bosques, contanto que pudesse vestir seus trajes. Tinha um para cada hora do dia, e, ao invés de se dizer dele o que se diz de qualquer imperador: “Está na Câmara do Conselho”, dizia-se sempre a mesma coisa: “O Imperador está se vestindo”. Na capital em que ele vivia, a vida era muito alegre; todos os dias chegavam multidões de forasteiros para visitá-la, e, entre eles, certa ocasião chegaram dois vigaristas. Fingiram-se de tecelões, dizendo-se capazes de tecer os tecidos mais maravilhosos do mundo. E não somente as cores e os desenhos eram magníficos como também os trajes que se faziam com aqueles tecidos possuíam a qualidade especial de serem invisíveis para qualquer pessoa que não tivesse as qualidades necessárias para desempenhar suas funções e também que fossem muito tolas e presunçosas. – Devem ser trajes magníficos – pensou o Imperador. –E se eu vestisse um deles, poderia descobrir todos aqueles que em meu reino carecessem das qualidades necessárias para desempenhar seus cargos. E também poderei distinguir os tolos dos inteligentes. Sim, estou decidido a mandar tecer uma roupa para mim, a qual me servirá para tais descobertas.
150
Entregou a um dos tecelões uma grande quantia como adiantamento, a fim de que o dois pudessem começar imediatamente com o esperado trabalho. Os dois vigaristas prepararam os teares e fingiram entregar-se ao trabalho de tecer mas o certo é que no mesmo não havia nenhum fio nas lançadeiras. Antes de começar pediram uma certa quantidade da seda mais fina e fio de ouro da maior pureza e guardaram tudo em seus alforjes e depois começaram a trabalhar, isto é, fingindo fazê-lo, com os teares vazios. – Gostaria de saber como vai o trabalho dos tecelões –pensou um dia o vaidoso Imperador. Todavia, ficou um tanto aflito ao pensar que alguém que fosse tolo ou não estivesse capacitado para exercer sua função, não poderia ver o tecido. Não temia por si mesmo, mas achou mais prudente enviar uma outra pessoa, para que lhe desse conta daquilo. Todos os habitantes da cidade conheciam as maravilhosas qualidades do tecido em questão, e todos, também, desejavam saber, por esse meio, se seu vizinho ou amigo era um tolo. – Mandarei meu fiel primeiro ministro visitar os tecelões – pensou o Imperador. Será o mais capacitado para ver o tecido, porque é um homem muito hábil e ninguém cumpre seus deveres melhor do que ele. E assim o bom e velho primeiro ministro se dirigiu para o aposento em que os vigaristas trabalhavam nos teares completamente vazios. – Deus me proteja! – pensou o ancião, abrindo os braços e os olhos. – Mas se eu não vejo nada! No entanto, evitou dizê-lo. Os dois vigaristas pediram-lhe que fizesse o favor de aproximar-se um pouco mais e rogaram-lhe que desse a sua opinião a respeito do desenho e do colorido do tecido. Mostraram o tear vazio e o pobre ministro, por mais que se esforçasse para ver, não conseguia enxergar coisa alguma, porque não havia nada para ver.
151
– Deus meu! – pensava. – Será, possível que eu seja tão tolo assim? Nunca me pareceu e é preciso que ninguém o saiba. Talvez eu não esteja capacitado a desempenhar a função que ocupo. O melhor será fingir que estou vendo o tecido. – Não quer dar a sua opinião, senhor ? – perguntou um dos falsos tecelões. – É muito lindo! Faz um efeito encantador – exclamou o velho ministro, fitando através de seus óculos. – O que mais me agrada são o desenho e as maravilhosas cores que o compõem. Asseguro-lhes que daremos conta ao Imperador do quanto gosto de seu trabalho, muito bem aplicado e lindíssimo. – Ficamos muito honrados em ouvir tais palavras de vossos lábios, senhor ministro replicaram os tecelões. Começaram então a dar-lhe detalhes do complicado desenho e das cores que o formavam. O ministro ouviu-os com a maior atenção, com a ideia de poder repetir suas palavras quando estivesse na presença do Imperador.
A seguir os dois vigaristas pediram mais dinheiro, mais seda e mais fio de ouro, para que pudessem prosseguir com o trabalho. Porém, assim que receberam o solicitado, guardaram-no como antes. Nem um só fio foi colocado no tear, embora eles fingissem continuar trabalhando apressadamente. O Imperador enviou outro fiel cortesão para dar-se conta dos progressos do trabalho dos falsos tecelões e a fim de saber se eles demorariam muito para entregar o tecido. A este segundo enviado aconteceu a mesma coisa que o primeiro ministro, isto é, mirou e remirou o tear vazio, sem ver tecido algum. – Não acha que é uma fazenda maravilhosa? – perguntaram os vigaristas mostrando e explicando um desenho imaginário e um colorido não menos fantástico, que ninguém conseguia ver. – Sei que não sou tolo – pensava o cortesão; – mas se não vejo o tecido, é porque não devo ser capaz de exercer minha função à altura da mesma. Isso me parece estranho. Mas é melhor não dar a perceber esse fato. Por esse motivo falou no tecido que não via e manifestou seu entusiasmo pelo colorido maravilhoso e pelos originais desenhos. 152
– Ali está algo realmente encantador, – disse mais tarde ao Imperador, quando prestou contas de sua visita. Por sua vez, o Imperador achou que devia ir ver o famoso tecido, enquanto ainda estivesse no tear. E assim, acompanhado por um escolhido grupo de cortesãos, entre os quais se encontravam o primeiro-ministro e o outro palaciano, que haviam fingido ver o tecido, foi fazer uma visita aos falsos tecelões, que com o maior cuidado trabalhavam no tear vazio, em meio à maior seriedade. – É magnífico! – exclamaram o primeiro-ministro e o palaciano. – Digne-se Vossa Majestade a olhar para o desenho. Que cores maravilhosas! E apontavam para o tear vazio, pois não tinham dúvidas de que as outras pessoas viam o tecido. – Mas o que é isto? – pensou o Imperador. – Não estou vendo nada! Isso é terrível! Serei um tolo? Não terei capacidade para ser Imperador? Certamente não poderia acontecer-me nada pior. – É realmente uma beleza! – exclamou logo depois. – O tecido merece a minha melhor aprovação. Manifestou a sua aprovação por meio de alguns gestos, enquanto olhava para o tear vazio, pois ninguém poderia induzi-lo a dizer que não via coisa alguma. Todos os outros cortesãos olhavam por sua vez. Mas não viam nada. Porém, como nenhum queria dar parte de tolo ou de incapaz, fizeram coro com as palavras de Sua Majestade. – É uma beleza! – exclamaram em coro. E aconselharam o Imperador que mandasse fazer uma roupa com aquele tecido maravilhoso, a fim de estreá-la numa grande procissão que devia realizar-se daí a alguns dias. Os elogios corriam de boca em boca e todos estavam entusiasmados. E o Imperador condecorou os dois vigaristas com a ordem dos cavaleiros, cuja insígnia poderiam usar e concedeu-lhes o título de .Cavaleiros Tecelões..
153
Os dois vigaristas ficaram a noite toda trabalhando, à luz de dezasseis velas, na noite anterior ao dia da procissão; desejavam que todos testemunhassem o grande interesse que eles demonstravam em terminar a roupa do soberano. Fingiram tirar a fazenda do tear, cortaram-na com tesouras enormes e costuraram-na com agulhas sem linha de espécie alguma. Finalmente disseram: – Já está pronto o traje de Sua Majestade. O Imperador, acompanhado por seus mais nobres cortesãos, foi novamente visitar os vigaristas, e um deles, levantando um braço, como se segurasse uma peça de roupa, disse: – Aqui estão as calças. Este é o colete. Veja Vossa Majestade o casaco. Finalmente, dignai-vos a examinar o manto. Estas peças pesam tanto quanto uma teia de aranha. Quem as usar mal sentirá o seu peso. E esta é uma de suas maiores qualidades.. Todos os cortesãos concordaram, mesmo não vendo coisa alguma, pois na realidade não havia nada para ver, já que nada havia. – Dignai-vos tirar o traje que leva – disse um dos falsos tecelões – e assim poderá experimentar a roupa nova na frente do espelho. E o Imperador tirou a roupa que vestia e os impostores fingiram entregar-lhe sucessivamente e ajudá-lo a vestir cada uma das peças que compõem um traje. Fingiram colocar algo ao redor de sua cintura e o Imperador, nesse meio tempo, virava-se uma vez ou outra para o espelho, a fim de contemplar-se. – Que bem assenta este traje em Sua Majestade. Como está elegante. Que desenho e que colorido! É uma roupa magnífica! – Lá fora está o dossel sob o qual irá Vossa Majestade tomar parte na procissão – disse o mestre de cerimonias. – Ótimo, já estou pronto – disse o Imperador. – Acham que esta roupa me assenta bem? E novamente mirou-se no espelho, a fim de fingir que se admirava vestido com a roupa nova.
154
Os camaristas, que deviam carregar o manto, inclinaram-se fingindo recolhê-lo no chão e logo começaram a andar com as mãos no ar. Também não se atreviam a dizer que não viam coisa alguma. O Imperador foi ocupar seu lugar no cortejo da procissão em baixo do luxuoso dossel e todos os que estavam nas ruas e nas janelas exclamaram: – Como está bem vestido o Imperador! Que cauda magnífica! A roupa assenta nele como uma luva! Ninguém queria dar a perceber que não podia ver coisa alguma, para não passar por tolo ou por incapaz. O caso é que nunca uma roupa do Imperador alcançara tanto sucesso. – Mas eu acho que ele não veste roupa alguma! – exclamou então um menino. – Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente! – observou seu pai a quantos o rodeavam. Imediatamente todo mundo se comunicou pelo ouvido as palavras que o menino acabava de pronunciar. – Não veste roupa alguma. Foi isso o que assegurou este menino. – O Imperador esta sem roupa! – começou a gritar o povo. O Imperador fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou: – A procissão tem de continuar. E assim, continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram segurando a sua cauda invisível.
(Andersen)
155
A Princesa e a Ervilha Era uma vez um príncipe que queria se casar com uma princesa, mas uma princesa de verdade, de sangue real mesmo. Viajou pelo mundo inteiro, à procura da princesa dos seus sonhos, mas todas as que encontrava tinham algum defeito. Não é que faltassem princesas, não: havia de sobra, mas a dificuldade era saber se realmente eram de sangue real. E o príncipe retornou ao seu castelo, muito triste e desiludido, pois queria muito casar com uma princesa de verdade. Uma noite desabou uma tempestade medonha. Chovia desabaladamente, com trovoadas, raios, relâmpagos. Um espetáculo tremendo! De repente bateram à porta do castelo, e o rei em pessoa foi atender, pois os criados estavam ocupados enxugando as salas cujas janelas foram abertas pela tempestade. Era uma moça, que dizia ser uma princesa. Mas estava encharcada de tal maneira, os cabelos escorrendo, as roupas grudadas ao corpo, os sapatos quase desmanchando... que era difícil acreditar que fosse realmente uma princesa real. A moça tanto afirmou que era uma princesa que a rainha pensou numa forma de provar se o que ela dizia era verdade. Ordenou que sua criada de confiança empilhasse vinte colchões no quarto de hóspedes e colocou sob eles uma ervilha. Aquela seria a cama da “princesa”. A moça estranhou a altura da cama, mas conseguiu, com a ajuda de uma escada, se deitar. No dia seguinte, a rainha perguntou como ela havia dormido. — Oh! Não consegui dormir — respondeu a moça — havia algo duro na minha cama, e me deixou até manchas roxas no corpo! O rei, a rainha e o príncipe se olharam com surpresa. A moça era realmente uma princesa! Só mesmo uma princesa verdadeira teria pele tão sensível para sentir um 156
grão de ervilha sob vinte colchões!!! O príncipe casou com a princesa, feliz da vida, e a ervilha foi enviada para um museu, e ainda deve estar por lá... Acredite se quiser, mas esta história realmente aconteceu!
