Caderno de Textos do 1º Encontro Desgovernado de Formação Politica e Militante

Page 1


Apresentação "Você faz parte de tudo. Aprende, não perde nada das discussões, do silêncio. Esteja sempre aprendendo por nós e por você. Você não será ouvinte diante da discussão, não será cogumelo de sombras e bastidores, não será cenário para nossa ação!" (Bertold Brecht - Precisamos de você) Bem vindx ao 1º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante. O caderno de textos que segue reúne textos clássicos do marxismo e textos atuais. Mas não se engane, aqui você não vai encontrar textos mastigados que ensinam, a luz de grandes pensadores da luta dos trabalhadores no mundo, como agir hoje. A formação política está presente em todos os momentos da atuação política de nosso coletivo. Não enxergamos essa formação como a apreensão um conjunto de textos e diretrizes de um modelo pré-determinado de socialismo e de revolução. Para nossa formação político militante, conhecer as formulações que corresponderam a um determinado período e experiência histórica e espacial são fundamentais para pensar as respostas que aqueles que pretendem mudar o mundo a partir da organização coletiva e da luta precisam dar às necessidades do tempo presente. Não nos basta reproduzir jargões do marxismo ou fórmulas prontas da militância. Formação política, para nós, é a apreensão, questionamento e redefinição de conceitos (categorias) que representem o movimento da realidade, ampliando nossa compreensão do real e capacidade de transformá-lo. Não construiremos outro mundo radicalmente diferente sem um questionamento profundo das formas de produzir e demais relações sociais no capitalismo. Para esse Encontro pensamos uma dinâmica a ser proposta para cada ponto, e cada um dos textos selecionados servirá de provocação para os debates. Em primeiro lugar propomos um pacto coletivo de disciplina e responsabilidade com a dinâmica, o tempo e os temas acordados.

Programação 08:00 – Café da Manhã coletivo 09:00 – Apresentação e compromissos coletivos 10:00 – É possível mudar o mundo? O papel dos socialistas na história Texto:

K. Marx, F. Engels - Manifesto do Partido Comunista Coletivo Desgovernar - Manifesto Pelo Fim da Barbárie

11:00 – Grupo de Discussão (perguntas-guia com base na discussão do ponto anterior) 12:00 – Painel de apresentação das discussões dos grupos 13:00 – Almoço 14:00 - As lutas parciais e Emancipação Humana: qual a relação entre a militância cotidiana e um projeto revolucionário? Texto:

K. Marx - Sobre a questão judaica (trechos) A. Gramsci - Cadernos do Cárcere nº 13

15:00 – Grupos de Discussão Temático Texto:

Luciene Lacerda e Meire Reis - Feminismo Negro, uma visão militante Odete Cristina - O debate entre Anitta e Pitty e a liberdade sexual das mulheres no capitalismo

16:00 – Painel de apresentação das discussões dos grupos 17:00 – A desgovernar e as tarefas da conjuntura Texto:

Considerações sobre o Coletivo Desgovernar e a conjuntura

19:00 – Encerramento

Fique com a gente até o final, se organize para desgovernar!

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


1. Manifesto do Partido Comunista1 Karl Marx e Friedrich Engels

antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, gradações especiais.

Um espectro ronda a Europa - o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o Tzar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha.

A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Não fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às que existiram no passado.

Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista?

Entretanto, a nossa época; a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classes. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.

Duas conclusões decorrem desses fatos: 1º) O comunismo já é reconhecido como força por todas as potências da Europa; 2º) É tempo de os comunistas exporem, à face do mundo inteiro, seu modo de ver, seus fins e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo. Com este fim, reuniram-se, em Londres, comunistas de várias nacionalidades e redigiram o manifesto seguinte, que será publicado em Inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês. I – Burgueses e Proletários2 Até hoje, a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias3 tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta. Nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais. Na Roma 1

Escrito por K. Marx e F. Engels em dezembro de 1847 - janeiro de 1848. Publicado pela primeira vez em Londres, em fevereiro de 1848. Publicado de acordo com o texto da edição soviética em espanhol de 1951 traduzida da edição alemã de 1848. Confrontado com a edição Inglesa de1888, editada por F. Engels. Traduzido do espanhol. 2 Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Por proletários compreende-se a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, privados de meios de produção próprios, se vêem obrigados a vender sua força de trabalho para poder existir. (Nota de F. Engels à edição Inglesa de 1888). 3 Isto é, a história escrita. A pré-história, a história da organização social que precedeu toda a história escrita, era, ainda, em 1847, quase desconhecida. Depois, Haxthausen descobriu na Rússia a propriedade comum da terra, Maurer demonstrou que esta constituía a base social de onde derivavam historicamente todas as tribos teutônicas e verificou-se, pouco a pouco, que a comunidade rural com posse coletiva da terra era a forma primitiva da sociedade desde as Índias até a Irlanda. Finalmente, a organização interna desta sociedade comunista primitiva foi desvendada em sua forma típica pela descoberta decisiva de Morgan, que revelou a natureza verdadeira da gens e seu lugar na tribo. Com a dissolução dessas comunidades primitivas, começa a divisão da sociedade em classes diferentes e finalmente antagônicas. Procurei analisar este processo na obra Der Ursprung der Familie, des Privateigentums Und des Staats (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 2ª ed.; Stuttgart, 1886). (Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888. Ver o terceiro volume desta obra. (N. da Ed. Bras.)

Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses livres das primeiras cidades; desta população municipal, saíram os primeiros elementos da burguesia. A descoberta da América, a circunavegação da África ofereceram à burguesia em assenso um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral, das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até então, ao comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição. A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina. Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a procura de mercadorias aumentava sempre. A própria manufatura tomou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos. A grande industria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a extensão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e relegando a segundo plano as classes legadas pela Idade Média. Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e de troca. Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria na comuna4 aqui, República urbana 4

Comunas chamavam-se na França as cidades nascentes, mesmo antes de conquistar a autonomia local e os direitos políticos como terceiro estado, libertando-se de seus amos e senhores feudais. De modo geral. considerou-se aqui a Inglaterra país típico do desenvolvimento econômico da burguesia, e a França país típico de seu desenvolvimento político. (Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888). Assim, os habitantes das cidades, na Itália e na

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa. A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores naturais" ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do "pagamento à vista". Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu. as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal. A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias. A burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade Média, tão admirada pela reação, encontra seu, complemento natural na ociosidade mais completa. Foi a primeira a provar o que pode realizar a atividade humana: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as cruzadas. A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção constituía, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à França, chamavam suas comunidades urbanas, uma vez comprados ou arrancados aos senhores feudais os seus primeiros direitos a urna administração autônoma. (Nota de F. Engels à edição alemã de 1890).

indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se toma uma questão vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não semente no próprio país mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tomam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal. Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tomarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança. A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população do embrutecimento da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subordinou os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente. A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A conseqüência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só governo.. uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária. A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química A Indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto - que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no selo do trabalho social? Vemos pois: os meios de produção e de troca, sobre cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Em um certo grau do desenvolvimento desses meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, o regime feudal de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Entravavam a produção em lugar de impulsioná-la. Transformaram-se em outras tantas cadeias que era preciso despedaçar; foram despedaçadas.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


Em seu lugar, estabeleceu-se a livre concorrência, com uma organização social e política correspondente, com a supremacia econômica e política da classe burguesa. Assistimos hoje a um processo semelhante. As relações burguesas de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências internas que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção e de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já desenvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se reconduzida a um estado de barbaria momentânea; dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhe todos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tomaram-se por demais poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes que as forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipitam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. 0 sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu selo. De que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitálas. As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo, voltam-se hoje contra a própria burguesia. A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os proletários. Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só podem viver se encontrarem trabalho, o que só encontram trabalho na medida em que este aumenta o capital. Esses operários, constrangidos a vender-se diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como qualquer outro; em conseqüência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado. O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho, despojando o trabalho do operário de seu caráter autônomo, tiraram-lhe todo atrativo. O produtor passa a um simples apêndice da máquina e só se requer dele a operação mais simples, mais monótona, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua existência. Ora, o preço do trabalho5, como de toda mercadoria, é igual ao custo de sua produção. Portanto, à medida que aumenta 5

Mais tarde Marx demonstrou que o operário não vende seu trabalho, porém sua força de trabalho. Ver a respeito a Introdução de Engels à obra de Marx, Trabalho Assalariado e Capital, pág. 52 do presente volume (N. da R.).

o caráter enfadonho do trabalho, decrescem os salários. Mais ainda, a quantidade de trabalho cresce com o desenvolvimento do maquinismo e da divisão do trabalho, quer pelo prolongamento das horas de labor, quer pelo aumente do trabalho exigido em um tempo determinado, pela aceleração do movimento das máquinas, etc. A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do industrial capitalista. Massas de operários, amontoadas na fábrica, são organizadas militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo. Quanto menos o trabalho exige habilidade e força, Isto é, quanto mais a indústria moderna progride, tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres e crianças. As diferenças de idade e de sexo não têm mais importância social para a classe operária. Não há senão instrumentos de trabalho, cujo preço varia segundo a idade e o sexo. Depois de sofrer a exploração do fabricante e de receber seu salário em dinheiro, o operário torna-se presa de outros membros da burguesia, do proprietário, do varejista, do usurário, etc. As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenos comerciantes e pessoas que possuem rendas, artesãos e camponeses, caem nas fileiras do proletariado: uns porque seus pequenos capitais, não lhes permitindo empregar os processos da grande indústria, sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas; outros porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de produção. Assim, o proletariado é recrutado em todas as classes da população. O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Logo que nasce começa sua luta contra a burguesia. A princípio, empenham-se na luta operários isolados, .mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente operários do mesmo ramo de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês 'que os explora diretamente. Não se limitam a atacar as relações burguesas de produção, atacam os instrumentos de produção: destróem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e esforçam-se para reconquistar a posição perdida do artesão da Idade Média. Nessa fase, constitui o proletariado massa disseminada por todo o país e dispersa pela concorrência. Se, por vezes, os operários se unem para agir em massa compacta, isto não é ainda o resultado de sua própria união, mas da união da burguesia que, para atingir seus próprios fins políticos, é levada a pôr em movimento todo o proletariado, o que ainda pode fazer provisoriamente. Durante essa fase, os proletários não combatem ainda seus próprios inimigos, mas os inimigos de seus inimigos, isto é, os restos da monarquia absoluta, os proprietários territoriais, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses. Todo o movimento histórico está desse modo concentrado nas mãos da burguesia e qualquer vitória alcançada nessas condições é uma vitória burguesa. Ora, a indústria, desenvolvendo-se, não somente aumenta o número dos proletários, mas concentra-os em massas cada vez mais consideráveis; sua força cresce e eles adquirem

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


maior consciência dela. Os interesses, as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais, à medida que a máquina extingue toda diferença do trabalho e quase por toda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo. Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises comerciais que disso resultam, os salários se tomam cada vez mais instáveis; o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada vez mais precária; os choques individuais entre o operário e o burguês tomam cada vez mais o caráter de choques entre duas classes. Os operários começam a formar uniões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários; chegam a fundar associações permanentes a fim de se prepararem, na previsão daqueles choques eventuais. Aqui e ali a luta se transforma em motim. Os operários triunfam às vezes; mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre operários de localidades, diferentes, Ora, basta esse contato para concentrar as numerosas lutas locais, que têm o mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, em uma luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. E a união que os burgueses da Idade Média levavam séculos a realizar, com seus caminhos vicinais, os proletários modernos realizam em alguns anos por meio das vias férreas. A organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais firme, mais poderosa. Aproveita-se das divisões intestinas da burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra. Em geral, os choques que ocorrem na velha sociedade favorecem de diversos modos o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em guerra perpétua; primeiro, contra a aristocracia; depois, contra as frações da própria burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-se forçada a apelar para o proletariado, reclamar seu concurso e arrastá-lo assim para o movimento político, de modo que a burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política, isto é, armas contra ela própria. Demais, como já vimos, frações inteiras da classe dominante, em conseqüência do desenvolvimento da indústria são precipitadas no proletariado, ou ameaçadas, pelo menos, em suas condições de existência. Também elas trazem ao proletariado numerosos elementos de educação. Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da classe dominante, de toda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e agudo, que uma pequena fração da classe dominante se desliga desta, ligando-se à classe revolucionária, a classe que traz em si o futuro. Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou-se para a burguesia, em nossos dias, uma parte da burguesia passa-se para o proletariado, especialmente a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto. De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da

grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico. As classes médias - pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses - combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como classes médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionários, pois pretendem fazer girar para trás a roda da história. Quando são revolucionárias é em conseqüência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado. O lumpen-proletariado, esse produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade, pode ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação. Nas condições de existência do proletariado já estão destruídas as da velha sociedade. O proletariado não tem propriedade; suas relações com a mulher e os filhos nada têm de comum com as relações familiares burguesas. O trabalho industrial moderno, a sujeição do operário pelo capital, tanto na Inglaterra como na França, na América como na Alemanha, despoja o proletariado de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião, são para ele meros preconceitos burgueses, atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses. Todas as classes que no passado conquistaram o Poder, trataram de consolidar a situação adquirida submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes. Todos os movimentos históricos têm sido, até hoje, movimentos de minorias ou em proveito de minorias. O movimenta proletário é o movimento espontâneo da imensa maioria em proveito da imensa maioria. O proletariado, a camada inferior da sociedade atual, não pode erguer-se, pôr-se de pé, sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial. A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja na essência uma luta nacional, reveste-se contudo dessa forma nos primeiros tempos. É natural que o proletariado de cada país deva, antes de tudo, liquidar sua própria burguesia. Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que lavra na sociedade atual, até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia. Todas as sociedades anteriores, como vimos, se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas Mas para oprimir uma classe é preciso poder garantirlhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência de escravo. O servo, em plena servidão, conseguia tornar-se membro da comuna, da mesma forma que o pequeno burguês, sob o jugo do absolutismo feudal, elevava-se à categoria de burguês. O operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais abaixo das condições de sua própria classe. O trabalhador cai no pauperismo, e este cresce ainda mais rapidamente que a população e a riqueza. É, pois, evidente que a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade, como lei suprema, as

