Caderno de Formação do Levante!

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o v i t e l Co

Caderno de formação 01

Twitter: @levantenacional Blog: coletivolevante.wordpress.com


Sumário

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Repensando a Universidade

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Vamos ganhar dinheiro à beça

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A crise Mundial

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Organizando a transição

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Feminismo, militância e transformação social

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Balanço da Gestão da UNE

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Contatos do Levante Email: levantenacional@gmail.com Twitter: @levantenacional Blog: coletivolevante.wordpress.com Telefones: Suellen UEE-RJ - (21) 7883-2530 Cláudia DENEM - (85) 9692-9001 Lucas DCE UFF - (21) 8030-4098 Mário DCE-UFRJ - (21) 9108-1888


E aí, demorô formar?

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Quem somos nós?

Somos o Levante! Coletivo nacional de estudantes que tem em seu nome a razão de sua existência e o seu propósito: lutar diante de todas as injustiças, vibrar com todas as vitórias daqueles que querem mudar o mundo, chorar diante da alienação e desigualdades, se indignar diante de todas as opressões. Mas somos Levante porque vivemos de sonhos, de esperança, de enxergar no horizonte um outro mundo. Para enxergar esse outro mundo, não bastam os panfletos e as palavras de ordem, é preciso ir além. Por isso, lançamos o primeiro caderno de formação política de nosso coletivo, após mais de quatro meses de debates. Seu objetivo é iniciar uma prática necessária para quem um dia quer fazer-se de estudante uma mulher (e um homem) livre, totalmente livre. No primeiro texto, Repensando a Universidade, Ernâni Lampert apresenta a discussão sobre universidade com fôlego, levantando alternativas sobre suas entranhas e mecanismos. É uma discussão de universidade para valer, sem tratar nada como secundário. No segundo texto, José Rodrigues revela os interesses de quem manda na universidade com o título “Vamos ganhar dinheiro à beça”, denunciando a mercantilização da educação. Um processo que transforma um objeto não voltado para a venda, como o mestrado, numa ferramenta para a formação essencialmente mercadológica. Em seguida, a discussão de universidade é completada nesse caderno pela sua contextualização na crise mundial em A crise mundial e os reflexos na Educação Superior. Crise essa que não é somente financeira, quem dera! É sim uma crise de civilização, e David Harvey, analisada pelo intenso artigo Organizando para a transição anti-capitalista, do famoso geógrafo entusiasta da experiência do Fórum Social Mundial, conhecida pela ode ao movimentos sociais, de todas as formas e identidades. Encerramos nosso primeiro caderno escolhendo dois temas, dois movimentos, duas atuações que fundaram nosso coletivo: o movimento feminista e o movimento estudantil. As companheiras do coletivo Levante apresentam uma forte e densa contribuição sobre o sentido de feminismo nos movimentos sociais e na luta geral. Sentido claro vemos também noBalanço de Gestão de nossa primeira experiência na diretoria da UNE, precursora de nosso coletivo. Bom pessoal, não resta nada a mais a dizer aos que se deparam com esse compilado de boas, plurais e importantes contribuições do que... Boa leitura!


Repensando a Universidade algumas notas para análise Por Ernâni Lampert, Professor da UFRG Resumo: O trabalho é um recorte do projeto de pesquisa “Re(criar) a Universidade na América Latina”, em que o autor do presente texto mostra a necessidade urgente de se recriar administrativa e pedagogicamente a universidade, dentro do atual contexto político, econômico, social, tecnológico e cultural. Situando a problemática Muito se tem discorrido sobre a temática “educação superior”. Do surgimento da primeira universidade no mundo ocidental, em 1088, à contemporaneidade, a problemática tem intrigado diferentes segmentos sociais, além da academia. A partir dos anos 80, com as fortes restrições econômicas impostas pela política neoliberal, em praticamente todos os países do mundo ocidental, a questão da reestruturação da universidade veio à tona e tem ocupado espaço nos periódicos especializados, na academia, na tribuna dos políticos e na imprensa em geral. No século XXI é um tema desafiador, que merece uma análise acurada do governo, da sociedade civil organizada e, principalmente, da academia. Na sociedade hodierna, a universidade, como as demais instituições religiosas, econômicas, financeiras, culturais, educacionais, políticas e sociais, está passando por uma variada gama de transformações. Se, sob um ângulo, a educação superior é indispensável ao desenvolvimento econômico, político, social, cultural, educacional e à manutenção do status quo, por outro prisma, com algumas, exceções, a universidade não consegue mais atender às demandas, às exigências, às expectativas, às necessidades de uma sociedade cambiante, cada vez mais exigente, competitiva, individualista, pragmática e consumista, que é a sociedade pós-moderna. A propósito do assunto, López Segrera (2006) assinala que: “Estamos assistindo à crise da universidade não somente em seus aspectos de gestão, financiamento, avaliação e currículo, mas é a própria concepção de universidade que devemos adequar a um contexto que, por outra parte, mostra mudanças radicais nas identidades e suportes básicos [...]. O desafio consiste em construir uma nova universidade – em reinventá-la - neste clima de in-

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certezas, evitando a vitória da anomia e do pessimismo”. Seguindo esta linha de pensamento, Santos (2009) afirma que: O atual estágio do ensino superior não atende às necessidades da sociedade. A evolução social está a exigir uma nova universidade para o terceiro milênio. Uma universidade pós-moderna, de excelência, que privilegie relações de gênero, com habilidades de compreensão do contexto sociopolítico, capacidade de gerenciar a complexidade,a ariabilidade, a incerteza, a transitoriedade, e capacidade para a mobilização do potencial humano e compromisso social (p.4). Portanto, reafirmando as idéias de Lampert (2008a), a universidade, principal gestora de ciência, não poderá ocultar a complexidade da sociedade, dos paradigmas múltiplos e complementares. Precisa, com urgência, repensar suas convicções para conseguir saídas viáveis e confiáveis, admitindo a pluralidade ideológica e sem fechar a porta para nenhuma modalidade de entender o mundo. Com visão crítica, deverá estudar novos modos de pensar, ler o mundo, gerenciar e conduzir o processo ensino/aprendizagem. Dentro desta nova visão de mundo, precisa estar aberta às inovações e contradições que a tríade ciência/tecnologia/indústria desenvolve. A universidade não poderá ser uma torre de marfim, obsoleta, dirigida somente para o passado. Deve considerar a bipolaridade como forma de analisar o desenvolvimento que, de um lado, traz benefícios, conforto e bem-estar a poucos, e, por outro prisma, deteriora a natureza, produz a atomização dos indivíduos, que perdem sua identidade, tornando-se objetos manipulados e dominados pela máquina. A expansão quantitativa, o crescimento da privatização, a grande diversificação institucional, a restrição do gasto público e as inadequadas políticas públicas são alguns aspectos desta crise, que merecem análise. A expansão quantitativa e a massificação do sistema universitário não têm sido acompanhadas do melhoramento da qualidade. Grosso modo, a qualidade do ensino tem declinado em praticamente todo o mundo, mas este desenrolar é uma das características marcantes da educação superior, nos países emergentes. “Na maioria dos países em desenvolvimento, a educação superior tem mostrado grandes deficiências, que são agravadas pela expansão do setor” (ARAÚJO CASTRO, 2006, p. 120). No que concerne ao Brasil, Hermida (2006), ao analisar as ações afirmativas e a inclusão educacional, assinala que também houve uma regressão na qualidade da educação no sistema de educação superior do Brasil. Borón (2004), na palestra


Repensando a Universidade “Reformando las ‘reformas’: transformaciones y crisis en las universidades de América Latina y el Caribe”, proferida no Congresso Universidade 2004, em Havana, aponta que, no Brasil, são muitos os fatores que explicam esse lamentável retrocesso: falta de qualificação dos professores, contratação de docentes com contratos de trabalho precários, expansão quantitativa e crescente massificação do corpo estudantil. Para Borón, “grande parte da responsabilidade pelo declínio qualitativo é devido ao sistema privado de ensino superior, que pouco ou nada se preocupa em fazer com que as universidades cumpram com a função social que a deveria caracterizá-las” (BORÓN, 2004, tradução nossa). A orientação meramente para o mercado faz com que muitas instituições tenham apenas um crescimento quantitativo. López Segrera (2006) vem ao encontro dessa idéia, afirmando que muitas universidades se convertem em empresas, cujo principal fim é produzir lucros. Para Vizcaíno (2006), as universidades têm adotado essencialmente os mesmos componentes da política neoliberal geral e os têm introduzido em suas dinâmicas internas. Os serviços têm-se convertido em produtos para o mercado; os beneficiários transformaram-se em clientes; as relações entre servidores e usuários transformaram-se em oferta e demanda; a legitimação centrada no Estado e nas instituições foi transladada para o mercado; as práticas internas de produção e circulação de conhecimentos estão sendo associadas com qualidade, pertinência, eficiência, flexibilidade e oportunidade, no contexto de mercados elásticos. Nunes (2006b), analisando a expansão do ensino superior no Brasil e verificando as conseqüências desta transformação, assinala que as instituições de ensino superior, para sobreviverem, precisam se reestruturar rapidamente, sem perder de vista seu foco, o cliente. Dentro dessa lógica, educar se transformou em sinônimo de não perder o aluno. Historicamente, não contrariar o cliente é um dos mandamentos mais importantes para qualquer empresa que queira sobreviver no mercado. No caso do ensino superior privado no Brasil, esse andamento ganha cada vez mais centralidade, uma vez que a concorrência tende a aumentar. Repensando a universidade: algumas notas para reflexão A universidade, instituição antiga, além da docência e da pesquisa, funções historicamente assumidas, deve empenhar-se na transformação social, lutando por um mundo sustentável, mais humano, igualitário e justo, onde o homem seja sujeito-ci-

5 dadão. Nessa direção, López Segrera afirma que “a definitiva razão de ser da universidade é a transformação da sociedade e para isso ela deve participar ativamente na solução dos principais problemas locais, regionais, nacionais e universais” (2006, p. 29, tradução nossa). Posto isso, cabe à universidade engajar-se na solução dos problemas sociais, ambientais e culturais, em qualquer âmbito, e opor-se à tese neoliberal que considera como sua missão essencial, a adaptatividade às demandas do mercado. “A universidade atua em um contexto de complexidade e incerteza, onde são exigidas novas interfaces com a sociedade, visando capturar suas necessidades e demandas” (AUDY, 2006, p. 68). O foco da instituição deve estar voltado à melhoria das condições de vida da população e não atender unicamente aos interesses de determinados grupos hegemônicos, que objetivam tão somente o lucro. Além disso, cabe à universidade a formação de cidadãos críticos, éticos, comprometidos com a transformação da realidade circundante. Esses são os grandes desafios e, certamente, serão o diferencial das instituições de ensino superior no séc XXI. A universidade deve estar a serviço da sociedade, que lhe confere legitimidade e credibilidade. Utilizando-se de um plano político-pedagógico-estratégico acurado, deve encaminhar, de forma concreta, projetos e atividades com abordagem interdisciplinar, transdisciplinar e multidisciplinar para solucionar ou amenizar os gritantes problemas que afligem a sociedade (violência, pobreza material e espiritual, fome, enfermidades, intolerância, imediatismo, competição, exclusão social, analfabetismo, deteriorização do meio ambiente, contaminação do ar, das águas, do solo). A universidade somente recuperará o seu status de outrora se realmente estiver a trabalho da sociedade e prestando um bom serviço, ajudando, por meio de ações práticas, a reintegrarem os excluídos na força do trabalho, recuperando sua dignidade, sua força de vontade, e se encarar a realidade com o intuito de transformá-la para uma sociedade mais justa, igualitária, menos agressiva, violenta e mais humanitária. Além disso, cabe à universidade engendrar novos paradigmas para criar uma sociedade voltada à paz, à solidariedade, em que esteja excluída toda a forma de exploração e de indiscriminação. Deve promover a cultura da paz e a perspectiva de aprender a viver com os diferentes e uns com os outros, de forma pacífica e civilizada. A universidade, além do ensino e da pesquisa, deve ter uma responsabilidade social, não assistencialista. Ela deve ouvir a comunidade e, na medida do possível, atendê-la.


Repensando a Universidade Este deverá ser o diferencial de se repensar a universidade. De acordo com Mora (2006), a mudança de contexto para a educação superior (sociedade global, sociedade do conhecimento e universalidade) exige a realização de reformas no sistema educativo para responder aos novos desafios. As mudanças devem ser de dois tipos: intrínsecas (modelo pedagógico) e extrínsecas (modelo organizacional). A idéia de mudança intrínseca pode ser sintetizada na necessidade de mudar o paradigma educacional, partindo-se de um modelo baseado, quase que exclusivamente, no conhecimento para outro, fundamentado na formação integral dos indivíduos. É indispensável que os sistemas de educação superior dediquem especial atenção para o desenvolvimento das habilidades “saber ler, saber falar e escrever, saber pensar e saber continuar aprendendo, aprender a relacionar-se e entender o mundo do trabalho, além de desenvolver os conhecimentos de caráter prático que facilitem a aplicação dos conhecimentos teóricos” (MORA, 2006, p. 140). A mudança extrínseca refere-se ao modelo organizacional das instituições de educação superior, que deve estar orientado para o aumento de flexibilidade do sistema, em um sentido temporal (facilitando a educação ao longo de toda a vida) e operativo (facilitando a passagem do sistema educativo ao mercado de trabalho e entre programas dentro do sistema educativo). Em síntese, a mudança resume-se a abrir as portas à sociedade e escutar o que ela necessita das universidades. Ao se repensar a universidade, cabe fazer menção a uma preocupação histórica, que vem acompanhando a instituição ao longo de sua trajetória, ou seja, a autonomia. De uma estrutura simplificada e homogênea, a universidade passou a ser uma instituição cuja complexidade e heterogeneidade são marcantes, na contemporaneidade. A rígida estrutura administrativa e pedagógica, a inflexibilidade, o autoritarismo e o excessivo controle, a excessiva legislação e a própria burocracia são fatores que entravam a autonomia e, conseqüentemente, sua capacidade inovadora de realização e de empreendedorismo, indispensáveis em uma sociedade dinâmica. Percebe-se que as instituições particulares estão se adaptando de maneira mais veloz às mudanças que a sociedade globalizada exige. Nos últimos anos, a universidade pública também está fazendo um esforço para adaptar-se ao modo de ser, viver e agir da sociedade. Kerr, citado por Clark (2006), enfatiza que somente as universidades autônomas estão em condições de se mover rapidamente em tempos de mudanças e fazer frente à crescente concorrência. Des-

6 sa forma, faz-se necessária uma autonomia ativa, conduzida por um ponto de vista empreendedor. A universidade, como instituição capaz de valorizar a cultura local/universal, produzir e disseminar o conhecimento, mediante a pesquisa, a docência e a extensão, deve ter autonomia. No entanto, esta deve ser acompanhada de mecanismos, de autocontrole e de acompanhamento externo, para harmonizar a autonomia, pois a instituição utilizase de recursos públicos e faz parte de um sistema nacional de educação. Cabe ao Estado acompanhar e zelar pela qualidade, e a universidade deve responder ante a sociedade pelo bom uso dos recursos públicos e assumir uma autonomia responsável. De acordo com López Segrega (2006), a autonomia não exime a universidade do compromisso social. E a instituição tem a obrigação de prestar contas à sociedade. Quanto à gestão e ao financiamento, há a necessidade de serem revistos alguns sistemas arcaicos, aristocráticos e burocráticos de administrar a universidade. É indispensável para as lideranças e para os gestores que estejam convencidos de que o modo adequado de governar a universidade é pela via da participação e não da imposição. A governabilidade da universidade se constrói mediante participação, negociação, argumentação, pontos de vista convergentes/divergentes e convencimentos. A participação supõe que toda a comunidade universitária seja consultada e, por meio de diferentes formas, possa expressar seus pontos de vista, quer de forma presencial ou virtual. Os pontos de vista divergentes, comumente conflituosos numa primeira instância, se bem encaminhados, serão extremamente benéficos para a oxigenização e crescimento da instituição. No que diz respeito ao financiamento, o Estado deve ser o principal provedor, pois a educação superior é de sua responsabilidade, porém, devido aos ajustes fiscais ocorridos nos últimos anos, o Estado tem reduzido os investimentos nas universidades públicas federais. Em relação a essa problemática, Chaves (2006) assinala: As políticas de ajuste fiscal implementadas no Estado brasileiro pelos sucessivos governos neoliberais, especialmente de Fernando Henrique e Luis Inácio, promoveram o gradativo afastamento do estado da manutenção do sistema público de ensino superior e do financiamento da pesquisa no País, agravando a crise vivida pelas universidades públicas federais (p.99). Além desses recursos federais, a universidade deve, por intermédio dos diferentes órgãos de fomentos locais, regionais, nacionais e internacio-


Repensando a Universidade nais, buscar o apoio para o desencadeamento de seus projetos de ensino, de pesquisa e de extensão. Não se podem descartar os recursos oriundos da iniciativa privada, pela negociação de projetos de ponta, geralmente de aplicação imediata, porém deve-se ter o cuidado com esse tipo de recurso, no sentido de haver preocupação ética e social. É oportuno frisar que há praticamente consenso entre os gestores, docentes e discentes sobre a falta de recursos e investimentos e, como conseqüência dessa realidade, afirmam que pouco se pode realizar em termos concretos para a melhoria de vida da população e do entorno. Contrapondose a essa idéia, Neciosup La Rosa (2006), em seu estudo “La educación superior virtual: un reto para la universidad latinoamerica”, enfatiza que:

7 fatizam a importância da avaliação institucional como processo que deve ser desenvolvido de maneira permanente e global, utilizando-se da avaliação interna e externa e considerando o contexto em que a instituição está inserida. Além disso, o processo avaliativo deve envolver diferentes atores sociais, abarcar uma variada gama de metodologias, assessorar-se de especialistas, com o objetivo de rever e aperfeiçoar o projeto político-pedagógico, considerando a pertinência e a relevância das atividades desencadeadas, na dimensão pedagógica e administrativa.

Existe uma moda neoliberal de fazer da educação uma mercadoria. A universidade pública latinoamericana deverá assumir o compromisso de que é possível fazer educação de qualidade e direcionada à erradicação da pobreza, ainda que com os escassos recursos financeiros de que dispõe. O principal recurso já se tem: são os próprios docentes e estudantes universitários latino-americanos, que com criatividade deverão encaminhar a universidade pública e reatualizar a liderança acadêmica que já teve algum dia (p. 316, tradução nossa).

A avaliação institucional, que é um processo extremamente delicado, deve ser feita com muita cautela, tanto em sua realização técnica como no que concerne às implicações pessoais, pois, em geral, gera situações de conflito e insegurança entre as pessoas e a instituição. A forma de conduzir o processo é tão importante quanto a coleta de dados. A busca dos melhores e menos dolorosos caminhos deve ser a preocupação da instituição e dos especialistas. Os interesses da instituição não são suficientes. É necessário o compromisso de todos os membros e de todos os segmentos, com a participação dos envolvidos nas diferentes etapas: pensar, elaborar e executar. Em relação a essa problemática, Lampert e Holgado Sánchez (2001) afirmam que:

Partindo-se da tese de que toda a atividade humana precisa ser avaliada, a avaliação institucional, produto do capital avançado e do mundo globalizado, deve constituir-se em parte integrante da agenda da universidade. Em direção a esta idéia, Holgado Sánchez e Lampert (2002) assinalam que a necessidade de avaliar as instituições superiores provém de vários fatores, construídos historicamente.

O processo de avaliação tem que ter a participação dos diferentes setores, categorias profissionais, alunado, tanto na discussão e no planejamento como na execução do processo avaliativo. A avaliação, para ter credibilidade e legitimidade, deve ser o resultado de uma construção coletiva de todas as pessoas que integrem a universidade. Portanto, a avaliação é um processo democrático, participativo e construído historicamente.

Entre eles se destacam: a crescente massificação de matrículas, principalmente a partir de 1970, em muitos países do continente africano, australiano, asiático, americano e europeu; o aumento das instituições privadas que oferecem ensino superior, constituindo-se muitas vezes, em estabelecimentos heterogêneas em relação às universidades públicas; os insuficientes recursos destinados às universidades públicas, o que afeta a estrutura administrativa/pedagógica, obrigando a instituição a buscar recursos do setor privado; o aumento das exigências em relação às universidades, em função de um mercado de trabalho mais restrito e competitivo, o que faz com que as instituições sejam competitivas na busca dos escassos recursos do setor produtivo; e, ainda, a adoção da política neoliberal.

A avaliação institucional ocorre em uma entidade viva, que tem sua história composta por seres vivos, heterogêneos e em contínuo processo de crescimento. Constitui-se em uma realidade, subjetivamente construída e compartilhada socialmente pelo grupo. A instituição é o conjunto dos elementos culturais (valores, ideais e símbolos). Por sua vez, os membros da organização têm sua trajetória de vida, experiências, modos de ver e sentir. É imprescindível, tanto na avaliação interna como externa considerar o contexto político, econômico, social, cultural, a história e a missão da instituição, pois cada instituição é única e é necessário levar em conta as dinâmicas e os contextos internos e os externos às instituições.