(Andersen)
157
Riquete do Topete Era uma vez uma rainha que deu à luz um filho tão feio e tão deformado que, durante muito tempo, se duvidou que tivesse forma humana. Uma fada que estava presente quando ele nasceu assegurou que, apesar do seu aspecto, seria amável e muito inteligente. Acrescentou ainda que, graças ao dom que ela lhe concedera, poderia dar à pessoa que mais amasse uma inteligência igual à sua. Estas palavras consolaram um pouco a pobre mãe que estava tristíssima por ter posto no mundo uma criança tão feia. Com efeito, mal começou a falar, o menino disse logo coisas engraçadas e inteligentes, causando grande admiração entre quem o escutava. Já me esquecia de dizer que o menino nasceu com uma pequena poupa de cabelo na cabeça, o que fez com que lhe chamassem Riquete do Topete, uma vez que Riquete era o seu nome de família. Alguns anos mais tarde, a rainha de um reino vizinho deu à luz duas meninas. A primeira era mais bela do que o dia e a rainha ficou tão feliz que se temeu que tanta alegria lhe fizesse mal. Estava presente a mesma fada que assistira ao nascimento do pequeno Riquete do Topete e, para moderar a alegria da mãe, disse-lhe que a princesa teria pouca inteligência e que seria tão estúpida quanto era bonita. A rainha ficou muito triste mas, momentos depois, teve um desgosto ainda maior porque a segunda filha que deu à luz era muitíssimo feia. - Não se aflija, Majestade – disse a fada – a vossa filha será tão inteligente que a sua fealdade quase não será notada.
158
- Deus o queira, – respondeu a rainha – mas não haverá meio de conceder um pouco de inteligência à mais velha que é tão bela? - Não posso valer-lhe no que toca à inteligência, – disse a fada – mas posso fazer tudo em relação à beleza. E como não há nada que eu não faça para vos satisfazer, concedo-lhe o dom de poder tornar bonita a pessoa que ela quiser. À medida que as duas princesas foram crescendo, cresceram também os seus dotes, e não se falava senão da beleza da mais velha e da inteligência da mais nova. Também é verdade que os seus defeitos aumentaram muito com a idade. A mais nova estava cada vez mais feia e a estupidez da mais velha crescia de dia para dia: ou não respondia ao que se lhe perguntava ou então dizia um disparate qualquer. Além disso, era tão desajeitada que não conseguia pousar quatro chávenas na borda da chaminé sem partir uma, nem conseguia beber um copo de água sem entornar metade por cima do vestido. Ainda que a beleza seja uma grande vantagem numa jovem, o certo é que a mais nova suplantava quase sempre a mais velha quanto a companhias durante os serões. A princípio, as pessoas rodeavam a mais velha para a verem e admirarem mas, pouco depois, iam para junto da mais inteligente escutar as mil e uma coisas espirituosas que ela dizia. Em menos de um quarto de hora a mais velha ficava sozinha, enquanto que mais nova tinha toda a gente em seu redor. A mais velha, apesar de ser muito estúpida, apercebia-se do que se passava e teria dado de bom grado toda a sua beleza em troca de metade da inteligência da irmã. A rainha, ainda que ponderada, não conseguia deixar de a repreender pela sua estupidez, o que entristecia ainda mais esta pobre princesa. Um dia, foi para o bosque para poder chorar à vontade. Nisto, aproximou-se dela um homenzinho muito feio e desajeitado, mas ricamente vestido. Era o jovem príncipe Riquete do Topete que se tinha apaixonado perdidamente por ela, depois de ver os seus retratos que circulavam por todo o mundo. Abandonara o reino do seu pai para ter o prazer de a ver e de falar com ela. Encantado por a ter encontrado sozinha, dirigiu-lhe a palavra com muita delicadeza. Notando a sua melancolia, disse-lhe: - Senhora, não compreendo como é que uma pessoa tão bela como vós pode estar tão triste. Asseguro-vos que nunca vi beleza semelhante à vossa. 159
- Isso di-lo o senhor – respondeu a princesa. - A beleza constitui um tal privilégio que supera tudo o resto. Quando alguém a possui, não acredito que exista alguma coisa que a possa afligir muito – acrescentou Riquete do Topete. - Preferia ser feia como vós e ser inteligente, em vez de ser tão bela como sou – confessou a princesa. - Se é só isso que vos apoquenta, posso facilmente pôr fim à vossa dor. - E como o farias? – Perguntou a princesa. - Tenho o dom de dar inteligência à pessoa que mais amar. E, como vos amo, dar-vosei o que pretendes se aceitares casar comigo. A princesa ficou sem palavras, tal foi o seu espanto. - Vejo que este pedido vos desagrada, o que não me admira nada – continuou Riquete do Topete. – Contudo, dou-vos um ano para decidires. A princesa era tão pouco inteligente e ao mesmo tempo desejava tanto sê-lo que pensou que um ano seria demasiado tempo para esperar. Por isso, aceitou logo a proposta que lhe fora feita. Assim que ela prometeu que casaria com Riquete do Topete dentro de um ano naquele mesmo lugar, sentiu-se uma pessoa diferente, sem dificuldade em dizer tudo o que lhe apetecia, de uma maneira elegante, clara e natural. Iniciou logo um diálogo de tal forma espirituoso, que Riquete pensou ter-lhe dado mais inteligência do que a que ele próprio possuía. Quando regressou ao palácio, a corte nem sabia o que pensar da sua extraordinária mudança. Em situações onde outrora ouviam um chorrilho de disparates, ouviam agora pensamentos claros e muito espirituosos. A única pessoa que não ficou totalmente satisfeita com esta mudança foi a irmã mais nova, porque havia perdido a única vantagem que tinha em relação a ela. O rei passou a ouvir as suas opiniões e, por vezes, pedia-lhe conselhos. Os rumores sobre esta transformação espalharam-se pelo reino e os jovens príncipes dos reinos vizinhos esforçavam-se por conquistar a sua afeição. Muitos pediram-na em casamento, mas a princesa não os achou suficientemente inteligentes e recusou todos os pedidos. 160
Por fim, houve um príncipe tão poderoso, tão rico, tão inteligente e tão belo que a pediu em casamento, que a ela não pode deixar de pensar no seu pedido. O pai notou o seu interesse pelo príncipe e disse-lhe que podia ser ela a escolher o noivo que entendesse. Só teria que dizer de quem gostava. Para poder decidir com calma, foi passear, por acaso, para o bosque onde tinha conhecido Riquete do Topete. Foi então que ouviu vozes em surdina, mesmo por baixo dos seus pés, como se aí estivessem muitas pessoas atarefadas, andando de um lado para o outro. Prestou mais atenção e ouviu alguém pedir: - Traz-me essa panela. E logo a seguir: - Dá-me aquele pote. E outra pessoa: - Põe lenha no lume! Nesse preciso momento o chão abriu-se e ela viu lá em baixo um enorme espaço semelhante a uma cozinha cheia de cozinheiros, de criados e de todo o género de ingredientes que são necessários para se fazer um festim magnífico. Um grupo de vinte ou trinta salsicheiros dirigiu-se para uma alameda do bosque. Puseram-se à volta de uma mesa muito comprida e começaram a trabalhar ao ritmo de uma bela canção. A princesa, espantada com o que via, perguntou-lhes para quem trabalhavam. - O nosso amo é o príncipe Riquete do Topete que se casa amanhã – respondeu-lhe o mais vistoso do grupo. Foi então que a princesa se lembrou que tinha prometido casar-se com Riquete do Topete naquele mesmo dia. Quase desmaiou! Porém, havia uma razão para o seu esquecimento: naquela altura, era apenas uma tonta. Assim que recebeu do príncipe uma nova inteligência, esqueceu todas as tolices que dizia. Ainda não dera trinta passos quando Riquete do Topete surgiu diante de si, em trajes magníficos, conforme convém a um príncipe que se vai casar.
161
- Aqui estou, Senhora, pronto a cumprir a minha palavra. Não duvido que também vieste cumprir a vossa e, assim, tornar-me o homem mais feliz do mundo. - Confesso, com toda a franqueza, que ainda não me decidi e penso que nunca poderei tomar a decisão que deseja – respondeu a princesa. - Muito me admiro, Senhora! – Respondeu Riquete do Topete. - Acredito que, se estivesse a falar com um homem grosseiro e bruto, estaria agora bastante embaraçada. «Uma princesa deve cumprir a sua palavra - dir-me-ia ele.» Mas como estou a falar com o homem mais inteligente do mundo, estou certa que me compreenderá. Sabe que, quando era tonta, nem ao menos pude decidir se queria casar consigo ou não. Se pretendia casar comigo não me devia ter livrado da minha estupidez. Agora vejo as coisas com mais clareza! - Alteza, quereis que me contenha no momento em que a minha felicidade está em jogo? Será razoável que as pessoas inteligentes se encontrem em desvantagem em relação às que o não são? Mas vejamos os factos, se o permitis. Além da minha fealdade há mais alguma coisa que não vos agrade? Desagrada-vos a minha origem, as minhas capacidades, o meu carácter ou as minhas maneiras? - Não, pelo contrário, todas essas características me agradam - respondeu a Princesa, sem hesitar. - Então, serei feliz – continuou Riquete do Topete – pois está na vossa mão tornar-me o mais atraente dos homens. Basta que me ames o suficiente. A mesma fada que me concedeu o dom de tornar inteligente a pessoa de quem mais gostasse, também vos concedeu, a vós, o dom de tornar bonito aquele a quem ames. - Se o que dizes é verdade, desejo do fundo do coração que vos torneis o príncipe mais bonito do mundo – declarou a princesa. Ainda a princesa não tinha acabado de falar e já Riquete do Topete parecia, aos seus olhos, o homem mais bonito e fascinante que alguma vez vira. Há quem diga que esta mudança do príncipe não aconteceu graças ao feitiço da Fada, mas que só por amor se pode obter uma metamorfose assim. Dizem que a Princesa, depois de pensar nas qualidades do seu namorado, deixou de ver o seu corpo deformado. 162
A Princesa prometeu que casaria com ele de imediato, desde que o seu pai concordasse. O Rei, quando soube que a filha sentia grande admiração por Riquete do Topete, príncipe muito conhecido pela sua grande sabedoria, aceitou-o com prazer como genro. No dia seguinte, celebrou-se a boda, tal como Riquete tinha previsto e de acordo com as ordens que dera há já muito tempo.