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


condições de existência de sua classe. Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo, mesmo no quadro de sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo cair numa tal situação, que deve nutri-lo em lugar de se fazer nutrir por ele. A sociedade não pode mais existir sob sua dominação, o que quer dizer que a existência da burguesia é, doravante, incompatível com a da sociedade. A condição essencial da existência e da supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos dos particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este baseia-se exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo o inconsciente, substitui o isolamento dos operários, resultante de sua competição, por sua união revolucionária mediante a associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria socava o terreno em que a burguesia assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis. II – Proletários e Comunistas Qual a posição dos comunistas diante dos proletários em geral? Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários. Não têm interesses que os separem do proletariado em geral. Não proclamam princípios particulares, segundo os quais, pretenderiam modelar o movimento operário. Os comunistas só se distinguem dos outros partidos operários em dois pontos: 1) Nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da nacionalidade. 2) Nas diferentes fases por que passa a luta entre proletários e burgueses, representam, sempre, e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto. Praticamente, os comunistas constituem, pois, a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário. O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado. As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sob os nossos olhos. A abolição das relações de propriedade que têm existido até hoje não é uma característica peculiar exclusiva do comunismo. Todas as relações de propriedade têm passado por modificações constantes em conseqüência das contínuas transformações das condições históricas. A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a propriedade feudal em proveito da propriedade burguesa. O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade geral, mas a abolição da propriedade burguesa.

Ora, a propriedade privada atual, a propriedade burguesa, é a última e mais perfeita expressão do modo de produção e de apropriação baseado nos antagonismos de classe, na exploração de uns pelos outros. Neste sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada. Censuram-nos, a nós comunistas, o querer abolir a propriedade pessoalmente adquirida, fruto do trabalho do indivíduo propriedade que se declara ser a base de toda liberdade, de toda atividade, de toda independência individual. A propriedade pessoal, fruto do trabalho e do mérito! Pretende-se falar da propriedade do pequeno burguês, do pequeno camponês, forma de propriedade anterior à propriedade burguesa? Não precisamos aboli-la, porque o progresso da indústria já a aboliu e continua a aboli-la diariamente. Ou por ventura pretende-se falar da propriedade privada atual, da propriedade burguesa? Mas, o trabalho do proletário, o trabalho assalariado cria propriedade para o proletário? De nenhum modo. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob a condição de produzir novo trabalho assalariado, a fim de explorá-lo novamente. Em sua forma atual a propriedade se move entre os dois termos antagônicos: capital e trabalho. Examinemos os dois termos dessa antinomia. Ser capitalista significa ocupar não somente uma posição pessoal, mas também uma posição social na produção. O capital é um produto coletivo: só pode ser posto em movimento pelos esforços combinados de muitos membros da sociedade, e mesmo, em última instância, pelos esforços combinados de todos os membros da sociedade. O capital não é, pois, uma força pessoal; é uma força social. Assim, quando o capital é transformado em propriedade comum, pertencente a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. O que se transformou foi apenas o caráter social da propriedade. Esta perde seu caráter de classe. Passemos ao trabalho assalariado. O preço médio que se paga pelo trabalho assalariado é o mínimo de salário, isto é, a soma dos meios de subsistência necessária para que o operário viva como operário. Por conseguinte, o que o operário obtém com o seu trabalho é o estritamente necessário para mera conservação e reprodução de sua vida, Não queremos de nenhum modo abolir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho, indispensável à manutenção e à reprodução da vida humana, pois essa apropriação não deixa nenhum lucro líquido que confira poder sobre o trabalho alheio. O que queremos é suprimir o caráter miserável desta apropriação que faz com que o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os interesse da classe dominante. Na sociedade burguesa, o trabalho vivo é sempre um meio de aumentar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista, o trabalho acumulado é sempre um meio de ampliar, enriquecer é melhorar cada vez mais a existência dos trabalhadores. Na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista é o presente que domina o passado. Na sociedade burguesa, o capital é independente e pessoal, ao passo que o indivíduo que trabalha não tem nem independência nem personalidade.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


É a abolição de semelhante estado de coisas que a burguesia verbera como a abolição da individualidade e da liberdade. E com razão. Porque se trata efetivamente de abolir a individualidade burguesa, a independência burguesa, a liberdade burguesa. Por liberdade, nas condições atuais da produção burguesa, compreende-se a liberdade de comércio, a liberdade de comprar e vender. Mas, se o tráfico desaparece, desaparecerá também a liberdade de traficar. Demais, toda a fraseologia sobre a liberdade de comércio, bem como todas as bazófias liberais de nossa burguesia só têm sentido quando se referem ao comércio tolhido e ao burguês oprimido da Idade Média; nenhum sentido têm quando se trata da abolição comunista do tráfico, das relações burguesas de produção e da própria burguesia. Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusai-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa maioria da sociedade. Em resumo, acusai-nos de querer abolir vossa propriedade. De fato, é isso que queremos. Desde o momento em que o trabalho não mais pode ser convertido em capital, em dinheiro; em renda da terra, numa palavra, em poder social capaz de ser monopolizado, isto é, desde o momento em que a propriedade individual não possa mais converter-se em propriedade burguesa, declarais quê a individualidade está suprimida. Confessais, pois, que quando falais do indivíduo, quereis referir-vos unicamente ao burguês, ao proprietário burguês. E este indivíduo, sem dúvida, deve ser suprimido. O comunismo não retira a ninguém o poder de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outro por meio dessa apropriação. Alega-se ainda que, com a abolição da propriedade privada, toda a atividade cessaria, uma inércia geral apoderar-seia do mundo. Se isso fosse verdade, há muito que a sociedade burguesa teria sucumbido à ociosidade, pois que os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham. Toda a objeção se reduz a essa tautologia: não haverá mais o trabalho assalariado quando não mais existir capital. As acusações feitas contra o modo comunista de produção, e de apropriação dos produtos materiais têm sido feitas igualmente contra a produção e a apropriação dos produtos do trabalho intelectual. Assim como o desaparecimento da propriedade de classe eqüivale, para o burguês, ao desaparecimento de toda produção, também o desaparecimento da cultura de classe significa, para ele, o desaparecimento de toda a cultura. A cultura, cuja perda o burguês deplora, é, para a imensa maioria dos homens, apenas um adestramento que os transforma em máquinas. Mas não discutais conosco enquanto aplicardes à abolição da propriedade burguesa o critério de vossas noções burguesas de liberdade, cultura, direito, etc. Vossas próprias idéias decorrem do regime burguês de produção e de propriedade burguesa, assim como vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é

determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe. A falsa concepção interesseira que vos leva a erigir em leis eternas da natureza e da razão as relações sociais oriundas do vosso modo de produção e de propriedade - relações transitórias que surgem e desaparecem no curso da produção - a compartilhais com todas as classes dominantes já desaparecidas. O que admitis; para a propriedade antiga, o que admitis para a propriedade feudal, já não vos atreveis; a admitir para a propriedade burguesa. Abolição da família! Até os mais radicais ficam indignados diante desse desígnio infame dos comunistas. Sobre que fundamento repousa a família atual, a família burguesa? No capital, no ganho individual. A família, na sua plenitude, só existe para a burguesia, mas encontra seu complemento na supressão forçada da família para o proletário e na prostituição pública. A família burguesa desvanece-se naturalmente com o desvanecer de seu complemento, e uma e outra desaparecerão com o desaparecimento do capital. Acusai-nos de querer abolir a exploração das crianças por seus próprios pais? Confessamos este crime. Dizeis também que destruímos os vínculos mais íntimos, substituindo a educação doméstica pela educação social. E vossa educação não é também determinada pela sociedade, pelas condições sociais em que educais vossos filhos, pela intervenção direta ou. indireta da sociedade, por meio de vossas escolas etc.? Os comunistas não inventaram essa intromissão da sociedade na educação, apenas mudam seu caráter e arrancam a educação à Influência da classe dominante. As declamações burguesas sobre a família e a educação, sobre os doces laços que unem a criança aos pais, tomam-se cada vez mais repugnantes à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares do proletário e transforma as crianças em simples objetos de comércio, em simples instrumentos de trabalho. Toda a burguesia grita em coro: "Vós, comunistas, quereis Introduzir a comunidade das mulheres!". Para o burguês, sua mulher nada mais é que um instrumento de produção. Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum, conclui naturalmente que haverá comunidade de mulheres. Não imagina que se trata precisamente de arrancar a mulher de seu papel atual de simples instrumento de produção. Nada mais grotesco, aliás, que a virtuosa indignação que, a nossos burgueses, inspira a pretensa comunidade oficial das mulheres que adotariam os comunistas. Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres. Esta quase sempre existiu. Nossos burgueses, não contentes em ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da prostituição oficial, têm singular prazer em comerem-se uns aos outros. O casamento burguês é, na realidade, a comunidade das mulheres casadas. No máximo, poderiam acusar os comunistas de quererem substituir uma comunidade de mulheres, hipócrita e dissimulada, por outra que seria franca e oficial. De resto, é evidente que, com a abolição das relações de produção atuais, a comunidade das mulheres que deriva dessas relações, isto é, a prostituição oficial e não oficial desaparecerá.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


Além disso, os comunistas são acusados de quererem abolir a pátria, a nacionalidade. Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem. Como, porém, o proletariado tem por objetivo conquistar o poder político e erigir-se em classe dirigente da nação, tomar-se ele mesmo a nação, ele é, nessa medida, nacional, embora de nenhum modo no sentido burguês da palavra. As demarcações e os antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade do comércio e o mercado mundial, com a uniformidade da produção industrial e as condições de existência que lhes correspondem. A supremacia do proletariado fará com que tais demarcações e antagonismos desapareçam ainda mais depressa. A ação comum do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições para sua emancipação. Suprimi a exploração do homem pelo homem e tereis suprimido a exploração de uma nação por outra. Quando os antagonismos de classes, no interior das nações, tiverem desaparecido, desaparecerá a hostilidade entre as próprias nações. Quanto às acusações feitas aos comunistas em nome da religião, da filosofia e da ideologia em geral, não merecem um exame aprofundado. Será preciso grande perspicácia para compreender que as idéias, as noções e as concepções, numa palavra, que a consciência do homem se modifica com toda mudança sobrevinda em suas condições de vida, em suas relações sociais, em sua existência social? Que demonstra a história das idéias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material? As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante. Quando se fala de idéias que revolucionam uma sociedade inteira, isto quer dizer que, no seio da velha sociedade, se formaram os elementos de uma nova sociedade e que a dissolução das velhas idéias marcha de par com a dissolução das antigas condições de vida. Quando o mundo antigo declinava, as velhas religiões foram vencidas pela religião cristã; quando, no século XVIII, as idéias cristãs cederam lugar às idéias racionalistas, a sociedade feudal travava sua batalha decisiva contra a burguesia então revolucionária. As idéias de liberdade religiosa e de liberdade de consciência não fizeram mais que proclamar o império da livre concorrência no domínio do conhecimento. "Sem dúvida, - dir-se-á -, as idéias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se no curso do desenvolvimento histórico, mas a religião, a moral, a filosofia, a política, o direito mantiveram-se sempre através dessas transformações. "Além disso, há verdades eternas, como a liberdade, a justiça, etc., que são comuns a todos os regimes sociais. Mas o comunismo quer abolir estas verdades eternas, quer abolir a religião e a moral, em lugar de lhes dar uma nova forma, e isso contradiz todo o desenvolvimento histórico anterior". A que se reduz essa acusação? A história de toda a sociedade até nossos dias consiste no desenvolvimento dos antagonismos de classes, antagonismos que se têm revestido de formas diferentes nas diferentes épocas,

Mas qualquer que tenha sido a forma desses antagonismos, a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores. Portanto, nada há de espantoso que a consciência social de todos os séculos, apesar de toda sua variedade e diversidade, se tenha movido sempre sob certas formas comuns, formas de consciência que só se dissolverão completamente com o desaparecimento total dos antagonismos de classes. A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade; nada de estranho, portanto, que no curso de seu desenvolvimento, rompa, de modo mais radical, com as idéias tradicionais. Mas deixemos de lado as objeções feitas pela burguesia ao comunismo. Vimos acima que a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia. O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas. Isto naturalmente só poderá realizar-se, a princípio, por uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesas, isto é, pela aplicação de medidas que, do ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção. Essas medidas, é claro, serão diferentes nos vários países. Todavia, nos países mais adiantados, as seguintes medidas poderão geralmente ser postas em prática: 1 - Expropriação da propriedade latifundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado. 2 - Imposto fortemente progressivo. 3 - Abolição do direito de herança. 4 - Confiscação da propriedade de todos os emigrados e sediciosos. 5 - Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo. 6 - Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios de transporte. 7 - Multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado, arroteamento das terras incultas e melhoramento das- terras cultivadas, segundo um plano geral. 8 - Trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura. 9 - Combinação do trabalho agrícola e industrial, medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente a distinção entre a cidade e o campo6.