Diferentes autores, Segenreich (2005), Gatti (2006), Nunes (2006a), Souza (2006) e Ribeiro (2009) en-

Portanto, a avaliação institucional, em sua essência, deve substituir o modelo puramente classificatório, pontual e fragmentado, por uma avaliação mais completa, global, abrangente, integradora,


Repensando a Universidade sistemática, participativa, rigorosa, em que a flexibilidade estará presente. Avaliar, nesta perspectiva, não significa mais inspecionar, controlar, buscar dados parciais, desconexos e pouco confiáveis. Avaliar consiste em analisar, de forma contextualizada, os dados qualitativos e quantitativos, identificando as potencialidades e fragilidades, permitindo conhecer a realidade, dos cursos e da instituição, com o objetivo, se for o caso, de redimensionar ou reforçar o processo. Este olhar crítico, porém não punitivo, tem como objetivo auxiliar a universidade a encontrar a sua missão, de forma dialógica, à luz de caminhos viáveis, dentro do atual contexto político, econômico, social e cultural. Lampert (2008b), no artigo “Avaliação Institucional: qual a ideologia subjacente a este processo na educação superior brasileira?”, salienta que a construção de um sistema de avaliação nacional, de um lado, é indispensável para uniformizar procedimentos, manter a qualidade e a credibilidade no sistema. Por outra perspectiva, a extensão territorial, as peculiaridades regionais, a falta de recursos para a implantação e o acompanhamento, a grande gama, heterogeneidade e diversidade de instituições, são entraves quase intransponíveis. A construção de um sistema avaliativo nacional que contemple todas estas variáveis é um grande desafio, mas também uma perspectiva a ser perseguida. Por fim, deve-se refletir se vale a pena tanta preocupação com o sistema de avaliação nacional, sem que haja uma reversão deste quadro político, econômico, social, cultural caótico, neste país industrializado, corrupto, com enormes disparidades sociais, no qual as políticas públicas, comumente, não são prioridade. A quem mais interessa um sistema nacional de avaliação? Ao capital avançado na aldeia planetária ou à Nação Brasileira, soberana, mas dependente dos países centrais e do mundo globalizado? Algumas considerações finais O Estado tem a obrigação de oferecer o ensino superior, não podendo renunciar ao seu compromisso social. A educação superior, patrimônio da humanidade é um direito do cidadão e não pode ser confundida com um bem de importação ou de exportação, que se adquire. A universidade é uma instituição de ensino superior que deveria preparar o homem para a vida e não pode ser concebida como uma empresa rentável, com fins lucrativos. Para a ideologia neoliberal, o importante é o lucro, a quantidade, os dados estatísticos que impressionam a população. A universidade deve se opor a essa tese e priorizar a qualidade, em todos os níveis de ensino, nas suas investigações, nos pro-

8 jetos, nos programas, nas atividades de extensão e serviços à comunidade. A universidade, para retomar seu status e manterse viva, com utilidade social, científico-tecnológica, de produção e disseminação do conhecimento, deve manter uma estrutura administrativa e pedagógica flexível, em que a consulta e a participação coletiva sejam uma premissa. A autonomia é indispensável para que a universidade consiga atender às demandas de uma sociedade mutante, e a inovação, em todas as dimensões, deve partir da universidade e não dos governos. Há a necessidade de a universidade ajudar na substituição do paradigma da modernidade, voltado exclusivamente para o processo de desenvolvimento, pelo do desenvolvimento humano sustentável, que: coloca os seres humanos no centro do processo; considera o desenvolvimento econômico um meio e não um fim em si; protege as oportunidades de vida das gerações atuais e futuras; e, por último, respeita a integridade dos sistemas de suporte à vida no planeta. Para Guimarães (2006), os seres humanos devem constituir o centro e a razão de ser do processo de desenvolvimento. Nesse sentido, pretende-se que o desenvolvimento seja ambientalmente sustentável, no acesso e uso dos recursos naturais e na preservação da biodiversidade; que seja socialmente sustentável, na redução da pobreza e das desigualdades sociais, promovendo a justiça e a equidade; que seja culturalmente sustentável, na preservação do sistema de valores, práticas e símbolos de identidade que determinam a integração nacional; que seja politicamente sustentável, ao aprofundar a democracia e garantir o acesso e a participação de todos nas tomadas de decisão. Por fim, cabe à universidade contribuir para o desenvolvimento sustentável e melhorar as condições de vida da sociedade como um todo. Por meio de suas funções básicas, deve buscar um equilíbrio entre: ciência e tecnologia; inovação e conservadorismo; formação técnica e humanismo; formação profissional e educação permanente; conhecimento científico e cultura popular; economia e ecologia; medicina e terapias alternativas; globalização e localidade; indivíduo e sociedade; pesquisa e ensino; graduação e pós-graduação; qualidade e quantidade; desenvolvimento e sustentabilidade. Isto tudo, tendo sempre presente que somente por intermédio de uma formação humanizada ter-se-á um homem humano, condição para redimensionar a sociedade.


“Vamos ganhar dinheiro à beça” Farsa e tragédia na política do governo Lula para a Educação Superior.

9 Por José Rodrigues, Professor da UFF

Resumo: O presente artigo analisa criticamente a política de educação superior do governo Lula, particularmente quanto à pós-graduação e, em especial, em relação aos chamados mestrados profissionais. Para tal, analisa a entrevista do presidente da Capes, publicada em 21 de junho de 2009, em O Globo, e a portaria nº. 07/2009, do MEC, que regulamenta o mestrado profissional. Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa (KARL MARX, O 18 Brumário de Luís Bonaparte).

O

empresariamento da educação, em particular da educação superior, não é propriamente novidade no cenário nacional. Tampouco é desconhecido daqueles que acompanham as propostas, os discursos e a política educacional do governo Lula que, pelo menos desde julho de 2004, é francamente favorável à conversão da educação em mercadoria, naquele processo que, em outro momento, denominei de educação-mercadoria e mercadoria-educação (RODRIGUES, 2007). Sobre a natureza da pós-graduação Ao ser questionado, pelo jornalista Demétrio Weber, sobre as supostas diferenças entre o mestrado, dito “acadêmico”, e o mestrado apelidado de “profissional”. Guimarães, há seis anos da Capes, traduz de maneira clara e direta a visão “pragmática” do governo brasileiro sobre a educação superior e o papel da ciência. Segue parte da entrevista:

“Até o momento são duas diferenças básicas: o perfil do candidato e o foco. O mestrado profissional tem um foco específico de resolução de problemas. O acadêmico, não: nesse caso, é preciso fazer levantamento de literatura a respeito, acompanhar o que está acontecendo no mundo etc”. Ora, na verdade, desde pelo menos o século XVIII, a produção sistematizada do conhecimento é voltada para a “resolução de problemas”, como sabe qualquer iniciante do mundo da ciência, seja ele pesquisador júnior, de ensino médio, jovem graduando, em iniciação científica, mestrando ou doutorando. Imediata (pesquisa aplicada) ou mediatamente (pesquisa básica), os pesquisadores contemporâneos procuram respostas às perguntas postas pela humanidade para os problemas. Para construir tais respostas e para que seja evi-

tada qualquer nova tentativa de (re)inventar a roda, toda pesquisa começa – obviamente - pelo “levantamento da literatura a respeito”. Ou seja, antes de começar a pesquisa, é preciso verificar ou “acompanhar o que está acontecendo no mundo” – é a etapa preliminar de qualquer investigação que se pretenda científica. Contudo, como pôde ser verificado pela leitura do trecho acima da entrevista, para o presidente da Capes, esta etapa é praticamente um estorvo à formação de mestres “profissionais”. Talvez devamos concluir que - para Jorge Almeida Guimarães – os pesquisadores em formação nos programas de pós-graduação não se preocupam em resolver problemas, ou melhor, talvez estejam apenas interessados em criar problemas... Talvez ele tenha razão. Pensar, de fato, cria muitos problemas. Criando problemas Como talvez seja sabido, os programas de pósgraduação se expandiram fortemente durante a chamada Ditadura Militar, particularmente, após a chamada Reforma Universitária de 1968 (Lei 5.540/68) e sob os auspícios da Capes. Curiosa e contraditoriamente, pelo menos no campo educacional, a produção científica originada neste contexto logrou analisar precisa e criticamente a política educacional governamental. No que tange à educação superior, a política era voltada ao estabelecimento estrutural de uma dua-lidade na educação superior brasileira. A idéia posta em prática era, relativamente, tão simples quanto perversa. De um lado, existiriam poucas instituições universitárias – públicas e gratuitas voltadas para a formação de quadros superiores, altamente qualificados, para a produção científica e para a extensão. Nestas, em geral, as vagas seriam (e o foram!) ocupadas por estudantes pertencentes às camadas médias da população e também pela própria burguesia. Já, de outro lado, houve a expansão descontrolada (isto é, promovida pelo governo) de instituições de ensino superior (IES) privadas, as quais eram voltadas apenas para o ensino de graduação, em geral


“Vamos ganhar dinheiro à beça”

considerado de baixa qualidade. Não por acaso, as vagas (pagas) de graduação destas IES foram, em grande parte, ocupadas por pessoas oriundas das camadas trabalhadoras. Enfim, a política de educação superior, no período da Ditadura Militar, constitui um sistema de educação superior dual. No que tange à produção teórica, foram realizadas duras e consistentes críticas à base teórica desta política educacional – a chamada teoria do capital humano – que não só sustentou a reforma universitária, mas, também, e principalmente, a política da profissionalização compulsória do 2º grau. Dermeval Saviani corrobora esta visão:

Embora implantada segundo o espírito do projeto militar do “Brasil Grande” e da modernização integradora do país ao capitalismo de mercado associado-dependente, a pós-graduação se constituiu num espaço privilegiado para o incremento da produção científica e, no caso, da educação, também para o desenvolvimento de uma tendência crítica que, embora não predominante, gerou estudos consistentes sobre cuja base foi possível formular a crítica e a denúncia sistemática da pedagogia dominante, alimentando um movimento de contra-ideologia (2005, p.37). Em outras palavras, de maneira contraditória, a crítica à política governamental surgiu dali onde se esperaria, talvez, o seu apoio. A comunidade acadêmica está, hoje, em posição e disposta a dar combate às atuais medidas de subordinação da educação e da produção do conhecimento à lógica mercantil? Ganhar dinheiro à beça ou a política de Estado para a pós-graduação Mas, a respeito de nossas interrogações, Jorge Almeida Guimarães explicita precisamente por que o governo Lula, por intermédio do Ministério da Educação, resolveu “investir” nos chamados mestrados profissionais, transformando-os em alvo de uma “política de Estado”:

Por que o governo tomou a decisão de investir nos mestrados profissionais? GUIMARÃES: Porque há uma demanda enorme. Este ano o ministro (Fernando Haddad) me chamou e disse: “Vamos transformar o mestrado profissional em política de Estado, fazer um modelo diferente.” Batemos o martelo: vamos transformar o mestrado profissional em modelo de indução. Como fica claro em outras passagens da entrevista, a “demanda enorme” provém das instituições de educação superior privadas, ou seja, aquelas cuja principal finalidade é, sem dúvida, o provimento do mercado com a educação-mercadoria.

10 Senão, vejamos: De onde vem a demanda para o mestrado profissional? GUIMARÃES: Sobretudo do segmento privado. Queremos atrair para o sistema as universidades privadas que têm um bom nível. No contexto da pós-graduação acadêmica, 20% das instituições são não públicas. Quando eu comecei (há seis anos atrás), eram 10% e passamos a 20%. Ou seja, não há preconceito, tem que ter qualidade. No mestrado profissional, porém, é meio a meio. E cresce mais no privado. Se há ainda alguma dúvida, cabe, então, transcrever o seguinte trecho, no qual o presidente da Capes responde a Demétrio Weber sobre o funcionamento do “novo modelo”:

O mestrado profissional passa a ser por edital, aberto a todas as áreas que se sintam atraídas. Hoje temos um aplicativo na internet, mas muita gente não fica sabendo. Com a chamada pública, pode ser que um hospital excelente em ortopedia, como este aqui do Distrito Federal (Sarah Kubitschek), diga: “Nós temos cinco doutores nisso e temos dez dos melhores cirurgiões. Vamos montar um mestrado profissional, vamos ganhar dinheiro à beça.” Hoje precisa ser todo mundo doutor. O exemplo dado por Guimarães não é casual. Com efeito, provavelmente, a Associação das Pioneiras Sociais – entidade gestora da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação – é a pioneira na privatização dos serviços públicos. Com efeito, em 1991, pela Lei 8.246, Collor de Mello (tendo à frente do Ministério da Saúde Alceni Guerra) cria um tipo de instituição peculiar, símile às entidades do chamado Sistema S (Senai, Senac, Senat, Sesi, Sesc e Sest), hoje conhecida como OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), ou simplesmente OS. Este tipo de instituição é peculiar porque é herdeira do patrimônio público, financiada pelo poder público, mas administrada privadamente, por meio dos chamados “contratos de gestão”. Para aqueles que acompanham cotidianamente a política estadual do estado do Rio de Janeiro, assim como a municipal carioca, as OS estão na “agenda” destes governos. Com efeito, ambos estão em um célere processo de privatização dos serviços públicos, precisamente por meio da entrega das redes públicas (educação, saúde, cultura) às chamadas OS. “Vamos ganhar dinheiro à beça”. Este é o lema proferido pelo presidente da Capes, que deverá nortear a criação e o funcionamento dos chamados mes-


“Vamos ganhar dinheiro à beça” trados profissionais, onde, para ele, revisão e literatura, pesquisa básica e doutores-pesquisadores é um verdadeiro estorvo. Fechando a entrevista, Jorge Almeida Guimarães dá mais um passo na explicitação cínica, isto é, “pragmática”, do papel do conhecimento na sociedade capitalista, seja ele produzido ou não às expensas das verbas públicas:

O camarada passa um período numa empresa, como consultor. Ele está fazendo mestrado profissional e nem é empregado daquela empresa. Essa consultoria contará (pontos). A empresa vai dizer se valeu a pena. Contará pontos e até pode ser a própria defesa final (em vez de dissertação). Se for assunto de sigilo industrial, pode ser uma defesa sigilosa. Tem que ter um trabalho final, só que o trabalho não precisa ser a tese clássica. Pode ser uma patente, uma consultoria, um conjunto de artigos na imprensa. Esta resposta põe claramente no lugar de mercadoria, o conhecimento: o “sigilo industrial”. Por coerência à lógica mercantil, para proteger o conhecimento, produzido a partir de todo o acervo cultural humano, a “defesa sigilosa” e a patente são itens indispensáveis. De fato, desde a revolução industrial inglesa, em meados do século XVIII, o conhecimento deixou de ser meramente contemplativo, compreensivo, para se converter em aplicação prática, tão-somente. A portaria ministerial de Haddad No dia seguinte à publicação da entrevista de Jorge Almeida Guimarães, efetivamente, foi assinada a portaria ministerial que normatiza o “Mestrado Profissional”, em todo o país. De fato, a portaria confirmou toda a entrevista concedida por Guimarães, ou melhor, a entrevista, que fora publicada em uma edição dominical de um dos maiores jornais brasileiros, funcionou, na verdade, como uma resenha apologética da portaria ministerial. Tal qual a entrevista do presidente da Capes, a portaria do ministro Fernando Haddad é rica em aspectos elucidativos das orientações política, pedagógica e ideológica do governo Lula para a educação superior. Contudo, diante da natureza deste breve texto, optamos por destacar apenas alguns aspectos. Já em seu artigo 1º, a Portaria nº 7/09 anuncia a intenção da Capes em “regular a oferta” dos cursos de mestrado profissional, assim como a sua avaliação. Sobre isto, basta dizer que se, por um lado, os defensores da regulação da vida humana via mercado, em particular na área da educação, justificam suas ações pelas demandas de mercado – como,

11 por exemplo, a criação dos mestrados profissionalizantes -, por outro lado, parecem não confiar, tanto assim, à pródiga “mão invisível mercado” a responsabilidade de condução de seus próprios negócios. Além disso, ameaça-se sempre com a mão pesada da avaliação. Mão esta que, até o momento, tem sido dura com alguns programas de pós-graduação (particularmente com aqueles que vêm resistindo à produção em série de dissertações e teses) e bastante suave com as faculdades de fim-de-semana, com as universidades de faz-de-conta, que, volta e meia, estão presentes nas páginas da imprensa. Na mesma ambivalência, segue o artigo 2º da Portaria Ministerial, que anuncia aos futuros estudantes que se tranqüilizem, pois o Estado irá garantir seus direitos de consumidores: Art. 2º O título de mestre obtidos nos cursos de mestrado profissional reconhecidos e avaliados pela CAPES e credenciados pelo Conselho Nacional de Educação - CNE tem validade nacional e outorga ao seu detentor os mesmos direitos concedidos aos portadores da titulação nos cursos de mestrado acadêmico. Contudo, os aspectos mais ricos em contradições são, sem dúvida, a confrontação, de um lado, dos artigos 3º e 4º - que traçam, respectivamente, a definição e os objetivos do mestrado profissional com o inciso II, do artigo 7º, de outro lado, o qual indica que a duração do curso de mestrado profissional será de, no mínimo, um ano e no máximo, dois anos. Senão, vejamos. Em primeiro lugar, analisando-se, mesmo que rapidamente, os artigos 3º e 4º, ficam claras as intenções do Ministério da Educação para com o novo mestrado profissional: uma preparação técnicocientífica da força de trabalho qualificada em nível superior – calcada nos interesses imediatos do parque produtivo brasileiro. Destacam-se aqui as noções de “inovação”, “competitividade”, “produtividade”: léxico mágico do discurso neodesenvolvimentista aplicado à educação, tomada como o velho capital humano. Art. 3º O mestrado profissional é definido como modalidade de formação pós-graduada stricto sensu que possibilita: I - a capacitação de pessoal para a prática profissional avançada e transformadora de procedimentos e processos aplicados, por meio da incorporação do método científico, habilitando o profissional para atuar em atividades técnico-científicas e de inovação;

II - a formação de profissionais qualificados pela apropriação e aplicação do conhecimento emba-


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“Vamos ganhar dinheiro à beça” sado no rigor metodológico e nos fundamentos científicos; III - a incorporação e atualização permanentes dos avanços da ciência e das tecnologias, bem como a capacitação para aplicar os mesmos, tendo como foco a gestão, a produção técnico-científica na pesquisa aplicada e a proposição de inovações e aperfeiçoamentos tecnológicos para a solução de problemas específicos. (Brasil, Portaria do MEC, nº 7,de 22 de junho de 2009). O artigo supracitado explicita o deslocamento “para cima” da dualidade que marca a educação brasileira, em particular a educação superior. Assim, como hoje temos dois tipos de graduação (a dita tradicional e os atuais cursos superiores de tecnologia)12, a Portaria 07/2009 formaliza a nova dualidade no plano da pós-graduação. Aliás, como já indicara, (RODRIGUES, 2005) este deslocamento “para cima” da dualidade já estava previsto no Decreto 5.154/04. De fato, conforme já havíamos interpretado (RODRIGUES, 2007), só existem duas formas básicas da burguesia - isto é, do capital - encarar a educação escolar: educação-mercadoria ou mercadoriaeducação. Cada uma dessas perspectivas liga-se diretamente à forma como o capital busca a auto valorização, onde cada uma dessas perspectivas são faces de uma mesma moeda, ou seja, formas sob as quais a mercadoria se materializa no campo da formação humana. Note-se que encontramos - ao lado de noções, interesses, objetivos e finalidades do discurso burguês-industrial (na fase da acumulação flexível) – significantes, outrora, situados em outro campo político-semântico. Senão, vejamos o artigo 4º da portaria ministerial: Art. 4º São objetivos do mestrado profissional: I - capacitar profissionais qualificados para o exercício da prática profissional avançada e transformadora de procedimentos, visando atender demandas sociais, organizacionais ou profissionais e do mercado de trabalho; II - transferir conhecimento para a sociedade, atendendo demandas específicas e de arranjos produtivos com vistas ao desenvolvimento nacional, regional ou local; III - promover a articulação integrada da formação profissional com entidades demandantes de naturezas diversas, visando melhorar a eficácia e a eficiência das organizações públicas e privadas por meio da solução de problemas e geração e aplicação de processos de inovação apropriados;

IV - contribuir para agregar competitividade e aumentar a produtividade em empresas, organizações públicas e privadas. Parágrafo único. No caso da área da saúde, qualificam se para o oferecimento do mestrado profissional os programas de residência médica ou multiprofissional devidamente credenciados e que atendam aos requisitos estabelecidos em edital específico. (Brasil, Portaria do MEC, nº 7, de 22 de junho de 2009). Enfim, a educação, as instituições públicas, a produção do conhecimento devem ser guiadas pelos mesmos princípios e interesses que governam as atividades privadas, empresariais. Em outras palavras, há uma sutil metamorfose, de um horizonte democrático-popular (burguês) para o télos economia competitiva, erigido pelo discurso industrial (burguês), na virada do padrão de acumulação fordista para a acumulação flexível. No caso desta portaria, fica claro que, de um lado, os artigos 1º, 3º e 4º procuram garantir a conversibilidade da educação-mercadoria em mercadoriaeducação. Ou seja, de um lado, a portaria acena aos eventuais interessados em adquirir o título de mestre profissional que seus certificados e diplomas terão validade no mercado do trabalho complexo16. De outro lado, indica aos empresários que o produto que estes adquirirão como insumo à produção, terá a qualidade necessária ao seu empreendimento. Em tempos democrático-burgueses, os mecanismos de subordinação da educação e da produção de conhecimento não precisam ser de caráter repressivo policial, isto é, coercitivo. Simplesmente, se convence a comunidade acadêmica que a adoção das regras de mercado, além de inevitável, lhe será útil. Por isso, alguns pesquisadores-empreendedores parecem dizer, durante as reuniões dos colegiados dos programas de pós-graduação: “A Capes somos nós, nossa força e nossa voz”. A política deles e a nossa Faz mais de 150 anos que Marx e Engels, por solicitação dos camaradas da Liga Comunista, escreveram:

Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com o seu cortejo de concepções e idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se des-


mancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens. Talvez nos falte serenidade para encarar as manifestações públicas e desavergonhadas de apreço à mercantilização da educação, do conhecimento, da cultura, da saúde, da vida, enfim. Mas, sem dúvida, não nos falta a certeza que tudo o que um dia foi sagrado, hoje é, contínua e francamente, profanado e imolado no altar do DeusMercado. Em outras, palavras, a burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio seus servidores assalariados (MARX & ENGELs. op.cit. p.42). Ou seja, temos hoje uma política de Estado que tem como pressuposto a apropriação privada do conhecimento produzido coletivamente e financiado por verbas públicas. Efetivamente, devemos encarar serenamente que sob o modo de produção capitalista - a ciência está subjugada à “lei do valor” e que, portanto, só pode existir no movimento contínuo, autoexpansivo, traduzido, por Marx, na fórmula D-M-D’. Ou seja, no capitalismo, a educação, o conhecimento, a saúde, a verdade são meras Mercadorias que só podem existir se entrarem no processo de valorização do Dinheiro inicialmente investido para, unicamente, convertê-lo em mais-D’inheiro. O governo Lula da Silva não se opôs a tal diretriz, ao contrário, vem – sempre que pode – procurando aperfeiçoar as políticas sociais, particularmente a educacional, na direção da lógica mercantil. Esta, portanto, é a política “deles”. Infelizmente, diversos setores da classe trabalhadora (ou não as compreenderam ou) apóiam conscientemente tais políticas. Contra isso, nos cabe seguir fazendo a “nossa” política: utilizar o “pessimismo da inteligência” para analisar e denunciar todas as formas de exploração e dominação perpetradas pela burguesia contra o conjunto da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, nos apoiar no “otimismo da vontade” para dar combate político organizado às ações burguesas e de seus aliados, em todos os espaços sociais. Assim, até que a noite se torne dia, qualquer ciência, educação, cultura ou modo de vida que pretenda confrontar as velhas práticas dominantes, só poderá existir como prática social evanescente: centelha.