(Charles Perrault)
163
O Pequeno Polegar Era uma vez um casal de lenhadores muito, muito pobres, com sete filhos pequenos. Um deles, o caçula, era magro e fraco, mas esperto e inteligente; era conhecido como Polegar, por ser muito pequeno ao nascer. Naquele ano difícil, faltava tudo, praticamente não havia o que comer. Os dois lenhadores, desesperados com tanta miséria e tantas bocas para alimentar, encontraram uma triste solução: iriam se livrar dos sete filhos esfomeados. Enquanto os filhos dormiam, pai e mãe planejaram como agiriam para abandonar as crianças. — Vamos levar as crianças para a floresta — disse o lenhador. — Lá, enquanto juntam lenha, nós as abandonaremos e fugiremos sem que percebam. Quando o pai pronunciou a última palavra, seus olhos e os de sua esposa estavam cheios de lágrimas. — Coitadinhos dos meus filhos — disse a mãe, soluçando. — Ficarão sozinhos, sentindo frio, fome e medo das feras do mato… — Prefere, então, que morram de fome aqui mesmo conosco, sob nossas vistas? — perguntou o pai, também chorando. Não havia solução. As crianças morreriam, em casa ou na floresta. Então, era melhor que fosse longe, para os pais sofrerem menos. Combinaram o que fariam no dia seguinte e foram dormir. Pela manhã, o casal chamou os filhos e foram todos para a floresta. Enquanto as crianças estavam ocupadas em apanhar bastante lenha, os pais foram se afastando, afastando, até ficarem bem longe. Quando os sete irmãos perceberam que estavam sozinhos, os seis maiores começaram a chorar. Mas Polegar não desanimou. Encora164
jou os irmãos propondo que, juntos, procurassem o caminho de casa. Começaram a caminhar pela floresta mas, infelizmente, quanto mais caminhavam, parecia que estavam mais perdidos e não sabiam que rumo seguir. Chegou a noite, começou a chover e a fazer muito frio; ao longe, os lobos uivavam. Os seis pequenos estavam desesperados, amedrontados e desanimados. Mas Polegar, sempre muito ativo, subiu em uma grande árvore e, lá do alto, viu uma luz brilhar ao longe. Imaginou que seria a luz de uma casa. Sem hesitar, o garoto desceu da árvore e, guiando os irmãos, começou a andar na direção daquela luzinha distante. Andaram e andaram, até chegar a uma casa imensa e assustadora. Polegarzinho bateu à porta e uma mulher veio abrir. — Quem são vocês, crianças, e o que querem? — Estamos perdidos na mata. Tenha pena de nós, minha senhora. Estamos com fome e precisamos de um lugar para dormir. Poderia nos abrigar? — Coitados! Vocês estão sem sorte. Esta é a casa de meu marido, o Gigante, verdadeiro devorador de criancinhas. Polegar logo respondeu, sem demonstrar medo: — Se ficarmos na mata, com certeza seremos devorados pelos lobos. Então, já que estamos aqui, preferimos ser devorados pelo Gigante. Aliás, quem sabe ele não se comoverá e nos deixará viver? Já com os lobos, não haverá conversa alguma. A mulher do Gigante tinha coração mole e se deixou convencer: permitiu que os sete irmãos entrassem. Mal tinham acabado de entrar, ouviram fortes golpes na porta: era o Gigante que regressava! A mulher escondeu as crianças embaixo do armário e correu para abrir a porta. O Gigante entrou. Era um ser enorme, de aspecto horrível. Logo que passou pela porta, começou a farejar de um lado e de outro, desconfiado, cheirando com prazer e apetite: — Cozida ou ensopada. Aqui tem cheiro de deliciosa criançada! Dizia isso e lambia os beiços. — Imagine, nada disso! É o cheiro da janta — disse a esposa, tremendo de pavor. Mas o Gigante não se deixava enganar, pois conhecia bem demais o cheiro da carne humana. — Assadinhas ou fritinhas. Aqui tem o cheiro de criancinhas! E lambia os beiços. Guiando-se pelo faro, foi em direção ao armário e, com as enormes mãos, arrancou de lá os sete irmãos, um por um, mais mortos do que vivos pelo medo. — Muito bem! Aqui tem uma ótima refeição para amanhã. E começou a afiar o facão. Já tinha agarrado o pescoço do irmão mais velho quando a mulher falou: — Por que você quer matá-los nesta noite? A janta já está pronta! — Tem razão, minha velha — resmungou o Gigante. É melhor economizar, portanto deixá-los-ei para amanhã, é melhor que descansem um pouco. A mulher do Gigante suspirou aliviada. Levou as crianças para dormir no quarto em que estavam suas sete filhas, sete meninas muito feias e cruéis, como o 165
pai. Assim, dormiriam em uma larga cama as sete garotinhas. E em uma cama igual, ao lado, os sete irmãozinhos. Polegar reparou que as filhas do Gigante usavam suas coroas de ouro mesmo enquanto dormiam. Receando que o malvado mudasse de idéia e decidisse matá-los naquela mesma noite, o pequeno pegou seu gorrinho e os de seus irmãos e os colocou com cuidado na cabeça das garotas adormecidas, após tirar as coroazinhas de ouro, que colocou na sua cabeça e na dos queridos irmãos. Estava feita a troca. A certa altura o Gigante acordou, arrependido por ter adiado a matança. Agarrou o facão e foi ao quarto das filhas, no escuro. Tateando, aproximouse da cama em que dormiam os sete irmãos. Polegar sentiu a enorme mão do Gigante tocar em seus cabelos e na coroazinha e, em seguida, o horroroso exclamou: — Meu Deus! O que estava para fazer? Por pouco quase degolei minhas próprias filhotas! Aproximou-se da outra cama, estendeu a mão, sentiu os gorrinhos de lã rústica e riu. E, sem dó, cortou de uma vez só as sete gargantas. Depois voltou para a cama, para continuando o sono interrompido. Bastaram alguns minutos, e já estava roncando forte. Com muito cuidado, o pequeno Polegar acordou os irmãos e contou-lhes o que acontecera. Falou da troca dos gorros com as coroas para enganar o Gigante, e concluiu: — Devemos fugir imediatamente, antes que seja tarde! Silenciosamente, os coitadinhos saíram daquela casa e foram para a floresta. Andaram a noite toda, sem saber bem para onde ir. Caminhavam rapidamente, para escapar da fúria do terrível Gigante. Na manhã seguinte o Gigante acordou e, antes de mais nada, foi pegar suas vítimas para cozinhá-las. Imaginem só como ficou, ao perceber que havia degolado suas amadas filhinhas e que os sete guris tinham desaparecido! Cego de raiva, calçou suas botas mágicas, que a cada passo alcançavam sete léguas, e partiu para a perseguição. Dali a pouco já estava bem próximo dos fugitivos. Polegarzinho, sempre alerta, viu que ele estava chegando e, sem perder a calma, mandou os irmãos se esconderem em uma caverna ali pertinho. E lá vinha o Gigante, cada vez mais perto dos indefesos meninos. Andara muito, e já começava a se cansar. Precisou, então, parar e resolveu dar uma cochiladinha. E sabem onde? Bem na frente da caverna em que estavam escondidos os irmãos. Polegar pensou rápido e, aproveitando o sono do inimigo, mandou os outros seis fugirem. Depois, aproximou-se do Gigante e, com muito cuidado para não acordar o guloso, descalçou-lhe as botas mágicas. Eram imensos, aqueles calçados do Gigante, mas por serem mágicos logo se ajustaram aos pés pequenininhos do novo dono. — Agora sim! — disse decidido.— Andarei pelo mundo até encontrar um modo de melhorar nossas vidas. Partiu, calçado com as botas que, 166
a cada passo, percorriam sete léguas. Andou muito, muito mesmo, mais que o próprio Gigante. Após algumas horas, chegou a um reino distante, que estava em guerra. Logo soube que o rei dali recompensaria com uma fortuna a pessoa que lhe trouxesse qualquer informação sobre as tropas e as batalhas. Esperto como era, Polegar foi para a região do combate, auxiliado pelas botas velozes. Quando retornou, levou excelentes informações para o rei que, muito satisfeito, pagou-lhe o combinado. E ainda lhe deu mais algumas centenas de moedas. No dia seguinte, Polegarzinho, calçou de novo as botas mágicas e, em um piscar de olhos, alcançou a cabana dos pais, onde foi acolhido com enorme alegria por todos, inclusive pelos seus irmãos, que tinham conseguido voltar. Assim, graças ao pequeno e inteligente Polegar, todos viveram felizes desde aquele dia, com muita fartura.
(Charles Perrault)
167
Urashima Tarô (Lenda Japonesa)
Urahima-tarô, um humilde pescador, percebendo que uma tartaruga estava sofrendo maus tratos de um grupo de meninos, foi em seu socorro. Pediu a eles que a deixassem em paz. No entanto, disseram que, como tinham achado a tartaruga, ela lhes pertencia e podiam fazer o que bem entendesse com a criatura. O pobre e bondoso pescador, então, ofereceu a eles os poucos trocados, que havia conseguido com a venda dos peixes, em troca da pobre criatura. Os garotos pegaram o dinheiro e deixaram a tarataruga ferida. O pescador tratou de seus ferimentos e a soltou no mar. Tempos depois, Urashima-tarô pescava em alto ma, uma tartaruga surgiu e lhe perguntou se a reconhecia. Disse ser a tartaruga que havia sido salva por ele dos meninos maus. Por ser nuito grata e dever a vida a ele, o convidou a conhecer o mundo encantado do fundo do mar. A tartaruga o levou no seu casco. O senhor dos mares recebeu o bondoso pescador e, por ter salvado a tartaruga, convidou-o a se hospedar no seu castelo, pelo tempo que ele desejasse. Urashima-tarô se encantou com aquele mundo e decidiu permanecer por lá. Mas, depois de algum tempo, o pobre pescador passou a sentir falta da família e da sua terra. Decidiu, então, voltar para casa. Os seus amigos e o senhor dos mares tentaram convencê-lo a não partir, mas a saudade provocou nele um desejo maior e ele resolveu voltar para o seu lugar. O senhor dos mares, convencido de que Urashimatarô estava decidido a deixar o mundo encantado do fundo do mar, o presenteou com uma caixinha mágica, e pediu a ele que nunca a abrisse. Seus amigos lhe prestaram uma homenagem na despedida; e lhe disseram que fosse feliz em convívio com seus semelhantes, os homens. A tartaruga o levou de volta para a superfície. Já no 168
seu lugarejo, Urashima-tarô encontrou uma aldeia diferente. Não encontrou sua casa e nem sua família. O curto período que tinha vivido no reino do fundo do mar, onde o tempo corria lentamente, havia significado anos na sua terra. E por estar vestindo uma roupa antiga, em todos os lugares que passava, as pessoas o olhavam com curiosidade. Passou a vaguear pelas ruas solitariamente. Desolado e triste, o pobre pescador resolveu abrir o presente, descumprindo o pedido do senhor dos mares. Uma fumaça branca saiu de dentro da caixinha mágica aberta e o envolveu. Quando a fumaça se dissipou, deixou à mostra um Hurashima-tarô velho, com a barba e cabelos brancos. Assim que deu por si, ele percebeu o quanto era valioso o presente, pois a caixinha guardava a "eterna juventude".
Esta lenda nos mostra o quanto o povo japonês ama a sua terra. O nosso personagem, Urashima-tarô, vivia num paraíso, onde se encontrava a juventude eterna e havia abundância de alimentos; no entanto, renegou tudo para retornar à sua pátria. Mostra também que os humanos devem viver no seu mundo, onde há geração e degeneração; e o mais importante: o homem deve sempre voltar para si mesmo.
Essa lenda teve um vídeo e uma musiquinha que fez maior sucesso aqui no Brasil na década de 70 através de uma propaganda de viagens aeras que levava as pessoas do rio de janeiro para Tókio. A letra era essa: Um pobre pescador; Salvou uma tartaruga, E ela como prêmio, ao Brasil o levou ! Pelo reino encantado, Ele se apaixonou e por aqui ficou; Passaram muitos anos, De repente a saudade chegou; Uma arca misteriosa de presente ele ganhou; Ao abrí-la, quanta alegria, quebrou seu coração ! Encontrou uma passagem da Varig ; E vôou, feliz para o Japão !