6

Mais tarde Marx demonstrou que o operário não vende seu trabalho, porém sua força de trabalho. Ver a respeito a Introdução de Engels à obra de Marx, Trabalho Assalariado e Capital, pág. 52 do presente volume (N. da R.).

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


10 - Educação pública e gratuita de todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material, etc. Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do desenvolvimento, e sendo concentrada toda a produção propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção, as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe. Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos. III - Literatura Socialista e Comunista 1. O Socialismo Reacionário (a) O Socialismo Feudal Devido à sua posição histórica, as aristocracias da França o da Inglaterra viram-se chamadas a lançar libelos contra a sociedade burguesa. Na revolução francesa de julho de 1830, no movimento reformador inglês, tinham sucumbido mais uma vez sob os golpes desta odiada arrivista. Elas não podiam mais travar uma luta política séria; só lhes restava si luta literária. Ora, também no domínio literário, tornara-se impossível a velha fraseologia da Restauração7. Para criar simpatias, era preciso que a aristocracia fingisse descurar seus próprios interesses e dirigisse sua acusação contra a burguesia, aparentando defender apenas os interesses da classe operária explorada. Desse modo, entregou-se ao prazer de cantarolar sátiras sobre os novos penhores e de lhe segredar ao ouvido profecias de mau augúrio. Assim nasceu o socialismo feudal, onde se mesclavam jeremiadas e libelos, ecos do passado e ameaças sobre o futuro. Se por vezes a sua critica amarga, mordaz e espirituosa feriu a burguesia no coração, sua impotência absoluta de compreender a marcha da história moderna terminou sempre por um efeito cômico. A guisa de bandeira, estes senhores arvoraram a sacola elo mendigo, a fim de atrair o povo; mas logo que este acorreu, notou suas costas ornadas com os velhos brasões feudais o dispersou-se com grandes gargalhadas irreverentes. Uma parte dos legitimistas franceses e a "Jovem Inglaterra" ofereceram ao mundo esse espetáculo divertido8. Quando os campeões do feudalismo demonstram que o modo de exploração feudal era diferente do da burguesia, esquecem uma coisa: que o feudalismo explorava em circunstâncias e condições completamente diversas e hoje em dia caducas. Quando ressaltam que sob o regime feudal o proletariado moderno não exista, esquecem uma coisa: que a

8

Não se trata da Restauração inglesa de 1660-1689. mas da francesa de 1814-1830. (Nota de F. Engels A edição inglesa de 1888). “Jovem Inglaterra” Círculo fundado aproximadamente em 1842 e integrado por aristocratas, políticos e literatos do Partido Conservador Britânico. Seus mais destacados representantes eram Disraeli, Carlyle e outros (N. da R.)

burguesia moderna é precisamente um fruto necessário de seu regime social. Aliás, ocultam tão pouco o caráter reacionário de sua crítica, que sua principal queixa contra a burguesia consiste justamente em dizer que esta assegura sob o seu regime o desenvolvimento de uma classe que fará ir pelos ares toda a antiga ordem social. O que reprovam à burguesia é mais o ter produzido um proletariado revolucionário, que o haver criado o proletariado em geral. Por isso, na luta política participam ativamente de todas as medidas de repressão contra a classe operária. E, na vida diária, a despeito de sua pomposa fraseologia, conformam-se perfeitamente em colher os frutos de ouro da árvore da indústria e trocar honra, amor e fidelidade pelo comércio de lã, açúcar de beterraba e aguardente9. Do mesmo modo que o pároco e o senhor feudal marcharam sempre de mãos dadas, o socialismo clerical marcha lado a lado com o socialismo feudal. Nada é mais fácil que recobrir o ascetismo cristão com um verniz socialista. Não se ergueu também o cristianismo contra a propriedade privada, o matrimônio, o Estado? E em seu lugar não predicou a caridade e a pobreza, o celibato, a mortificação da carne, a vida monástica e a Igreja? O socialismo cristão não passa de água benta com que o padre consagra o despeito da aristocracia. (b) O Socialismo Pequeno-burguês Não é a aristocracia feudal a única classe arruinada pela burguesia, não é a única classe cujas condições de existência se estiolam e perecem na sociedade burguesa moderna. Os pequenos burgueses e os pequenos camponeses da Idade Média foram os precursores da burguesia moderna. Nos países onde o comércio e a indústria são pouco desenvolvidos, esta classe continua a vegetar ao lado da burguesia em ascensão. Nos países onde a civilização moderna está florescente, forma-se uma nova classe de pequenos burgueses, que oscila entre o proletariado e a burguesia; fração complementar da sociedade burguesa, ela se reconstitui incessantemente. Mas os indivíduos que a compõem se vêem constantemente precipitados no proletariado, devido à concorrência; e, com a marcha progressiva da grande indústria, sentem aproximar-se o momento em que desaparecerão completamente como fração independente da sociedade moderna e em que serão substituídos no comércio, na manufatura, na agricultura, por capatazes e empregados. Nos países como a França, onde os camponeses constituem bem mais da metade da população, é natural que os escritores que se batiam pelo proletariado contra a burguesia, aplicassem à sua crítica do regime burguês critérios pequenoburgueses e camponeses e defendessem a causa operária do ponto de vista da pequena burguesia. Desse modo se formou o socialismo pequeno-burguês. Sismondi é o chefe dessa literatura, não somente na França, mas também na Inglaterra.

9

Isto se refere em primeiro lugar à Alemanha, onde os latifundiários aristocratas e os junkers [pequena nobreza rural] (N. da Ed. Bras.) cultivam por conta própria grande parte de suas terras com ajuda de administradores, e possuem, além disso, grandes fábricas de açúcar de beterraba e destilarias de aguardente de batata. Os mais prósperos aristocratas britânicos não chegaram ainda a tanto; porém, também sabem como compensar a diminuição de suas rendas, emprestando seus nomes aos fundadores de toda classe de sociedades anônimas. de reputação mais ou menos duvidosa (Nota de Engels à edição inglesa de 1888).

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


Esse socialismo analisou com muita penetração as contradições inerentes às relações de produção modernas. Pôs a nu as hipócritas apologias dos economistas. Demonstrou de um modo irrefutável os efeitos mortíferos das máquinas e da divisão do trabalho, a concentração dos capitais e da propriedade territorial, a superprodução, as crises, a decadência inevitável dos pequenos burgueses e camponeses, a miséria do proletariado, a anarquia na produção, a clamorosa desproporção na distribuição das riquezas, a guerra industrial de extermínio entre as nações, a dissolução dos velhos costumes, das velhas relações de família, das velhas nacionalidades. Todavia, a finalidade real desse socialismo pequenoburguês é ou restabelecer os antigos meios de produção e de troca e, com eles, as antigas relações de propriedade e a sociedade antiga, ou então fazer entrar à força os meios modernos de produção e de troca no quadro estreito das antigas relações de propriedade que foram destruídas e necessariamente despedaçadas por eles. Num e noutro caso, esse socialismo é ao mesmo tempo reacionário e utópico. Para a manufatura, o regime corporativo; para a agricultura, o regime patriarcal: eis a sua última palavra. Por fim, quando os obstinados fatos históricos lhe fizeram passar completamente a embriaguez, essa escola socialista abandonou-se a uma verdadeira prostração de espírito. (c) O Socialismo Alemão ou o "Verdadeiro" Socialismo A literatura socialista e comunista da França, nascida sob a pressão de uma burguesia dominante, expressão literária da revolta contra esse domínio, foi introduzida na Alemanha quando a burguesia começava a sua luta contra o absolutismo feudal. Filósofos, semifilósofos e impostores alemães lançaram-se avidamente sabre essa literatura, mas esqueceram que, com a importação da literatura francesa na Alemanha, não eram importadas ao mesmo tempo as condições sociais da França. Nas condições alemães, a literatura francesa perdeu toda significação prática imediata e tomou um caráter puramente literário. Aparecia apenas como especulação ociosa sobre a realização da natureza humana. Por isso, as reivindicações da primeira revolução francesa só eram, para os filósofos alemães do século XVIII, as reivindicações da "razão prática" em geral; e a manifestação. da vontade dos burgueses revolucionários da França não expressava a seus olhos, senão as leis da vontade pura, da vontade tal como deve ser, da vontade verdadeiramente humana. O trabalho dos literatos alemães limitou-se a colocar as idéias francesas em harmonia com a sua velha consciência filosófica, ou antes a apropriar-se das idéias francesas sem abandonar seu próprio ponto de vista filosófico. Apropriaram-se delas como se assimila uma língua estrangeira: pela tradução. Sabe-se que os monges recobriam os manuscritos das obras clássicas da antigüidade pagã com absurdas lendas sabre santos católicos. Os literatos alemães agiram em sentido inverso a respeito da literatura francesa profana. Introduziram suas insanidades filosóficas no original francês. Por exemplo, sob a crítica francesa das funções do dinheiro, escreveram da "alienação humana"; sob a crítica francesa do Estado burguês, escreveram "eliminação do poder da universalidade abstrata", e assim por diante. A esta interpolação da fraseologia filosófica nas teorias francesas deram o nome de "filosofia da ação", "verdadeiro

socialismo", "ciência alemã do socialismo" "justificação filosófica do socialismo" etc. Desse modo, emascularam completamente a literatura socialista e comunista francesa. E como nas mãos dos alemães essa literatura deixou de ser a expressão da luta de uma classe contra outra, eles se felicitaram por ter-se elevado acima da "estreiteza francesa e ter defendido não verdadeiras necessidades, mas a "necessidade do verdadeiro"; não os interesses do proletário, mas os interesses do ser humano, do homem em geral, do homem que não pertence a nenhuma classe nem a realidade alguma e que só existe no céu brumoso da fantasia filosófica. Esse socialismo alemão que tão solenemente levava a sério seus desajeitados exercícios de escolar e que os apregoava tão charlatanescamente, perdeu, não obstante, pouco a pouco, seu inocente pedantismo. A luta da burguesia alemã e especialmente da burguesia prussiana contra os feudais e a monarquia absoluta, numa palavra, o movimento liberal, tornou-se mais sério. Desse modo, apresentou-se ao verdadeiro socialismo a tão desejada oportunidade de contrapor ao movimento Político as reivindicações socialistas. Pôde lançar os anátemas tradicionais contra o liberalismo, o regime representativo, a concorrência burguesa, a liberdade burguesa de imprensa, o direito burguês, a liberdade e a igualdade burguesas; pôde pregar às massas que nada tinham a ganhar, mas, pelo contrário, tudo a perder nesse movimento burguês. O socialismo alemão esqueceu, muito a propósito, que a crítica francesa, da qual era o eco monótono, pressupunha a sociedade burguesa moderna com as condições materiais de existência que lhe correspondem e uma constituição política adequada precisamente as coisas que, na Alemanha, se tratava ainda de conquistar. Para os governos absolutos da Alemanha, com seu cortejo de padres, pedagogos, fidalgos rurais e burocratas, esse socialismo converteu-se em espantalho para amedrontar a burguesia que se erguia ameaçadora. Juntou sua hipocrisia adocicada aos tiros e às chicotadas com que esses mesmos governos respondiam aos levantes dos operários alemães. Se o verdadeiro socialismo se tomou assim uma arma nas mãos dos governos contra a burguesia alemã, representava, além disso, diretamente um interesse reacionário, o interesse da pequena burguesia alemã. A classe dos pequenos burgueses, legada pelo século XVI, e desde então renascendo sem cessar sob formas diversas, constitui na Alemanha li verdadeira base social do regime estabelecido. Mantê-la é manter na Alemanha o regime estabelecido. A supremacia industrial e política da burguesia ameaça a pequena burguesia de destruição certa, de um lado, pela concentração dos capitais, de outro, pelo desenvolvimento ele um proletariado revolucionário. O verdadeiro socialismo pareceu aos pequenos burgueses como uma arma capaz ele aniquilar esses dois Inimigos. Propagou-se como uma epidemia. A roupagem tecida com os fios Imateriais da especulação, bordada com as flores da retórica e banhada de orvalho sentimental, essa roupagem na qual os socialistas alemães envolveram o miserável esqueleto das suas "verdades eternas", não fez senão ativar a venda de sua mercadoria entre tal público. Por outro lado, o socialismo alemão compreendeu cada vez mais que sua vocação era ser o representante grandiloqüente dessa pequena burguesia.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