A crise mundial

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e seus reflexos na Educação Superior. Por Olgaíses Cabral Maués, Professor da UFPA Resumo: Defendendo a tese de que a atual crise do capital não acabou, ao menos para os trabalhadores, o texto discute as conseqüências derivadas para a educação superior e as tendências observadas nas políticas na área, no Brasil. Entre o final do século XX e o início do século XXI já tivemos pelos menos duas grandes crises no sistema capitalista. A última delas manifestou-se mais agudamente a partir de setembro de 2008, quando o capitalismo, em mais uma das suas crises cíclicas, foi aparentemente empurrado para a crise pelo estouro da “bolha” do mercado imobiliário norteamericano, formada por capital fictício. A necessidade de superação dessa crise estrutural, que trouxe desemprego, crescimento econômico baixo, levou à adoção de medidas que contribuíssem para a recuperação das taxas de lucro e da produtividade do capital. Nesse contexto de instauração de uma nova fase do capitalismo, visando à saída da crise, a educação, sobretudo a superior, é vista por alguns organismos internacionais como um instrumento capaz de contribuir para o cumprimento desse objetivo. O papel do mercado, tão valorizado pelas políticas neoliberais, começa a ser questionado e o Estado ganha proporções salvacionistas, no socorro demandado pelos bancos e pela indústria. Nesse contexto, a importância de se analisar o papel da educação superior, a partir das recomendações internacionais, e da posição brasileira, se faz fundamental, tendo como objetivo identificar os rumos que esse nível de ensino pode tomar a partir dessa “nova” visão redentora dos problemas criados pelo sistema capitalista. É este o escopo do presente artigo que procurará identificar as possíveis mudanças na elaboração das políticas de educação superior, considerando a crise estrutural do capitalismo dos anos 2000. A crise do capital Nos últimos doze meses se tem escrito bastante sobre a crise do capital. Inúmeras análises têm sido feitas procurando explicar as causas e mostrando as possíveis saídas. Por vezes, os menos avisados e perguntam como o fato de alguém não poder saldar suas dívidas com um banco pode afetar o sistema financeiro mundial. Para essas pessoas não há compreensão clara de que o capitalismo


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A crise mundial gera suas próprias crises, tendo em vista que seu objetivo é o aumento constante da taxa de lucro e a acumulação e quando estas não se dão, o problema está posto. Há sempre, nas crises do capital, um problema de superprodução, isso é inerente ao modelo e essa acontece pelo fato de não haver planejamento. Na última crise não foi diferente. Como, hoje, vivemos a mundialização do capital (CHESNAIS, 2009) esse fato, o estouro da “bolha” imobiliária nos Estados Unidos, vai ter repercussões violentas no mundo inteiro. Para esse autor a mundialização “trata-se de um espaço livre de restrições para a operação do capital, para produzir e realizar mais-valias, tomando este espaço como base e processo de centralização de lucros à escala verdadeiramente internacional” (idem, p.3). Marx (2008) apresenta, nos seus escritos, o fato de o capitalismo gerar suas próprias crises como sendo um processo inerente à sua natureza. Esta estaria marcada pelo caráter cíclico do processo de desenvolvimento, alternando fases de prosperidade com outras de depressão, representadas por ciclos parciais ou gerais, quando então se apresentariam as crises, significando estas um colapso de reprodução do sistema. O que Marx quer dizer é que o modo de produção capitalista, que se baseia na acumulação de riqueza por meio da produção da mais-valia, implica a realização da mercadoria via ampliação do consumo. Mas, como o espírito é produzir, sem levar em conta a capacidade de consumo da sociedade, isso acaba gerando a superprodução. Para se recompor, o capital passa a criar o desemprego, a destruição das forças produtivas, o aumento da exploração dos trabalhadores por meio da diminuição do custo do trabalho, com o objetivo de aumentar a mais-valia e, conseqüentemente, a taxa de lucro. Na atual crise, diferentemente daquela que marcou as décadas de 1970 e 1980, não se culpou o Estado, mas se buscou nele o socorro necessário para dela sair. Os Estados injetaram muitos bilhões/trilhões para ajudar os capitalistas a se recuperarem. Os recursos públicos, que poderiam ser aplicados em políticas sociais, foram desviados para os banqueiros e industriais. Com isso há uma diminuição dos recursos, que são finitos, para atender aquilo que deve ser o real papel de um governo, o bemestar social. Os homens de negócio, que, até então, vinham defendo o liberalismo econômico, a partir da crise de 2008 passaram a se posicionar em favor de uma maior participação do Estado na economia. Na hora do lucro, o mercado era o grande regulador, na hora do prejuízo, o setor público é chamado para dividir a conta. Mészaros (2009) denomina

esse fato de nacionalização da bancarrota do capital. Os reflexos da crise ainda estão se processando, apesar de haver já uma manifestação eufórica de que, no caso, o Brasil já haveria superado esse momento. O Ministro da Fazenda, em uma declaração a um órgão da imprensa (Globo Economia, 2009), afirmou que “saímos da crise com a cabeça erguida, não destroçada, como no passado”. Apesar da euforia das autoridades brasileiras, o Correio Brasiliense, de 08 de setembro de 2009, informa que a “América Latina levará 10 anos para reduzir a fome ao nível anterior à crise”. Os números a respeito do assunto são alarmantes. A mesma reportagem do jornal informa que existem 190 milhões de crianças que sofrem de desnutrição crônica na América Latina. Os especialistas da ONU que fizeram o estudo informam que a crise afetou a renda real dos trabalhadores e isso dificulta o acesso ao alimento, em quantidade e qualidade suficientes. Pode ser, pois, que a crise tenha acabado para os banqueiros e os industriais, não para a população assalariada. Os fatos apresentados parecem demonstrar isso. Ou seja, os dados indicam que a crise pode ter acabado, mas, certamente, as suas conseqüências, não! Consideramos que não se tem ainda elementos suficientes que possam nos indicar as conseqüências maiores, que ainda terão efeito na vida dos trabalhadores. Mas sabe-se que os reflexos se farão sentir também sobre o serviço público e, neste, sobre as políticas sociais, que poderão sofrer contingenciamento de recursos, já historicamente insuficientes para fazer face as suas necessidades. Nesse cenário, a educação superior não está imune e o seu papel pode ser alterado de acordo com as exigências que a ela forem feitas, em função da importância que possa representar para a diminuição do impacto da crise sobre o Estado capitalista. A crise e a educação Um comunicado feito pelo secretário geral da OCDE, em setembro de 2009, preconiza mais investimentos na educação superior e diz que “para sair da crise econômica global, é preciso mais do que nunca um maior investimento na educação universitária”. No editorial do documento Regards sur l’éducation. Indicateurs de l’OCDE1, de 2009, cujo título é “Investir em Educação para Retomar a Economia”, a questão da crise é abordada com uma justificativa de que não é possível ainda avaliar o impacto desta


A crise mundial no sistema de educação, mas é apresentado um conjunto de indicadores que poderá ajudar o debate relativo à forma pela qual os investimentos no capital humano podem contribuir para a retomada da economia. O documento, que traz dados dos países membros da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e de alguns países “parceiros”, dentre eles o Brasil, referentes a 2007, ressalta que o nível de formação da população adulta é freqüentemente utilizado como indicador do capital humano, quer dizer do nível de competência da população e da mão de obra. A questão da educação superior (terciária) aparece no documento como sendo a senha para o emprego e para maiores salários. Em uma análise detalhada, o documento informa que as pessoas do sexo masculino titulares de diplomas de nível superior gozam de uma vantagem salarial, que, no caso do Brasil, por exemplo, chega a 100% em relação às pessoas que têm apenas o nível médio (OCDE, 2009, p. 148). Já as mulheres, refletindo a diferença da renda entre os gêneros, têm também uma diferença menor. Apesar desse reconhecimento, e ao contrário do que se poderia deduzir a partir das loas à educação superior, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico não dá ênfase à importância de que os países, por meio dos governos, de fato, invistam na educação superior. Ao contrário, a responsabilização do indivíduo é bem estimulada. “A vantagem pecuniária que proporciona a elevação do nível de formação incita os indivíduos a fazer este investimento para o futuro; retardar a compra de bens de consumo”. É apresentada uma metodologia de análise que considera vários dos investimentos feitos pelo indivíduo, que precisa pagar pelos seus estudos, considerado os custos diretos, as mensalidades escolares, e os custos indiretos, por exemplo, a diminuição de ganhos durante os estudos. A análise demonstra que o rendimento social de uma formação terciária é claramente mais elevado do que aquele de uma formação secundária. A partir daí, conclui o documento, que os indivíduos devam encarregar-se de uma maior parte do investimento material para se qualificarem”. A importância do ensino superior continua sendo analisada no documento Regard sur l’éducation 2009 e uma informação interessante é trazida: o Canadá, a Coréia e os Estados Unidos e, entre os países “parceiros”, Israel, consagram entre 1,8% a 2,9% de seu PIB ao ensino superior e, ademais, estão entre os países nos quais o investimento privado, para esse nível, é o mais elevado (OCDE, 2009).

15 Já o Brasil destina aos estabelecimentos de ensino superior uma parte do PIB que é inferior a média da OCDE (idem, p. 224), e, apesar de destinar à educação básica recursos acima da média dos países que compõem a pesquisa desse organismo, o total fica bem abaixo da média correspondente. Outro dado a ser considerado é a informação de que, entre 2000 e 2006, o Brasil aumentou o número de matrículas em 47% - sem explicitar em qual esfera pública ou privada; em contrapartida, diminuiu o gasto por aluno na ordem de 16%. Além da OCDE, outras manifestações em nível internacional têm se apresentado, destacando a importância do investimento em educação superior. A Conferência Mundial sobre a Educação Superior, ocorrida em julho de 2009 na sede da UNESCO em Paris, cuja temática foi La nueva dinámica de la educación superior y la investigación para el cambio social y el desarrollo ressalta que:

Em nenhum outro momento da história tem sido mais importante que agora o investimento nos estudos superiores, por sua condição de força primordial para a construção de sociedades de conhecimento integradora e diversa para fomentar a investigação e a criatividade. A experiência da década passada demonstrou que a educação e a investigação contribuem para erradicar a pobreza, para fomentar o desenvolvimento, para sustentar e avançar na consecução dos objetivos de desenvolvimento acordados no plano internacional, entre outros. Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) e a Educação para Todos (EPT). Os programas mundiais de educação deveriam refletir estas realidades (UNESCO, 2009, tradução nossa). A Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e Caribe, realizada em 2008, como etapa preparatória à Conferência Mundial de Educação Superior de 2009, coloca a educação superior como um direito humano e um bem público social, devendo os Estados garantirem esse direito. O Plano de Ação decorrente dessa Conferência explicita algumas diretrizes nas quais está presente a necessidade de expansão da educação superior, apontando uma meta de 40% para ser atingida pelos países da América Latina e Caribe, até o ano de 2015. As questões da Avaliação e da Qualidade dessa educação também são apontadas como sendo importantes. Há também explícito, nas diretrizes desse Plano, uma questão voltada aos docentes, indicando a necessidade de esses serem motivados com planos de carreira e salários, enfim, com condições de trabalho para o melhor exercício profissional. Para se preparar para participar da Conferência Mundial, o Brasil, por meio do Conselho Nacional


A crise mundial de Educação, realizou o Fórum Nacional de Educação Superior, cujas ênfases recaíram: na democratização do acesso e na flexibilização dos modelos de formação; na elevação da qualidade e na avaliação; e no compromisso com a inovação. Além das manifestações já detalhadas em outros documentos, o Conselho reiterou a questão da educação como direito social e universal, e como bem público. Não se encontram nos relatos sobre este Fórum posições mais claras sobre a questão da necessidade de maior investimento na educação superior pública. Retornamos às posições apresentadas pela OCDE no documento já mencionado Regard sur l’éducation, 2009, no qual há um destaque significativo sobre a importância, a relevância do papel da educação, inclusive para a saída da atual crise mundial do capital. A partir das afirmações desses organismos internacionais, tanto a OCDE quanto a UNESCO, promotora da Conferência Mundial de 2009, nos indagamos sobre as formas como o Brasil vem se posicionando acerca desse nível de ensino. Os tópicos que compõem este artigo procuram fazer uma análise de algumas políticas de educação superior que estão em curso no país, buscando identificar os caminhos indicados pelo governo brasileiro no sentido de realizar a expansão da educação superior pela via pública. As políticas de educação superior Apesar da propalada importância da educação superior, no Brasil a expansão desse nível de ensino vem sendo feita pela via privada. A reestruturação da educação superior está vinculada a um projeto privatista, cujo aprofundamento se inicia no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e tem continuidade no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). As políticas que serão definidas após a crise de 2008 dificilmente mudarão essa rota, tendo em vista as ações em curso e a defesa desse modelo expansionista que vem se caracterizando pela ampliação de vagas no setor privado, com recursos públicos e, nesses últimos anos, com a intensificação do trabalho docente. Por isso, na minha avaliação, as políticas terão continuidade, pois elas já foram concebidas no sentido de respaldar o capital e de atender aos interesses privados, não havendo necessidade de mudança de rota. Alguns dados extraídos do Censo da Educação Superior 2008 (INEP, 2009) são reveladores e respaldam a avaliação de que o rumo das políticas para educação superior não mudará em conseqüência da crise: existem 2.252 instituições de educação

16 superior, sendo que dessas 236 são públicas e 2.016 privadas. Dessas, apenas 183 são universidades, sendo 97 públicas e 86 privadas Em relação ao número de cursos presencias, a configuração não se modifica, do total de 24.719 cursos, existem 6.772 (27,39%) nas instituições públicas e 17.947 nas instituições privadas (INEP, 2009). De modo ainda mais dramático, aparece a concentração das vagas nos cursos presenciais no setor privado (INEP, 2009): do total de 3 milhões de vagas oferecidas, (precisamente, 2.985.137), mais de 88%, ou seja, 2.641.099, são de IES privadas. Governos, tanto o federal quanto vários estaduais, têm feito propaganda quanto ao esforço em aumentar as vagas públicas. Contudo, de 2007 para 2008, o aumento de vagas públicas correspondeu a apenas 4,5%, pois, se houve acréscimo de 9,3% nas IES federais (IFES), houve crescimento bem menor nas estaduais (IEES) e decréscimo nas municipais (IMES). Como as vagas privadas, apesar de apresentarem mais de 50% de ociosidade, cresceram em 5,9%, portanto acima da expansão das vagas públicas, a desproporção continua se ampliando, a favor da oferta privada. O total de matrículas (INEP, 2009) correspondeu, em 2008, a pouco mais de 5 milhões (5.080.056), tendo crescido 4,1% em relação a 2007; destas, ao redor de um quarto (1.273.965) se encontram no setor público, estando aproximadamente metade destas últimas (643.101) nas IFES, em 2008. Um aspecto grave é que, deste total de matrículas, um terço (ou seja, 1.673.823) se encontra em instituições isoladas, ou seja, faculdades, escolas superiores ou institutos, sem vivência do clima universitário, e, praticamente a totalidade delas, privadas. Nas instituições isoladas apenas 9,2% do corpo docente têm o título de doutor e 63,2% dos professores estão submetidos às condições precarizadas dos contratos por hora-aula. No período de FHC pode-se dizer que a marca da educação superior foi a da privatização. Já no governo Lula, além da continuação da expansão pela via privatista, com programas como o PROUNI, a ampliação do FIES, a ênfase também recai na quebra da fronteira entre público e privado, com repasse de recursos públicos para o setor privado, a mercantilização e o empresariamento, com a transformação da educação de direito público inalienável para o vago conceito um bem público. Em relação à educação superior, a efetivação dessa direção política do atual governo, vem ocorrendo por meio da contra reforma da educação superior, assim chamada pelos movimentos sociais, traduzida, dentre outras medidas: no PL 7.200 de 2006, encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional; no REUNI um Programa de Reestrutura-


A crise mundial ção e Expansão das Instituições Federais de Educação Superior, cujos objetivos são de expandir o número de matrículas, sem garantia de financiamento compatível; nas Parcerias Público-Privadas, que tornaram as universidades heterônomas; pela proposta de desestruturação da carreira dos docentes. É preciso salientar, que entre outros problemas, o REUNI foi responsável pela introdução do contrato de gestão, orientado por metas numéricas, nas IFES, totalmente estranho ao verdadeiro fazer acadêmico. No caso do PL 7.200 de 2006, a concepção de educação superior como “bem público”, e que tem uma “função social”, (art.3º.) está presente no documento. Essa linguagem parece estar bem nos moldes preconizados por Bresser Pereira (1997), quando afirma que é:

Público aquilo que está voltado para o interesse geral [...] está claro que o público não pode ser limitado ao estatal [...] e que associações não voltadas para a defesa de interesses corporativos, mas para o interesse geral não podem ser consideradas privadas. Assim, as instituições particulares, em especial, aquelas ditas sem fins lucrativos são consideradas públicas, nessa acepção, e, como tal, podem receber recursos públicos. Outro aspecto que merece destaque na contra reforma e está explicitado no referido Projeto de Lei é a possibilidade de a educação superior poder ter como sócio o capital estrangeiro, na ordem de 30%. Embora, na legislação atual, não haja referência alguma a esta possibilidade, configurando uma insegurança jurídica, estaria, então, aberto em definitivo esse nível de ensino para a especulação internacional, numa resposta às recomendações e decisões da Organização Mundial de Comércio (OMC), portanto dentro de um projeto político do capital. Além do envio de uma proposta de lei ao Congresso Nacional, o governo federal tem legislado por meio de Decretos, com destaque ao conjunto baixado em abril de 2007, dentre eles o de número 6.096 que cria o já citado Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), cujos objetivos centrais são: aumentar a relação do número de alunos por professor; e elevar para 90% a taxa média de conclusão de curso. Na lógica do Decreto, esses dois objetivos redundariam em considerável aumento das vagas e matrículas, na medida em que seria aumentado o número de alunos em sala de aula, ao mesmo tempo em que haveria aumento do número de alunos concluintes, permitindo com isso que novas vagas pudessem ser ofertadas no vestibular.