169
A Pequena Sereia Bem no fundo do mar a água é azul como as folhas das centáureas, pura como o cristal mais transparente, mas tão transparente, mas tão profunda que seria inútil jogar ali a âncora e, para medi-la, seria preciso colocar uma quantidade enorme de torres de igreja umas sobre as outras a fim de verificar a distância que vai do fundo à superfície. Lá é a morada do povo do mar. Mas não pensem que esse fundo se compõe somente de areia branca; não, ali crescem plantas e árvores estranhas e tão leves, que o menor movimento da água faz com que elas se agitem, como se estivessem vivas. Todos os peixes, grandes e pequenos, vão e vêm entre seus galhos, assim como os pássaros o fazem no ar. No lugar mais profundo está o castelo do rei do mar, cujos muros são de coral, as janelas de âmbar amarelo e o teto é feito de conchas que se abrem e fecham para receber a água e para despejá-la. Cada uma dessas conchas encerra pérolas brilhantes e a menor delas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha. Há muitos anos que o rei do mar estava viúvo e sua velha mãe dirigia a casa. Era uma mulher espiritual, mas tão orgulhosa de sua linhagem, que usava doze ostras na cauda, enquanto que as outras grandes personagens não usavam senão seis. Ela merecia elogios, pelos cuidados que tinha para com as suas netas bem-amadas, todas princesas encantadoras. No entanto, a mais moça era ainda mais linda do que as outras; sua pele era suave e transparente como uma folha de rosa, seus olhos eram azuis como um lago profundo seus longos cabelos louros como o trigo; todavia, não possuía pés: assim como suas irmãs, seu corpo terminava por uma cauda de peixe. 170
Durante o dia inteiro, as crianças brincavam nas grandes salas do castelo, onde flores viçosas apareciam entre os muros. Assim que se abriam as janelas de âmbar amarelo, os peixes entravam como fazem os pássaros connosco e comiam na mão das pequenas princesas, que os acariciavam. Em frente ao castelo havia um grande jardim com árvores de um azul profundo e um vermelho de fogo. Os frutos brilhavam como se fossem de ouro, e as flores, agitando sem cessar suas hastes e suas folhas, assemelhavam-se a pequenas chamas. O solo se compunha de areia branca e fina, ornado aqui e ali de delicadas conchas e uma luminosidade azul maravilhosa, que se espalhava por todos os lados, dava a impressão de se estar no ar, no meio do azul do céu, ao invés de se estar no mar. Nos dias de calmaria, podia-se perceber a, luz do sol, semelhante a uma pequena flor cor de púrpura que despejasse a luz de sua corola. Cada uma das princesas tinha seu terreno no jardim, o qual ela cultivava a seu belo prazer. Uma lhe dava a forma de uma baleia, a outra, a de uma sereia; mas a menor fez o seu em forma de sol e plantou nele flores rubras como ele. Era uma jovem estranha, silenciosa e pensativa. Enquanto suas irmãs brincavam com diferentes objectos provenientes dos navios naufragados, ela se divertia olhando para uma estatueta de mármore branco, representando um rapaz encantador, colocada sob um chorão magnífico, cor-de-rosa, que a cobria de uma sombra cor de violeta. Seu maior prazer era ouvir as estórias sobre o mundo em que viviam os homens. Todos os dias pedia à avó que lhe falasse dos objectos, das cidades, dos homens e dos animais. Admirava-se, principalmente, de que na terra as flores exalassem um perfume que não havia sob a água do mar e de que as florestas fossem verdes. Enquanto suas irmãs brincavam com diferentes objectos provenientes dos navios naufragados... objectos, das cidades, dos homens e dos animais. Não podia imaginar como é que os peixes cantassem e saltitassem entre as árvores. A avó os chamava de pássaros: assim mesmo, ela não compreendia. 171
“Quando você completar quinze anos”, disse a avó, “eu lhe darei permissão para subir à superfície do mar e de sentar-se ao luar sobre os rochedos, para ver os grandes navios passarem e para tomar conhecimento das florestas e das cidades. Você verá um mundo todo novo”. No ano seguinte a primeira das jovens completaria quinze anos, e, como não havia senão um ano de diferença entre cada uma delas, a mais moça teria que esperar ainda cinco anos para subir à superfície do mar. Mas uma prometia sempre à outra contar tudo, o que visse na sua primeira saída, pois o que a avo contava ainda era pouco e havia tantas coisas que elas ainda desejavam saber! A mais curiosa era realmente a mais jovem; muitas vezes, durante a noite, ela ficava perto da janela aberta, tentando perceber os ruídos dos peixes que batiam suas nadadeiras e suas caudas. Olhava bem para o alto e conseguia ver as estrelas e a lua, mas elas lhe pareciam muito pálidas e muito aumentadas pelo efeito da água. Assim que alguma nuvem as escurecia, ela sabia ser uma baleia ou um navio carregado de homens, que nadavam sobre ela. Certamente esses homens nem pensavam em que uma encantadora sereiazinha estendia suas mãos brancas para o casco do navio que fendia as águas. Chegou finalmente o dia em que a princesa mais velha completou quinze anos; então ela subiu à superfície do mar, a fim de descobrir o mundo; o desconhecido. Ao voltar, estava cheia de coisas para contar. Oh! disse ela, é delicioso ver, estendida ao luar sobre um banco de areia, no meio do mar calmo, as praias da grande cidade, onde as luzes brilham como se fossem centenas de estrelas; ouvir a música harmoniosa, o som dos sinos das igrejas, e todo aquele barulho de homens e de seus carros!. Oh! como sua irmãzinha ouvia atentamente! Todas as noites, em frente da janela aberta, olhando através da enorme massa de água, ela sonhava longamente com a grande cidade, da qual a irmã mais velha falara com tanto entusiasmo, com seus ruídos e suas luzes, seus habitantes e seus edifícios e pensava ouvir os sinos tocarem bem perto dela.
172
No ano seguinte, a segunda obteve a permissão para subir. Muito contente, ela emergiu a cabeça no momento em que o céu tocava o horizonte e a magnificência desse espectáculo levou-a ao auge da alegria. O céu inteiro, disse ela ao voltar, parecia ser de ouro e a beleza das nuvens estava além de tudo aquilo que podemos imaginar. Passavam à minha frente, vermelhas e roxas e no meio delas voava em direcção ao sol, como se fosse um longo véu branco, um bando de cisnes selvagens. Eu também quis nadar na direcção do grande astro vermelho; mas de repente ele desapareceu e também a luz rosada que havia em cima das águas e as nuvens desapareceram. Depois chegou a vez da terceira irmã. Era a mais imprudente, e assim, subiu pela embocadura do rio e foi seguindo o seu curso. Avistou admiráveis colinas plantadas de vinhedos e árvores frutíferas, castelos e fazendas situados no meio de florestas soberbas e imensas. Ouviu o canto dos pássaros e o calor do sol obrigou-a a mergulhar muitas vezes na água, a fim de refrescar-se. No meio de uma baía, ela viu uma multidão de seres humanos que brincavam e se banhavam. Quis brincar com eles, mas todos se assustaram e um animal preto – era um cão – começou a latir com tanta força, que ela ficou com muito medo e fugiu para o mar alto. A sereia jamais pôde esquecer as soberbas florestas, as colinas verdes e as gentis crianças que sabiam nadar, embora não possuíssem cauda de peixe. A quarta irmã, que era menos afoita, gostou mais de ficar no meio do mar selvagem, onde a vista se perdia ao longe e onde o céu se arredondava em volta da água, como um grande sino de vidro. Percebia os navios ao longe; os delfins brincalhões davam cambalhotas e as baleias colossais lançavam jatos de água para o ar. E o dia da quinta irmã chegou; estavam exactamente no inverno: e assim ela viu o que as outras não puderam ver. O mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e por todo lado navegavam, com formas estranhas e brilhantes como diamantes, montanhas de gelo. Cada uma delas, dizia a viajante, parece-se com uma pérola maior do que as torres da Igreja em que os homens são batizados.
173
Ela se sentou sobre uma das maiores e todos os navegadores fugiam daquele lugar, onde ela abandonava seus cabelos ao sabor do vento. À noite, uma tempestade cobriu o céu de nuvens. Os relâmpagos brilhavam, o trovão ribombava, enquanto que o mar, negro e agitado, elevava os grandes pedaços de gelo, fazendo-os brilhar ao clarão dos relâmpagos. O terror espalhou-se por todos os lados; mas ela, tranquilamente sentada sobre a sua montanha de gelo, viu a tempestade cair em ziguezague sobre a água revolta. A primeira vez que uma das irmãs subia à superfície, ficava sempre encantada com tudo o que via; mas depois de crescida, quando podia subir à vontade, o encanto desaparecia, ela dizia que lá em baixo era tudo melhor, que nada valia o seu lar. E renunciava bem depressa às suas viagens por lugares distantes. Muitas vezes, as cinco irmãs, de mãos dadas, subiam à superfície do mar. Possuíam vozes encantadoras como nenhuma criatura humana poderia possuir, e, se por acaso algum navio cruzava o seu caminho, elas nadavam até ele entoando cantos magníficos sobre a beleza do fundo do mar, convidando os marinheiros a visitá-las. Mas estes não podiam compreender as palavras das sereias e nunca viram as maravilhas que elas descreviam; e assim, quando o navio afundava, os homens se afogavam e somente seus cadáveres chegavam até o castelo do rei do mar. Durante a ausência de suas cinco irmãs, a mais jovem ficava ao pé da janela, seguiaas com o olhar e tinha vontade de chorar. Mas uma sereia não chora, e assim, seu coração sofre muito mais. – Oh! se eu tivesse quinze anos! – dizia ela: – Sinto desde já que amarei muito o mundo lá em cima e os homens que ali moram. E chegou o dia em que ela também completou quinze anos. “Você vai partir”, disse-lhe a avó e velha rainha: “venha, para que eu faça a sua toillete, assim como fiz a suas irmãs.” E ela colocou em seus cabelos uma coroa de lírios brancos, em que cada folha era a metade de uma pérola; depois prendeu à cauda da princesa oito grandes ostras, para designar a sua linhagem elevada. 174
– Como elas me machucam!, – disse a sereiazinha. – Quando se quer ser elegante é preciso sofrer um pouco, – replicou a velha rainha. Entretanto, a sereiazinha teria dispensado todos esses luxos e a pesada coroa que levava na cabeça. Gostava muito mais das flores vermelhas de seu jardim; todavia, não ousava fazer observações. “Adeus!”, disse ela; e, ligeira com uma bola de sabão, atravessou a água. Assim que sua cabeça apareceu na superfície da água, o sol acabava de se deitar; mas as nuvens brilhavam ainda, como rosas de ouro e a estrela vespertina iluminava o meio do céu. O ar estava doce e fresco e o mar aprazível. Perto da sereiazinha estava um navio de três mastros; não levava mais do que uma vela, por causa da calmaria e os marujos estavam sentados nas vergas e no cordame. A música e as canções ressoavam sem cessar e, a aproximação da noite, tudo ficou iluminado por cem lanternas penduradas por toda a parte: podia-se acreditar estar vendo as bandeiras de todas as nações. A sereiazinha nadou até a janela do grande aposento, e, de cada vez que se alçava, percebia através dos vidros transparentes uma quantidade de homens magnificamente trajados. O mais belo deles era um jovem príncipe muito elegante, de longos cabelos negros, com a idade ao redor dos dezesseis anos e era para celebrar sua festa que todos aqueles preparativos estavam sendo realizados. Os marujos dançavam no convés, e quando o jovem príncipe ali apareceu, cem tiros ecoaram no ar, desprendendo uma luz como aquela do dia. A sereiazinha mergulhou imediatamente; mas assim que reapareceu, todas as estrelas do céu pareceram cair sobre ela. Ela nunca vira fogos de artifício; dois grandes sóis de fogo rodavam no ar, e todo o mar, puro e calmo, brilhava. Sobre o navio podia-se vislumbrar cada cordinha e melhor ainda, os homens. Oh! como o jovem príncipe era lindo! Ele apertava a mão de todos, falava e sorria a cada um, enquanto a música enviava para o ar os seus sons harmoniosos. Já era muito tarde, mas a sereiazinha não se cansava de admirar o navio e o belo príncipe. As lanternas não brilhavam mais e os tiros de canhão já haviam cessado; to-
175
das as velas tinham sido içadas e o veleiro se afastava a grande velocidade. A princesa o seguiu, sem desviar os olhos das janelas. Mas logo a seguir o mar começou a agitar-se; as ondas aumentaram e grandes nuvens negras se agrupavam no céu. À distância brilhavam os relâmpagos e uma terrível tempestade se preparava. O veleiro se balançava sobre a água do mar impetuoso, numa marcha rápida. As vagas rolavam sobre ele, tão altas como montanhas. A sereiazinha continuou com a sua viagem acidentada; divertia-se bastante. Mas assim que o veleiro, sofrendo as consequências da tempestade, começou a estalar e a adernar, ela compreendeu o perigo e teve que tomar cuidado para não ferir-se nos pedaços de madeira que vinham até ela. Por um instante fez-se uma tal escuridão, que não se avistava absolutamente nada; outras vezes, os relâmpagos tornavam visíveis os menores detalhes da cena. A agitação tomara conta do pessoal do navio; mais uma sacudidela! ouviu-se um grande barulho e o barco partiu-se ao meio; e a sereiazinha viu o príncipe mergulhar no mar profundo. Louca de alegria, ela imaginou que ele fosse visitar a sua morada; mas depois lembrou-se de que os homens não podem viver dentro da água e que, em conseqüência, ele chegaria morto ao castelo de seu pai. Então, para salvá-lo, ela atravessou a nado a distância que a separava do príncipe, passando pelos destroços do navio, arriscando-se a se machucar, mergulhou profundamente nas águas por várias vezes e assim pôde chegar até o jovem príncipe, justamente no instante em que suas forças começavam a abandoná-lo e quando ele já fechava os olhos, a ponto de estar para morrer. A sereiazinha levou para o alto das águas, sustentou sua cabeça fora delas, depois abandonou-se com ele ao capricho das ondas. Na manhã seguinte o bom tempo voltou, mas já quase nada restava do veleiro. Um sol vermelho, de raios penetrantes, parecia chamar à vida o jovem príncipe, mas seu olhos continuavam cerrados. A sereiazinha depositou um beijo em sua fronte e ergueu seus cabelos molhados.