Proclamou que a nação alemã era a nação tipo e o filisteu alemão, o homem tipo. A todas as infâmias desse homem tipo deu um sentido oculto, um sentido superior e socialista, que as tornava exatamente o contrário do que eram. Foi conseqüente até o fim, levantando-se contra a tendência "brutalmente destruidora" do comunismo, declarando que pairava imparcialmente acima de todas as lutas de classes. Com poucas exceções, todas as pretensas; publicações socialistas ou comunistas que circulam na Alemanha pertencem a esta imunda e enervante literatura10. 2. O Socialismo Conservador ou Burguês Uma parte da burguesia procura remediar os males sociais com o fim de consolidar a sociedade burguesa. Nessa categoria enfileiram-se os economistas, os filantropos, os humanitários, os que se ocupam em melhorar a sorte da classe operária, os organizadores de beneficências, os protetores dos animais, os fundadores das sociedades de temperança, enfim os reformadores de gabinete de toda categoria. Chegou-se até a elaborar esse socialismo burguês em sistemas completos. Como exemplo, citemos a Filosofia da Miséria de Proudhon. Os socialistas burgueses querem as condições de vida ela sociedade moderna sem as lutas e os perigos que dela decorrem fatalmente. Querem a sociedade atual, mas eliminando os elementos que a revolucionam e a dissolvem. Querem a burguesia sem o proletariado. Como é natural, a burguesia concebe o mundo em que domina como o melhor dos mundos. O socialismo burguês elabora em um sistema mais ou menos completo essa concepção consoladora. Quando convida o proletariado a realizar esses sistemas e entrar na nova Jerusalém, no fundo o que pretende é induzi-lo a manter-se na sociedade atual, desembaraçando-se, porém, do ódio que ele vota a essa sociedade. Uma outra forma desse socialismo, menos sistemática, porém mais prática, procura fazer com que os operários se afastem de qualquer movimento revolucionário, demonstrandolhes que não será tal ou qual mudança política, mas simplesmente uma transformação das condições de vida material das relações econômicas; que poderá ser proveitosa para eles. Notai que, por transformação das condições da vida material, esse socialismo não compreende, em absoluto, a abolição das relações burguesas de produção - o que só é possível por via revolucionária – mas, apenas, reformas administrativas fundamentadas nessas condições de produção e que, portanto, não afetam as realizadas sobre a base das próprias relações entre o capital e o trabalho assalariado, servindo, na melhor hipóteses, para diminuir os gastos da burguesia com seu domínio e simplificar o trabalho administrativo de seu Estado. O socialismo burguês só atinge uma expressão adequada quando se toma uma simples figura de retórica. Livre câmbio, no interesse da classe operária Tarifas protetoras, no interesse da classe operária! Prisões celulares 11, mo interesse da classe operária! Eis sua última palavra, a única pronunciada seriamente pelo socialismo burguês. Ele se resume nesta frase: os burgueses são burgueses no interesse da classe operária.

3. O Socialismo e o Comunismo Crítico-utópicos. Não se trata aqui da literatura que, em todas as grandes ,evoluções modernas, formulou as reivindicações do proletariado (escritos de Babeuf, etc.). As primeiras tentativas diretas do proletariado para fazer prevalecer seus próprios interesses de classe, feitas numa época de efervescência geral, no período da derrubada da sociedade feudal, fracassaram necessariamente não só por causa do estado embrionário do próprio proletariado, como devido à ausência das condições materiais de sua emancipação, condições que apenas surgem como produto do advento da época burguesa. A literatura revolucionária que acompanhava esses primeiros movimentos do proletariado teve forçosamente um conteúdo reacionário. Preconizava um ascetismo geral e um grosseiro igualitarismo. Os sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos, os de Saint-Simon, Fourier, Owen, etc., aparecem no primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia, período acima descrito. (Ver o cap. Burgueses e Proletários) Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo das classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhe seja próprio. Como o desenvolvimento dos antagonismos de classes marcha de par com o desenvolvimento da indústria, não distinguem tampouco as condições materiais da emancipação do proletariado e põem-se à procura de uma ciência social, de leis sociais, que permitam criar essas condições. A atividade social substituem sua própria imaginação pessoal; às condições históricas da emancipação, condições lantasistas; à organização gradual e espontânea do proletariado em classe, uma organização da sociedade pré-fabricada por eles. A história futura do mundo se resume, para eles, na propaganda e na prática de seus planos de organização social. Todavia, na confecção de seus planos, têm a convicção de defender antes de tudo os interesses da classe operária, porque é a classe mais sofredora. A classe operária só existe para eles sob esse aspecto de classe mais sofredora. Mas, a forma rudimentar da luta de classe e sua própria posição social os levam a considerar-se bem acima de qualquer antagonismo de classe. Desejam melhorar as condições materiais de vida para todos os membros da sociedade, mesmo dos mais privilegiados. Por conseguinte, não cessam de apelar indistintamente para a sociedade inteira, e mesmo se dirigem de preferência à classe dominante. Pois, na verdade, basta compreender seu sistema para reconhecer que é o melhor dos planos possíveis para a melhor das sociedades possíveis. Repelem, portanto, toda ação política e, sobretudo, toda ação revolucionária, procuram atingir seu fim por meios pacíficos e tentam abrir um caminho ao novo evangelho social pela força do exemplo, por experiências em pequena escala que, naturalmente, sempre fracassam. A descrição fantasista da sociedade futura, feita numa época em que o proletariado, pouco desenvolvido ainda, encara sua própria posição de um modo fantasista, corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa transformação da sociedade.

10

A tormenta revolucionária de 1848 varreu toda essa lastimável escola e tirou a seus partidários qualquer vontade de continuar brincando de socialismo. 0 principal representante e o tipo clássico desta escola é o Sr. Karl Grun. [Nota de Engels A edição alemã de 1890). 11 Na edição inglesa de 1888, editada por F. Engels, diz-se: Reforma penitenciária (Prison reform) (N. da Ed. Bras.).

Mas essas obras socialistas e comunistas encerram também elementos críticos. Atacam a sociedade existente em suas bases. Por conseguinte, forneceram em seu tempo materiais de grande valor para esclarecer os operários. Suas propostas

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


positivas relativas à sociedade futura, tais como a supressão da distinção entre a cidade e o campo, a abolição da família, do lucro privado e do trabalho assalariado, a proclamação da harmonia social e a transformação do Estado numa simples administração da produção, todas essas propostas apenas anunciam o desaparecimento do antagonismo entre as classes, antagonismo que mal começa e que esses autores somente conhecem em suas formas imprecisas. Assim, essas propostas têm um sentimento puramente utópico. A importância do socialismo e do comunismo críticoutópicos está na razão inversa do desenvolvimento histórico. À medida que a luta de classes se acentua e toma formas mais definidas, o fantástico afã de abstrair-se dela, essa fantástica oposição que se lhe faz, perde qualquer valor prático, qualquer justificação teórica. Eis porque, se, em muitos aspectos, os fundadores desses sistemas eram revolucionários, as seitas formadas por seus discípulos são sempre reacionárias, pois se aferram às velhas concepções de seus mestres apesar do ulterior desenvolvimento histórico do proletariado. Procuram, portanto, e nisto são conseqüentes, atenuar a luta de classes e conciliar os antagonismos. Continuam a sonhar com a realização experimental de suas utopias sociais: estabelecimento de falanstérios isolados, criação de colônias no interior, fundação de uma pequena Icária12, edição in 12 da nova Jerusalém e, para dar realidade a todos esses castelos no ar, vêem-se obrigados a apelar para os bons sentimentos e os cofres de filantropos, burgueses. Pouco a pouco, caem na categoria dos socialistas reacionários ou conservadores descritos acima, e só se distinguem deles por um pedantismo mais sistemático e uma fé supersticiosa e fanática na eficácia miraculosa de sua ciência social. Opõem-se, pois, encarniçadamente, a qualquer ação política da classe operária, porque, em sua opinião, tal ação só pode provir de uma cega falta de fé no novo evangelho. Desse modo, os owenistas, na Inglaterra, e os owenistas, na França, reagem respectivamente contra os cartistas e os reformistas13

IV - Posição dos Comunistas Diante dos Diversos Partidos de Oposição O que já dissemos no capítulo II basta para determinar a posição dos comunistas, diante dos partidos operários já constituídos e, por conseguinte, sua posição diante dos cartistas; na Inglaterra e dos reformadores agrários na América do Norte. Os comunistas combatem pelos interesses; e objetivos Imediatos da classe operária, mas, ao mesmo tempo, defendem é representam, no movimento atual, o futuro do movimento. Aliam-se na França ao partido democrata-socialista14 contra a

burguesia conservadora e radical, reservando-se o direito de criticar as frases e as ilusões legadas pela tradição revolucionária. Na Suíça, apoiam os radicais, sem esquecer que esse partido se compõe de elementos contraditórios, metade democratas-socialistas, na acepção francesa da palavra, metade burgueses radicais. Na Polônia, os comunistas apoiam o partido que vê numa revolução agrária a condição da libertação nacional, isto é, o partido que desencadeou a insurreição de Crac6via em 1846. Na Alemanha, o Partido Comunista luta de acordo com a burguesia, todas as vezes que esta age revolucionariamente: contra a monarquia absoluta, a propriedade rural feudal e a pequena burguesia. Mas nunca, em nenhum momento, esse Partido se descuida de despertar nos operários uma consciência clara e nítida do violento antagonismo que existe entre a burguesia e o proletariado, para que, na hora precisa, os operários alemães saibam converter as condições sociais e políticas, criadas pelo regime burguês, em outras tantas armas contra a burguesia, a fim de que,. uma vez destruídas as classes reacionárias da Alemanha, possa ser travada a luta contra a própria burguesia. É para a Alemanha, sobretudo, que se volta a atenção dos comunistas, porque a Alemanha se encontra nas vésperas de uma revolução burguesa; e porque realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização européia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII a revolução burguesa alemã, por conseguinte, só poderá ser o prelúdio imediato de uma revolução proletária. Em resumo, os comunistas apoiam em toda parte qualquer movimento revolucionário contra o estado de coisas social e político existente. Em todos estes movimentos, põem em primeiro lugar, como questão fundamental, a questão da propriedade, qualquer que seja a forma, mais ou menos desenvolvida, de que esta se revista. Finalmente, os comunistas trabalham pela união e entendimento dos partidos democráticos de todos os países. Os comunistas não se rebaixa a dissimular suas opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista! Os proletários nada têm a perder nela a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNIVOS!

12

Falanstérios eram chamadas as colônias socialistas projetadas por Charles Fourier. leária era o nome dado por Cabet a seu país utópico e, mais tarde, à sua colônia comunista na América. (Nota de F, Engels à edição inglesa de 1888). Owen chamou suas sociedades comunistas modelares de homecolonies (colônias no interior). Falanstério era o nome dos palácios sociais imaginados por Fourier. Chama-se Icária o pais fantástico cujas instituições comunistas Cabet descreve. (Nota de F. Engels à edição alemã de 1888). 13

Refere-se aos partidários do jornal Le Réforme, que se editava em Paris entre os anos 1843-1850. 14 Este partido era representado: no Parlamento, por Ledru-Rollin, na literatura por Luís Blanc, na imprensa diária por Le Réforme. O nome, democrata-socialista, significava, nos lábios de seus inventores, a parte do partido democrático ou republicano que tinha uma colorarão mais ou menos socialista. (Nota de F. Engels A edição inglesa de 1388). O que então se chamava, na Franca, Partido Democrata-Socialista era representado na política por Ledru-Rollin e na literatura por Luís Blanc; estava, pois, a cem

mil léguas de social-democracia alemã atual. (Nota de F. Engels à edição alemã de 1890).

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


2. Manifesto Desgovernar Vivemos tempos sombrios. Aparentemente governados pelas coisas. Mercadorias nos tomam como mercados, mercados nos tomam como mercadorias. Os homens e mulheres caminham pela terra na busca desenfreada por excedentes, que mesmo aos que não têm o básico se impõe pelo consumo de suas forças vitais. A forma capital parece tomar todos os espaços do planeta. Destruição da razão, destruição do desejo, do sonho e sobretudo da possibilidade humana de governar-se, de dirigir-se aos seus desejos. Vivemos a destrutividade capitalista em seu momento mais desenvolvido. Diferente do que dizem os “novo desenvolvimentistas” do PT, e parte da esquerda fora do governo, não existe nenhuma possibilidade de desenvolvimento capitalista sem destrutividade do mundo e avanço nos níveis de exploração. Negros, mulheres, imigrantes, gays, somos classificados como menos para gerarmos mais excedente. Somos os que recebem mais baixos salários e nossa pele justifica o aumento do refugo humano nas prisões e o extermínio em massa. Somos homens e mulheres descartáveis governados por uma lógica que nos é estranha. A lógica capitalista tudo governa, nossas formas de amar, de viver e até de morrer, nossas visões de mundo são portanto impregnadas deste modo de pensar que naturaliza os (des)governos do capital e de sua burguesia decadente. Esta ordem não têm muitas possibilidades a oferecer. O caráter histórico emancipatório dela se esgotou. Mas fomos acostumados a eternidade das coisas como são.