17 Em relação a esses dois principais objetivos do REUNI, os dados do Censo da Educação Superior 2008 (INEP, 2009) também nos ajudam na análise. As Instituições Federais de Educação Superior (IFES) apresentaram, em 2008, uma taxa de 67% de concluintes, o que significa um índice muito próximo ao alcançado pela maioria dos países da OCDE, diferentemente das Instituições Privadas, que obtém a taxa de 55,3%. Ao ampliarmos essa análise para o indicador relativo às vagas ociosas, a situação é ainda mais significativa: o número de vagas ociosas nas Universidades Federais foi de 7.387 enquanto que nas instituições privadas foi de 1.442.593 (INEP, 2009, p. 17). Relativamente ao outro objetivo do REUNI, que é o aumento do número médio de alunos por professor, o censo relativo ao ano de 2008 informa que, sobre a totalidade do ensino superior, esse índice é de 15, 8, sendo, contudo, composto a partir do índice de 10,4 para as IFES e 18,2 para as IES privadas. Conhecendo-se a realidade do trabalho do professor nestas últimas, com classes de até 120 alunos, será esta a condição pretendida também para a maioria das IFES? Esclareça-se que a metodologia adotada no Censo utiliza a relação alunos por função docente, o que significa que o mesmo professor pode ser computado mais de uma vez, na medida em que trabalhe em mais de um lugar. Levando em conta que, nas instituições públicas federais, além das aulas, com, já hoje, cerca de 50 alunos na classe e dos cerca de 10 orientandos, incluindo Iniciação Científica, orientandos de Cursos de Mestrado e Doutorado, que cada docente atende, ele executa, diuturnamente, outras tarefas de pesquisa, extensão e administração, o professor certamente está sobrecarregado, mesmo nas condições atuais. Destaque-se que para a efetivação do cálculo, além dos aspectos já citados, deveriam, pois, ser computados outros, tais como as horas dedicadas a atividades de pesquisa, extensão, administração, participação em comissões, que as metas do REUNI não consideram. Outro grande prejuízo ao futuro das IFES é que os estudantes de pós-graduação não são em princípio, considerados no cômputo da meta do REUNI, sendo aquinhoadas com um “desconto” basicamente apenas aquelas universidades com programas de doutorado consolidados pela avaliação Capes (notas 6 e 7). Em decorrência, esses objetivos do REUNI representam dois grandes problemas: 1. a intensificação do trabalho docente, com o aumento das atividades, mais turmas por professor, salas mais cheias, maior demanda sobre o docente, ocasionando o que os estudos já vêm comprovando o chamado “mal estar docente” - depressão,


A crise mundial stress, problemas de voz; distúrbios mentais e outros males; 2. prejuízos à qualidade do ensino. Com a obrigatoriedade de que haja 90% de concluintes, possivelmente, estará instituída, também no nível superior, a “promoção automática”. Isso já ocorreu na Educação Básica e sabemos quais foram os resultados: estudantes na quinta-série sem saber ler; pessoas entrando na educação superior sem saber redigir, com problemas de ortografia, pontuação; sem ordenamento lógico das idéias, dentre outros. Ao analisar o Acordo de Metas no. 010, celebrado entre o MEC e a Universidade Federal do Pará, “para os fins que especifica o Decreto 6.096 de 2007”, pode-se já constatar a questão da intensificação do trabalho do professor. Com referência à matrícula, o referido Acordo indica, entre os anos de 2007 a 2012, um crescimento de 61%3. Em relação ao aumento no número de professores, no mesmo período, constatasse que este será de apenas 28,8%4 (ADUFPA, 2009). Ao cruzarmos os dados, pode-se constatar que o número de matrículas crescerá quase três vezes mais do que o número de professores. Ora, isso é um forte indicador da sobrecarga docente, que ocorrerá na medida em que a UFPA terá um crescimento vertiginoso de alunos, sem o correspondente número de professores. O trabalho do professor já está precarizado e flexibilizado, sobretudo para aqueles que atuam nos Programas de Pós-Graduação. A intensificação do regime de trabalho, em função, tanto da diminuição numérica do corpo docente, por falta de concursos, quanto do aumento da carga horária real em classe e extra classe, além da ampliação da natureza das atividades que esses profissionais passam a desenvolver a partir de uma nova lógica gerencialista, são alguns dos aspectos que caracterizam essa “tendência”, presente hoje das Universidades Federais e que poderá se aprofundar com a implantação do REUNI, tendo em vista o Acordo de Metas que as IFES firmaram com o MEC. O não cumprimento do Acordo significará o não repasse de verbas, como é caracterizado em um contrato de gestão. O objetivo de trazer à discussão, novamente, o REUNI está ligado ao fato de que o governo federal está sinalizando às Universidades Federais que, em 2010, haverá uma repactuação das metas, o que trará a questão novamente à tona. Sabe-se do processo tumultuado pelo qual se deu a aprovação do REUNI nos Conselhos Superiores, na grande maioria das Instituições Federais de Educação Superior. O outro ponto levantado na análise do REUNI, diz respeito à qualidade do ensino. Ora, as exigências de um índice muito alto, 90%, de conclusão

18 de curso podem ter uma influência nefasta sobre a qualidade do ensino, na medida em que os professores serão pressionados a atingir a meta, para que a instituição possa obter os recursos financeiros vinculados. Com as turmas lotadas (o aumento da matrícula, sem o correspondente aumento do corpo docente, como já demonstrado), a exigência de aprovação poderá se tornar um fator decisivo para o aligeiramento, a flexibilização do ensino e a conseqüente perda da qualidade necessária para que se forme um cidadão e um profissional que venha atender as demandas da sociedade. O objetivo, nesse texto, é dar destaque àquelas políticas que mais diretamente poderiam, na lógica governista, estar contribuindo para a expansão da educação superior e, assim, para a lógica explicitada pela OCDE de que o investimento nesse nível de ensino poderá ajudar os países a superarem a crise. O Brasil tem um atraso histórico em relação à educação superior, representado tanto pela implantação tardia desse nível de ensino no país, quanto pela baixa oferta pública de vagas, o que fez com que, no início do século XXI, se tenha cerca de 24% de matrícula líquida (jovens de 19 a 24 anos). Em função desse índice, que destoa da grande maioria dos países da América Latina, o governo federal vem estimulando a oferta de cursos de graduação à distância (por Ensino à Distância – EAD). Os dados do Censo 2008 indicam que houve um crescimento significativo da matrícula nesses cursos. Em 2008, o número de matrículas nessa modalidade de ensino foi de 727.961. Nas instituições públicas foram 278.988 (55.218 nas IFES; 219.940 nas Instituições Estaduais e apenas 3.830 nas Municipais). Já nas Instituições Privadas o número de matrículas nesse período foi de 448.973, ou seja, 61,67% do total. Como diferença mais notável, em relação ao ensino presencial, pode-se notar a relação muito baixa, 0,41, entre candidatos e vagas (INEP, 2009). Assim, das 1,7 milhões de vagas em EAD oferecidas, menos de um quarto (430.259) corresponderam, efetivamente, a ingressos. A matrícula no EaD já representa 14,3% do total das matrículas globais da graduação. Chamamos a atenção de que o número de matrículas via ensino à distância quase duplicou entre o ano de 2007 e 2008, continuando a ampliação, praticamente exponencial, iniciada em 2004 (INEP, 2009, p. 30), o mesmo não ocorrendo com a educação presencial. O barateamento dos custos, a pouca exigência de professores qualificados, os currículos enxutos, em particular via EAD, estão despontando como mais uma política de expansão sem a devida qualidade. Finalizando


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A crise mundial A crise de 2008 serviu para desvelar o papel do mercado e do Estado frente aos interesses do capital e desmistificar o discurso neoliberal. A avaliação que se faz é que, sem uma mobilização forte e consciente da sociedade civil, à frente professores e estudantes, ela vai trazer um aprofundamento ainda maior da transferência de recursos públicos para o setor privado, uma diminuição dos recursos para a educação superior (hoje parada no patamar de menos de 1% do PIB), a flexibilização dos direitos trabalhistas, e, em especial nas universidades, a intensificação do trabalho docente e o aligeiramento da qualidade da educação. O ANDES-SN, em reunião de diretoria ocorrida em setembro de 2009, se manifestou a respeito da conjuntura mundial e nacional e explicitou a posição da entidade em relação ao assunto, ratificando que o governo Lula, consoante com a perspectiva do capital, de negação da educação como direito inalienável dos indivíduos, mantém um projeto político, que tem se manifestado por meio de leis, portarias, decretos, e vem, de fato, caracterizando a reforma fatiada da educação superior. O Sindicato continua na luta, no sentido da resistência e da mobilização do conjunto da categoria docente, para realizar articulações com os demais protagonistas da educação superior, técnicos administrativos e estudantes, além da sociedade civil, para, de forma organizada, conseguir modificar o atual quadro político.

Apesar das recomendações emanadas da OCDE, da UNESCO, das Conferências Regionais, não se têm indicações quanto à vontade política efetiva para o aumento de recursos, de forma mais impactante para a educação superior, visando à melhor remuneração dos profissionais que atuam nesse nível de ensino e à adequação da infra-estrutura para acomodar, com qualidade, o aumento do número de vagas ofertadas pelas Instituições Federais de Ensino. O que se pode perceber, é que, como na década de 1990, a expansão das vagas para a educação superior continua sendo implementada majoritariamente pela iniciativa privada e, dentro dessa, em grande parte por meio das Faculdades e com um corpo docente sem a qualificação em nível de doutoramento. A alteração dessa situação, na atual conjuntura, não se dará sem o protagonismo dos movimentos organizados. O Sindicato dos Docentes da Educação Superior ANDES-SN tem um importante papel a desempenhar nessa conjuntura de mais uma crise do capitalismo, lutando por uma educação que possa estar a serviço da transformação social.

vo i t e l o C

Twitter: @levantenacional Blog: coletivolevante.wordpress.com


Organizando para a transição anti-capitalista Por David Harvey. A história geográfica do desenvolvimento capitalista está em um ponto de inflexão no qual as configurações geográficas de poder estão rapidamente mudando, ao mesmo tempo em que a dinâmica temporal está enfrentando sérias restrições. 3% de crescimento composto (geralmente considerada a taxa mínima aceitável para uma economia saudável) está se tornando cada vez menos possível de sustentar sem recorrer a toda sorte de ficções (como aquelas que caracterizaram os mercados de ações e negócios financeiros nas últimas duas décadas). Há razões para crer que não existe alternativa para a nova ordem mundial de governança, que eventualmente terá que administrar a transição para uma economia com crescimento zero. Se isto precisa ser feito de maneira equitativa, então não há alternativas que não o socialismo ou o comunismo. Desde o fim dos anos 1990, o Fórum Social Mundial tornou-se o centro de articulação do tema “um outro mundo é possível”. E agora deve assumir a tarefa de definir como um outro socialismo ou comunismo são possíveis e como a transição para estas alternativas deve ser realizada. A atual crise oferece uma oportunidade de reflexão a respeito do que pode estar envolvido. A crise atual foi originada nas medidas tomadas para resolver a crise dos anos 1970. Estas medidas incluem: (a) o bem sucedido ataque ao trabalho organizado e suas instituições políticas enquanto mobilizavam o excedente da mão de obra global, instituindo mudanças tecnológicas para economizar mão de obra e aumentando a competição. O resultado foi a diminuição dos salários em nível global (uma parcela em declínio dos salários no total do produto interno bruto em quase toda parte) e a criação de uma reserva de trabalho descartável ainda mais vasta vivendo em condições marginalizadas. (b) o enfraquecimento das estruturas prévias de monopólio de poder e a substituição do estágio anterior (Estado nação) de monopólio capitalista ao abrir o capitalismo para uma competição internacional muito mais feroz. A intensificação da competição global traduziu-se em lucros corporativos não-financeiros mais baixos. O desenvolvimento geográfico desigual e a competição interterritorial tornaram-se peças chave no desenvolvimento capitalista, abrindo caminho em direção a uma mudança hegemônica de poder particularmente, mas não exclusivamente, na Ásia.

20 (c) a utilização e o empoderamento das formas mais fluidas e altamente voláteis de capital – dinheiro – para realocar globalmente recursos de capital (eventualmente através dos mercados eletrônicos) incentivando assim a desindustrialização em regiões fundamentais tradicionalmente e novas formas de (ultra opressiva) industrialização e extração de recursos naturais e matéria prima agrícola em mercados emergentes. A proposta era melhorar o potencial lucrativo das corporações financeiras e encontrar novas maneiras de globalizar e supostamente absorver riscos através da criação de mercados de capital fictícios. (d) No outro extremo da escala social, isso significou uma maior credibilidade do “acúmulo por espoliação”, como meio de aumentar o poder da classe capitalista. Os novos ciclos de acumulação primitiva contrários às populações indígenas e camponesas foram intensificados por perdas patrimoniais das classes mais baixas nas economias centrais (como testemunhado pelo mercado imobiliário sub-prime nos EUA que impingiu uma perda enorme de ativos particularmente por parte das populações de afroamericanos. (e) O aumento da demanda efetiva, anteriormente flácida, ao pressionar a economia da dívida (governamental, empresarial e doméstica) até o seu limite (especialmente no EUA e no Reino Unido, mas também em muitos outros países da Letônia a Dubai). (f) A compensação pelas anêmicas taxas de retorno da produção com a construção de toda uma série de bolhas no mercado de ativos, que tiveram um caráter Ponzi, culminando na bolha imobiliária que estourou em 2007-8. Essas bolhas de ativos apoiaram-se no capital financeiro e foram facilitadas por grandes inovações financeiras tais como os derivativos e as “obrigações de dívida colateralizada”, também conhecidas como “obrigações de dívida com garantia”. As forças políticas que se uniram na mobilização por trás dessas transições tinham um caráter de classe distinto e vestiram-se com as roupas de uma ideologia distinta chamada neoliberal. A ideologia repousava sobre a idéia de que os mercados livres, o livre comércio, a iniciativa pessoal e o empreendedorismo eram os melhores fiadores da liberdade individual e da liberdade como um todo, e que o “Estado-babá” deve ser destruído para o benefício de todos. Os interesses do povo eram secundários em relação aos interesses do capital, e na eventualidade de um conflito entre eles os interesses do povo teriam que ser sacrificados. O sistema criado equivale a uma verdadeira forma de comunismo para a classe capitalista. Estas condições variaram consideravelmente, como era de se esperar, dependendo de qual parte do mundo a pessoa morasse, das relações de classe lá predominantes, das tradições políticas e


Transição anti-capitalista culturais e de como o equilíbrio de poder políticoeconômico estivesse se movendo. Então, como poderá a esquerda negociar a dinâmica desta crise? Em tempos de crise, a irracionalidade do capitalismo torna-se clara para todos. Excedentes de capital e de trabalho existem lado a lado sem uma forma clara de uni-los em meio a um enorme sofrimento humano e necessidades não satisfeitas. Em pleno verão de 2009, um terço dos bens de capital nos Estados Unidos permaneceu inativo, enquanto cerca de 17 por cento da força de trabalho estava desempregada, trabalhando involuntariamente em regimes de meio período ou era formada por trabalhadores “desencorajados”. O que poderia ser mais absurdo que isso! Seria o capitalismo capaz de sobreviver ao presente trauma? Sim. Mas a que custo? Esta pergunta encobre outra. Poderia a classe capitalista reproduzir seu poder face ao conjunto de problemas econômicos, sociais, políticos e geopolíticos e dificuldades ambientais? Novamente, a resposta é um sonoro “sim”, mas a massa terá de entregar os frutos do seu trabalho para quem está no poder, ceder muitos dos seus direitos e ativos (de todos os tipos desde habitação à previdência) e sofrer degradações ambientais em abundância, sem falar nas sérias reduções em seus padrões de vida, o que significa a fome para muitos daqueles que já lutam para sobreviver no fundo do poço. As desigualdades de classe aumentarão (de novo). Estas questões podem exigir mais do simplesmente um pouco de repressão política, violência policial e controle militarizado do Estado para reprimir a desordem. Uma vez que boa parte destes fenômenos é imprevisível e os espaços da economia global são tão variáveis, as incertezas quanto aos resultados são intensificadas em períodos de crise. Todos os tipos de possibilidades localizadas surgem para que os novos capitalistas em algum espaço novo aproveitem as oportunidades para desafiar os mais antigos e as hegemonias territoriais (como quando o Silicon Valley susbstituiu Detroit a partir dos anos 1970 nos Estados Unidos) ou para que os movimentos radicais desafiem a reprodução de um poder de classe já desestabilizado. Dizer que a classe capitalista e o capitalismo podem sobreviver não quer dizer que eles estão predestinados a isso nem que seu caráter futuro está determinado. As crises são momentos de paradoxo e possibilidades. Então, o que vai acontecer desta vez? Se quisermos voltar para o crescimento de três por cento teremos encontrar novas e lucrativas oportunidades de investimento global para US$1,6 trilhão em 2010 subindo para perto de US$ 3 trilhões em 2030. Isto contrasta com o investimento de 0,15 trilhão de dólares necessários em novos investimentos em 1950 e 0,42 trilhão de dólares necessários

21 em 1973 (os valores em dólar foram reajustados de acordo com a inflação). Problemas reais para se encontrar saídas adequadas para o capital excedente começaram a aparecer depois de 1980, mesmo com a abertura da China e o colapso do bloco soviético. As dificuldades foram, em parte, resolvidas pela criação de mercados fictícios onde a especulação dos valores dos ativos poderia decolar sem impedimentos. Para onde irá todo esse investimento agora? Deixando de lado as restrições indiscutíveis nas relações com a natureza (o aquecimento global sendo de suma importância), as outras potenciais barreiras para a demanda efetiva no mercado, para as tecnologias e para a distribuição geográfica/ geopolítica serão provavelmente profundas, mesmo supondo, o que é improvável, que nenhuma oposição ativa séria para o contínuo acúmulo de capital e posterior consolidação do poder de classe se materialize. Que espaços são deixados na economia global para novas correções espaciais para absorção do excedente de capital? A China e o antigo bloco soviético já foram integrados. Sul e Sudeste Asiático estão se abastecendo rapidamente. África ainda não está totalmente integrada, mas não há nenhum outro local com capacidade para absorver todo este capital excedente. Que novas linhas de produção podem ser abertas para absorver o crescimento? Pode não haver soluções capitalistas eficazes a longo prazo (além da volta às manipulações fictícias de capital) para esta crise do capitalismo. Em algum ponto, as mudanças quantitativas levarão às mudanças qualitativas e precisamos levar a sério a idéia de que estejamos exatamente neste ponto de inflexão na história do capitalismo. O questionamento a respeito do futuro do próprio capitalismo como um sistema social adequado deve, portanto, estar na vanguarda do atual debate. No entanto, parece haver pouco apetite para tal discussão, mesmo entre a esquerda. Em vez disso, continuamos a ouvir os mantras convencionais de sempre sobre o potencial de perfeição da humanidade com a ajuda dos mercados livres e do livre comércio, da propriedade privada e da responsabilidade pessoal, dos impostos baixos e do envolvimento minimalista do Estado na provisão social, ainda que tudo isso soe cada vez mais vazio. Uma crise de legitimidade se avizinha. Mas as crises de legitimação normalmente se desdobram em um ritmo diferente do ritmo dos mercados de ações. Passaram-se, por exemplo, três ou quatro anos antes que o crash da bolsa em 1929 produzisse o movimento social massivo (tanto o progressista quanto o fascista) depois de 1932. A intensidade da atual busca do poder político por meios para sair da atual crise pode ter algo a ver com o medo político de iminente ilegitimidade. Os últimos trinta anos, no entanto, assistiram ao surgimento


Transição anti-capitalista de sistemas de governança que parecem imunes a problemas de legitimidade e despreocupados, até mesmo com a criação de consentimento. A mistura de autoritarismo, corrupção monetária da democracia representativa, a vigilância, o policiamento e a militarização (particularmente através da guerra contra o terror), controle de mídia e produção sugere um mundo no qual o controle dos descontentes através da desinformação, fragmentação de oposições e da concepção de culturas de oposição através da promoção de ONGs tende a prevalecer com muita força coercitiva para apoiálo, se necessário. A idéia de que a crise teve origem sistêmica é pouco debatida na mídia prevalente (mesmo que alguns economistas como Stiglitz, Krugman e até Jeffrey Sachs para tentar roubar a cena histórica da esquerda, confessem uma epifania ou outra). A maioria dos movimentos governamentais para conter a crise na América do Norte e Europa levou a perpetuação da situação de sempre que se traduz em apoio à classe capitalista. O “risco moral” que foi o estopim para os fracassos financeiros está ultrapassando novos limites nos resgates a bancos. As práticas atuais do neoliberalismo (ao contrário de sua teoria utópica) sempre implicaram claro apoio para o capital financeiro e para as elites capitalistas (geralmente com base na teoria de que as instituições financeiras devem ser protegidas a todo custo e que é dever do poder do Estado criar um clima agradável para os negócios, o que resultaria em um maior lucro). Fundamentalmente, nada mudou. Tais práticas são justificadas pelo apelo à proposição duvidosa de que uma “maré crescente” do empreendimento capitalista “levantaria todos os barcos”, ou seja, que os benefícios do crescimento composto traria, como em um passe de mágica, benefícios à toda população (o que nunca acontece, exceto sob a forma de alguns migalhas caídas das mesas dos mais abastados). Então, como a classe capitalista sairá da atual crise e em quanto tempo? O recuo dos valores nos mercados acionários de Xangai, Tóquio, Frankfurt, Londres e Nova York é um bom sinal é o que nos dizem, mesmo que o desemprego por toda parte continue a aumentar. Mas notem o viés de classe dessa medida. Somos intimados a regozijar-nos com a recuperação dos valores das ações para os capitalistas, porque esta sempre precede, dizem, uma repercussão na economia “real”, onde os postos de trabalho são criados e os salários pagos. O fato de que a recuperação do último recuo das ações nos Estados Unidos após 2002 revelou-se uma “recuperação de desempregados” parece já ter sido esquecido. O público anglo-saxão, em particular, parece ser seriamente atingido por essa amnésia. Ele esquece e perdoa com grande facilidade as transgressões da classe capitalista e os desastres periódicos que suas ações precipitam. A mídia capitalista tem o prazer de promover essa amnésia. China e Índia ainda estão crescendo, o primeiro

22 aos trancos e barrancos. Mas no caso da China, o custo equivale a uma enorme expansão dos empréstimos bancários em projetos de risco (os bancos chineses não foram apanhados no frenesi especulativo global, mas agora estão dando continuidade a este movimento). O superacúmulo da capacidade produtiva, que promove investimentos em infraestrutura graduais e de longo prazo, cuja produtividade não será conhecida por vários anos está crescendo (inclusive nos mercados imobiliários urbanos). E a crescente demanda da China está envolvendo também essas economias fornecedoras de matérias-primas, como a Austrália e o Chile. A probabilidade de um choque subseqüente na China não pode ser descartada, mas pode levar algum tempo para sabermos (uma versão de longo prazo de Dubai). Enquanto isso, o epicentro mundial do capitalismo acelera seu deslocamento primordialmente para o leste da Ásia. Nos centros financeiros mais antigos, os jovens tubarões financeiros pegaram seus bônus do ano anterior e, conjuntamente, abriram pequenas instituições financeiras para continuarem a circular em Wall Street e City of London, peneirando os restos deixados pelos gigantes financeiros de outrora e recolhendo as partes suculentas para recomeçarem tudo novamente. Os bancos de investimento que permanecem nos EUA – Goldman Sachs e JPMorgan – embora reencarnados como holdin-gs bancários, ganharam isenção de requisitos regulamentares e estão conseguindo lucros enormes ao especularem perigosamente com o dinheiro de contribuintes em mercados derivativos ainda não regulamentados e em plena expansão. A alavancagem que nos levou à crise retornou como se nada tivesse acontecido. Inovações em matéria de finanças usadas como novas formas de empacotar e vender dívidas de capital fictício estão sendo reinventadas e oferecidas às instituições (como os fundos de pensão), desesperados por encontrar novos mercados para o capital excedente. As ficções (assim como os bônus) estão de volta! Os consórcios estão comprando propriedades cujo direito de resgate à hipoteca encontra-se anulado esperando que o mercado mude seu rumo antes de cancelá-los definitivamente ou ainda guardando propriedades de alto valor para um futuro momento de volta ao desenvolvimento ativo. Os bancos normais estão estocando dinheiro, boa parte colhida em cofres públicos, também com a intenção de voltar ao pagamento de bônus compatíveis com o estilo de vida que levavam anteriormente, enquanto um conjunto de empresários paira ao seu redor à espera de aproveitar este momento, apoiados por uma enxurrada de dinheiro público. Enquanto isso, o poder do dinheiro exercido por poucos prejudica todas as formas de governança democrática. Os lobbies farmacêutico, de seguro