176
Achou-o parecido com a sua estátua de mármore do jardim e rezou pela sua saúde. Passou em frente à terra firme, coberta por altas montanhas azuis, no alto das quais brilhava a neve branca. Perto da costa, no meio de uma soberba floresta verde, havia uma cidade com uma igreja e um convento. As casas possuíam os tetos vermelhos. Em volta das casas havia grandes palmeiras e os pomares estavam cheios de laranjeiras e limoeiros; não longe dali o mar formava um pequeno golfo, entrando por um rochedo coberto de fina areia branca. Foi ali que a sereia colocou o príncipe com cuidado, tomando cautela para que ele ficasse com a cabeça alta e pudesse receber os raios do sol. Pouco a pouco as cores foram voltando ao rosto do príncipe desmaiado. Daí a pouco os sinos da igreja começaram a tocar e uma quantidade enorme de moças apareceu nos jardins. A sereiazinha afastou-se nadando e escondeu-se atrás de umas grandes pedras para observar o que acontecia ao jovem príncipe. Logo depois, uma das moças passou por ele; no início pareceu assustar-se, mas logo a seguir, foi buscar outras pessoas, que começaram a tratar do príncipe. A sereia viu-o recobrar os sentidos e sorrir a todos aqueles que tratavam dele; só não sorriu para ela, pois não sabia que o havia salvo. E assim, logo que o viu ser conduzido para uma grande mansão, ela mergulhou tristemente e voltou para o castelo de seu pai. A sereiazinha sempre fora silenciosa e pensativa; a partir desse dia, ficou muito mais ainda. Suas irmãs perguntaram-lhe o que ela vira lá em cima, mas ela não quis contar nada. Mais de uma vez, à noite e pela manhã, ela voltou ao lugar onde deixara o príncipe. Viu as flores morrerem, os frutos do jardim amadurecerem, viu a neve desaparecer das altas montanhas, mas jamais viu o príncipe; e voltou cada vez mais triste para o fundo do mar. Lá, seu único consolo era sentar-se em seu pequeno jardim e abraçar a linda estatueta de mármore que se parecia tanto com o príncipe, enquanto que suas flores negligenciadas e esquecidas, cresciam pelas aléias como umas selvagens, entrelaçavam 177
seus longos galhos nos ramos das árvores, formando uma pequena floresta que obscurecia tudo. Finalmente essa existência tornou-se insuportável; e ela contou tudo a uma de suas irmãs, que o contou às outras, as quais repetiram a estória a algumas amigas íntimas. E acontece que uma destas, que também vira a festa do navio, conhecia o príncipe e sabia onde estava situado o seu reino. “Venha, irmãzinha”, disseram as princesas; e, passando os braços por suas costas, carregaram com a sereiazinha pelo mar em fora, e depositaram-na em frente ao castelo do príncipe. O castelo era construído de pedras amarelas e luzidias; grande escadaria de mármore levava até o jardim; galerias imensas estavam ornamentadas com estátuas de mármore que pareciam vivas. As salas, magníficas, eram ornamentadas de quadros e tapeçarias incomparáveis e as paredes estavam cobertas de quadros maravilhosos. No grande salão, o sol iluminava, através de uma grande janela de vidro, as plantas mais raras, que estavam num grande vaso e embaixo de vários jactos de água. Desde então, a sereiazinha começou a ir a esse lugar, tanto durante o dia, como à noite; aproximava-se da costa, ousava mesmo sentar-se sob a grande varanda de mármore que projetava uma sombra em seus olhos; muitas vezes, ao som da música, o príncipe passava por ela em seu barco florido, mas ao ver seu véu branco em meio aos arbustos verdes, pensava tratar-se de um cisne ao abrir suas asas. Ela ouvia também os pescadores falarem muito bem do jovem príncipe e então ela ficava feliz de lhe ter salvo a vida, o que, aliás, ele ignorava completamente. Sua afeição pelos homens crescia dia a dia e cada vez mais ela desejava se elevar até eles. Seu mundo lhe parecia muito mais vasto do que o dela; eles sabiam navegar pelos mares com seus navios, subir pelas altas montanhas até as nuvens; eles possuíam imensas florestas e campos verdejantes. Suas irmãs não podiam satisfazer toda a sua curiosidade, então ela perguntou à sua velha avo, que conhecia muito o mundo mais elevado, o que muito justamente era chamado de país à beira-mar.
178
– Os homens vivem eternamente?, – perguntou a jovem princesa. – Eles não morrem assim como nós? – Sem dúvida, – respondia a velha, eles morrem e sua existência é mesmo mais curta do que a nossa. Nós outros vivemos algumas vezes trezentos anos; depois, ao morrermos, nós nos transformamos em espuma, pois no fundo do mar não existem túmulos para receberem os corpos inanimados. Nossa alma não é imortal; depois da morte está tudo acabado. Nós somos com as rosas verdes: uma vez cortadas, não florescem mais! Os homens, pelo contrário, possuem uma alma que vive eternamente, que vive mesmo depois que seus corpos viram cinzas; essa alma voa até o céu e vai até as estrelas que brilham e mesmo que nós possamos sair da água e ir até o pais dos homens, não podemos ir a certos lugares maravilhosos e imensos, que são inacessíveis ao povo do mar. – E por que não possuímos a mesma alma imortal? – pergunta a sereiazinha muito aflita – eu daria de boa vontade as centenas de anos que ainda tenho que viver para ser homem, nem que fosse por um dia e partir depois para o mundo celeste. – Não pense em semelhantes tolices – replicou a velha – nós somos muito mais felizes aqui embaixo, do que os homens lá em cima. – No entanto, chegará o dia em que deverei morrer. Não serei mais do que uma espuminha; para mim, não mais o murmúrio das vagas, nada de flores nem de sol! Não há nenhum meio de conquistar uma alma imortal? – Somente um, mas é quase impossível. Seria preciso que um homem concebesse por você um amor infinito, que você lhe fosse mais cara do que seu pai ou sua mãe. Então, agarrado a você com toda a sua alma e o seu coração, ele unisse sua mão à de você com o testemunho de um padre, jurando fidelidade eterna, sua alma se comunicaria ao seu corpo e você seria admitida na felicidade dos homens. Mas jamais isso poderá ser feito! O que é considerado mais lindo aqui no mar, que é a sua cauda de peixe, eles acham detestável na terra. Pobres homens! Para serem lindos acham que precisam daqueles suportes grosseiros que chamam de pernas! A sereiazinha suspirou tristemente, olhando para a uma cauda de peixe.