A esquerda também é governada por essas formas de pensar o mundo que eternizam o hoje. Possuíamos as fórmulas prontas de adaptação do mundo ao socialismo, que necessariamente consideravam a mudança na forma de distribuir as riquezas. Por isso, confundimos qualquer pequena mudança no horizonte da distribuição como progressivo e deixamos de questionar os fundamentos do modo de produzir capitalista que não tem outro fim senão gerar excedente. A historicidade se perdeu e inventamos diversas fórmulas prontas, ossificamos as divergências entre tradições teóricas da esquerda do século XIX e as adaptamos de forma patética as políticas mediocres que conseguimos propor. Alguns de nós ao buscar romper com o horizonte mediocre da adaptação e do reformismo mentiroso foram chamados de Desgovernados. Assumimos: queremos nos desgovernar e nos autogovernar coletivamente. Governada (pelo capital) é a esquerda que não se vê governada quando reproduz as hierarquias desta sociedade capitalista em sua organização e relação com movimentos sociais baseando-se em conhecimentos teóricos que não dispõe, para justificar o injustificável à um movimento que se proponha autogestionário. Governados estão também os teóricos Marxistas que tratam algumas categorias como eternas e não vivem as agruras de nosso tempo histórico. Com essa revista, nosso convite é outro: Desgovernar! Porque tudo que é sólido desmancha no ar.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


3. Sobre a questão judaica Karl Marx (...) A emancipação política do judeu, do cristão e do homem religioso em geral é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e, em geral, da religião. De modo peculiar à sua essência, como Estado, o Estado se emancipa da religião ao emancipar-se da religião de Estado, isto é, quando o Estado como tal não professa nenhuma religião, quando o Estado se reconhece muito bem como tal. A emancipação política da religião não é a emancipação da religião de modo radical e isento de contradições, porque a emancipação política não é o modo radical e isento de contradições da emancipação humana. O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre. E o próprio Bauer reconhece isto tacitamente quando estabelece a seguinte condição para a emancipação política: "Todo privilégio religioso em geral, incluindo, por conseguinte, o monopólio de uma igreja privilegiada, deveria ser abolido; se alguns, vários ou mesmo a grande maioria se acreditasse na obrigação de cumprir seus deveres religiosos, o cumprimento destes deveria ficar a seu próprio arbítrio, como assunto exclusivamente privado". Portanto, o Estado pode ter-se emancipado da religião, ainda que e inclusive, a grande maioria continue religiosa. E a grande maioria não deixará de ser religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente privado. Porém, a atitude do Estado em face da religião - e nos referimos aqui ao Estado livre - é a atitude diante da religião dos homens que formam o Estado. Donde se conclui que o homem se liberta por meio do Estado; liberta-se politicamente de uma barreira ao se colocar em contradição consigo mesmo, ao sobrepor esta barreira de modo abstrato e limitado, de um modo parcial. Deduz-se, além disso, que ao emancipar-se politicamente, o homem o faz por meio de um subterfúgio, através de um meio, mesmo que seja um meio necessário. Conclui-se, finalmente, ainda quando se proclame ateu por mediação do Estado, isto é, proclamando o Estado ateu, o homem continua sujeito às cadeias religiosas, precisamente porque só se reconhece a si mesmo mediante um subterfúgio, através de um meio. A religião é, cabalmente, o reconhecimento do homem através de um mediador. O Estado é o mediador entre o homem e a sua liberdade. Assim como Cristo é o mediador sobre quem o homem descarrega toda sua divindade, toda sua servidão religiosa, assim também o Estado é o mediador para o qual desloca toda sua não-divindade, toda sua não-servidão humana. (...) Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à emancipação prática. O homem se emancipa politicamente da religião ao bani-la do direito público para o direito privado. A religião já não é o espírito do Estado, onde o homem - ainda que de modo limitado, sob uma forma especial e numa esfera especial -

comporta-se como ser genérico, em comunidade com os outros homens; ela se converte, agora, no espírito da sociedade burguesa, da esfera do egoísmo, no espírito do bellum omnium contra omnes (5) Já não é a essência da comunidade, mas a essência da diferença. Converteu-se na expressão da separação do homem de sua comunidade, de si mesmo e dos outros homens, daquilo que foi em suas origens. Não é mais do que a confissão abstrata da inversão especial, do capricho particular, da arbitrariedade. A infinita dispersão da religião na América do Norte, por exemplo, já lhe dá exteriormente a forma de incumbência individual. A religião se viu pressionada a baixar ao nível dos interesses particulares e desterrada da comunidade como tal. Porém, não nos deixemos enganar sobre as limitações da emancipação política. A cisão do homem na vida pública e na vida privada, o deslocamento da religião em relação ao Estado, para transferi-la à sociedade burguesa, não constitui uma fase, mas a consagração da emancipação política, a qual, por isso mesmo, não suprime nem tem por objetivo suprimir a religiosidade real do homem. (...) Os membros do Estado político são religiosos pelo dualismo existente entre a vida individual e a vida genérica, entre a vida da sociedade burguesa e a vida política; são religiosos, na medida em que o homem se conduz, frente à vida do Estado, - que está muito além de sua individualidade real como se esta fosse sua verdadeira vida; religiosos, na medida em que a religião, aqui, é o espírito da sociedade burguesa, a expressão do divórcio e do distanciamento do homem em relação no homem. A democracia política é cristã na medica em que nela o homem, não apenas um homem, mas todo homem, vale como um ser soberano, como ser supremo; porem, o nomem em sua manifestação não-cultivada e não-social, o homem em sua existência fortuita, o homem tal qual se levanta e anda, o homem tal qual se acha corrompido por toda a organização de nossa sociedade, perdido de si mesmo, alienado, entregue ao império de relações e elementos inumanos; numa palavra, o homem que ainda não é um ser genérico real. A imagem fantástica, o sonho, o postulado do cristianismo, a soberania do homem, porém como um ser estranho, distinto do homem real, esta é, na democracia, realidade sensível, presente, máxima secular. (...) Vimos, portanto, como a emancipação política em relação à religião a deixa de pé, ainda que não se trate de uma religião privilegiada. A contradição em que se encontra o crente de uma determinada religião com sua cidadania nada mais é do que uma parte da contradição secular geral entre o Estado político e a sociedade burguesa. A consagração do Estado cristão reside na abstração da religião de seus membros, quando o Estado se professa como tal. A emancipação do Estado em relação à religião não é a emancipação do homem real em relação a esta. Por isto, não dizemos aos judeus, como Bauer: não podeis emancipar-vos politicamente se não vos emancipais radicalmente do judaísmo. Ao contrário, dizemos: podeis emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radical e absolutamente do judaísmo porque a emancipação política não implica emancipação humana. Quando vós, judeus, quereis a emancipação política sem vos emancipar humanamente, a meia-

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


solução e a contradição não residem em vós, mas na essência e na categoria da emancipação política. E, ao vos perceber encerrados nesta categoria, lhes comunicais uma sujeição geral. Assim como o Estado evangeliza quando, apesar de já ser uma instituição, se conduz cristãmente frente aos judeus, do mesmo modo o judeu pontifica quando, apesar de já ser judeu, adquire direitos de cidadania dentro do Estado. Mas, se o homem, embora judeu, pode emancipar-se politicamente, adquirir direitos de cidadania dentro do Estado, pode reclamar e obter os chamados direitos humanos? Bauer nega esta possibilidade. "O problema está em saber se o judeu, como tal, isto é, o judeu que se confessa obrigado por sua verdadeira essência a viver eternamente isolado dos outros, é capaz de obter e conceder aos outros os direitos gerais do homem". "A idéia dos direitos humanos só foi descoberta no século passado. Não é uma idéia inata ao homem, mas este a conquistou na luta contra as tradições históricas em que o homem antes se educara. Os direitos humanos não são, por conseguinte, uma dádiva da natureza, um presente da história, mas fruto da luta contra o acaso do nascimento, contra os privilégios que a história, até então, vinha transmitindo hereditariamente de geração em geração. São o resultado da cultura; só pode possui-los aquele que os soube adquirir e merecê-los". "Sendo assim, pode realmente o judeu chegar a possuir estes direitos? Enquanto permanecer judeu, a essência limitada que faz dele um judeu tem que triunfar necessariamente sobre a essência humana que, enquanto homem, o une aos demais homens e o dissocia dos que não são judeus. E, através desta dissociação, declara a essência especial que faz dele um judeu sua verdadeira essência suprema, diante da qual a essência humana tem que passar para segundo plano". "E, do mesmo modo, não pode o cristão, como tal, conceder nenhuma espécie de direitos humanos" (p. 19-20). Segundo Bauer, o homem tem que sacrificar o "privilégio da fé" se quiser obter os direitos gerais de homem. Detenhamo-nos, um momento, a examinar os chamados direitos humanos em sua forma autêntica, sob a forma que lhes deram seus descobridores norte-americanos e franceses. Eu parte, estes direitos são direitos políticos, direitos que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteúdo é a participação na comunidade e, concretamente, na comunidade política, no Estado. Estes direitos se inserem na categoria de liberdade política, na categoria dos direitos civis, que não pressupõem, como já vimos, a supressão absoluta e positiva da religião nem, tampouco, portanto e por exemplo, do judaísmo. Resta considerar a outra parte dos direitos humanos, os droits de l'homme,(6) e como se distinguem dos droits du citoyen.(7) Figura entre eles a liberdade de consciência, o direito de praticar qualquer culto. O privilégio da fé é expressamente reconhecido, seja como um direito humano, seja como conseqüência de um direito humano, da liberdade. Déclaration des droits de 1'homme et du citoyen, (8) 1791, art. 10: "Nul ne droit inquieté pour ses opinions même religieuses" (9) E a parte I da Constituição de 1791 consagra como direito "La liberté à tout homme d'exercer le culte religieux auquel il est attaché". (10) A Déclaration des droits de 1'homme, etc., 1795, inclui entre os direitos humanos, em seu art. 7: "Le libre exercice des cultes".(11) E mais ainda, no que tange ao direito de expressar

pensamentos e opiniões em público, diz, inclusive, que "La nécessité d'enoncer ces droits suppose ou Ia présence ou le souvenir récent du despotisme". (12) Consulte-se, com relação a isto, a Constituição de 1795, parte XIV, art. 354. Constitution de Pennsylvanie, art. 9, § 3º: "Tous les hommes ont reçu de Ia nature le droit imprescriptible d'adorer le Tout Puissant selon les inspirations de leur conscience, et nul ne peut légalment être en train de suivre, instituer ou soutenir contre son gré aucun culte ou ministère religieux. Nulle autorité humaine ne peut, das aucun cas, intervenir dans les questiona de conscience et contrôler les pouvoirs de l'ame". (13) Constitution de New-Hampshire, arts. 5 e 6: "Au nombre des droits naturels, quelques-uns sont inaliénables de leur nature, parce que rien n'en peut être 1'équivalent. De ce nombre sont les droits de conscience" (14) (Beaumont, 1. c., p. 213-14). A religião, longe de se constituir incompatível com o conceito dos direitos humanos, inclui-se expressamente entre eles. Os direitos humanos proclamam o direito de ser religioso, sê-lo como achar melhor e de praticar o culto que julgar conveniente. O privilégio da fé é um direito humano geral. Os droits de l'homme, os direitos humanos, distinguemse, como tais, dos droits du citoyen, dos direitos civis. Qual o homme que aqui se distingue do citoyen? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da sociedade burguesa de "homem", homem por antonomásia, e dáse a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política. Registremos, antes de mais nada, o fato de que os chamados direitos humanos, os droits de l'homme, ao contrário dos droits du citoyen, nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade. A mais radical das Constituições, a Constituição de 1793, proclamou: Déclaration des droits de l'homme et du citoyen Art. 2: Ces droits, etc. (Les droits naturels et imprescriptibles) sont: l'égalité, Ia liberté, Ia súreté, Ia proprieté. (15) Em que consiste Ia liberté? Art. 6: "La liberté est le pouvoir qui appartient à l'homme de faire ce qui ne nuit pas aux droits d'autrui", (16) ou, segundo a Declaração dos Direitos do Homem, de 1791: "La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui".(17) A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma. Por que, então, segundo Bauer, o judeu é incapaz de obter os direitos humanos? "Enquanto permanecer judeu, a essência limitada que faz dele um judeu tem que triunfar necessariamente sobre a essência humana que, enquanto homem, o une aos demais homens e o dissocia dos que não são judeus". Todavia, o direito do homem à liberdade não se baseia na união do homem com o homem, mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


mesmo. A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada. Em que consiste o direito humano à propriedade privada? Art. 16 (Constituição de 1793) : "Le droit de propriété est celui qui appartient à tout citoyen de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenues du fruit de son travail et de son industrie". (18) O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. Sociedade que proclama acima de tudo o direito humano "de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenues, du fruit de son travail et de son industrie". Resta, ainda, examinar os outros direitos humanos, la égalité e la súreté. La égalité, considerada aqui em seu sentido não político, nada mais é senão a igualdade da liberté acima descrita, a saber: que todo homem se considere igual, como uma mônada presa a si mesma. A Constituição de 1795 define o conceito desta igualdade, segundo seu significado: Art. 3 (Constituição de 1795) : "L'égalité consiste en ce que Ia loi est Ia même por tous, soit qu'elle protège, soit qu'elle punisse». (19) E La süreté? Art. 8 (Constituição de 1795) : "La súreté consiste dans Ia protection accordé par Ia societé à chacun de ses membres pour Ia conservation de sa personne, des ses droits et de ses propriétés". (20) A segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade Neste sentido, Hegel denomina a sociedade burguesa de "Estado de necessidade e de entendimento". O conceito de segurança não faz com que a sociedade burguesa se sobreponha a seu egoísmo. A segurança, pelo contrário, é a preservação deste. Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, esses direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas. É um pouco estranho que um povo que começa precisamente a libertar-se, que começa a derrubar as barreiras entre os distintos membros que o compõe, a criar uma