Transição anti-capitalista de saúde e de hospitais, por exemplo, gastou mais de US $ 133 milhões no primeiro trimestre de 2009 para se certificar que as coisas sairiam como eles querem na reforma da saúde nos Estados Unidos. Max Baucus, chefe do comitê de Finanças do Senado, que formulou o projeto de lei referente aos serviços de saúde recebeu US $ 1,5 milhões por um projeto de lei que oferece um vasto número de novos clientes para as companhias de seguros, com poucas proteções contra a exploração cruel e o lucro excessivo (Wall Street está encantada). Outro ciclo eleitoral, legalmente corrompido pelo imenso poder do dinheiro, logo se avizinhará. Nos Estados Unidos, os partidos de “K Street” e de Wall Street serão devidamente re-eleitos enquanto trabalhadores americanos são exortados a encontrar uma saída para a confusão que a classe dominante criou. Nós já estivemos em situação igualmente precária antes, e em todas as vezes os trabalhadores norte-americanos arregaçaram as mangas, apertaram os cintos, e salvaram o sistema de algum mecanismo misterioso de auto-destruição, pelo qual a classe dominante se exime de qualquer responsabilidade. Se este é o esboço da estratégia de saída, então quase certamente estaremos em outra confusão antes de cinco anos. Quanto mais rápido sairmos desta crise e quanto menos capital excedente for destruído agora, menor será o espaço para revivermos o crescimento ativo a longo prazo. A perda de valor dos ativos nesta conjuntura (meados de 2009) é, fomos informados pelo FMI, pelo menos de US $ 55 trilhões, o que equivale a praticamente toda produção anual mundial de bens e serviços. Já estamos de volta aos níveis de produção de 1989. Podemos estar frente a perdas de US$400 trilhões ou mais antes do fim. De fato, em um surpreendente cálculo feito recente, sugeriu-se que os EUA estavam em maus lençóis por terem que garantir sozinhos mais de US $ 200 trilhões em valor de ativos. A probabilidade de que todos os ativos estejam “podres” é mínima, mas a idéia de que muitos deles possam estar é bastante realista. Só para dar um exemplo concreto: Fannie Mae e Freddie Mac, agora resgatadas pelo Governo dos EUA, têm ou ofereceram garantia para mais de US$5 trilhões em empréstimos de habitação, muitos dos quais estão com profundas dificuldades (perdas de mais de US$150 bilhões foram registradas apenas em 2008). Então, quais são as alternativas? Há tempos o sonho de muitos no mundo é que uma alternativa para a ir(racionalidade) capitalista possa ser definida e concluída racionalmente por meio da mobilização das paixões humanas, na busca coletiva de uma vida melhor para todos. Estas alternativas – historicamente chamadas socialismo ou comunismo – foram tentadas em diferentes épocas e lugares. Antigamente, como em 1930, a visão de um ou outro deles funcionava como um farol de es-

23 perança. Mas nos últimos tempos ambos têm perdido seu brilho, ignorados, não apenas por conta do fracasso das experiências históricas com o comunismo em cumprir suas promessas e a propensão dos regimes comunistas para encobrir os erros cometidos pela repressão, mas também por causa de seus pressupostos supostamente falhos sobre a natureza humana e do potencial de perfeição da personalidade humana e das instituições humanas. A diferença entre o socialismo e o comunismo é digna de nota. O Socialismo visa democraticamente gerir e regular o capitalismo de modo a acalmar seus excessos e redistribuir seus benefícios para o bem comum. Trata-se de espalhar a riqueza através de acordos em torno de uma tributação progressiva, enquanto as necessidades básicas – como educação, saúde e até mesmo de habitação – são fornecidas pelo Estado, fora do alcance das forças de mercado. Muitas das principais conquistas do socialismo redistributivo no período após 1945 não só na Europa, mas em outros locais, tornaram-se tão socialmente incorporadas que estão praticamente imunes ao ataque neoliberal. Mesmo nos Estados Unidos, a seguridade social e o Medicare são programas extremamente populares que as forças de direita encontram enorme dificuldade para exterminar. Os Thatcheristas na Grã-Bretanha não puderam encostar em nada que dissesse respeito à saúde nacional, exceto marginalmente. As provisões sociais na Escandinávia e na maior parte da Europa Ocidental parecem ser uma camada indestrutível da ordem social. O comunismo, por outro lado, pretende deslocar o capitalismo através da criação de um modo completamente diferente da produção e distribuição de bens e serviços. Na história do comunismo realmente levado a cabo, o controle social sobre a produção, troca e distribuição significava controle estatal e planejamento estatal sistemático. No longo prazo, estas medidas se mostraram mal sucedidas, porém, curiosamente, sua conversão na China (e sua adoção anteriormente em locais como Singapura) tem se mostrado muito mais bem sucedida do que o modelo neoliberal puro na geração de crescimento capitalista, por tantas razões que não poderiam ser desenvolvidas neste texto. Tentativas contemporâneas de reviver a hipótese comunista tipicamente evitam o controle estatal e procuram outras formas de organização social coletiva para suplantar as forças do mercado e a acumulação de capital como base para organizar a produção e distribuição. Em rede horizontal, ao contrário dos sistemas de coordenação comandados hierarquicamente entre coletivos de produtores e consumidores autonomamente organizados e autogovernados estão previstas no cerne de uma nova forma de comunismo. Tecnologias contemporâneas de comunicação fazem um sistema como este parecer viável. Podem ser encontrados por todo o mundo experiências de pequena escala


Transição anti-capitalista em que tais formas econômicas e políticas estão sendo construídas. Há nisto uma convergência de algum tipo entre as tradições marxista e anarquista que remonta à situação amplamente colaborativa entre elas na década de 1860, na Europa. Ainda que não tenhamos certeza é possível que 2009 marque o início de uma prolongada reviravolta em que a questão ao redor de alternativas ao capitalismo que sejam grandiosas e de longo alcance irão passo a passo borbulhar até a superfície em uma parte ou outra do mundo. Quanto mais prolongadas forem a incerteza e a miséria, maior será o questionamento em torno da legitimidade do atual modo de fazer negócios e maior será a demanda para se construir algo diferente. O desenvolvimento desigual das práticas capitalistas ao redor do mundo tem produzido movimentos anticapitalistas em toda parte. As economias Estado-cêntricas de grande parte da Ásia Oriental geram descontentamentos diferentes em comparação com a agitação antineoliberal das lutas que ocorrem em boa parte da América Latina, onde o Movimento Revolucionário Bolivariano pelo Poder Popular encontra-se em uma relação peculiar com os interesses da classe capitalista que ainda têm que ser verdadeiramente confrontados. Diferenças a respeito de táticas e políticas em resposta à crise entre os Estados que compõem a União Européia estão aumentando ao mesmo tempo em que uma segunda tentativa de chegar a uma constituição unificada da UE está em curso. Movimentos revolucionários e resolutamente anticapitalistas também podem ser encontrados, embora nem todos eles sejam do tipo progressista, em muitas das zonas marginais do capitalismo. Espaços foram abertos dentro dos quais algo radicalmente diferente em termos de relações sociais dominantes, modos de vida, capacidades produtivas e concepções mentais do mundo pode florescer. Isto se aplica tanto para os talibãs e para o regime comunista no Nepal, como para os zapatistas em Chiapas e os movimentos indígenas na Bolívia, os movimentos maoístas na Índia rural, ainda que sejam muito diferentes entre si em termos de objetivos, estratégias e táticas. O problema central é que, no total, não há movimento anticapitalista suficientemente unificado e decidido capaz de desafiar adequadamente a reprodução da classe capitalista e a perpetuação do seu poder no cenário mundial. Da mesma forma não há nenhuma maneira óbvia de atacar os baluartes dos privilégios das elites capitalistas ou de limitar seu desmesurado poderio financeiro e militar. Apesar de haver aberturas para uma possível ordem social alternativa, ninguém realmente sabe onde ela está ou o que ela é. Mas só porque não há nenhuma força política capaz de articular e muito menos montar um programa, não há motivos para se deter o esboço de alternativas.

24 A famosa pergunta de Lenin “o que fazer?” não pode ser respondida, certamente, sem alguma noção de quem é que pode fazê-lo e onde. Mas é pouco provável que um movimento global anticapitalista surja sem alguma animação visual do quê está por ser feito e o porquê. Existe um duplo bloqueio: a falta de uma visão alternativa impede a formação de um movimento de oposição, enquanto a ausência de tal movimento opõe-se à articulação de uma alternativa. Como, então, esse bloqueio poderia ser superado? A relação entre a visão do que fazer e o porquê, e a formação de um movimento político em determinados lugares tem que ser transformada em uma espiral. Uma tem que reforçar a outra, para que algo possa ser feito. Caso contrário, a potencial oposição será trancada para sempre em um círculo fechado que frustra todas as perspectivas de mudança construtiva, deixando-nos vulneráveis a sofrermos no futuro perpétuas crises do capitalismo, com resultados cada vez mais mortais. A pergunta de Lênin exige uma resposta. O problema central a ser abordado é bastante claro. Obter crescimento composto para sempre não é possível e os problemas que assolaram o mundo nos últimos trinta anos sinalizam que estamos próximos do limite para o contínuo acúmulo de capital, que não pode ser transcendido exceto criando-se ficções não duradouras. Adicione-se a isso o fato de que tantas pessoas no mundo vivem em condições de extrema pobreza, que a degradação ambiental está fora de controle, que a dignidade humana está sendo ofendida em toda parte, enquanto os ricos estão acumulando mais e mais riqueza (o número de bilionários na Índia dobrou no ano passado de 27 para 52) para si próprios e que as alavancas dos poderes políticos, institucionais, judiciais, militares e midiáticos estão sob controle político estrito, porém dogmático, encontrando-se incapazes de fazer algo além do que perpetuar o status quo e o frustrante descontentamento. Uma política revolucionária capaz de enfrentar o problema do interminável acúmulo de capital composto e, eventualmente, desligá-lo como o principal motor da história humana, requer uma compreensão sofisticada de como ocorre a mudança social. O fracasso dos esforços passados para construir um socialismo e comunismo duradouros tem que ser evitado e lições dessa história extremamente complicada devem ser aprendidas. No entanto, a absoluta necessidade de um movimento revolucionário anticapitalista coerente também deve ser reconhecida. O objetivo fundamental deste movimento é assumir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes. Precisamos urgentemente de uma teoria revolucionária explícita adequada aos nossos tempos. Eu proponho uma “teoria co-revolucionária” derivada da compreensão de Marx sobre como o capitalismo surgiu do feudalismo. A mudança social surge


Transição anti-capitalista através do desdobramento dialético das relações entre sete momentos dentro do corpo político do capitalismo, visto como um conjunto ou junção de atividades e práticas: a) formas de produção tecnológicas e organizacionais, intercâmbio e consumo b) relações com a natureza; c) relações sociais entre as pessoas; d) concepções mentais do mundo, abrangendo conhecimentos e entendimentos culturais; e) processos de trabalho e produção de bens específicos, geografias, serviços ou sentimentos; f) arranjos institucionais, legais e governamentais; g) a condução da vida diária que está subjacente a reprodução social. Cada um desses momentos é internamente dinâmico e internamente marcado por tensões e contradições, mas todos eles são co-dependentes e co-evoluem em relação ao outro. A transição para o capitalismo implicou em um movimento de apoio mútuo em todos os sete momentos. Quando o próprio capitalismo passa por uma de suas fases de renovação, ele o faz precisamente por co-evolução de todos os momentos, obviamente não sem tensões, lutas e contradições. Mas considere como estes sete momentos foram configurados aproximadamente em 1970, antes do surgimento da onda neoliberal, e considere como eles são hoje em dia e você verá que todos eles mudaram de uma forma que re-define as características operativas do capitalismo visto como uma totalidade não-Hegeliana. Um movimento político anticapitalista pode começar em qualquer lugar. O truque é manter o movimento político seguindo em frente de um momento para outro, de maneira que se reforcem mutuamente. Foi assim que o capitalismo surgiu do feudalismo e é assim que algo radicalmente diferente chamado comunismo, socialismo ou outra coisa deve surgir do capitalismo. As tentativas anteriores de se criar uma alternativa comunista ou socialista não foram capazes de manter a dialética entre os diferentes momentos em movimento e não conseguiram abraçar as imprevisibilidades e incertezas no movimento dialético entre eles. O capitalismo tem sobrevivido justamente por manter focado o movimento dialético entre os momentos e abraçar construtivamente as tensões inevitáveis, incluindo as crises. A mudança surge, naturalmente, de um estado de coisas existente e tem que aproveitar as possibilidades imanentes dentro de uma situação existente. Uma vez que a situação existente varia enormemente do Nepal, para as regiões do Pacífico da Bolívia, ou para as cidades desindustrializadas de Michigan e as cidades de Bombaim e Xangai, ainda em desenvolvimento e os abalados, mas de nenhuma maneira destruídos centros financeiros de Nova

25 Iorque e Londres, então todos os tipos de experimentos de mudança social em diferentes lugares e em diferentes escalas geográficas são provável e potencialmente esclarecedores como maneiras de produzir (ou não produzir) um outro mundo possível. E em cada instância pode parecer que um ou outro aspecto da situação existente é a chave para um futuro político diferente. Mas a primeira regra para um movimento global anticapitalista deve ser: nunca conte com a dinâmica de um momento em desdobramento sem considerar cuidadosamente como as relações com todos os outros estão se adaptando e reverberando. Possibilidades futuras viáveis resultam do atual estado das relações entre os diferentes momentos. Intervenções políticas estratégicas dentro e entre as esferas podem mover gradualmente a ordem social para um caminho de desenvolvimento diferente. Isto é o que os líderes sábios e as instituições progressistas fazem o tempo todo em situações locais, por isso não há razão para se pensar que há algo particularmente fantástico ou utópico em se agir desta forma. A esquerda tem que construir alianças entre aqueles que trabalham nas distintas esferas. Um movimento anticapitalista tem que ser muito mais amplo do que grupos de mobilização em torno das relações sociais ou sobre questões da vida quotidiana. Hostilidades tradicionais entre, por exemplo, pessoas com conhecimentos técnicos, científicos e administrativos e aquelas que motivam as atividades dos movimentos sociais têm que ser resolvidos e superados. Temos agora que transmitir o exemplo do movimento das mudanças climáticas, um exemplo significativo de como tais alianças podem começar a trabalhar. Neste caso, a relação com a natureza é o ponto de início, mas todo mundo percebe que algo tem que acontecer em todos os outros momentos e enquanto houver uma política de desejos que procura a solução puramente tecnológica torna-se cada vez mais claro que a vida cotidiana, as concepções mentais, os arranjos institucionais, os processos de produção e as relações sociais têm que estar envolvidos. E tudo isso significa um movimento para a reestruturação da sociedade capitalista como um todo e para confrontar a lógica do crescimento por trás do problema inicial. Deve haver, contudo, objetivos comuns vagamente acordados em qualquer movimento de transição. Normas gerais de orientação podem ser ajustadas. Estas podem incluir (apenas apresentarei brevemente estas normas para discussão), o respeito pela natureza, o igualitarismo radical nas relações sociais, arranjos institucionais com base em alguma noção sobre interesses comuns e propriedade comum, procedimentos administrativos e democráticos (em oposição às ilusões lucrativas que existem hoje em dia), processos de trabalho organizados diretamente pelos produtores, a vida cotidiana como a livre exploração de novos tipos de relações


Transição anti-capitalista sociais e condições de vida, as concepções mentais que focam sobre a realização pessoal através do serviço aos outros e as inovações tecnológicas e organizacionais orientadas para o bem comum e não para o apoio do poder militarizado, da vigilância e da ganância corporativa. Estes poderiam ser pontos co-revolucionários em torno dos quais a ação social poderia convergir e girar. Claro que isso é utópico! Mas e daí! Não podemos nos dar ao luxo de não sê-lo. Deixe-me detalhar um aspecto em especial do problema que surge onde eu trabalho. As idéias têm conseqüências e idéias falsas podem ter conseqüências devastadoras. Falhas de políticas baseadas em pensamentos econômicos errôneos desempenharam um papel crucial para o desenrolar do desastre dos anos 1930 e na aparente incapacidade de se encontrar uma saída. Embora não haja consenso entre os historiadores e economistas sobre exatamente que políticas falharam foi acordado que a estrutura de conhecimento através da qual a crise foi entendida precisava ser revolucionada. Keynes e seus colegas realizaram essa tarefa. Mas, em meados da década de 1970, tornou-se claro que os instrumentos de política keynesiana já não funcionavam, pelo menos não da forma como estavam sendo aplicados, e foi neste contexto que o monetarismo, a teoria da economia de oferta e a (bela) modelagem matemática dos comportamentos de mercado microeconômicos suplantaram o pensamento econômico keynesiano. A teoria monetarista e neoliberal mais limitada que dominou após os anos 1980 está agora em questão. Na verdade ela tem falhado desastrosamente. Precisamos de novas concepções mentais para compreender o mundo. Quais poderiam ser elas e quem irá produzi-las, considerado o mal-estar sociológico e intelectual que paira sobre a produção e (igualmente importante) difusão do conhecimento de maneira mais geral? As concepções mentais profundamente arraigadas associadas às teorias neoliberais e a neoliberalização e corporatização das universidades e dos meios de comunicação tem desempenhado um papel importante na produção da atual crise. Por exemplo, toda a questão em torno do que fazer sobre o sistema financeiro, o setor bancário, o vínculo Estado-finanças e o poder dos direitos de propriedade privada, não pode ser trabalhada sem deixarmos de lado o pensamento convencional. Para que isso aconteça será necessária uma revolução no pensamento, em lugares tão diversos quanto as universidades, a mídia e o governo, bem como no âmbito das instituições financeiras. Karl Marx, embora não estivesse de modo algum inclinado a abraçar o idealismo filosófico, considerou as idéias como uma força material na história. Concepções mentais constituem, afinal, um dos sete momentos da sua teoria geral da mudança

26 co-revolucionária. Evoluções autônomas e conflitos internos sobre quais concepções mentais passariam a ser hegemônicas, portanto, têm um papel histórico importante a desempenhar. Por esta razão Marx (junto com Engels) escreveu o Manifesto Comunista, O Capital e inúmeras outras obras. Estes trabalhos fornecem uma crítica sistemática, ainda que incompleta, do capitalismo e as tendências de sua crise. Mas, como Marx também insistiu, apenas quando essas idéias críticas transitassem para os campos dos arranjos institucionais, formas organizacionais, sistemas de produção, vida cotidiana, relações sociais, tecnologias e relações com a natureza que o mundo realmente mudaria. Uma vez que o objetivo de Marx era mudar o mundo e não apenas entendê-lo, idéias tinham que ser formuladas com certa intenção revolucionária. Isto significa, inevitavelmente, um conflito com modos de pensamento mais úteis e fáceis de se conviver para a classe dominante. O fato de que as idéias de oposição de Marx, particularmente nos últimos anos, têm sido alvo de repetidas repressões e exclusões, sugere que suas idéias podem ser muito perigosas para serem toleradas pelas classes dominantes. Ainda que Keynes repetidamente declarasse que nunca tinha lido Marx, ele foi cercado e influenciado em 1930 por muitas pessoas (como por seu colega economista Joan Robinson) que leram. Embora muitos deles se opusessem veementemente aos conceitos fundamentais de Marx e seu modo dialético de raciocínio, eles estavam bastante conscientes e profundamente afetados por algumas de suas conclusões e previsões. É justo dizer, penso eu, que a revolução da teoria keynesiana não poderia ter sido realizada sem a presença subversiva de Marx, sempre à espreita. O problema nos dias de hoje é que a maioria das pessoas não tem idéia de quem foi Keynes e o que ele realmente defendia e para estas mesmas o conhecimento de Marx é desprezível. A repressão das correntes críticas e radicais do pensamento, ou para ser mais exato o confinamento do radicalismo dentro dos limites do multiculturalismo, políticas de identidade e escolha cultural, cria uma situação lamentável na academia e fora dela, que equivale em princípio a ter que pedir aos banqueiros responsáveis pela bagunça que a limpem exatamente com as mesmas ferramentas que eles usaram para produzi-la. A ampla adesão às idéias pós-modernas e pós-estruturalistas que celebram o particular em detrimento do pensamento mais amplo não ajuda. O local e o particular são de vital importância e teorias que não aceitem, por exemplo, a diferença geográfica, são inúteis. Mas quando esse fato é usado para excluir qualquer coisa maior do que políticas paroquiais, então, a traição dos intelectuais e a revogação do seu papel tradicional tornam-se completas.