179
Sejamos alegres!, diz a velha, saltemos e nos divirtamos durante os trezentos anos de nossa existência; é um lapso de tempo muito agradável e nós conversaremos mais tarde. Esta noite há um baile na corte. Não se pode fazer idéia na terra de uma tal magnificência. A grande sala de baile era inteira de cristal; milhares de ostras enormes, colocadas de cada lado, nos muros também transparentes, iluminavam o mar a grande distância. Viam-se muitos peixes nadando, grandes e pequenos, cobertos de escamas luzentes como a púrpura, como ouro e prata. No meio da sala corria um grande rio no qual dançavam os delfins e as sereias, ao som de sua própria voz que era maravilhosa. A sereiazinha era a que cantava melhor e ela foi tão aplaudida, que, por um instante, sua alegria fez com que esquecesse as maravilhas da terra. Mas dentro em breve ela retornou à sua tristeza, pensando no belo príncipe e na sua alma imortal. Abandonou os cantos e os risos, saiu silenciosamente do castelo e sentou-se no seu pequeno jardim. De lá ela ouvia o som dos coros, que atravessava a água. Eis que passa, aquele que eu amo de todo o meu coração, aquele que ocupa todos os meus pensamentos e a quem eu desejaria confiar minha vida! Arriscaria tudo por ele e para ganhar uma alma imortal. Enquanto minhas irmãs dançam no castelo de meu pai, eu vou procurar a feiticeira do mar, que eu tanto temi até agora. Talvez ela possa me dar conselhos e ajudar-me. E a sereiazinha, saindo de seu jardim, dirigiu-se para as rochas escuras onde vivia a feiticeira. Jamais ela seguira por esse caminho. Não havia nem uma flor nem uma árvore. No fundo, a areia cinzenta e lisa, formava um redemoinho. A princesa viu-se obrigada a atravessar esse terrível turbilhão para chegar aos domínios da feiticeira, onde sua casa se elevava no meio da mais estranha floresta. Todas as árvores e as rochas não eram mais do que polidos, metade animal metade planta, parecidos com as serpentes que saem da terra. Os galhos eram braços ondeantes, terminados por dedos em forma de copos, que se mexiam continuamente. 180
Esses braços agarravam tudo que aparecia à sua frente e não os largavam mais. A sereiazinha, tomada de pavor, teve vontade de retroceder; todavia, ao pensar no príncipe e na sua alma imortal, armou-se de toda a sua coragem. Prendeu seu cabelo em torno da cabeça, para que os pólipos não a pudessem agarrar, cruzou os braços no peito e nadou assim, entre aquelas horríveis criaturas. Chegou finalmente a um grande lugar no meio daquela floresta, onde enormes serpentes do mar mostravam seus ventres amarelos. No meio do local estava a casa da feiticeira, construída com ossos de náufragos, e onde a feiticeira, sentada numa grande pedra, dava de comer a um grande sapo, assim como os homens dão migalhas aos passarinhos. Chamava suas serpentes de meus franguinhos e se divertia fazendo-as rolarem sobre seus ventres amarelos. “Sei o que você deseja”, falou ela ao ver a princezinha; “seus desejos são idiotas; de qualquer forma, eu os satisfarei, mesmo sabendo que eles só lhe trarão infelicidade. Você quer desembaraçar-se dessa cauda de peixe e trocá-la por duas peças daquelas com que marcham os homens, a fim de que o príncipe se apaixone por você, case-se com você e lhe dê uma alma imortal.” Ao dizer isso, ela deu uma gargalhada espantosa, que fez com que o sapo e as serpentes rolassem no chão. – Afinal, você fez bem em vir; amanhã, ao nascer do sol, vou preparar-lhe um elixir que você levará para terra. Sente-se na costa e beba-o. Logo a sua cauda se dividirá, transformando naquilo que os homens chamam de duas belas pernas. Mas eu lhe aviso que isso lhe fará sofrer como se lhe cortassem com uma espada afiada. Todo mundo admirará a sua beleza, você conservará sua marcha ligeira e graciosa, mas cada um de seus passos doerá tanto, como se você caminhasse sobre espinhos, fazendo o sangue correr. Se estiver disposta a sofrer tanto, eu poderei ajudá-la. – Suportarei tudo!, – disse a sereia com voz trêmula, pensando no príncipe e na alma imortal. – Mas não se esqueça de que, – continuou a feiticeira –, uma vez transformada em ser humano, você não poderá voltar a ser uma sereia! Você nunca mais verá o castelo de seu pai; e se o príncipe, esquecendo-se de seu pai e de sua mãe, não se apegar a você de todo o coração e não se unir a você em casamento, você jamais terá uma al181
ma imortal – No dia em que ele se casar com uma outra mulher, seu coração se quebrará e você não será mais do que uma espuma no alto das vagas. – Concordo – disse a princesa, pálida como uma morta. – Nesse caso – prosseguiu a feiticeira é preciso que você me pague; e eu não lhe peço pouca coisa. Sua voz é a mais linda do os sons do mar, você pensa com ela encantar o príncipe, mas é justamente a sua voz que eu exijo como pagamento. Desejo o que você tem de mais precioso, em troca do meu elixir; porque, para torná-lo bem eficaz, eu tenho que jogar dentro dele o meu próprio sangue. – Mas se você tomar a minha voz, – perguntou a sereiazinha – que me restará? – Sua figura encantadora – respondeu a feiticeira –, seu caminhar leve e gracioso e seus olhos expressivos, isso é mais do que suficiente para enfeitiçar qualquer homem. Vamos! Coragem! Estire a língua para que eu a corte, depois lhe darei o elixir. – Seja – respondeu a princesa e a feiticeira cortou-lhe a língua. A pobre menina ficou muda. A seguir, a feiticeira colocou seu caldeirão no fogo para fazer ferver o seu magico elixir. – A propriedade é uma bela coisa – disse ela apanhando um pacote de víboras para limpar o caldeirão. Depois, dando um talho com a faca em seu próprio peito, deixou cair seu negro sangue dentro do caldeirão. Um vapor elevou-se, formando figuras estranhas e assustadoras. A cada instante a velha juntava mais ingredientes e quando tudo começou a ferver, ela acrescentou um pó feito de dentes de crocodilo. Uma vez pronto, o elixir tornou-se totalmente transparente. “Aqui está”, disse a feiticeira, depois de ter derramado o elixir num frasco. “Se os pólipos quiseram agarrá-la ao sair, basta jogar-lhes uma gota desta bebida e eles se farão em mil pedaços.” Este conselho foi inútil; pois os pólipos, apercebendo-se do elixir nas mãos da sereia, recuaram assustados. E assim, ela pôde atravessar sem sustos a floresta e os redemoinhos.
182
Quando chegou ao castelo de seu pai, as luzes da grande sala de danças estavam apagadas; todo mundo dormia, mas ela não ousou entrar. Não podia falar com eles e logo iria deixá-los para sempre – Parecia que seu coração se partia de dor. A seguir foi até seu jardim, colheu uma flor de cada um dos de suas irmãs, enviou uma porção de beijos ao castelo e subiu à superfície do mar, afastandose para sempre. O sol ainda não estava alto, quando ela chegou ao castelo do príncipe. Sentou-se na praia e bebeu o elixir; foi como se uma espada afiada penetrasse em seu corpo; ela desmaiou e ficou estendida na areia como morta. O sol já estava alto quando ela acordou sentindo uma dor cruciante. Mas à sua frente estava o príncipe encostado a um rochedo, lançando sobre ela um olhar cheio de admiração. A sereiazinha baixou os olhos e então viu que a sua cauda de peixe desaparecera, dando lugar a duas pernas brancas e graciosas. O príncipe perguntou-lhe quem era ela e de onde vinha; ela fitou-o com um olhar doce e aflito, sem poder dizer uma só palavra. Depois o jovem a tomou pela mão e levou-a para o castelo. Assim como dissera a feiticeira, a cada passo que ela dava, sentia dores atrozes; entretanto, subiu a escadaria de mármore pelo braço do príncipe, leve como uma bola de sabão e todos admiraram o seu andar gracioso. Vestiram-na de seda, sem deixarem de admirar a sua beleza; mas ela continuava muda. Escravas vestidas de ouro e prata cantavam para o príncipe; ele aplaudia e sorria para a jovem. Se ele soubesse, pensava ela, que por ele eu sacrifiquei uma voz mais linda ainda! Depois de cantarem, as escravas dançaram. Mas assim que a pequena sereia começou a dançar nas pontas dos pés, quase sem tocar o solo, todos ficaram extasiados. Nunca haviam visto uma dança mais linda e harmoniosa. O príncipe pediu-lhe que não o deixasse mais e permitiu-lhe que dormisse à sua porta, numa almofada de veludo. Todos ignoravam o seu sofrimento ao dançar. No dia seguinte o príncipe lhe deu um traje de amazona para que ela o seguisse a cavalo. Depois de terem saído da cidade aclamados pelos súditos do príncipe, eles atravessaram prados cheios de flores, florestas perfumadas e alcançaram altas montanhas; e a princesa, rindo-se, sentia seus pés arde-rem.
183
A noite, enquanto os outros dormiam, ela descia secretamente a escadaria de mármore e ia até a praia, a fim de refrescar os pés doridos na água fria do mar e a lembrança de sua pátria vinha ao seu espírito. Uma noite, ela viu suas irmãs de mãos dadas; cantavam tão tristemente ao nadarem, que a sereiazinha não pôde deixar de fazer-lhes um sinal. Tendo-a reconhecido, elas lhe contaram como ela havia deixado todos tristes. Todas as noites elas voltavam e uma vez chegaram a levar a avó, que há muitos anos não punha a cabeça na superfície e o rei do mar com a sua coroa de coral. Os dois estenderam as mãos para a filha; mas não ousaram, assim como as irmã, aproximar-se da praia. Cada dia que se passava o príncipe mais a amava, como se ama uma criança bondosa e gentil, sem ter a idéia de transformá-la em sua esposa. No entanto, para que ela tivesse uma alma imortal, era preciso que ele se casasse com ela. – Não me ama mais do que a todas as outras? – eis o que pareciam dizer os olhos tristes da pequena muda, quando o tomava nos braços e depositava um beijo na sua fronte. – É claro que sim – respondia o príncipe – pois você possui o melhor coração de todas; você é mais devotada e se parece com a jovem que eu encontrei um dia, mas que talvez não veja nunca mais. Quando eu estava num navio, sofri um naufrágio e fui depositado em terra pelas ondas, perto de um convento habitado por muitas jovens. A mais moça delas encontrou-me na praia e me salvou a vida, mas eu a vi somente duas vezes. Jamais neste mundo, eu poderia amar outra que não a ela; pois bem! Você se parece com ela, muitas vezes chega mesmo a substituir a imagem dela em meu coração. Ai de mim!, pensou a sereiazinha, ele ignora ter sido eu a salvá-lo, e a colocá-lo perto do convento. Ama uma outra! No entanto, essa jovem está encerrada num convento e jamais sai; talvez ele a esqueça por mim, por mim que o amarei sem-pre e lhe devotarei toda a minha vida. “0 príncipe vai-se casar com a linda filha do rei vizinho”, disseram um dia; “está equipando um soberbo navio sob o pretexto de visitar o rei, mas a verdade é que ele vaise casar com a filha”.
184
Isso fez a princesa sorrir, pois ela sabia melhor do que ninguém quais os pensamentos do príncipe. Ele lhe dissera: “já que meus pais exigem, irei conhecer a princesa, mas jamais eles farão com que eu a tome em minha esposa. Não posso amá-la; ela não se parece, como você, com a jovem do convento e eu preferiria casar com você, pobre menina abandonada, de olhos tão expressivos, malgrado o seu eterno silêncio”. E, depois de falar dessa maneira, ele depositou um beijo em seus longos cabelos. O príncipe partiu. “Espero que você não tenha medo do mar”, disse-lhe ele no navio que os levava. A seguir falou-lhe nas tempestades e no mar furioso, nos estranhos peixes e em tudo que se encontrava no fundo do mar. Essas conversas faziam-na sorrir, pois ela conhecia o fundo do mar melhor do que qualquer outra pessoa. Sob o luar, quando os outros dormiam, ela, então, se sentava na amurada do navio e alongava seu olhar através da transparência da água, acreditando perceber o castelo de seu pai e os olhos de sua avó fixados na quilha do navio. Uma noite suas irmãs apareceram; olharam-na tristemente agitando as mãos. A jovem chamou-as por sinais e esforçou-se por dar-lhes a entender que tudo ia bem; mas no mesmo instante um grumete se aproximou e elas desapareceram, fazendo crer ao pequeno marujo que ele vira uma espuma no mar. No dia seguinte o navio entrou no porto da cidade em que morava o rei vizinho. Todos os sinos repicaram, a música enchia a cidade e os soldados, no alto das torres, balançavam as suas bandeiras. Todos os dias havia festas, bailes e noitadas; mas a princesa ainda não chegara do convento, onde recebera uma brilhante educação. A sereiazinha estava muito curiosa para ver a sua beleza e, finalmente, teve essa satisfação. Teve de reconhecer jamais ter visto uma tão linda figura, uma pele tão branca e olhos negros tão sedutores. É você!, gritou o príncipe ao vê-la, foi você que me salvou quando eu estava na praia. E apertou entre os braços a sua noiva toda corada. É muita felicidade!, continuou ele, voltando-se para a sereiazinha. Meus desejos mais ardentes se realizaram! Você compartilhará de minha felicidade, pois ama-me mais do que qualquer pessoa. A jovem do mar beijou a mão do príncipe, embora tivesse o coração ferido. 185
No dia do casamento daquele que ela amava, a sereiazinha devia morrer e transformar-se em espuma. A alegria reinava por todos os lados; os arautos anunciavam o noivado em todas as ruas e ao som de suas cornetas. Na grande igreja, um óleo perfumado brilhava nas lâmpadas de prata e os padres agitavam os incensários; os dois noivos deram-se as mãos e receberam a bênção do bispo. Vestida de seda e ouro, a sereiazinha assistiu à cerimônia; mas ela só pensava na sua morte próxima e em tudo o que perdera neste mundo. Na mesma noite, os recém-casados embarcaram ao som das salvas da artilharia. Todos os pavilhões estavam içados no meio do navio que estava pintado de ouro e púrpura e onde fora preparado um magnífico leito. As velas se inflaram e o navio afastou-se ligeiramente sobre o mar claro. Ao aproximar-se a noite, acenderam lanternas de várias cores e os marujos começaram a dançar alegremente no convés. A sereiazinha lembrou-se da noite em que ela os vira dançar pela primeira vez. E começou a dançar também, leve como uma borboleta e foi admirada como um ser sobre-humano. Mas é impossível descrever o que se passava em seu coração; no meio da dança, ela pensava naquele por quem deixara sua família e sua pátria, sacrificando sua bela voz e sofrendo inúmeros tormentos – Essa era a última noite em que ela respirava o mesmo ar que ele, em que poderia olhar para o mar profundo e para o céu cheio de estrelas. Uma noite eterna, uma noite sem sonhos a aguardava, já que ela não possuía uma alma imortal. justamente até a meia-noite a alegria reinou em torno dela; ela própria ria e dançava, com a morte no coração. Finalmente, o príncipe e a princesa retiraram-se para a sua tenda armada no convés: ficou tudo silencioso e o piloto quedou-se sozinho em frente ao leme. A sereiazinha, apoiando seus braços brancos na amurada do navio, olhava para o oriente, do lado do nascer do sol; sabia que o primeiro raio de sol a mataria. De repente, suas irmãs saíram do mar, tão pálidas quanto ela mesma; elas nadaram em volta do barco e chamaram por sua irmã que ficara muito triste: os longos cabelos de suas irmãs não flutuava mais ao vento, elas o haviam cortado.