consciência política, que este povo proclame solenemente a legitimidade do homem egoísta, dissociado de seus semelhantes e da comunidade (Déclaration de 1791); e, ainda mais, que, repita esta mesma proclamação no momento em que só a mais heróica abnegação pode salvar o país e é, portanto, imperiosamente exigida, no momento em que se coloca na ordem do dia o sacrifício de todos os interesses no altar da sociedade burguesa, em que o egoísmo deve ser castigado como um crime (Déclaration des droits de l'homme, etc., de 1795) . Mas este fato torna-se ainda mais estranho quando verificamos que os emancipadores políticos rebaixam até mesmo a cidadania, a comunidade política ao papel de simples meio para a conservação dos chamados direitos humanos; que, por conseguinte, o citoyen é declarado servo do homme egoísta; degrada-se a esfera comunitária em que atua o homem em detrimento da esfera em que o homem atua como ser parcial; que, finalmente, não se considera como homem verdadeiro e autêntico o homem enquanto cidadão, senão enquanto burguês. "Lê but de toute association est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de 1'homme" (21) (Déclaration des droits, etc., de 1791, art. 2). "Le gouvernement est institué pour garantir à 1'homme Ia jouissance de ses droits naturels et imprescriptibles" (22) (Déclaration, etc., de 1793, art. 1). Portanto, até mesmo nos momentos de entusiasmo juvenil, exaltado pela força das circunstâncias, a vida política se declara como simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa. É óbvio que a prática revolucionária está em contradição flagrante com a teoria. Assim, por exemplo, a proclamação da segurança como um direito humano coloca publicamente na ordem do dia a violação do segredo de correspondência. Garante-se a "liberté indéfinie de Ia presse" (23) (Constitution de 1795, art. 122) como conseqüência do direito humano, da liberdade individual, mas isto não impede que se suprima totalmente a liberdade de imprensa, pois "la liberté de Ia presse ne doit pas être permise lorsqu'elle compromet Ia liberté politique" (24) (Robespierre jeune, Histoire Parlamentaire de la Révolution Française, par Buchez et Roux, tomo 28, p. 159) ; isto significa que o direito humano à liberdade deixa de ser um direito ao colidir com a vida política, ao passo que, teoricamente, a vida política é tão somente a garantia dos direitos humanos, dos direitos do homem individual, devendo, portanto, abandonar-se a estes direitos com a mesma rapidez com que se contradiz em sua finalidade. Porém, a prática é somente exceção e, a teoria, regra. Assim sendo, se nos empenhamos em considerar esta prática revolucionária como o estabelecimento seguro da relação, resta saber por que se invertem os termos da relação na consciência dos emancipadores políticos, apresentando-se o fim como meio e o meio como fim. A ilusão ótica de sua consciência não deixa de ser um mistério, ainda que psicológico, teórico. O mistério se resolve de modo simples. A emancipação política é, simultaneamente, a dissolução da velha sociedade em que repousa o Estado alienador e a dissolução do poder senhorial. A revolução política é a revolução da sociedade civil. O que caracterizava a velha sociedade? Uma simples palavra, o feudalismo. A velha sociedade civil tinha diretamente um caráter político, isto é, os elementos da vida burguesa como, por exemplo, a possessão, a família, o tipo e o modo de trabalho se haviam elevado ao nível de elementos da vida estatal, sob a forma de propriedade territorial, de estamento ou de comunidade. Sob esta forma, estes elementos determinavam as relações entre o indivíduo e o conjunto do Estado, isto é, suas relações políticas ou, o que dá no mesmo, suas relações de separação e exclusão das outras partes integrantes da sociedade. Com efeito, aquela organização

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


da vida do povo não elevava a possessão do trabalho ao nível de elementos sociais mas, pelo contrário, conduzia a sua separação do conjunto do Estado e os constituía em sociedades especiais dentro da sociedade. Não obstante, as funções e condições de vida da sociedade civil continuavam a ser políticas, se bem que políticas no sentido feudal; isto é, excluíam o indivíduo do conjunto do Estado e convertiam a relação especial de sua comunidade com o conjunto do Estado em sua própria relação geral com a vida do povo, do mesmo modo que convertiam determinadas atividades e situações burguesas em sua atividade e situação gerais. Como conseqüência desta organização, revelase necessariamente a unidade do Estado, enquanto a consciência, a vontade e a atividade da unidade do Estado, e o poder geral deste, também se manifestam como incumbência especial de um senhor dissociado do povo e de seus servidores. A revolução política que derrubou este poder senhorial, que fez ascender os assuntos de Estado a assuntos do povo, que constituiu o Estado político como incumbência geral, isto é, como Estado real, destruiu necessariamente todos os estamentos, corporações, grêmios e privilégios que eram outras tantas expressões da separação entre o povo e sua comunidade. A revolução política suprimiu, com ele, o caráter político da sociedade civil. Rompeu a sociedade civil em suas partes integrantes mais simples: de um lado, os indivíduos, de outro, os elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de vida, a situação civil destes indivíduos. Libertou de suas cadeias o espírito político, que se encontrava cindido, dividido e detido nos diversos compartimentos da sociedade feudal; unindo os frutos dispersos do espírito político e despojando-o de sua perplexidade diante da vida civil, a revolução política fez com que viesse a se constituir - como esfera da comunidade, da incumbência geral do povo - na independência ideal em relação àqueles elementos especiais da vida civil. A atividade determinada de vida e a situação de vida determinada passaram a ter um significado puramente individual. Deixaram de representar a relação geral entre o indivíduo e o conjunto do Estado. Longe disso, a incumbência pública como tal se converteu em incumbência geral de todo indivíduo e, a função pública, em sua função geral. Contudo, a consagração do idealismo do Estado era, simultaneamente, a consagração do materialismo da sociedade civil. Ao sacudir-se o jugo político, romperam-se, ao mesmo tempo, as cadeias que aprisionavam o espírito egoísta da sociedade civil. Daí, a emancipação política ter sido a emancipação da sociedade civil em relação à política, sua emancipação até mesmo da aparência de um conteúdo geral. A sociedade feudal estava dividida em seu fundamento, no homem. Mas no homem, tal qual ele se apresentava como fundamento, no homem egoísta. Este homem, membro da sociedade burguesa, é agora a base, a premissa do Estado político. E, como tal, é reconhecido nos direitos humanos. A liberdade do egoísta e o reconhecimento desta liberdade são a expressão do reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam seu conteúdo de vida. Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial. A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade burguesa nos indivíduos independentes - cuja relação se baseia no direito, ao passo que a relação entre os homens dos

estamentos e dos grêmios se fundava no privilégio - se processa num só e mesmo ato. Assim sendo, o homem enquanto membro da sociedade civil, isto é, o homem não-político, surge como homem natural. Os droits de l'homme aparecem como droits naturels, pois a atividade consciente de si mesma se concentra no ato político. O homem egoísta é o resultado passivo, simplesmente encontrado da sociedade dissolvida, objeto de certeza imediata e, portanto, objeto natural. A revolução política dissolve a vida burguesa em suas partes integrantes sem revolucionar estas partes nem submetê-las à crítica. Conduz-se, em relação à sociedade burguesa, ao mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses particulares, do direito privado, como se estivesse frente à base de sua existência, diante de uma premissa que já não é possível fundamentar e, portanto, como frente à sua base natural. Finalmente, o homem enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro homem, como homme, distinto do citoyen por se tratar do homem em sua existência ~ sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma do citoyen abstrato. Rousseau descreve corretamente a abstração do homem político ao dizer: "Celui qui ose entreprendre d'instituer un peuple doit se sentir en état de changer pour ainsi dire Ia nature humaine, de transformer partie d'un grand tout dont cet individu reçoive en quelque sorte sa vie et son être, de substituer une existence partielle et morale à 1'existence physique et indépendante. Il faut qu'il ôte à 1'homme ses forces propres pour lui en donner qui lui soient étrangères et dont il ne puisse faire usage sans les secours d'autrul" (25) (Contrat Social, livro II, Londres, 1782, p. 67). Toda emancipação é a recondução do mundo humano, das relações, ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral. Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" (26) como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana (…) ____________________ Notas: (1) Nos Estados Unidos não existe religião de Estado, nem religião declarada como da maioria, nem a preeminência de um culto sobre outro. 0 Estado é alheio a todos os cultos. (2) A Constituição não impõe crenças religiosas nem a prática de um culto como condição dos privilégios políticos. (3) Nos Estados Unidos não se acredita que um homem sem religião possa ser um homem honesto (4) Nota da Tradução Brasileira: O direito de voto estava condicionado a determinado teto. O indivíduo que não possuísse o mínimo estipulado não podia ser eleitor. (5) Guerra de todos contra todos. (6) Direitos do homem.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


(7) Direitos do cidadão.

indústria como melhor lhe convier.

(8) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

(19) A igualdade consiste na aplicação da mesma lei para todos, quando protege ou quando castiga.

(9) A ninguém se perseguirá por suas opiniões, inclusive religiosas. (10) A todos é assegurada a liberdade de praticar o culto religioso a que se encontre vinculado. (11) O livre exercício dos cultos. (12) A necessidade de anunciar estes direitos pressupõe ou a presença ou a lembrança do despotismo (13) Constituição da Pensilvânia, art. 9, § 3.º: "Todos os homens receberam da natureza o direito imprescritível de adorar o Todo Poderoso segundo os ditames de sua consciência; ninguém pode, legalmente, ser obrigado a praticar, instituir ou sustentar qualquer culto religioso contra sua vontade. Em caso algum a autoridade humana, seja ela qual for, -poderá intervir em questões de consciência e fiscalizar as faculdades de alma-. (14) Constituição de New-Hampshire, arts. 5 e 6: "Entre os direitos naturais, alguns são inalienáveis por si mesmos, já que não podem ser substituídos por outros. Entre eles, figuram os direitos de consciência". (15) Estes direitos, etc. (os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade. (16) A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os direitos de outro. (17)A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a ninguém. (18) O direito à propriedade é o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua

(20)A segurança consiste na proteção conferida pela sociedade a cada um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades. (21) O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. (22) O governo foi instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis. (23) Liberdade indefinida de imprensa. (24) A liberdade de imprensa não deve ser permitida sempre que comprometer a liberdade política. (25) Aquele que se propõe a tarefa de instituir um povo deve sentir-se capaz de transformar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que é por si mesmo um todo perfeito, solitário, em parte de um todo maior, do qual o indivíduo receba até certo ponto sua vida e seu ser, de substituir a existência física e independente por uma existência parcial e moral. Deve despojar o homem de suas próprias forças, a fim de lhe entregar outras que lhe são estranhas e das que só possa fazer uso com a ajuda de outros homens. (26) Próprias forças. (27) Esse que aí veis à testa de uma respeitável corporação começou como comerciante; falindo seu negócio, fez sacerdote; este outro começou pelo sacerdócio, porém, ao dispor de certa quantia, abandonou o púlpito pelos negócios. Aos olhos de muitos, o ministério religioso é uma verdadeira carreira industrial.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


4. Gramsci - Cadernos do Cárcere nº 13 (pag. 36 a 47) (...) 17. Análise das situações: relações de força. É o problema das relações entre estrutura e superestrutura que deve ser posto com exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na história de um determinado período e determinar a relação entre elas. É necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou -que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas as formas de vida implícitas em suas relações (verificar a exata enunciação destes princípios). ("Nenhum:;t formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para sua existência. Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre que estes objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para sua realização" (Prefácio à Crítica da economia política)] [23]. Da reflexão sobre estes dois cânones pode-se chegar ao desenvolvimento de toda uma série de outros princípios de metodologia histórica. Todavia, no estudo de uma estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que se apresentaria como ocasionais, imediatos, quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de movimentos orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance histórico: eles dão lugar à uma crítica política miúda, do dia-a-dia, que envolve os pequenos grupos dirigentes e as personalidades imediatamente responsáveis pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão lugar à crítica histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos, para além das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente. Quando se estuda um período histórico, revela-se a grande importância dessa distinção. Tem lugar uma crise que, às vezes, prolonga-se por dezenas de anos. Esta duração excepcional significa que se revelaram (chegaram à maturidade) contradições insanáveis na estrutura e que as forças políticas que atuam positivamente para conservar e defender a própria estrutura esforçam-se para saná-las dentro de certos limites e superá-las. Estes esforços incessantes e perseverantes (já que nenhuma forma social jamais confessará que foi superada) formam o terreno do "ocasional", no qual se organizam as forças antagonistas que tendem a demonstrar (demonstração que, em última análise, só tem êxito e é "verdadeira" se se torna nova realidade, se as forças antagonistas triunfam, mas que imediatamente se explicita numa série de polêmicas ideológicas, religiosas, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., cujo caráter concreto pode ser avaliado pela medida em que se tornam convincentes e deslocam o alinhamento preexistente das forças sociais) que já existem as condições necessárias e suficientes para que determinadas tarefas possam e~ portanto, devam ser resolvidas historicamente (devam, já que a não-realização do dever histórico aumenta a desordem necessária e prepara catástrofes mais graves). O erro em que se incorre frequentemente nas análises histórico-políticas consiste em não saber encontrar a justa