Transição anti-capitalista A atual população de acadêmicos, intelectuais e especialistas em ciências sociais e humanidades é, em geral, mal equipada para realizar a tarefa coletiva de revolucionar as nossas estruturas de conhecimento. Eles foram, de fato, profundamente implicados na construção dos novos sistemas de governabilidade neoliberal que contornam questões ligadas à legitimidade e democracia e promovem uma política tecnocrática autoritária. Poucos parecem predispostos a empreender uma reflexão autocrítica. Universidades continuam a promover os mesmos cursos inúteis sobre a teoria política da escolha racional ou economia neoclássica, como se nada tivesse acontecido e as faculdades de administração adicionam um curso ou dois sobre ética dos negócios ou sobre como ganhar dinheiro a partir da falência de outras pessoas. Afinal, a crise surgiu da ganância humana e não há nada que possa ser feito sobre isso! A atual estrutura do conhecimento é claramente disfuncional e ilegítima. A única esperança é que uma nova geração de estudantes com alto senso crítico (no sentido amplo de todos aqueles que pretendem conhecer o mundo) seja capaz de enxergar isso e insista em mudar esta realidade. Isto aconteceu na década de 1960. Em vários outros pontos críticos da história movimentos inspirados por estudantes, reconhecendo a disjunção entre o que está acontecendo no mundo e o que está sendo ensinado a eles e transmitido pela mídia estiveram dispostos a fazer algo a respeito disso. Há sinais em Teerã a Atenas e em muitas universidades européias de tal movimento. Como a nova geração de estudantes na China vai agir certamente deve ser de grande preocupação nos corredores do poder político, em Pequim. Um movimento revolucionário juvenil conduzido por estudantes, com todas as suas evidentes incertezas e problemas é uma condição necessária, mas não suficiente, para produzir essa revolução nas concepções mentais que podem nos levar a uma solução mais racional para os atuais problemas de crescimento infinito. O que, de maneira mais ampla, aconteceria se um movimento anticapitalista fosse constituído a partir de uma ampla aliança de excluídos, descontentes, pobres e sem posses? A imagem de todas essas pessoas em toda parte se levantando, exigindo e conquistando seu devido lugar na vida econômica, social e política está se formando. Ela também ajuda a focar na questão sobre o que é que eles podem exigir e o que precisa ser feito. Transformações revolucionárias não podem ser realizadas sem que no mínimo mudemos nossas idéias, abandonando crenças e preconceitos que nos são caros, confortos diários e direitos, submetendo-nos a um novo esquema de vida cotidiana,

27 mudemos nossos papéis sociais e políticos, reafirmemos nossos direitos, deveres e responsabilidades e alteremos nosso comportamento para estar em mais conformidade com as necessidades coletivas e com uma vontade comum. O mundo que nos cerca – as nossas geografias – deve ser radicalmente reformado, assim como nossas relações sociais, a relação com a natureza e todos os outros momentos do processo co-revolucionário. É compreensível, até certo ponto, que muitos prefiram uma política de negação a uma política de confronto ativo. Também seria reconfortante pensar que tudo isso poderia ser realizado pacífica e voluntariamente, que disporíamos de nossas posses, nos despiríamos, como antes, de tudo o que possuímos hoje e se encontra no caminho da criação de uma ordem de Estado estável, socialmente justa. Mas seria hipócrita imaginar que isso se dará desta maneira, que nenhuma luta ativa estará envolvida, incluindo um certo grau de violência. O capitalismo veio ao mundo, como Marx disse certa vez, banhado em sangue e fogo. Embora seja possível fazer um trabalho melhor ao sairmos dele do que quando entramos, é improvável pensarmos em uma passagem puramente pacífica para a terra prometida. Existem várias grandes correntes de pensamento rebelde à esquerda quanto à forma de abordar os problemas com que hoje nos confrontamos. Há, acima de tudo, o sectarismo habitual, decorrente da história de ações radicais e as articulações da teoria política de esquerda. Curiosamente, o único lugar onde a amnésia não é tão prevalente é dentro da esquerda (o racha entre os anarquistas e os marxistas que ocorreu na década de 1870, entre trotskistas, maoístas e os comunistas ortodoxos, entre os centralizadores que querem comandar o Estado e os antiestadistas autonomistas e os anarquistas). Os argumentos são tão ressentidos e tão turbulentos, que às vezes nos fazem pensar que um pouco mais de amnésia ajudaria. Mas para além destas seitas tradicionais revolucionárias e facções políticas, todo o campo de ação política sofreu uma transformação radical desde a década de 1970. O terreno da luta política e das possibilidades de política mudou, tanto geograficamente quanto organizacionalmente. Existe hoje um vasto número de organizações não-governamentais (ONG’s) que desempenham um papel político que era pouco visível antes de meados dos anos 1970. Financiadas por interesses estatais e privados, muitas vezes povoadas por pensadores idealistas e organizadores (que constituem um vasto programa de empregos), e em grande parte dedicadas a questões isoladas (meio ambiente, pobreza, direitos das mulheres, antiescravidão e tráfico de trabalho, etc.) elas se abstém de uma política estritamente capitalista mesmo defendendo idéias e causas progressistas. Em alguns casos, no entanto, elas são ativamente neoliberais,


Transição anti-capitalista defendendo a privatização de funções do Estado de bem estar social ou promovendo reformas institucionais para facilitar a integração de populações marginalizadas no mercado (esquemas de microcrédito e microfinanças para populações de baixa renda são um exemplo clássico disto). Embora existam muitos praticantes radicais e dedicados neste mundo das ONGs, seu trabalho é na melhor das hipóteses benéfico. Coletivamente, eles têm um registro irregular de conquistas progressistas, embora em certas áreas, tais como os direitos da mulher, saúde e preservação ambiental seja possível afirmar que fizeram grandes contribuições para o aperfeiçoamento humano. Mas a mudança revolucionária através das ONGs é impossível. Elas são muito limitadas pelas instâncias políticas e de formulação de políticas dos seus mantenedores. Assim, embora elas possam apoiar a capacitação local ao ajudar na abertura de espaços onde as alternativas anticapitalistas se tornam possíveis e até mesmo apoiar a experimentação com essas alternativas, elas são inócuas para impedir a re-absorção destas alternativas para a prática capitalista dominante: elas até mesmo a encorajam. O poder coletivo das ONGs, nos dias de hoje é refletido no papel preponderante que desempenham no Fórum Social Mundial, onde as tentativas de forjar um movimento de justiça global, uma alternativa global ao neoliberalismo, têm-se concentrado ao longo dos últimos dez anos. O segundo grande grupo de oposição surge de anarquistas, autonomistas e organizações de base (GROS), que recusam financiamento externo, ainda que alguns deles se apóiem em algum tipo de base institucional alternativa (como a Igreja Católica com as “comunidades de base”, na América Latina ou patrocínio mais amplo da igreja para a mobilização política em cidades do interior dos Estados Unidos). Este grupo está longe de ser homogêneo (na verdade, existem fortes disputas entre eles, colocando, por exemplo, os anarquistas sociais contra aqueles a que eles se referem raivosamente como meros anarquistas por “estilo de vida”). Há, no entanto, uma antipatia comum à negociação com o poder do Estado e uma ênfase na sociedade civil como sendo a esfera onde a mudança pode ser realizada. Os poderes de auto-organização das pessoas nas situações cotidianas em que elas vivem têm que ser a base para qualquer alternativa anticapitalista. A formação de redes horizontais é o seu modelo de organização preferido. As chamadas “economias solidárias” baseadas em trocas têm os sistemas coletivos e de produção local como sua forma político-econômica preferida. Eles normalmente se opõem à idéia de que qualquer direção central possa ser necessária e rejeitam as relações sociais hierárquicas ou estruturas de pod-

28 er político hierárquico, juntamente com os partidos políticos tradicionais. Organizações deste tipo podem ser encontradas em todos os lugares e em alguns locais atingiram um alto grau de proeminência política. Alguns deles são radicalmente anticapitalistas na sua postura e defendem objetivos revolucionários e em alguns casos, estão dispostos a defender a sabotagem e outras formas de desordem (as Brigadas Vermelhas na Itália, o Meinhoff Baader na Alemanha e o Weather Underground nos Estados Unidos, na década de 1970). Mas a eficácia de todos estes movimentos (deixando de lado os mais violentos) é limitada pela relutância e a incapacidade para elevar seu ativismo a formas de organização em grande escala capazes de enfrentar os problemas globais. A presunção de que a ação local é o único nível significativo de mudança e que tudo o que cheira a hierarquia é antirevolucionário é, na verdade, autodestrutivo em se tratando de questões maiores. No entanto, esses movimentos estão, inquestionavelmente, fornecendo uma base ampla para a experimentação com políticas anticapitalistas. A terceira grande tendência advém da transformação que vem ocorrendo na organização do trabalho tradicional e nos partidos políticos de esquerda, variando desde tradições social-democráticas até trotskistas mais radicais e formas comunistas de organização de partidos políticos. Esta tendência não é hostil à conquista do poder do Estado ou de outras formas de organização hierárquica. Na verdade, ela vê esta última como necessária à integração da organização política em uma variedade de escalas políticas. Nos anos em que a social-democracia era hegemônica na Europa e até mesmo influente nos Estados Unidos, o controle estatal sobre a distribuição dos excedentes se tornou uma ferramenta essencial para diminuir as desigualdades. O fracasso em se conseguir o controle social sobre a produção de excedentes e, assim, realmente desafiar o poder da classe capitalista foi o calcanhar de Aquiles deste sistema político, mas não devemos esquecer os avanços que ele fez, mesmo que agora seja claramente insuficiente a volta para tal modelo político com o seu assistencialismo social e economia keynesiana. O movimento bolivariano na América Latina e a ascensão ao poder do Estado conseguida por governos social-democratas é um dos sinais mais promissores da ressurreição de uma nova forma de estatismo de esquerda. Tanto o trabalho organizado quanto os partidos políticos de esquerda tomaram bons golpes no mundo capitalista ao longo dos últimos trinta anos. Ambos foram convencidos ou coagidos a um amplo apoio ao neoliberalismo, ainda que este contasse com contornos mais humanos.


Transição anti-capitalista Embora existam sinais de recuperação da organização do trabalho e das políticas de esquerda (em oposição à “terceira via”, celebrada pelo Novo Trabalhismo na Grã-Bretanha sob Tony Blair e desastrosamente copiada por muitos partidos social-democratas na Europa), juntamente com os sinais do aparecimento de partidos de esquerda mais radicais em diferentes partes do mundo, o uso exclusivo de uma vanguarda de trabalhadores está agora em questão tanto quanto a habilidade daqueles partidos de esquerda que conquistam algum grau de acesso ao poder político a ter um impacto substancial sobre o desenvolvimento do capitalismo e lidar com a dinâmica conturbada da acumulação propensa a crise. O desempenho do Partido Verde alemão no poder não tem sido algo fora do comum em relação à sua postura política de poder e os partidos socialdemocratas perderam sua habilidade para atuar como uma verdadeira força política. Mas os partidos políticos de esquerda e sindicatos ainda são significantes e sua aquisição de aspectos do poder do Estado, como no caso do Partido dos Trabalhadores do Brasil ou do movimento bolivariano na Venezuela teve um claro impacto no pensamento de esquerda, não apenas na América Latina. Talvez não seja fácil resolver os complicados questionamentos a respeito de como interpretar o papel do Partido Comunista da China, com seu controle exclusivo sobre o poder político e sobre quais serão suas futuras políticas. A teoria co-revolucionária anteriormente apresentada sugeria que de forma alguma uma ordem social anticapitalista poderia ser construída sem a tomada do poder do Estado, transformando-o radicalmente e retrabalhando as estruturas constitucional e institucional que atualmente apóiam a propriedade privada, o sistema de mercado e a interminável acumulação de capital. A concorrência interestatal e as lutas geoeconômica e geopolítica por tudo, desde comércio e dinheiro até as questões de hegemonia também são importantes demais para serem deixadas para os movimentos sociais locais ou postas de lado como sendo grandes demais para serem contempladas. Como a arquitetura da conexão Estado-finanças deve ser retrabalhada juntamente com a questão premente da medida comum de valor determinado pelo dinheiro são fatos que não podem ser ignorados na busca pela construção de alternativas para a economia política capitalista. Ignorar o Estado e a dinâmica do sistema interestatal é, portanto, uma idéia ridícula demais para ser aceita por qualquer movimento revolucionário anticapitalista. A quarta tendência geral é constituída por todos os movimentos sociais que não sejam guiados por alguma filosofia política ou inclinação em especial, mas pela necessidade pragmática de re-

29 sistir a deslocamentos e desapropriações (através da gentificação, do desenvolvimento industrial, da construção de barragens, da privatização da água, do desmantelamento dos serviços sociais públicos e oportunidades educacionais e outros). Neste caso, o enfoque na vida diária na cidade, vila, aldeia ou outro local fornece uma base material para a organização política contra as ameaças que as políticas de Estado e de interesses capitalistas, invariavelmente, representam para as populações vulneráveis. Estas formas de protesto político são enormes. Novamente, há uma vasta gama de movimentos sociais deste tipo, alguns dos quais podem tornarse radicalizados ao longo do tempo na medida em que eles, cada vez mais, percebam que os problemas são sistêmicos e não particulares ou locais. A junção de tais movimentos sociais em alianças da terra (como a Via Campesina, o movimento dos camponeses sem-terra no Brasil, ou camponeses mobilizando contra a tomada de terra e recursos por corporações capitalistas na Índia) ou em contextos urbanos (o direito à cidade e retomada dos movimentos dos sem teto no Brasil e agora nos Estados Unidos) indica que o caminho esteja aberto para a criação de alianças mais amplas para discutir e enfrentar as forças sistêmicas que sustentam as particularidades da gentificação, da construção de barragens, da privatização e outros. Mais pragmáticos, ao invés de impulsionados por preconceitos ideológicos, esses movimentos, no entanto, podem chegar a uma compreensão sistêmica gerada por suas próprias experiências. Na medida em que muitos deles existem no mesmo espaço, como dentro da metrópole, eles podem (como supostamente aconteceu com os operários nas fases iniciais da revolução industrial) se reunir em torno de uma causa comum e começar a estabelecer, com base na sua própria experiência, a consciência de como o capitalismo funciona e o que pode ser feito coletivamente. Este é o terreno em que é muito significativa a figura do líder “orgânico intelectual”, tão presente na obra de Antonio Gramsci, o autodidata que consegue entender o mundo em primeira mão através de duras experiências, mas formula sua compreensão do capitalismo de maneira mais geral. Ouvir as falas de líderes camponeses do MST no Brasil ou dos líderes do movimento contra a tomada de terras por corporações na Índia é um privilégio educacional. Neste caso, a tarefa dos excluídos e descontentes educados é ampliar a voz subalterna, para que se possa prestar atenção à situação de exploração e repressão, assim como as respostas que podem ser pensadas para um programa anticapitalista. O quinto epicentro para a mudança social reside nos movimentos emancipatórios em torno das


Transição anti-capitalista questões de identidade – mulheres, crianças, homossexuais, minorias raciais, étnicas e religiosas, todos merecem um lugar ao sol – juntamente com a vasta gama de movimentos ambientais que não são explicitamente anticapitalistas. Os movimentos que reivindicam a emancipação em cada uma destas questões são geograficamente desiguais e muitas vezes geograficamente divididos em termos de necessidades e aspirações. Mas as conferências mundiais sobre os direitos das mulheres (Nairóbi, em 1985, que levou à declaração de Pequim de 1995) e anti-racismo (conferência muito mais controversa, em Durban, em 2009) estão tentando encontrar um terreno em comum, como é o caso também das conferências ambientais, e não há dúvida de que as relações sociais estão mudando juntamente com todas essas dimensões, pelo menos em algumas partes do mundo. Quando expressos em termos estritamente essencialistas, esses movimentos podem parecer antagônicos à luta de classes. Certamente, dentro de grande parte da academia eles tornaramse prioridade em detrimento da análise de classe e economia política. Mas a feminilização da força de trabalho global, a feminilização da pobreza em quase toda parte e o uso das disparidades de gênero como um meio de controle do trabalho fazem a emancipação e a eventual libertação da mulher das suas repressões uma condição necessária para ajustar o foco da luta de classes. A mesma observação se aplica a todas as outras formas de identidade onde a discriminação ou a repressão podem ser encontradas. O racismo e a opressão das mulheres e crianças foram fundamentais para a ascensão do capitalismo. Mas o capitalismo na sua atual forma pode, em princípio, sobreviver sem estas formas de discriminação e opressão, apesar de sua habilidade política para fazê-lo ser gravemente prejudicada se não mortalmente ferida, face à uma força de classe mais unida. A modesta inclusão do multiculturalismo e dos direitos das mulheres no mundo corporativo, em particular nos Estados Unidos, fornece algumas evidências da acomodação do capitalismo a essas dimensões de mudança social (incluindo o meio ambiente), enquanto reenfatiza a relevância das divisões de classe como a principal dimensão para a ação política. Estas cinco grandes tendências não são mutuamente exclusivas nem anulam os modelos organizacionais para a ação política. Algumas organizações combinam aspectos de todas as cinco tendências maneira organizada. Mas há muito trabalho a ser feito para fundir essas várias tendências em torno da questão subjacente: poderia o mundo mudar materialmente, socialmente, mentalmente e

30 politicamente, de tal forma a confrontar não apenas o estado terrível das relações sociais e naturais nas muitas partes do mundo, mas também a perpetuação do crescimento composto infinito? Esta é a pergunta que os excluídos e descontentes devem seguir se perguntando, vezes sem conta, enquanto aprendem com aqueles que experimentam a dor diretamente e que são tão hábeis em organizar resistências para as terríveis conseqüências de um crescimento composto no mundo real. Comunistas, Marx e Engels asseveraram em sua concepção original apresentada no Manifesto Comunista, não pertencerem a partidos políticos. Eles simplesmente constituem-se em todos os momentos e em todos os lugares como aqueles que entendem os limites, deficiências e tendências destrutivas da ordem capitalista, bem como as inúmeras máscaras ideológicas e falsas legitimações que os capitalistas e seus apologistas (sobretudo nos meios de comunicação) produzem para perpetuar o seu poder de classe. Comunistas são todos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro diferente do que anuncia o capitalismo. Esta é uma definição interessante. Ainda que o comunismo institucionalizado tradicional esteja morto e enterrado, há sob esta definição milhões de comunistas ativos de fato entre nós, dispostos a agir de acordo com seus entendimentos, prontos para exercerem criativamente imperativos anticapitalistas. Se, como o movimento de globalização alternativa dos anos 1990 declarou: “um outro mundo é possível”, então por que não dizer também “um outro comunismo é possível? As atuais circunstâncias do desenvolvimento capitalista requerem algo deste tipo, se realmente desejamos alcançar a mudança fundamental.


Feminismo, militância e transformação social Contribuição do coletivo Levante Marxismo e feminismo: um balanço necessário Ao longo de séculos as mulheres vem sendo oprimidas em diferentes sociedades. A origem da opressão às mulheres tem a ver com o aparecimento da sociedade de classes e da apropriação do trabalho por um grupo privilegiado, porém não nos interessa aqui falar sobre a história dessa opressão, mas resgatar alguns debates importantes quanto à história da luta pela emancipação das mulheres e tentar fazer um balanço bastante breve sobre a incorporação do feminismo ao marxismo. De um modo geral, o marxismo teve dificuldades, ao longo de sua história, para incorporar o feminismo como um eixo importante. Seja em seu grupo de teóricos, seja no movimento operário, não foi raro vermos posturas que foram desde o combate à incorporação da mulher no movimento operário (e mesmo o combate à mulher se tornar operária) até a ignorância por completo de pensar o socialismo como um caminho para libertar também as mulheres, e não só os homens. Mesmo teóricos como Marx, Engels, Lênin e muitos outros “marxistas históricos” revelam isso (alguns por completo, outros por deslize), porém isso nesse momento não nos importa. Mas é preciso resgatar também a importância (sobretudo nesse contexto) de figuras de relevo como Alexandra Kolontai, Clara Zetkin e mesmo Rosa Luxemburgo que, junto com tantas outras mulheres operárias, foram responsáveis pela denuncia ao machismo dentro e fora do movimento dos trabalhadores de sua época contribuindo fundamentalmente para se pensar um feminismo socialista do qual hoje somos herdeiras. É bem verdade que as mulheres sempre trabalharam, mas a partir da segunda metade do século XIX podemos observar um momento de aprofundamento das relações capitalistas e da expansão de sua necessidade de mão de obra barata e dócil (nas quais as mulheres se adequavam muito bem). No entanto a participação das mulheres nos sindicatos foi bem mais tardia que a venda da sua força de trabalho ao capital. Dentre os motivos para isso vale destacar a postura agressiva dos sindicatos “masculinos” que viam no trabalho feminino a ameaça ao seu emprego e sobrevivência. Homens e mulheres executavam o mesmo trabalho, mas as mulheres, em seu estatuto socialmente rebaixadas, custavam menos ao capital. Será o crescimento um movimento operário feminino que irá alterar esse quadro e, ainda que muito devagar e de forma sempre deficiente, as mulheres serão “incorporadas” à classe.