186
– Nós os entregamos à feiticeira, – disseram elas, para que ela venha em seu auxílio e a salve da morte. Em troca ela nos deu um punhal bem afiado, que aqui está. Antes do nascer do sol, é preciso que você o enterre no coração do príncipe e, assim que o sangue ainda quente cair aos seus pés, eles se unirão e se transformarão numa cauda de peixe. Você voltará a ser uma sereia; poderá descer para a água junto de nós e somente daqui a trezentos anos é que se transformará em espuma. Venha, você ficará alegre novamente. Tornará a ver nossos jardins, nossas grutas, o palácio, a sua voz maviosa será ouvida outra vez; junto a nós você percorrerá os mares i-mensos. Mas não demore! Pois antes do nascer do sol é preciso que um de vocês morra. Mate-o e venha, nós lhe suplicamos! Está vendo aquela luz vermelha no horizonte? Dentro de alguns minutos o sol nascerá e tudo estará terminado para você! Venha! Venha!. A seguir, com um longo suspiro, elas mergulharam novamente, a fim de irem encontrar-se com a velha avó que esperava ansiosa pela sua volta. A sereiazinha levantou a cortina da tenda e viu a jovem esposa adormecida, com a cabeça apoiada no peito do príncipe. Aproximou-se dos dois e depositou um beijo na fronte daquele que tanto amara. A seguir, voltou seu olhar para a aurora que se aproximava, para o punhal que levava nas mãos e para o príncipe que pronunciava em sonhos o nome de sua esposa, levantou a mão que empunhava o punhal e ... lançouo no meio das vagas. No lugar onde ele caíra, pareceu-lhe ver várias gotas de sangue rubro. A sereiazinha lançou mais um olhar para o príncipe e precipitou-se no mar, onde sentiu seu corpo dissolver-se em espuma. .Nesse instante o sol saiu das vagas; seus raios benéficos caíram sobre a espuma fria e a sereiazinha não sentiu mais a morte; ela viu o sol brilhante, as nuvens de púrpura e em sua volta flutuarem milhares de criaturas celestes e transparentes. Suas vozes formavam uma melodia encantadora, mas tão sutil, que nenhum ouvido humano poderia ouvir, assim como nenhum olhar humano poderia ver as criaturas. A jovem do mar apercebeu-se de que possuía um corpo igual ao delas e que, pouco a pouco, ela se elevava sobre a espuma. “Onde estou?”, perguntou ela com uma voz da qual música alguma pode dar uma idéia. “Junto com as filhas do ar, responderam as outras. A sereia não possui uma alma imortal e só pode conseguir uma, através do amor de um homem; sua vida eterna de187
pende de um poder estranho. Assim como as sereias, as filhas do ar não possuem uma alma imortal, mas podem ganhar uma, por meio de boas ações. “Nós voamos para os países quentes, onde o ar pestilento mata os homens, para levar-lhes o frescor; espalhamos pelos ares o perfume das flores por toda a parte por onde passamos, levamos o socorro e damos saúde. Depois que praticamos o bem durante trezentos anos, adquirimos uma alma imortal a fim de participar da felicidade eterna dos homens. “Pobre sereiazinha, você esforçou-se da mesma forma que nós; como nós você sofreu e, saindo vitoriosa de suas provações, elevou-se até o mundo dos espíritos do ar e agora depende de você ganhar ou não uma alma imortal, por meio de suas boas ações.. E a sereiazinha, levantando os braços para o céu, derramou lágrimas pela primeira vez. Os gritos de alegria foram ouvidos novamente sobre o navio; mas ela viu o príncipe e sua bela esposa olharem fixamente e melancolicamente para as espumas brilhantes, como se soubessem que ela se precipitara nas ondas. Invisível ela abraçou a esposa do príncipe, lançou um sorriso aos recém-casados, depois subiu com as outras filhas do ar para uma nuvem cor-de-rosa, que se elevou no céu.
(Andersen)
188
Rumpelstiltskin Havia uma vez um moleiro pobre que tinha uma filha muito bela. Um dia aconteceu de ter que ir falar com o rei e, para parecer mais importante, disse: - Tenho uma filha que pode fiar a palha e convertê-la em ouro. - Essa é uma habilidade que me impressiona – disse o rei ao moleiro – se tua filha é tão hábil como dizes, traga-a amanhã ao meu palácio e vamos ver isso. Quando trouxeram a garota, o rei a levou para uma quarto cheio de palha, deu-lhe uma roca e uma bobina e disse: - Trabalha e, se amanhã pela manhã não tiveres convertido toda essa palha em ouro, durante a noite, morrerás. Então ele mesmo fechou a porta a chave e a deixou só. A filha do moleiro se sentou sem poder fazer nada para salvar sua vida. Não tinha a menor ideia de como fiar a palha e convertê-la em ouro, e se assustava cada vez mais, até que por fim começou a chorar. Porém, de repente a porta se abriu e entrou um homenzinho: - Boa tarde, senhorita moleira, por que estás chorando tanto? - Ai de mim – disse a garota – tenho que fiar essa palha e convertê-la em ouro porém não sei como fazê-lo. - O que me dás – disse o homenzinho – se fizer isso por ti? - Meu colar, disse ela. 189
O homenzinho pegou o colar, sentou-se à roca e whirr, whirr, whirr três voltas e a bobina estava cheia. Pôs outra e whirr, whirr, whirr três voltas e a segunda estava cheia também. E seguiu assim até o amanhecer, quando toda palha estava fiada e todas as bobinas cheias de ouro. Ao despertar o dia o rei já estava ali, e quando viu o ouro ficou atónito e encantado, porém seu coração se tornou mais avarento. Levou a filha do moleiro a outra sala, muito maior e cheia de palha e lhe ordenou que fiasse a noite inteira, se apreciava a vida. A garota que não sabia o que fazer, estava chorando quando a porta se abriu de novo. O homenzinho apareceu e disse: - Que me darás se eu converter essa palha em ouro? - perguntou ele. - O anel que levo em meu dedo – disse ela. O homenzinho apanhou o anel e começou outra vez a girar a roca, e pela manhã havia fiado toda a palha e convertido em brilhante ouro. O rei ficou felicíssimo quando viu aquilo. Porém como não tinha ouro suficiente, levou a filha do moleiro a outra sala cheia de palha, muito maior que a anterior, e disse: - Tens que fiar isso durante esta noite, se conseguires, serás minha esposa. - “Apesar de ser a filha de um moleiro, “ pensou, “ não poderei encontrar esposa mais rica no mundo.” Quando a garota ficou só, o homenzinho apareceu pela terceira vez, e disse: - Que me darás se fiar a palha desta vez? - Não tenho mais nada para te dar – respondeu a garota. - Então me prometa, que se te tornares rainha, me darás teu primeiro filho. - “Quem sabe se isso ocorrerá alguma vez.“ pensou a filha do moleiro. E não sabendo como sair daquela situação, prometeu ao homenzinho o que ele queria e uma vez mais a palha foi convertida em ouro.
190
Quando o rei chegou pela manhã, e encontrou todo o ouro que havia desejado, casou-se com ela e a preciosa filha do moleiro tornou-se rainha. Um ano depois, trouxe ao mundo um belo menino, e em nenhum momento se lembrou do homenzinho. Porém, de repente, veio ao seu quarto e lhe disse: - Dá-me o que prometeste. A rainha estava horrorizada e lhe ofereceu todas as riquezas do reino para deixar seu filho. Porém o homenzinho disse: - Não, algo vivo vale para mim mais que todos os tesouros do mundo. A rainha começou a se lamentar e chorar tanto que o homenzinho se compadeceu dela: - Te darei três dias - disse – se descobrires meu nome, então ficarás com teu filho. Então a rainha passou toda a noite pensando em todos os nomes que tinha ouvido, e mandou um mensageiro a todos os cantos do reino para perguntar por todos os nomes que havia. Quando o homenzinho chegou no dia seguinte, ela começou: Gaspar, Melquior, Baltazar... Disse um atrás do outro, todos os nomes que sabia, porém a cada um o homenzinho dizia: - Esse não é meu nome. No segundo dia havia perguntado aos vizinhos seus nomes, e ela repetiu os mais curiosos e pouco comuns: - Seria teu nome Pata de Cordeiro ou Laço Largo? Porém ele disse: - Esse não é meu nome. Ao terceiro dia o mensageiro voltou e disse: - Não encontrei nenhum nome. Porém, quando subia uma grande montanha ao final de um bosque, onde a raposa e a lebre se desejam boas noites, ali vi um homenzinho muito ridículo saltando.. Deu um cabriola e gritou: “Hoje trago o pão, amanhã trarei cerveja no outro terei o filho da jovem rainha. 191
Já estou contente de que nada aconteça que Rumpelstiltskin me chamo.” Podeis imaginar o contentamento da rainha quando escutou o nome. E quando logo em seguida o chegou o homenzinho e perguntou: - Bem, jovem rainha, qual é meu nome? A rainha primeiro disse: - Te chamas Conrado? - Não. - Te chamas Harry? - Não. - Quem sabe teu nome é... Rumpelstiltskin? - Te contou o demónio! Te contou o demónio! Gritou o homenzinho e, na sua raiva, bateu o pé direito na terra tão forte que entrou toda a perna e quando tirou com raiva a perna, com as duas mãos se partiu em dois.
(Irmaos Grimms)
192
Biografia Dos Autores
193
Charles Perrault Data/local de nascimento: 12 de janeiro de 1628/Paris Data/local de morte: 16 de maio de 1703/Paris Profissões: escritor, poeta, advogado e superintedente do Rei Luís XIV de França. Importância: inventor do gênero conto de fadas, o que lhe conferiu o título de Pai da Literatura infantil. Principais obras: “Chapeuzinho Vermelho”, “A Bela Adormecida”, “Cinderela”, “Barba Azul” e “O Pequeno Polegar”.