relação entre o que é orgânico e o que é ocasional: chega-se assim ou a expor como imediatamente atuantes causas que, ao contrário, atuam mediatamente, ou a afirmar que as causas imediatas são as únicas causas eficientes. Num caso, tem-se excesso de "economicismo" ou de doutrinarismo pedante; no outro, excesso de "ideologismo". Num caso, superestimam-se as causas mecânicas; no outro, exalta-se o elemento voluntarista e individual. (A distinção entre "movimentos" e fatos orgânicos e movimentos e fatos de "conjuntura" ou ocasionais deve ser aplicada a todos os tipos de situação, não só àquelas em que se verifica um processo regressivo ou de crise aguda, mas àquelas em que se verifica um processo progressista ou de prosperidade e àquelas em que se verifica uma estagnação das forças produtivas.) O nexo dialético entre as duas ordens de movimento e, portanto, de pesquisa dificilmente é estabelecido de modo correto; e, se o erro é grave na historiografia, mais grave ainda se torna na arte política, quando se trata não de reconstruir a história passada, mas de construir a história presente e futura: os próprios desejos e as próprias paixões baixas e imediatas constituem a causa do erro, na medida em que substituem a análise objetiva e imparcial e que isto se verifica não como "meio" consciente para estimular à ação, mas como auto-engano. O feitiço, também neste caso, se volta contra O feiticeiro, ou seja, o demagogo é a primeira vítima de sua demagogia. [O fato de não se levar em consideração o momento imediato das "relações de força" liga-se a resíduos da concepção liberal vulgar, da qual o sindicalismo é uma manifestação que acreditava ser mais avançada quando, na realidade, representava um passo atrás. Com efeito, a concepção liberal vulgar, dando importância à relação das forças políticas organizadas nas diversas formas de partido (leitores de jornais, eleições parlamentares e locais, organizações de massa dos partidos e dos sindicatos em sentido estrito), era mais avançada do que o sindicalismo, que dava importância primordial à relação fundamental econômico-social, e só a ela. A concepção liberal vulgar também levava em conta implicitamente esta relação (como transparece através de muitos sinais), mas insistia mais na relação das forças políticas, que era uma expressão da outra e, na realidade, a englobava. Estes resíduos da concepção liberal vulgar podem ser encontrados em toda' uma série de análises que se dizem ligadas à filosofia da práxis e deram lugar a formas infantis de otimismo e de estupidez.] Estes critérios metodológicos podem adquirir visível e didaticamente todo o seu significado quando aplicados ao exame de fatos históricos concretos. Seria possível fazer isso com utilidade para os acontecimentos que se verificaram na França de 1789 a 1870. Parece-me que, para maior clareza da exposição, seja necessário abranger todo este período. De fato, só em 18701871, com a tentativa da Comuna, esgotam-se historicamente todos os germes nascidos em 1789, ou seja, não só a nova classe que luta pelo poder derrota os representantes da velha sociedade que não quer confessar-se definitivamente superada, mas derrota também os novíssimos grupos que' consideram já ultrapassada a nova estrutura surgida da transformação iniciada em 1789 e demonstra assim sua vitalidade tanto em relação ao velho como.em relação ao novíssimo. Além do mais, com os acontecimentos de 1870-1871, perde eficácia o conjunto de princípios de estratégia e tática política nascidos praticamente em 1789 e desenvolvidos ideologicamente em torno de 1848 (os que se sintetizam na fórmula da "revolução permanente": seria interessante estudar em que medida essa fórmula passou para a estratégia mazziniana - por exemplo, para a insurreição de 1853

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


em Milão ~ e se isto ocorreu conscientemente ou não) [24]. Um elemento que mostra a justeza deste ponto de vista é o fato de que os historiadores de modo nenhum concordam (e é impossível que concordem) na fixação dos limites daquela série de acontecimentos que constitui a Revolução Francesa. Para alguns (Salvemini, por exemplo), a revolução se completa em Valmy: a França criou um novo Estado e soube organizar a força político-militar que o sustenta e que defende sua soberania territorial. Para outros, a revolução continua até Termidor, ou melhor, eles falam de muitas revoluções (o 10 de agosto seria uma revolução em si, etc; cf. La Réuolution (française de A. Mathiez, na coleção Colin) [25]. A maneira de interpretar o Termidor e a ação de Napoleão apresenta as mais' agudas contradições: trata-se de revolução ou de contra-revolução, etc. Para outros, a história da Revolução continua até 1830; 1848, 1870 e mesmo até a guerra mundial de 1914. Em todas estas maneiras de ver há uma parte de verdade. Realmente, as contradições internas da estrutura francesa, que se desenvolvem depois de 1789, só encontram uma relativa composição com a Terceira República, e a França tem sessenta anos de vida política equilibrada depois de oitenta anos de transformações em ondas _ cada.vez mais longas: 1789, 1794, 1799, 1804, 1815, 1830, 1848, 1870. É exatamente o estudo dessas "ondas" de diferente oscilação que permite reconstruir as relações entre estrutura e superestrutura, por um lado, e, por outro, entre o curso do movimento orgânico e o curso do movimento de conjuntura da estrutura. Assim, pode-se dizer que a mediação di aI ética entre os dois princípios metodológicos enunciados no início desta nota pode ser encontrada na fórmula político-histórico da revolução permanente. Um aspecto do mesmo problema é a chamada questão das relações de força. Lê-se com frequência, nas narrações históricas, a expressão genérica: relações de força favoráveis, desfavoráveis li esta ou àquela tendência. Assim, abstratamente, esta formulação não explica nada ou quase nada, pois não se faz mais do que repetir o fato que se deve explicar, apresentando-o uma vez como fato e outra como lei abstrata e como explicação. Portanto, o erro teórico consiste em apresentar um princípio de pesquisa e de interpretação como "causa histórica" . Na "relação de força", é necessário distinguir diversos momentos ou graus, que no fundamental são os seguintes: 1) Uma relação de forças sociais estreitamente ligada à estrutura, objetiva, independente da vontade dos homens, que pode ser mensurada com os sistemas das ciências exatas ou físicas [26]. Com base no grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, têm-se os agrupamentos sociais, cada um dos quais representa uma função e ocupa uma posição determinada na própria produção. Esta relação é o que é, uma realidade rebelde: ninguém pode modificar o número das empresas e de seus empregados, o número das cidades com sua dada população urbana, etc. Este alinhamento fundamental permite estudar se existem na sociedade as condições necessárias e suficientes para uma sua transformação, ou seja, permite verificar o grau de realismo e de viabilidade das diversas ideologias que nasceram em seu próprio terreno, no terreno das contradições que ele gerou durante seu desenvolvimento. 2) O momento seguinte é a relação das forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais. Este momento, por sua vez, pode ser analisado e diferenciado em vários graus, que correspondem aos diversos momentos da consciência política coletiva, tal como se manifestaram na história até agora. O primeiro e mais elementar é o econômico-corporativo: um comerciante sente que deve ser

solidário com outro comerciante, um fabricante com outro fabricante, etc., mas o comerciante não se sente ainda solidário com o fabricante; isto é, sente-se a unidade homogênea do grupo profissional e o dever de organizá-la, mas não ainda a unidade do grupo social mais amplo. Um segundo momento é aquele em que se atinge a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico. Já se põe neste momento a questão do Estado, mas apenas no terreno da obtenção de uma igualdade politico-jurídica com os grupos dominantes, já que se reivindica o direito de participar da legislação e da administração e mesmo de modificá-las, de reformá-las, mas nos quadros fundamentais existentes. Um terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em "partido", entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano "universal", criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados. O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias "nacionais", isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo. Na história real, estes momentos implicam-se reciprocamente, por assim dizer horizontal e verticalmente, isto é, segundo as atividades econômico sociais (horizontais) e segundo os territórios (verticalmente), combinando-se e cindindo-se variadamente: cada uma destas combinações pode ser representada por uma própria expressão organizada econômica e política. Deve-se ainda levar em conta que estas relações internas de um EstadoNação entrelaçam-se com as relações internacionais, criando novas combinações originais e historicamente concretas. Uma ideologia, nascida num país mais desenvolvido, difunde-se em países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local das combinações. (A religião, por exemplo, sempre foi uma fonte dessas combinações ideológico-políticas nacionais e internacionais; e, com a religião, as outras formações internacionais, como a maçonaria, o Rotary Club, os judeus, a diplomacia de carreira, que sugerem recursos políticos de origem histórica diversa e os fazem triunfar em determinados países, funcionando como partido político internacional que atua em cada nação com todas as suas forças internacionais concentradas; mas religião, maçonaria, Rotary, judeus, etc., podem ser incluídos na categoria social dos "intelectuais", cuja função, em escala internacional, é a de mediar entre os extremos, de "socializar" as descobertas técnicas que fazem funcionar toda atividade de direção, de imaginar compromissos e alternativas entre as soluções extremas) [27]. Esta relação entre forças internacionais e forças nacionais torna-se ainda mais complexa

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


por causa da existência, no interior de cada Estado, de várias seções territoriais com estruturas diferentes e diferentes relações de força em todos os graus (assim, a Vendéia era aliada das forças reacionárias internacionais e as representava no seio da unidade I territorial francesa; assim, na Revolução Francesa, Lyon representava uma conexão particular de relações, etc.). 3) O terceiro momento é o da relação das forças militares, imediatamente decisivo em cada oportunidade concreta. (O desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo.) Mas também esse momento não é algo, indistinto e identificável imediatamente de forma esquemática; também nele podem-se distinguir dois graus: o militar em sentido estrito, ou técnico-militar, e o grau que pode ser chamado de político militar. No curso da história, estes dois graus se, apresentaram numa grande variedade de combinações. Um exemplo típico, que pode servir como demonstração-limite, é o da relação de opressão militar de um Estado sobre uma nação que procura alcançar sua independência estatal. A relação não é puramente militar, mas político-militar: com efeito; este tipo de opressão seria inexplicável sem o estado de desagregação social do povo oprimido e a passividade de sua maioria. Portanto, a independência não poderá ser alcançada com forças puramente militares, mas com forças militares e político-militares. De fato, se a nação oprimida, para iniciar a luta pela independência, tivesse de esperar a permissão do Estado hegemônico para organizar seu próprio exército no sentido estrito e técnico da palavra, teria de esperar bastante tempo (pode ocorrer que a reivindicação de ter um exército próprio seja concedida pela nação hegemônica, mas isto significa que uma grande parte da luta já foi travada e vencida no terreno político militar). A nação oprimida, portanto, oporá inicialmente à força militar hegemônica uma força que é apenas "político-militar", isto é, oporá uma forma de ação política que tenha a virtude de determinar reflexos de caráter militar, no sentido de que: 1) seja capaz de desagregar intimamente a eficiência bélica da nação hegemônica; 2) obrigue a força militar hegemônica a diluir-se e dispersar-se num grande território, anulando grande parte de sua eficiência bélica. No Risorgimiento italiano, pode-se notar a ausência desastrosa de uma direção político-militar sobretudo no Partido de Ação (por incapacidade congênita), mas também no partido piemontês-moderado, tanto antes como depois de 1848, não certamente por incapacidade, mas por "malthusianismo econômico-político", ou seja, porque não se quis sequer fazer menção à possibilidade de uma reforma agrária e porque não se queria a convocação de uma assembleia nacional constituinte, mas se pretendia apenas que a monarquia piemontesa, sem condicionamentos ou limitações de origem popular, se estendesse a toda a Itália, através da simples aprovação de plebiscitos regionais. Outra questão ligada às anteriores é a de ver se as crises históricas fundamentais são determinadas imediatamente pelas crises econômicas. A resposta a essa questão está implicitamente contida nos parágrafos anteriores, onde são tratadas questões que constituem um outro modo de apresentar aquela a que nos referimos agora; mas é sempre necessário, por razões didáticas, dado o público específico; examinar cada modo sob o qual se apresenta uma mesma questão como se se tratasse de um problema independente e novo. Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam eventos fundamentais; podem apenas criar um terreno mais favorável à difusão de determinados modos de pensar, de pôr e de resolver as questões que envolvem todo o curso subsequente da vida estatal. De. resto, todas as afirmações referentes a períodos de crise ou de prosperidade podem dar margem a juízos unilaterais. Em seu compêndio de.história da Revolução Francesa (Ed. Colin), Mathiez, opondo-se à história vulgar tradicional, que

aprioristicamente "encontra" uma crise para coincidir com as grandes rupturas de equilíbrios sociais, afirma que, por volta de 1789, a situação econômica era bastante boa no nível imediato, pelo que não se pode dizer que a catástrofe do Estado absoluto tenha sido motivada por uma crise de empobrecimento (cf, a afirmação exata de Mathiez) [28]. Deve-se observar que o Estado estava envolvido numa crise financeira mortal e se punha a questão de saber sobre qual das três ordens sociais privilegiadas deveriam recair os sacrifícios e o peso de um reordenamento das finanças do Estado e da Coroa. Além do mais, se a posição econômica da burguesia era próspera, certamente não era boa a situação das classes populares das cidades e do campo, especialmente destas últimas, atormentadas pela miséria endêmica. De qualquer modo, a ruptura do equilíbrio entre as forças não se deu por causas mecânicas imediatas de empobrecimento do grupo social interessado em romper o equilíbrio, e que de fato o rompeu; mas ocorreu no quadro de conflitos superiores ao mundo econômico imediato, ligados ao "prestígio" de classe (interesses econômicos futuros), a uma exasperação do sentimento de independência, de autonomia e de poder. A questão particular do mal-estar ou do bem-estar econômicos como causa de novas realidades históricas é um aspecto parcial da questão das relações de força em seus vários graus. podem-se produzir novidades ou porque uma situação de bem estar é ameaçada pelo egoísmo mesquinho de um grupo adversário, ou porque o mal-estar se tornou intolerável e não se vê na velha sociedade nenhuma força capaz de mitigá-lo e de restabelecer uma normalidade através de meios legais. Pode-se dizer, portanto, que todos estes elementos são a manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, em cujo terreno verifica-se a transformação destas relações em relações políticas de força, para culminar na relação militar decisiva. Se não se verifica este processo de desenvolvimento de um momento a outro - e trata-se essencialmente de um processo que tem como atores os homens e a vontade e capacidade dos homens -, a situação se mantém inoperante e podem ocorrer desfechos contraditórios: a velha sociedade resiste e garante para si um período de "tomada de fôlego", exterminando fisicamente a elite adversária e aterrorizando as massas de reserva; ou, então, verifica-se a destruição recíproca das forças em conflito com a instauração da paz dos cemitérios, talvez sob a vigilância de um sentinela estrangeiro. Mas a observação mais importante a ser feita sobre qualquer análise concreta das relações de força é a seguinte: tais análises não podem e não devem ser fins em si mesmas (a não ser que se trate de escrever um capítulo da história do passado), mas só adquirem um significado se servem para justificar uma atividade prática, uma iniciativa de vontade. Elas mostram quais são os pontos de menor resistência, nos quais a força da vontade pode ser aplicada de modo mais frutífero, sugerem as operações táticas imediatas, indicam a melhor maneira de empreender uma campanha de agitação política, a linguagem que será mais bem compreendida pelas multidões, etc. O elemento decisivo de cada situação é a força permanentemente organizada e há muito tempo preparada, que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e só é favorável na medida em que esta força exista e seja dotada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e paciente a formar esta força, desenvolvê-la, torná-la cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si. Isso pode ser comprovado na história militar e no cuidado com que, em qualquer época, os exércitos estiveram preparados para iniciar uma guerra a qualquer momento. Os grandes Estados foram grandes Estados precisamente porque sempre estavam preparados para inserir-se eficazmente nas conjunturas internacionais favoráveis; e essas eram favoráveis porque havia a possibilidade concreta de inserir-se eficazmente nela.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