31 As experiências com o socialismo real, sobretudo o soviético e com as tradições que daí surgiram também influenciaram bastante para a construção de uma teoria marxista não-feminista. A tradição estalinista desenvolvida na URSS e espalhada pelos PCs ao mundo sustentou um reducionismo que liga o fim de todas as opressões à planificação econômica e que muito custou às mulheres. Sobretudo na própria URSS, antes beneficiadas pela Revolução de Outubro, agora diversos direitos recuavam como estruturas de uso coletivo e a possibilidade de realização do aborto. Em outras localidades seria ilustrativo analisar casos de Cuba, da Revolução Espanhola (a diferença de orientação quanto à participação das mulheres antes e depois das intervenções estalinistas e da aliança junto à Franco), e mesmo de alguns países africanos no pós-independência. Mas a partir dos anos 60, em diversos locais do mundo, começa a se delinear um feminismo de novo tipo, que teria a capacidade de se manter à esquerda e ao mesmo tempo fazer seus balanços históricos. . Com o crescimento os movimentos feministas, mas, sobretudo com uma conjuntura que potencializava as vozes dos mesmos, foi possível avançar (ou recuperar) na formulação de bandeiras e na politização do espaço público e privado, pautando a sexualidade e a reprodução, a ausência das mulheres dos espaços de poder, a desvalorização do trabalho feminino, etc. O potencial revolucionário do feminismo A opressão das mulheres, embora não tenha surgido com o capitalismo, foi assimilada por ele como um dos pilares de sua dominação. Manter as mulheres oprimidas e subordinadas permite diminuir os custos com a reprodução da força de trabalho; aumentar a exploração, rebaixando os salários da classe trabalhadora como um todo; manter uma divisão importante dentro do proletariado, facilitando a dominação e exploração; assegurar a manutenção da família como um mecanismo essencial de assimilação da ideologia burguesa e patriarcal no seio dos oprimidos; aumentar a situação de desumanização e alienação do proletariado, diminuindo com isso sua consciência como classe dominada e, portanto, sua capacidade de revolta. A tradição feminista denunciou ao longo dos tempos a formatação a qual homens e mulheres estão submetidos desde seu nascimento e que é responsável pela atribuição de papeis diferenciados e hierarquizados socialmente aos sexos. A partir da luta pela igualdade para homens e mulheres, as feministas politizaram áreas antes não politizáveis e se debruçaram sobre a sexualidade, a educação, a saúde, o trabalho, a política, e muitas outras áreas tentando repensá-las sob um paradigma não sexista. Nem mesmo a família, antes


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Feminismo sagrada, escapou e as feministas denunciaram seu papel na transmissão de riquezas, na desresponsabilização do Estado sobre a reprodução da classe trabalhadora e na transmissão de valores diferenciados para homens e mulheres. Mas o fato de a mulher ser oprimida não a torna por isso uma revolucionária. É bem verdade que existem mulheres proletárias e mulheres burguesas e que estas são submetidas a diferentes graus de opressão. No entanto reafirmar as mulheres proletárias como uma vanguarda potencial na construção de um movimento de mulheres classista é fundamental. Porque na luta das mulheres está contido o combate contra um aspecto fundamental da dominação de classe não sendo esta, portanto uma luta somente coorporativa, mas uma luta que, na sua radicalidade, põe em xeque a estrutura social do capital. A libertação das mulheres só será possível quando o capitalismo for superado, já que a melhoria da vida das mulheres necessita da preservação e edificação de áreas minadas pela expansão desenfreada do capital sobre o social. Portanto podemos identificar que o inimigo tanto da classe trabalhadora produtora de riqueza quanto das mulheres especificamente (dentro ou fora da classe) é o mesmo. Isso não significa que não existiam aí contradições e tensões. Afirmar as mulheres trabalhadoras como um setor estratégico na construção do feminismo revolucionário empenhado na construção do socialismo é fundamental porque somente elas sintetizam a opressão de classe e de gênero. Mas se por um lado é verdade que a emancipação das mulheres não é possível sob o capitalismo tampouco é verdade que a derrubada do capitalismo por si só tornaria possível a emancipação das mulheres (ver balanço da incorporação do feminismo pelo marxismo acima). É por isso que é importante afirmar a necessidade da existência do movimento feminista desde já (e também no pós-revolução, pois o Estado socialista por si só não é capaz de transformar instantaneamente a consciência e os costumes machistas fortemente arraigados na nossa cultura) buscando chegar ao máximo de mulheres trabalhadoras e reivindicar do Estado apoio econômico, legal, jurídico, cultural, etc para criar as condições necessárias à emancipação feminina. Desta forma é importante entendermos a importância de incorporarmos, enquanto organização, o feminismo como um eixo não menos importante de debates e ações e construirmos no cotidiano de nossa militância intervenções temáticas seja de forma transversal a outros temas, seja nos incorporando ao movimento feminista existente, seja apostando em novas possibilidades.

Mulheres sob o neoliberalismo O advento do capitalismo, mesmo inserindo as mulheres no “mercado de trabalho” (“trabalho produtivo”), não igualou em nenhum momento a trabalhadora mulher e o trabalhador homem. Ele se apropriou dos valores e da educação machista para “fabricar” a operária submissa e barata. Com base em justificativas que viam o salário das mulheres como complementares à renda da família e as próprias mulheres como menos qualificadas/ capazes ou instáveis emocionalmente, as mulheres tiveram seu salário rebaixado, seu trabalho não reconhecido, e dificuldades de livre acesso a cargos de chefia. No entanto não é sem contradições que encontramos o sistema e, apesar das desigualdades no estatuto econômico e social das mulheres, o capitalismo foi responsável pela reinserção delas à esfera produtiva e, a partir daí criou a possibilidade de independência econômica, necessidade primordial para a criação de condições mínimas para sua libertação. Do século XIX pra cá muitas coisas mudaram na vida das mulheres, mas seria bastante errado afirmarmos que a opressão às mulheres acabou. Assistimos hoje a um momento de redefinição da ideologia machista onde nossa opressão e direitos conquistados são invisibilizados. A idéia de que as mulheres hoje estudam, estão presentes nas chefias das empresas, ocupam quase todas as profissões, são legalmente amparadas por uma série de benefícios (diriam até privilégios), etc é construída pelo capital, mas a análise dos números, dados, condições de vida e de trabalho, índices de violência, problemas sociais etc são escondidos dos meios de comunicação hegemônicos. Sob o neoliberalismo a vida da classe trabalhadora e das mulheres continua a ser atacada. Assistimos hoje mais um ciclo de crescimento do capital que apelou ao imperialismo e às organizações financeiras como nunca antes visto para garantir o consumo desenfreado e o lucro a qualquer custo. A recente crise financeira nos coloca desafios e abre um novo período na conjuntura, talvez menos defensivo para a esquerda, mas por outro lado ainda não temos noção qual será verdadeiramente o impacto sobre a vida dos trabalhadores. A saída para a crise encontrada pelos capitalistas até agora tem sido enxugar os gastos com a produção pra tentar aumentar a taxa de lucro a partir do aumento das demissões e da fragmentação da produção apoiada na flexibilização trabalhista. É para as mulheres, quando a saída capitalista se apóia na redução de direitos e a precarização do trabalho significa a redução de seus direitos e a precarização do seu trabalho em especial; para as mulheres, o aumento da pobreza no mundo sig-


Feminismo nifica o aumento da pobreza entre as mulheres, já que são os pobres do mundo; para as mulheres o avanço da mercantilização das coisas e das vidas significa a mercantilização de seus corpos das diferentes maneiras; para as mulheres a continuidade do desrespeito ao meio ambiente a e opção pelo agronegócio, significa trabalhar todo o mês e gastar todo o dinheiro com duas sacolas de mercado. Por isso é preciso dizer que essa saída dos capitalistas à crise não serve para as mulheres! Importante também é avaliar como na esfera ambiental o capital tem avançado e os imperativos latifúndio, monocultura e transgenia se fazem presentes. É preciso deter o agronegócio e os altos índices de poluição causados pelo desenvolvimento insustentável proposto por países como EUA, Índia, China, etc, que desrespeitam e contribuem decisivamente para o aquecimento global. É importante aliar as lutas da esquerda à luta ecológica. Agricultura familiar, reforma agrária e soberania alimentar são palavras que tem impacto também na vida das mulheres. No campo do trabalho ainda é grande os problemas enfrentados pelas mulheres. A maior parte está fora do mercado formal (e, portanto longe de direitos trabalhistas como aposentadoria, 13º salário, licença maternidade e outros, custo pago para conseguir conciliar o trabalho com os serviços do lar), ganham menos que os homens (em média as trabalhadoras ganham quatro vezes menos que os homens), têm uma taxa de desemprego mais elevada e ainda estão sujeitas a assédio moral, falta de reconhecimento das profissões ditas como “femininas” e outros tipos de mazelas. É também sobre as mulheres que a flexibilização trabalhista proposta pela globalização neoliberal se faz mais cruel. Tudo isso torna possível falarmos hoje em feminização da pobreza, isto é, as mulheres são mais pobres entre os pobres e os pobres são compostos cada vez mais por mulheres. Ainda hoje sustentamos dados alarmantes sobre a violência contra as mulheres, que continuam a ser vítimas de um padrão comportamental que impõe como expressão da sexualidade ao homem o comportamento agressivo, dominador, corajoso, potente e à mulher a fragilidade, a passividade, a subserviência, a dependência. O tipo de violência sofrida varia entre cantadas inconvenientes, agressões verbais, perseguições, estupros, espancamento, cárcere privado e outros e são as mulheres mais pobres e negras as maiores vítimas de violência. A falta de assistência do estado, apesar de ter um impacto cruel na vida das mulheres, não é a causa da violência, mas sim o padrão comportamental que legitima a violência contra a mulher. É necessário, portanto agir para a transformação de diversos fatores que alterem a real condição de discriminação social, econômica e política da mulher.

33 Na mídia hegemônica, cada vez mais agressiva com as classes trabalhadoras, a mulher continua a ser ridicularizada. A imposição de um modelo de beleza impossível e que gera sofrimento e doenças é mostrada pela mídia, e exigida pela indústria da beleza e da moda, que viram aí também um campo para as relações de mercado. A publicidade do mercado, por sua vez, tem sido cada vez mais apresentada a nós a partir de corpos femininos. Devemos afirmar que não somos mercadorias, que outra mídia é possível e que a beleza não pode ter padrão. Não podemos nesse momento observar mudanças estruturais no papel da família, que permanece como mecanismo fundamental de transmissão da ideologia burguesa e patriarcal. Dentro dela, as mulheres se mantêm como principais responsáveis do trabalho doméstico, fruto de uma divisão sexual do trabalho onde as mulheres foram às ruas, mas os homens não socializaram os trabalhos de casa. A reprodução da classe trabalhadora continua sob responsabilidade solitária das mulheres e ao mesmo tempo invisibilizada e sem importância. Nessa mesma linha é que vemos sexualidade, direitos reprodutivos e aborto ainda serem palavras negadas a muitas. No geral as mulheres continuam sendo as responsáveis solitárias por concepção, anticoncepção e aborto. O papel da sexualidade visto como um direito ao prazer é inseparável da idéia de libertação das mulheres e mexe em preconceitos e tabus fortemente arraigados. É preciso entender a atividade sexual como parte integrante do desenvolvimento sadio do ser humano, independente de sua função procriativa. A “dupla moral” que estimula a atividade sexual do homem (o macho potente) e inibe a da mulher (recato, pudor feminino) traz em si a negação do reconhecimento à sexualidade feminina. É aí também que talvez a versão mais cruel da combinação capitalismo-patriarcado se impõe com mais vigor e apesar da defesa da saúde das mulheres, do seu direito a sexualidade, da sua liberdade religiosa, do direito a seu corpo o Estado machista e as Igrejas continuam a impedir o direito de decidir das mulheres e a legalização do aborto. Ainda hoje 60% das mulheres não passam do ensino fundamental. Quando tentam estudar têm que conciliar suas atividades com as tarefas de casa e dos filhos, conciliação essa às vezes impossível e que resulta na grande desistência e evasão escolar das mulheres. O acesso à educação é fundamental tanto para a ascensão social quanto para a independência econômica das mulheres. Além disso, é fundamental que as mulheres estejam engajadas na produção do conhecimento, área, senão restrita, hegemonizada pelos homens, o que colabora para a produção de um conhecimento machista e da invisibilização das mulheres


Feminismo nas ciências e na história. É importante também agir sobre a forma como a educação está estruturada nas escolas e universidades garantindo que a educação não seja sexista. O mito da democracia racial brasileira invisibilizou um setor importante da população deixando-o à margem do social, mas colocando-o no centro do econômico. Hoje são os negros, e as mulheres negras especificamente que acumulam as opressões de classe, raça e gênero, responsáveis pela produção de infinitas mazelas. No campo do trabalho seu salário é menor, são mais sub-empregadas e enfrentam com mais vigor o desemprego e o trabalho informal sem direitos trabalhistas. As negras também são mais pobres, vivem em habitações mais precárias e têm menos assistência a sua saúde. Os índices de violência entre as mulheres negras também são maiores, seja porque vivem em lugares mais perigosos, seja porque são mais alvo da violência. A violência racial e sexual se faz presente. É também entre as mulheres negras que a padronização da beleza tem uma conseqüência mais nefasta. Para além de o modelo “mercanlilizado” ser branco, economicamente ele se faz mais presente nos empregos que “exigem boa aparência”. Para fechar é importante lembra que elas têm menos condições de estudo e que sua cultura é permanentemente violada, folclorizada e marginalizada. Se as mulheres no geral são oprimidas pelo capital, as mulheres negras são massacradas pelo mesmo, que enxerga na cor da sua pele mais uma forma de exploração. Uma breve visão feminista da conjuntura brasileira Ao longo de 6 anos de governo, Lula nos deu poucos sinais de uma ação clara para a mudança da vida das mulheres e para a classe trabalhadora. No geral, podermos dizer que a era Lula iniciou um novo momento do neoliberalismo (mas nem por isso menos atroz) no Brasil. Lula compactuou com o grande capital aprofundando relações com os EUA e se submetendo à OMC e FMI; colocou em ação reformas que continuam a atacar os direitos dos trabalhadores e a vender as esferas sociais, quando não a financiar as elites (PAC). Ao lado da direita tradicional brasileira, usou os programas compensatórios como o bolsa-família (vale lembrar que o bolsa-família é dado a mulheres) para moeda de troca política e prosseguiu sem investimentos significativos em áreas fundamentais como saneamento básico, saúde e educação. Lula aceitou os imperativos neoliberais de redução do social e aumento do capital e quando isso acontece as mulheres perdem. Cabe destacar aqui um conjunto de ações de Lula ao longo dos seus governos contra o meio ambiente e a reforma agrária. O governo liberou ao transgênicos, iniciou a transposição do Rio São Francisco, incentiva cada vez mais a produção do etanol,

34 deixa de fiscalizar as plantações monocultoras industriais “flexibilizando” as leis e a segurança nacional, aprova a construção de mais termelétricas poluentes e deixa a reforma agrária a passos lentos. A opção dada pelo mesmo foi o financiamento do latifúndio e a venda das terras a estrangeiros em detrimento da agricultura familiar e do acesso justo a terra em defesa da soberania alimentar de seu povo. As mulheres exigem soberania alimentar e energética não agressiva ao meio ambiente. Como aprendiz dos norte-americanos o governo também foi um braço do imperialismo no Haiti. A tal “missão de paz” se mostrou bem mais truculenta e a “ocupação” ficou mais parecida com “invasão”. No mercado internacional o governo abriu uma serie de relações externas, mas quase todas submetidas aos ditames do FMI. Na política econômica Lula continua contingenciando milhões dos projetos sociais em nome do superávit primário. A divida externa foi paga, mas pra fazer isso o Governo contraiu uma dívida interna muito maior, que o faz paga mais altos juros. No que tange especificamente às mulheres o governo bem pouco construiu. Apesar de avanços como a existência da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres com status de ministério esta tampouco produziu/conseguiu implementar políticas que tivessem impacto na vida das mulheres. Enquanto isso, vimos pouco avançar na temática do aborto, que continua ilegal, apesar de algumas declarações bastante tímidas sobre o assunto por um lado, e assinatura de acordos com o Papa de outro. A condução da política pelo governo e as contradições do PT e da sua base de sustentação, além da pressão de agrupamentos religiosos, tem provocado reveses à luta do movimento feminista que enfrenta igualmente uma forte resistência dos setores conservadores (com a CPI do Aborto e a criminalização das mulheres). O governo lula continua então a gastar 9891 mais para manter o aborto ilegal do que para legalizá-lo. No geral o Brasil ainda continua a sustentar a pobreza feminina, a prostituição infantil, a morte por aborto inseguro, a morte pela violência doméstica de milhares de mulheres todos os anos, e o governo que a esquerda brasileira elegeu em 2002 não foi capaz de mudar essa situação. Entretanto nem tudo foi um desastre. Durante seus quase 6 anos de governo, Lula implementou algumas políticas para as mulheres que tiveram impacto social. Eram necessidades urgentes e bandeiras históricas do movimento feminista e da luta das mulheres. Entre as políticas específicas implementadas é preciso destacar a criação do crédito especial para a agricultora familiar (no Pronaf) e a lei Maria da Penha, acompanhados de alguns outros projetos menores. A linha específica criada através do programa Pronaf-mulher, possibilitou a inclusão das agricultoras familiares na contratação de crédito para a


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Feminismo produção agrícola independente do financiamento de outra cultura ou beneficiário de crédito agrícola na propriedade (marido, filhos) permitindo mais de uma operação de crédito; e também não agrícola (como agroindústria e atividades complementares de renda familiar). A linha especial pode ser acessada de forma individual ou coletiva. A Lei Maria da Penha proporcionou maior visibilidade à violência contra a mulher e facilitou, através do debate e divulgação da Lei, o acesso ao direito. Houve avanço através da criação (ainda muito insuficiente) dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, e das alterações do código de processo penal, código penal e da lei de execução penal. Mas, apesar do reconhecimento da lei, o acesso aos serviços depende ainda de medidas complementares como as casas abrigo, as delegacias da mulher, e de jurisprudência compatível com a norma. As condenações são brandas, as garantias às mulheres limitadas e a proteção do estado inexistente ou insuficiente (inexistência de casas abrigo, de delegacias específicas, e custeio insuficiente da máquina pública para atendimento, ausência de pessoal qualificado...). Outras políticas muito parciais como a extensão da licença maternidade (que não impõe obrigações para área pública entre outras limitações) e a ampliação dos direitos das domésticas (igualmente muito limitada pela exclusão de direitos comuns as trabalhadoras), foram criadas num ambiente de barganha institucionalizada. Ambas as leis tiveram pouca ou limitada eficácia. Porém, o conjunto dessas políticas foi constituído sem o aporte financeiro e operacional necessário que viabilizasse a efetividade das ações. Especialmente os irrisórios recursos destinados aos programas e projetos e a submissão a uma estratégia de focalização das ações sociais - abandonando a necessária universalização dos direitos - são responsáveis pelo impacto restrito das políticas. Igualmente a não responsabilização dos entes federados e poderes da república na gestão dos planos de estado para atendimento das políticas sociais e a não garantia da universalidade dos serviços tornam ineficazes ou muito insuficientes essas políticas. A opção pela assistência social exclusiva através do programa bolsa família é um obstáculo adicional. E a submissão à política macro econômica neoliberal é que impõe a escassez de recursos e o que estimula a barganha institucionalizada dos movimentos sociais que ascendem à esfera pública sem autonomia e de forma concorrente para obtenção de recursos públicos. Com a crise essa situação pode piorar ainda mais. É que o governo continua preocupado com a credibilidade junto à comunidade financeira e pra isso sustenta metas de superávit monstruosas, responsáveis por contingenciar bilhões de reais que, ano a ano não são destinados às políticas públicas. E

as políticas de enfrentamento às desigualdades de gênero e raça, por não possuírem vinculações e mínimos constitucionais assegurados, são as mais penalizadas por este artifício. A renuncia de Lula às bandeiras históricas da classe trabalhadora abriram um momento gelatinoso junto aos movimentos sociais que ou cooptaram na defesa do governo ou tentam, aos poucos, se reconstruir pós a adesão petista ao projeto neoliberal. Nessa movimentação não foram poucas as mulheres, organizações feministas e setores de mulheres de outros movimentos que, em sua orientação geral, continuaram a defender o mesmo governo que contribui tão pouco para a libertação das mulheres. Por outro lado o ataque dado pelo governo aos movimentos sociais discordantes dele juntamente à defesa cada vez mais clara do projeto hegemônico burguês, ainda tem conseguido deslocar parte do movimento social (Via Campesina, pastorais, organizações sindicais, setores estudantis, setores do movimento de mulheres, etc) para a esquerda e construído algumas alianças de tempo variável entre esses movimentos. Algumas reflexões sobre mulheres e política Ainda hoje a participação política se configura como uma prática masculina. O espaço político une a esfera pública e a esfera de poder, ambas ainda negadas às mulheres, confinadas ao espaço privado, à esfera do lar. Contribuem para essa situação dois fatos: O primeiro diz respeito a estarmos em um sistema de dominação patriarcal sustentado pelo capitalismo que ainda não conseguimos enfrentar com resultados significativos; o segundo diz respeito à dificuldade das organizações assimilarem o feminismo. Já fizemos parte desse balanço na primeira parte deste texto então não voltaremos a ele, mas vale acrescentar como “motivos” no processo de não incorporação do feminismo pelas organizações uma não compreensão teórica de seus militantes quanto ao papel que a ideologia burguesa patriarcal cumpre na manutenção da opressão não só das mulheres como de todos os seres humanos por um lado, e por outro a relação que os homens desempenham nessa opressão mediante a obtenção de privilégios pessoais, materiais, sexuais, afetivos, etc. A incorporação do feminismo depende, portanto de admitirmos que nós estamos imersos em uma cultura machista e entender que por sermos militantes não estamos livres da mesma. Será nosso esforço cotidiano na construção da luta e de outros valores que tornará possível superar esse estágio. É importante ressaltar que a construção da autonomia para as mulheres envolve a mudança das relações de poder nos diversos espaços sociais sendo necessário fazer um esforço não só para inserir as mulheres no espaço político, mas repensar


a forma como toda a prática política é estruturada. Combater práticas discriminatórias dentro da organização, incentivar a participação das mulheres e preocupar-se com demandas estruturais ou organizativas que possibilitem a presença de mulheres é fundamental. Um passo importante na assimilação do feminismo, entretanto, é a auto-organização das mulheres. É necessário que as mulheres mesmas sejam dirigentes e repensem a prática política não qual estão inseridas, formulem programas e ações que contribuam para sua libertação, etc. Somente as mulheres podem lutar e construir sua emancipação No sentido de combater os obstáculos à participação das mulheres é importante atentar para alguns pontos: - Pelas próprias configurações do espaço político as mulheres têm, de um modo geral, mais dificuldades/insegurança para o mesmo. Incentivar a participação das mulheres e evitar práticas hostis (piadas, etc) é importante. Da mesma forma as mulheres devem sempre ser identificadas como militantes tão capazes quanto qualquer outro (e devem também receber formação política na mesma proporção), bem como assumir qualquer tipo de atividade (devemos evitar a “divisão sexual da militância” que joga as mulheres para tarefas secundárias e coordenativas e os homens aos espaços públicos e de direção e garantir cotas mínimas de gênero nos espaços de direção e representação). - Grande parte dos espaços políticos são predominantemente masculinos. Muitas mulheres se sentem desconfortáveis de estar num espaço como esse. Tal predominância pode ter como reflexo uma prática política com valores e atitudes machistas, que devem ser combatidos. As mulheres devem ser incentivadas a participar de todos os espaços políticos. - As obrigações do lar, que recaem sobre as mulheres pesam mais para sua militância. Os pais, namorados, maridos e filhos podem ser um obstáculo dificultando dedicação e tempo. Devemos combater essa situação sempre que possível/necessário e ao mesmo tempo garantir mecanismos que paliativos como creches. - O medo e a violência sexista recai sobre as mulheres e para muitas pode não ser possível reuniões em determinados locais e horários. É importante atenção a isso. - Práticas políticas autoritárias, personalismos e a não coletivização das decisões são ações que dificultam e afastam a participação política das mulheres, além de ser expressão de uma política fortemente machista. A radicalização da democracia é fundamental também para as mulheres. É preciso então repensar a nós mesmos... “Nada causa mais pavor à Ordem do que mulheres que lutam e sonham”

Balanço da gestão 36 da UNE (2007-2009) e perspectivas para o ME Nacional Vinícius Almeida Ex-Diretor de Universidades Públicas da UNE (2007-2009) Apesar do caráter autobiográfico, procuro nesse texto apresentar uma análise fruto de uma experiência coletiva, não somente compreendida a partir de meu grupo, o Levante, fundado durante minha gestão na UNE, mas sim de todos os grupos combativos e oposicionistas a atual direção desta entidade. Tenho objetivo de contribuir e, consequentemente, propor uma reorientação nas opções da esquerda no movimento, em especial daqueles que propõem a ruptura com a UNE, ou a não participação dos estudantes nos espaços da mesma. Enfim, antes uma relatoria daquilo “que eu fiz” como diretor da UNE ou “do que eu achei” da gestão que participei, o objetivo central aqui é ajudar em respostas para paradigmas já clássicos no movimento nacional. Achar o motivo por que os setores anti-governistas não estão unidos em uma só entidade, ou na disputa de uma. Organizar um balanço a partir de dados externos ao movimento, grupos envolvidos e além das diferenças corporativas. Antes da gestão: formação de Frente de Luta e esperança na unidade Começamos o retrospecto pelo ano de 2006. Como muitos sabem, no ano de reeleição do governo Lula, foi costurada uma política de alianças entre os setores no movimento estudantil apoiados no campo governista que se unificou de tal forma que foi capaz de impor uma derrota avassaladora em quase todos os DCEs dirigidos pela esquerda do movimento. Esse cenário trágico foi um banho de água fria em nossa construção, mas atingiu de maneira mais dura o PSTU e sua proposta de nova entidade na época, a CONLUTE. Nesse cenário, somente restaram dois DCEs combativos para contar história: Unicamp e UFF. Junto do Fórum de Executivas e Federações de Curso (FENEX), esse DCEs, grupos e independentes se reuniram no dia 17 de dezembro de 2006 para construir uma proposta de Frente. Estava criada nesse dia a Frente de Luta contra a Reforma Universitária. Como principal óbvia bandeira dessa Frente, o combate a Reforma Universitária tinha perdido muito o seu fôlego nos anos anteriores. Isso era motivado principalmente pelo fato de que os grupos posicionados contra as medidas do governo


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Balanço da gestão federal que abrangiam essa (contra)Reforma estavam em processo de profundo embate, em cima de uma polêmica de outra natureza.

setores governistas e outros rompidos com a UNE, em especial o PSTU. Motivos para dividir existiam, alguns justificáveis outros não.