Charles Perrault era o quinto filho de Pierre Perrault e Paquette Le Clerc, da alta burguesia. Completou seus estudos sozinho porque se desentendeu com um professor. Começou seus entudos em 1637, no colégio Beauvais e em, 1651, conseguiu seu diploma de advogado. Em 1654, Perrault se tornou cobrador geral do reino e, depois de ter publicado várias odes dedicadas ao rei, tornou-se assistente de Colbert, um famoso conselheiro do rei Luís XIV. Em 1665 passou a ser superintendente das obras públicas do reino e dois anos depois ordenou a construção do Observatório Real. Ele casou-se em 1672 com Marie Guichon, que morreu em 1678 e deu à luz uma menina e três filhos deficientes. Com quase 70 anos, publicou um livro de contos conhecido, na época, como "contos de velha" ou "contos da mamãe gansa", sendo o último o título por que ficou conhecida a obra em todo o mundo, que traz contos como "Cinderela", "A Bela Adormecida", "Barba Azul" e entre outros.
194
Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen era filho de um sapateiro e sua família morava num único quarto. Apesar das dificuldades, ele aprendeu a ler desde muito cedo e adorava ouvir histórias. A infância pobre deu a Andersen a chance de conhecer os contrastes de sua sociedade, o que influenciou bastante as histórias infantis e adultas que viria a escrever. Em 1816, seu pai morreu e ele, com apenas 11 anos, precisou abandonar a escola, mas já demonstrava aptidão para o teatro e a literatura. Aos 14 anos, Andersen foi para Copenhague, onde conheceu o diretor do Teatro Real, Jonas Collin. Andersen trabalhou como ator e bailarino, além de escrever algumas peças. Em 1828, entrou na Universidade de Copenhague e já publicava diversos livros, mas só alcançou o reconhecimento internacional em 1835, quando lançou o romance "O Improvisador". Apesar de ter escrito romances adultos, livros de poesia e relatos de viagens, foram os contos infantis que tornaram Hans Christian Andersen famoso. Até então, eram raros livros voltados especificamente para crianças. Em suas histórias Andersen buscava sempre passar padrões de comportamento que deveriam ser adotados pela sociedade, mostrando inclusive os confrontos entre poderosos e desprotegidos, fortes e fracos. Ele buscava demonstrar que todos os homens deveriam ter direitos iguais. Entre 1835 e 1842, Andersen lançou seis volumes de "Contos" para crianças. E continuou escrevendo contos infantis até 1872, chegando à marca de 156 histórias. No final de 1872, ficou muito doente e permaneceu com a saúde abalada até 4 de agosto de 1875, quando faleceu, em Copenhague. Graças à sua contribuição para a literatura para a infância e adolescência, a data de seu nascimento, 2 de abril, é hoje o Dia Internacional do Livro Infanto-Juvenil. Além disso, o mais importante prêmio internacional do gênero leva seu nome.
195
Anualmente, a International Board on Books for Young People (IBBY) oferece a Medalha Hans Christian Andersen para os maiores nomes da literatura infantojuvenil. A primeira representante brasileira a ganhá-la foi Lygia Bojunga, em 1982. Entre os títulos mais divulgados da obra de Andersen encontram-se: "O patinho feio", "O soldadinho de chumbo", "A roupa nova do Imperador", "A pequena sereia" e "A Menina dos Fósforos". São textos que fazem parte do imaginário da maioria das crianças do mundo desde sua publicação até a atualidade, tendo sido adaptados para o cinema, o teatro, a televisão, o desenho animado, etc.
196
Henriqueta Lisboa A poetisa, ensaísta e tradutora Henriqueta Lisboa nasceu na cidade de Lambari, no Estado de Minas Gerais, no dia 15 de julho de 1901, fruto da união entre o deputado federal João de Almeida Lisboa e Maria Rita Vilhena Lisboa. Ela se torna, posteriormente, a primeira escritora a ser eleita integrante da Academia Mineira de Letras, em 1963. Jovem estudante, ela recebe o diploma de normalista no Colégio Sion de Campanha, ainda em Minas. Logo depois, em 1924, ela se transfere para terras cariocas. Henriqueta se devota à poesia prematuramente. Em 1929 ela já tem seu primeiro poema, Enternecimento, premiado; ela angaria então o Prêmio Olavo Bilac de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Sua primeira obra, intitulada Fogo Fátuo, foi publicada quando ela tinha apenas 21 anos, o que confirma seu talento precoce. Ao público infantil ela reserva três livros – O Menino Poeta, de 1943; Lírica, de 1958; e o relançamento, em 1975, do primeiro trabalho devotado às crianças, lançado igualmente em disco pelo Estúdio Eldorado. Um dos maiores impactos em sua carreira literária é a participação no movimento modernista, em 1945. Nesta época ela foi incentivada a integrar esta escola pelo amigo Mário de Andrade, principalmente através das cartas que ambos trocaram entre 1940 e 1945. Além dos poemas, Henriqueta produziu várias traduções, ensaios e antologias. Escritora de intensa sensibilidade, ela se devotou de corpo e alma à criação de seus poemas. Ao longo de sua trajetória literária, a poetisa sempre se manteve receptiva a novos estímulos e sugestões de seus contemporâneos, conquistando assim inúmeros admiradores no meio artístico e intelectual, entre eles Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Gabriela Mistral. Henriqueta foi homenageada, em 1984, com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por sua obra como um todo. Paralelamente ao ofício literário, ela atuou também no campo do magistério, como professora de Literatura Hispano197
Americana e Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica (Puc Minas) e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e como inspetora escolar. Esta célebre poetisa morreu em 9 de outubro de 1985, na cidade de Belo Horizonte. Em 2002 houve vários eventos comemorativos em prol de seu centenário de nascimento, quando então foram relançados vários de seus livros, em meio a diversas realizações de natureza cultural. Em sua bibliografia constam inúmeras obras, entre elas Velário (1936); Prisioneira da noite (1941); A face lívida (1945), dedicado à memória de Mário de Andrade, morto nesse mesmo ano; Flor da morte (1949); Madrinha Lua (1952); Azul profundo (1955); Nova Lírica ((1971); Belo Horizonte bem querer (1972); Pousada do ser (1982) e Poesia Geral (1985), coletânea de poemas escolhidos pela própria escritora, extraídos do total de sua obra, a qual foi publicada uma semana depois de sua morte.
198
Irmãos Grimms Nascidos em Hanau, Jacob Grimm em 1785 e Wilhelm Grimm em 1786, os irmãos Grimm estudaram Direito junto ao seu pai, mas começaram a se dedicar integralmente à literatura e acabaram deixando a advocacia de lado. No ano de 1830, ambos ingressam em uma universidade alemã como professores. Estudiosos incessantes do idioma alemão, atuaram em campos como História e Filologia. Porém, a grande marca dos Grimm era sua excelência narrativa. Um ano marcante para os irmãos Grimm foi 1837, quando demonstraram ideias contestadoras em relação ao rei da Alemanha e foram expulsos da Universidade de Göttingen junto a cinco professores. Quatro anos mais tarde, a Universidade de Berlim convida-os para assumirem cargos de professores novamente. Os dois viveram nesta cidade até seus últimos dias, sendo que Wilhelm veio a falecer em 1859 e Jacob em 1863. Reconhecidos no mundo inteiro pela qualidade dos contos que produziram desde o começo do século XIX, os irmãos Grimm afirmavam que estavam apenas escrevendo, durante à noite, as histórias que escutavam de camponeses, amigos e parentes durante o dia. Uma das primeiras perguntas feitas quando se estuda o trabalho dos Grimm é a seguinte: por qual motivo eles compilavam tantos contos? Estudiosos, os irmãos Grimm sabiam que os primeiros povos transmitiram oralmente suas histórias, passando a tradição de pai para filho, de geração para geração. Assim, quando surgiu a escrita, muitos destes contos foram registrados nos monastérios, onde eram redigidos por religiosos. Desta forma, os irmãos começam a pesquisar antigos documentos e iniciar um processo de recolhimento de histórias da Alemanha para a preservação da memória e das tradições populares. Apenas Dortchen Wild, que era a mulher de Wilhelm, contribuiu com 12 histórias, das quais pode ser citada Rumpelstiltskin, que tem como principal personagem um anão que faz palha se transformar em ouro. Uma das histórias mais famosas da humanida199
de, Branca de Neve, imortalizada pelo desenho criado nos estúdios Disney, foi passada para os irmãos Grimm por 2 amigas de sua família. A maior parte dos contos, aproximadamente 200, foram ditados por uma camponesa idosa chamada Dorotea Viehmman. Publicados no ano de 1812, os primeiros contos dos Grimm levavam o nome de "Histórias das Crianças e do Lar", totalizando 51 histórias. Aos poucos, os contos desta obra foram se popularizando ao redor do mundo, sendo reinventados em várias versões e conquistando povos de culturas e idiomas diferentes. Porém, a maior importância dos irmãos Grimm para a literatura foi a coleta dos contos, que acabou impulsionando outros estudiosos a realizarem o mesmo processo em seus países. Na maioria dos textos dos irmãos, sempre são encontrados personagens como dragões, lobos, monstros, bruxas, entre outras criações folclóricas da população. Provavelmente, histórias trágicas que foram passadas pelo povo aos Grimm, acabaram sendo alteradas para ganharem finais felizes e se tornarem mais leves para a leitura de crianças e adolescentes. Outro aspecto encontrado em várias histórias é a presença das mulheres como agentes que modificam o enredo para o bem ou para o mal. Os contos dos irmãos Grimm são enquadrados no gênero fantástico por apresentarem personagens e cenários imaginários. Um bom exemplo é o conto da Gata Borralheira, no qual elementos sobrenaturais e mágicos aparecem em integração com a realidade. Este conto apresenta mais de 300 interpretações no mundo todo.
200
Sobre a Coletânea de Contos
201
Ler é Fundamental Comecei a ler cedo, tinha sempre apreciação pelos livros. Meu pai foi um grande contador de histórias e eu sempre lhe pedia para contar contos todos os dias pela manhã. Gostava muito de ler durante o recreio da escola, antes de dormir e quando eu queria me desligar do mundo a fora e mergulhar nos livros. Essa coletânea de contos tem como objetivo repassar os melhores contos de minha infância para a infância de todos vocês. Charles Perrault, Grimms, Henriqueta e Andersen fizeram sim, muita parte da minha infância. Ter crescido com esses contos foi um prazer imenso. Hoje tudo que eu tenho é repassa-los para olhos que saibam ler e reviver cada leitura. Tudo que nasce hoje em dia morre, mas palavras não, elas são resuscitadas por olhos que saibam ler. Por isso que é muito importante registrar palavras no papel, ler e repassar. Diz uma frase que é assim: “quem não lê mal fala, mal ouve e mal vê”. Ler é fundamental a todos os sentidos. É saber interpretar o mundo, a nossa imaginação, os sonhos, as palavras, o nosso conhecimento e acima de tudo ler é criar nosso mundo simbólico. Meu livro preferido sempre foi de coletânea de contos. O meu conto preferido (nossa bem difícil decidir um único conto, mas deixa-me arriscar) de Perrault: Barba Azul ; Andersen: Soldadinho de chumbo; Heriqueta: Maria Borralheira. Embora eu goste de todos contos que coloquei aqui, todos são meus preferidos, mas eu arrisquei ai em cima(risos). Hoje em dia já li e reli mais de 200 livros e sei lá quantos contos. Espero que esses contos despertem o gosto pela leitura de vocês e que te façam viajar horas e horas mergulhadas na imaginação. Que teus sonhos seja tão encantados e que carregue consigo esse encanto para toda a vida. “Quem lê viaja, e quem viaja vive.” Luha Biha
202