Dentro ou fora da UNE: A marca de uma geração

A defesa da Reforma Neoliberal do ensino superior por parte da direção governista era contraditória com a necessidade de lutar pelos estudantes. Por outro lado, um erro que foi repetido ao longo desses dois anos, era o de priorizar a disputa pela diferenciação nas bandeiras e não assumindo as bandeiras unitárias de luta, sem deixar a contradição para aqueles que, na prática, defendiam o governo e atacavam os estudantes.

Desde o primeiro ano do Governo Lula, as esperanças depositadas no mesmo de transformação social e avanço nas bandeiras dos movimentos sociais se apagaram com a manutenção da política econômica neoliberal que se desdobrou, assim como em Fernando Henrique, em diversas contraReformas. A primeira foi a da Previdência, depois a Tributária e, por fim, a Universitária. Esta última atingiu em cheio as expectativas do movimento universitário como um todo. Porém, a UNE, por ter uma direção burocratizada e altamente ligada institucionalmente ao Governo Federal, renunciou de sua defesa dos estudantes para defender as políticas de educação de Lula, mesmo que semelhantes as de FHC, que a mesma combateu nos anos anteriores. Por esse argumento, de “traição”, o PSTU apontou para uma ruptura com a UNE, ou seja, não somente com a linha de direção, construindo representações alternativas que desautorizavam a representação da entidade nacional a partir de sua posição governista, mas também passaram a defender a não participação de seus fóruns. Infelizmente, a maior consequência dessa política não foi a desconstrução da referência da entidade representação estudantil para a ascensão de uma nova. Ao contrário, como não havia consenso entre os diversos setores de Oposição a, naquele momento, optar pela ruptura, a partir da superestimação do debate organizativo (dentro ou fora da UNE) gerou-se uma enorme divisão que enfraqueceu esse movimento unitário e abriu espaço para uma retomada governista. Gestão 2007-2009 da UNE – mais governista do que nunca! No dia 11 de agosto de 2007 tomava posse uma nova gestão de diretores e diretoras da União Nacional dos Estudantes em sua antiga sede, no Rio de Janeiro. O discurso de posse da presidente Lúcia Stumpf era enfatizando a necessidade da entidade “ir para as ruas”. Era anunciada a jornada de lutas pela educação, em conjunto com diversos movimentos sociais, como o MST. Mesmo a oposição tinha grande expectativa diante de que o movimento estudantil lutasse com bandeiras históricas unitárias, estando junto apesar da divergência sobre o Governo Lula. Devemos considerar os debates, esvaziados, e o esforço do movimento combativo em unificar pautas com o governismo estudantil. Contudo, ficou claro uma grande indisposição de construção entre

Para traduzir melhor essa crítica, vejamos a pauta central dessa jornada de lutas: a defesa da erradicação do analfabetismo e a derrubada dos vetos ao Plano Nacional de Educação. Com relação ao primeiro, mesmo com um índice de aprovação impressionante, Lula da Silva ao longo de seus quase sete anos de mandato avançou muito pouco na diminuição desse problema, coisa que governos como o venezuelano, no mesmo período, alcançou plenamente. Sobre os vetos do PNE, nenhum avanço. As verbas para a educação sofreram inclusive no ano 2008 um corte superior a um bilhão de reais. A reestruturação das universidades concorre a busca da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Além de que o novo vestibular prejudica as regionalidades e avança na elitização do ensino superior público. Dessa forma, essas defesas, pretensamente unitárias, somente cabem a setores contrários a política de educação do governo federal atual, ou mesmo a estudantes autônomos ao mesmo, que não é o caso da direção governista da UNE. Nesse sentido, a construção de jornadas, atos, lutas cuja pauta seja unitária e em combate aos governos, imporia uma contradição aqueles que o defendem e assumem uma participação nas mesmas. Ao longo da gestão foram vistas outras manifestações do mesmo fenômeno, que foi revelando mais ainda o atrelamento da união dos estudantes com a união governamental. REUNI: uma luta concreta e um debate complexo Inspirado fortemente pelo modelo Universidade Nova do então Reitor da UFBA, Naomar de Almeida, o Decreto 6096/07 instituiu o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, mais conhecido como REUNI. Seu método impositivo às universidades e suas metas absurdas de ampliação das vagas desproporcionais a estrutura, verba e recursos humanos necessários insuflou os estudantes dessas instituições em todos o país, gerando o maior movimento combinado de ocupações de reitorias do século XXI, à revelia da posição da direção majoritária da UNE e em embate com o governo federal.


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Balanço da gestão Desde meus últimos dias como diretor do DCEUFF até esse furacão de mobilizações autônomas (mesmo surpreso com a dimensão da coisa) havia uma certeza de nosso posicionamento político contrário a esse Decreto, e em defensa do debate democrático na universidade sobre os seus rumos. Ficava revelada para uma nova geração de estudantes e ativistas, do que se tratavam as carcomidas e autoritárias estruturas da universidade. Conselhos Universitários votaram a favor do REUNI, sem nenhum debate, com a presença da polícia e, quando necessário, com uma repressão àqueles que ousassem resistir. Apesar da derrota anunciada e a implementação do REUNI ocorrer a partir do ano seguinte, o movimento reconquistou seus laços com os estudantes e muitos DCEs foram retomados pela esquerda, como o DCE UFRJ, UFMG, UnB, UFS, dentro outros. Pudemos participar de muitas ocupações, mas pouco foi articulado nacionalmente pela Frente de Luta, que já não era mais somente “contra a Reforma” mas também contra o REUNI. Essa fragilidade ia custar caro no momento seguinte em que a auto-construção falou mais alto do que a unidade. O fim da Frente Sucedendo a uma leva de militantes que vivenciaram os erros da divisão da esquerda, novos militantes tinham em suas mãos a prova pela experiência concreta que a unidade poderia ser melhor para todos os grupos. Mesmo numa lógica pragmática, ao compararmos 2006 com 2007, todas as forças cresceram isoladamente mais no primeiro do que no segundo ano. Entretanto, um grupo teve o maior crescimento nesse ano, muito em função de uma organização prévia, apesar de suas sucessivas derrotas no passado. Era o PSTU, que pouco a pouco via espaço para recolocar seu debate divisionista de construção de uma nova entidade alternativa a UNE. Mesmo sabendo que a Oposição de dentro da UNE, reconhecida pela Frente de Oposição de Esquerda, tinha mais peso em presença de DCEs e influencia no movimento que eles, acharam por bem priorizar esse debate que a construção de uma ferramenta unitária. Por outro lado, campos como o Contraponto e Rebele-se viam no PSTU uma ameaça constante a nossa linha geral de disputa da União Nacional dos Estudantes por dentro, pelo seus fóruns e reconhecendo a sua direção, apesar de construir alternativamente o movimento com linha política diferente. As tensões tiveram ápice em janeiro de 2008, com a implosão da plenária da Frente de Luta ocorrida na UFRJ, organizada por nós que iríamos fundar o Levante e éramos referenciados na tese do CONUNE 2007 Nós Não Vamos Pagar Nada. A polêmica maior, que podemos ver hoje como absolutamente fútil era a realização ou não de um plebiscito do RE-

UNI, além da participação ou não da nova Jornada de lutas pela educação, anteriormente construída por todas as forças do movimento. O PSTU era refratário a idéia de participar da Jornada, e queria priorizar o plebiscito, a Frente de Oposição de Esquerda (FOE) como um todo achava questionável a idéia de um plebiscito naquele momento, porém tinham alguma disposição de construir outras propostas. A Jornada de Lutas futuramente não foi muito a frente, a exceção do Rio de Janeiro, que foi construída apenas por setores combativos e contou com um ato no dia 28 de março em memória pelos 40 anos da morte do estudante Edson Luiz pela Ditadura militar. A direção majoritária da UNE fez um ato também, bem menor, e vergonhosamente recebendo o governador Sérgio Cabral numa solenidade. Este governante foi alvo duro de falas no nosso ato pela sua política fascista de repressão, corrupção e violência no Rio de Janeiro. Com o tempo, a proposta do PSTU de nova entidade foi sendo colocada de forma mais explícita, considerando um balanço de que o veto dos setores de dentro da UNE na Frente de Luta impedia o funcionamento da mesma para referência dos estudantes em âmbito nacional. Argumento inegável, mas que não justificou a repetição do erro de apostar num caminho solo de uma estrada bem esburacada e castigada chamada movimento estudantil. A Caravana dos milhões e a luta contra as Fundações Desde a primeira reunião da executiva da UNE dessa gestão, em setembro de 2007, foi apresentado pela direção majoritária uma proposta de Caravana da Saúde. Estava presente também a representação da DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina). Foi construído, depois disso, um GT responsável pela organização da Caravana, com meta de acompanhar todos os estados e fazer diversos debates. Participamos de todas as reuniões desse GT que fomos convocados, inclusive mobilizando outras executiva da área de Saúde (Enfermagem, Nutrição, principalmente). Nesse ínterim coordenamos uma construção com as executivas de saúde de uma campanha contra as Fundações Estatais de Direito Privado, bandeira que todo o movimento de saúde encampava naquele momento, especialmente os trabalhadores. Os problemas começaram na medida em que descobrimos que a Caravana da Saúde seria financiada pelo Ministério da Saúde, inviabilizando a discussão de Fundações nela, visto que o Ministério defendia sua implementação e não abriria margem para um debate contrário. Resultado: as executivas de saúde por bem optaram não construir a Carava-


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Balanço da gestão na e mais uma vez a direção majoritária escolheu o governo federal ao movimento estudantil para construir política. Pior ainda quando foi revelado que mais de R$ 10 milhões foram gastos nessa proposta do Ministério da Saúde e nada foi explicado pela direção majoritária de como é que foi isso gasto.

Obs.: Uma consideração importante foi que, nosso problema nessa ocasião, como veremos em outros momentos, foi a descontinuidade de uma boa política. A campanha contra as Fundações não foi muito para frente, já que não fizemos nada além de um adesivo. Isso porque havia pouco amadurecimento desse novo movimento engajado sobre as possibilidades de disputa da UNE, que não estão meramente pautadas por disputa de cargos, mas principalmente por uma capacidade de, coordenado por um coletivo, articular iniciativas de diversas esferas do movimento, desde a diretoria de oposição da UNE, passando por executivas e chegando na base das universidades. De fato, o saldo político de levarmos a frente a campanha contra as Fundações certamente fortaleceria hoje o debate sobre OSCIPs e até mesmo sobre o REUNI, pois se veiculam numa mesma política de Estado para o país. Plenária de Públicas Talvez o momento de ápice de nossa intervenção num espaço da UNE tenha sido o CONEG em junho de 2008. Ocorrido logo após a ocupação da UnB, que derrubou o reitor Timothy, o evento acontecia em um momento de grande fortalecimento da Oposição de Esquerda, visto que cumpriu um papel decisivo naquela ocupação. Infelizmente não mais a Frente de Luta podia confirmar sua força, pois já havia um divisão irremediável de seus grupos. Mas no 56o Conselho Nacional de Entidades Gerais, fomos capazes de articular uma experiência a partir dos DCEs UFRJ, UFF e UnB que foi sui generis na breve história da oposição da UNE no tempo recente. A partir do argumento de que estávamos suprindo uma demanda da diretoria de Universidades Públicas, levantamos para a direção majoritária de uma Plenária de Públicas da UNE, espaço tradicional da entidade na década de 90, pois articulava-se com as universidades mais mobilizadas do país. Acontecendo o espaço, deliberamos uma carta que se posicionava contra as principais políticas privatizantes no período, em especial as Fundações Privadas, pivô da corrupção no caso UnB, Fundações Estatais e o REUNI. Com isso, fechava um ciclo de lutas com uma articulação com 17 DCEs presentes (dos 25 credenciados no CONEG) e fazia uma grande demonstração de força para o futuro da disputa da entidade nacional. Como na campanha contra as Fundações, a políti-

ca da Plenária de Públicas não foi a frente e se perdeu na falta de mobilização e articulação política da Oposição, ainda conhecida por FOE naquele momento. Nesse CONEG também começamos o debate de um novo coletivo com a presença de apenas sete militantes. Menos de um ano depois, seria fundado o Levante num Seminário com mais de 40 participantes. Somos todos sem terra Já no período do CONEG, muitas lutas aconteciam, em especial no Rio Grande do Sul, onde ocorreu uma série de prisões de militantes do MST a partir do relatório do Ministério Público local, que criminalizava as principais atividades deste movimento, até mesmo sua escola de formação. Em vários estados participamos de uma mobilização em defesa do MST conhecida pela bandeira “Somos Todos sem Terra”. Particularmente participei da organização do ato no Rio de Janeiro, com cerca de 200 ativistas, dentre entidades, ONGs de Direitos Humanos e outros movimentos solidários aos semterra e sua luta. Essa mobilização se somou a iniciativa proposta pela Via Campesina de construção do Encontro Nacional da Juventude do Campo e da Cidade, reunindo mais de 1000 jovens na UFF, com participação na organização do espaço do DCE-UFF e da Oposição de Esquerda. Fomos capazes de estreitar mais os laços dos movimentos sociais de juventude e avançar até um ato no Rio de Janeiro contra a criminalização dos movimentos no Rio de Janeiro de ampla participação e que fechou a Avenida Rio Branco com milhares de jovens. O petróleo tem que ser nosso Ao longo do ano de 2008 começamos a acompanhar o espaço da Plenária nacional contra a privatização do Petróleo e Gás. Seu lançamento no Rio de Janeiro foi em março e, pouco a pouco, foi se transformando numa das nossas grandes pautas da Oposição, em especial pela peculiaridade de Haroldo Lima, presidente da ANP (Agência Nacional do Petróleo), responsável pelos leilões do petróleo ser do PCdoB, partido que aparelha a UJS, corrente majoritária na UNE. Entidade que estava, em plena década de 1950, na campanha “O Petróleo é nosso”, ajudando a garantir o monopólio de exploração que agora era quebrado pelos leilões de FHC e Lula. Portanto, a extrema contradição do papel da UNE hoje, se calando sobre os leilões, com a do passado era um excelente motor para a Oposição de esquerda agir e se diferenciar. Em dezembro de 2008 participamos da organização do ato de ocupação da Petrobrás no Rio de Janeiro, que denunciou o 10o leilão ocorrendo no mesmo dia e deixamos claro para os movimentos sociais que existiam duas UNEs no movimento estudantil, uma de luta e outra governista. Esses laços foram reforçados pela nossa participação nas Plenárias Na-


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Balanço da gestão cionais seguintes, principalmente a de Guararema, na escola Florestan Fernandes, em que aprovamos a realização de um ato pela campanha unificada do petróleo com a UNE, em seu Congresso, em junho de 2009. O CONEB e o fim da FOE Já no CONEG houve uma votação bem tensa sobre a data do CONEB dessa gestão (Conselho Nacional de Entidades de Base), chegando a ter contagem, pois houve um racha do PCdoB com o PT naquele momento. Foi a segunda vez que vi uma contagem num fórum da UNE que não fosse a executiva. O crescimento da FOE lá era nítido e os impactos do REUNI na mudança de correlação de forças dos DCEs também. Porém mesmo com forte pressão, o CONEB ocorreu numa data e local totalmente inadequados para a garantia de um bom espaço político de construção. Foi aprovado para ser em Salvador, em janeiro de 2009, junto da Bienal de Arte e Cultura da UNE. Na prática o CONEB foi tratado pela direção majoritária como um espaço apêndice da Bienal, sendo sua mobilização muito mais motivada para um evento quase turístico, e não um espaço de profundo debate político. Nossa intervenção foi ainda mais prejudicada pela proximidade das datas com o Fórum Social Mundial em Belém, espaço importantíssimo de construção política dos movimentos e onde fundamos o coletivo Levante. Naquele momento, a Frente de Oposição de Esquerda estava para ruir. O campo Rebele-se (ligado ao PCR) já havia saído dela e o próximo a finalizar sua participação era o campo Contraponto. Para estes, no entanto, mais do que não participar, eles defendiam o fim da FOE, considerando que ela não existia de fato, e atacavam muito nossa intervenção, ainda identificada como Nós Não Vamos Pagar Nada, alegando que usamos o nome da FOE para nos auto-construir. A falta de um coletivo articulado e organizado para defesa e construção da frente naquele período falou muito alto. A dificuldade de manter vivo o debate da necessidade de um frente nas universidades, somado às visões equivocadas de grupos que nunca quiseram de fato o modelo da frente persistisse, interromperam nossos maiores esforços, nos impondo uma derrota e ao conjunto dos movimentos e entidades nas universidades contrário aos rumos do movimento estudantil atual. Meia-Entrada Irrestrita Nossa intervenção tampouco se abalou com o fim da FOE. Ainda no final do ano de 2008 era anunciado a votação de um projeto de lei que impunha sérias restrições ao direito de meia-entrada para estudantes em casas de show, estádios, cinemas e teatros. Como resposta, um grande movimento autônomo dos estudantes, principalmente no Rio

de Janeiro. No dia 28 de março, esse movimento realizou uma ocupação no cinema Arteplex Botafogo, Zona Sul da capital do estado do RJ com mais de 300 estudantes. Até hoje nada foi aprovado o que pode constituir uma vitória política de nosso movimento. Pré-CONUNE No último CONEG anterior as eleições de delegados e delegadas para o Congresso da UNE de 2009, credenciamos o maior número de entidades dentre os coletivos de Oposição, o que demonstrava uma força com relação a nosso início. Foi definido o nome do coletivo, Levante, naquele espaço. Aqui devemos considerar que, diante de um cenário de profunda fragmentação dos grupos de Oposição, desconfianças e brigas por temas absolutamente pontuais formaram um cenário positivo para construção a parte de uma perspectiva ampla e dificultaram ainda mais os planos desse novo coletivo, que era de unir a esquerda e transformar o movimento estudantil, principalmente as suas práticas, que não abrangiam somente os setores majoritários da UNE, mas também sua Oposição e até mesmo setores rompidos com a entidade, como o PSTU. Levava em conta nós mesmos, que erramos em algumas montagens de chapa, deixando-se levar pela pequena política também. Mesmo assim, esse período foi ainda de boas iniciativas. A mais importante delas foi a nossa participação no Encontro de Mulheres Estudantes, em que construímos uma tese “Flores no asfalto” e dialogamos com muitas companheiras no espaço, coisa que nenhum outro grupo de Oposição foi capaz de fazer. Tivemos uma ótima intervenção também no Congresso da UEE-RJ, que participamos quase todos pela primeira vez e elegemos em nossa chapa dois nomes para a executiva da entidade. Conseguimos, portanto, usar esse período para preparar bem nossos militantes para as dificuldades que enfrentaríamos no CONUNE. CONUNE 2009 e futuro Nosso coletivo realizou um balanço sobre a intervenção da Oposição de Esquerda no CONUNE 2009, o qual participei da elaboração e contribui. Não cabe aqui abrir um balanço particular diferente daquele. Somarei apenas que olhando hoje o cenário da Oposição, fica claro que a intransigência da construção de uma Frente unitária por parte dos coletivos de esquerda não levou a uma proposta mais eficaz e positiva de propaganda de uma contraposição a direção majoritária da UNE. Cabe o coletivo Levante, junto de outros, retomar esse ideal para os novos militantes, pois os militantes envelhecem, se formam e seguem suas vidas, mas os sonhos não envelhecem!


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