5. Feminismo Negro, uma visão militante Luciene Lacerda e Meire Reis

Já contamos na atualidade com algumas discussões e pesquisas sobre o feminismo negro no Brasil que é parte da atuação de muitas mulheres nos movimentos feministas e movimentos de mulheres e que se predispõem a pensar a questão racial, de gênero e de classe como elementos integrantes de uma mesma face. Feministas norte-americanas como Bell Hooks e Patricia Hill Collins são importantes para pensarmos sobre o feminismo negro e a sua articulação entre a academia e a experiência efetiva das mulheres negras. Para estas feministas só é possível falarmos de um feminismo quando temos em mente que há uma intersecção entre as categorias raça, gênero e classe. E essa intersecção é fundamental para nos situarmos naquilo que comumente se denomina de feminismo. As feministas negras brasileiras criticam uma concepção de feminismo que separa teoria e prática, e que resiste em reconhecer as diversidades, principalmente a racial. Esse feminismo não nos inclui. Não é demais lembrar que no início do século XX quando as mulheres brancas reivindicavam liberdade para sair e trabalhar nas ruas, as mulheres negras já trabalhavam nas ruas, sustentavam a si e a seus filhos. No entanto, sua experiência não foi reconhecida pelo movimento feminista, ao contrário o racismo foi utilizado para inferiorizar as mulheres negras, tanto por homens brancos quanto pelas mulheres brancas. Assim, o movimento feminista, por décadas invisibilizou as mulheres negras. Assim como o movimento negro. Para Lícia Maria de Lima Barbosa “As críticas feitas pelas feministas negras brasileiras ao feminismo branco gerou uma relação tensa e árida entre essas vertentes durante algum tempo, embora, contemporaneamente tem surgido novas perspectivas, possibilidades de diálogos, parcerias e mesmo ações conjuntas”[1]. As feministas sufragistas exigiam direitos iguais aos dos homens, as liberais definiam as bandeiras do poder sobre o seu corpo, a perspectiva de crescimento individual e o acesso aos bens de direito que a sociedade reservava aos homens brancos. Como é o caso de Margareth Sanger no inicio do século XX que lutou pelo direito das mulheres em decidir quantos filhos queriam ter, o problema é que ela não tinha dúvida que os seres inferiores deveriam ser impedidos de nascer. Negros, mestiços ou índios, e o Estado deveria agir no sentido de impedir a proliferação de seres inferiores que só prejudicariam o bem estar da sociedade. Estas feministas queriam libertar as mulheres das amarras do serviço doméstico que as aprisionavam, e que se saíssem e se transformassem em mulheres públicas teriam os mesmos direitos que os homens. Elas saíram, foram para as universidades e delegou a outras mulheres o cuidado com as suas famílias. Na Europa, as mulheres que cuidavam da vida das mulheres modernas eram, e ainda

são, africanas, caribenhas, asiáticas. No Brasil, na esmagadora maioria das vezes, são as mulheres negras que cuidam das famílias das mulheres brancas. O movimento feminista trouxe e traz contribuições inquestionáveis a luta social por melhores condições de vida das mulheres, mas este movimento ao longo do século XX não conseguiu dialogar com a questão racial, na América ou na Europa. Para Sueli Carneiro, o movimento de mulheres negras trouxe para a ação política as contradições “resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero” sintetizando elementos do movimento negro e do de mulheres, tornando as reivindicações das mulheres mais representativas das mulheres brasileiras e o movimento negro mais feminino.[2] Para finalizar essa abordagem, evidenciamos como a opressão capitalista age sobre os indivíduos e tenta homogeneizá-los. Ao fazer o discurso da igualdade entre as pessoas, o capitalismo transforma diferenças em desigualdades e se utiliza dessas para ampliar as suas margens não só de lucro, mas de uma ação desestruturadora. Assim, produz um discurso no qual a igualdade anulava as diferenças. Quando analisamos a trajetória histórica dos opositores e opositoras do sistema capitalista o discurso da igualdade é ampliado, e aprendemos que uma dada tradição de esquerda socialista (africana, européia, americana) também se recusava a perceber as desigualdades existentes entre os trabalhadores, a classe operária aparecia assim, como uma classe universal. Assim, raça[3] e gênero quando não invisíveis eram secundarizados. O uso do termo raça tem sido muito mais controvertido do que o termo racismo. Apesar de considerarmos que raça é “raça humana”, o uso sociológico do termo justifica a nossa abordagem sobre este conceito. A forma como algumas trabalhadoras e trabalhadores eram tratados nos seus locais de trabalho era pensado genericamente como formas de opressão de classe. Dessa forma o machismo e racismo não se configuravam como categorias importantes para análise do ambiente de trabalho. Autoras como Crenshaw (2002) e Kergoat (2010) revelam que se o componente sexo é visto isoladamente, a divisão sexual do trabalho apresenta a vulnerabilidade das mulheres seja no salário, seja nos cargos de chefia. E na divisão racial do trabalho a vulnerabilidade da população negra se revela nos acessos e trajetória do trabalho, nos salários assim como nos cargos de chefia. A junção destas questões dá às mulheres negras uma dupla vulnerabilidade, e que ao unir a questão da relação classe social a situação das mulheres se mostra a mais frágil entre todos os segmentos. E se torna inevitável

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


fazer estas considerações ao analisarmos temas como o racismo e o sexismo, e outras formas de violência no trabalho como o assédio moral no trabalho. A idéia da intersecção entre os três eixos: raça, gênero e classe de Crenshaw – interseccionalidade – e a de Kergoat em que estes eixos se produzem e co-produzem mutuamente – consubstancialidade e coextensividade– dão a idéia da importância da inter relação destas dimensões na vida das mulheres negras. A pauta do movimento negro e do movimento feminista se impusera o suficiente para no mínimo gerar questionamentos das posições históricas de sindicatos e movimentos sociais; assim como dos partidos. Ao estabelecer estratégias de lutas designamos grupos para a atuação segundo a lógica anterior, a da centralidade da classe. Essa concepção define o que é prioridade. Neste momento aquilo que é considerado “geral” é priorizado, e o considerado “específico” fica para um segundo plano, para um momento oportuno. O nosso desafio é pensar de fato na história do nosso povo e a partir disso estabelecer ação e compreender que classe, raça e gênero se interprenetam. E não há nada mais geral no Brasil que as mulheres negras, maioria da população brasileira. ---[1] Barbosa, Lícia Maria de Lima Feminismo negro: notas sobre o debate norte-americano e Brasileiro. Fazendo Gênero 9 Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010

[3] Para alguns etnia ou questão étnico-racial. Para Antonio Sergio Guimarães “raça não é apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de “cor” em seja são efetivamente raciais e não apenas de classe (Guimarães 1999) O que chamamos de “raça” tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social, portanto, somente no mundo social pode terrealidade plena. “trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (Crenshaw, 2002, p.7) “procura compreender de maneira não mecânica as práticas sociais de homens e mulheres frente à divisão social do trabalho em sua tripla dimensão: de classe, de gênero e origem (Norte/Sul)”. (Kergoat, 2010 p.1) -----[i] Historiadora, militante do movimento feminista negro, integrante da tendência APS da Bahia e da Comissão política Nacional de Mulheres do PSOL [ii] Psicóloga, Doutoranda em Saúde Coletiva, militante do movimento feminista negro, integrante da Coordenação Nacional da tendência Enlace, da comissão Política Nacional de Mulheres do PSOL e do Diretório Nacional do PSOL

[2] Carneiro, Sueli. “enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”in: Ashoka (org.). Racismos contemporâneos. Rio de janeiro, 2003. P.52

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


6. O

debate entre Anitta e Pitty e a liberdade sexual das mulheres no capitalismo Por Odete Cristina

Sábado passado foi ao ar um debate entre as cantoras Anitta e Pitty sobre a liberdade sexual das mulheres, antes mesmo do programa ir ao ar já havia gerado polêmica. O debate se iniciou pelo fato de que ambas discordaram sobre o avanço nos direitos conquistados pelas mulheres. Anitta afirmou que as mulheres estão quase iguais aos homens nesse quesito, o que Pitty discordou, pois para ela ainda precisamos conquistar muitas coisas. Depois avançou para um debate sobre o comportamento das mulheres. Em primeiro lugar é preciso refletir sobre o que são esses direitos que Anitta aponta que a mulheres conquistaram no marco da sociedade em que vivemos. Vivemos em uma sociedade capitalista que usa da opressão de gênero e sexual para explorar ainda mais. Com o ascenso do neoliberalismo houve um processo maior de feminização do trabalho e também uma maior concessão nos direitos democráticos, como por exemplo o direito ao voto. As mulheres burguesas conquistaram o direito de trabalhar, mas as mulheres pobres historicamente sempre trabalham. Não existe uma equiparidade salarial entre homens e mulheres dentro da nossa sociedade, sendo que as mulheres ganham até 30% menos que os homens, e quando são negras esse percentual se reduz pra quase 50%. Essa famosa conquista do direito ao trabalho é na verdade uma necessidade imposta pelo sistema capitalista que precisava aumentar seu exército de mão de obra. Além disso, os baixos salários pagos as mulheres servem como justificativa para rebaixar o salário de toda a classe trabalhadora. Também é preciso refletir o que significa o direito ao voto no marco da democracia burguesa que vivemos hoje. Onde partidos pequenos e que representam os trabalhadores não podem ter candidaturas, nem sequer se legalizar e o cenário político é dominado pelos grandes partidos que servem aos interesses da burguesia. Nem mesmo uma mulher no poder pode garantir que as demandas das mulheres sejam atendidas. Para garantir sua governabilidade Dilma faz acordos com as bancadas religiosas e reacionárias do congresso e se cala sobre o direito ao aborto, deixando que milhares de mulheres morram todos os anos. Durante o seu governo houve um aumento na terceirização do trabalho, que em sua maioria são mulheres que precisam enfrentar uma dupla ou até tripla jornada de trabalho, pois o trabalho doméstico ainda recai sobre os ombros das mulheres. Os números de feminicídios e a violência contra a mulher ainda são chocantes.

Ao contrário do que diz Anitta estamos longe de alcançar os mesmos direitos que os homens. E apesar de Pitty pontuar isso, ela não faz um questionamento mais profundo sobre quem é o verdadeiro responsável pela repressão sexual feminina, se limitando a dizer que os homens não devem opinar sobre o que as mulheres fazem ou como se vestem. Contudo, dentro de uma sociedade divida em classes sociais como a nossa é muito difícil que todas as mulheres tenham os mesmos direitos. Pois o capitalismo usa da opressão histórica das mulheres, aliada a exploração e repressão dos nossos corpos para manter sua dominação. Para manter a dominação de uma classe sobre a outra. Outro ponto polêmico foi quando Anitta afirmou que mulheres precisam “se dar ao respeito”, o que Pitty logo se posicionou contrária. Antes de cair em um debate moralista, o que pareceu para mim a polêmica entre as duas, gostaria de debater sobre como a repressão sexual, não só das mulheres mas de todas as pessoas, está profundamente relacionada com a sociedade em que vivemos e a dominação capitalista. Para que o capitalismo triunfe é necessário que as pessoas trabalhem oito, dez horas por dias em um ritmo alienante e que não tenham o direito de exercer livremente sua sexualidade ou desenvolver qualquer outra potencialidade. O capitalismo se utiliza da repressão dos nossos desejos e do controle dos nossos corpos para garantir sua dominação. O machismo ainda está muito presente na sociedade e isso parte da visão que vê a mulher como uma propriedade, inicialmente do pai, depois do namorado ou marido. Uma mulher que exerce plenamente sua sexualidade ou que veste-se como quer, vai contra a noção de que a mulher é mais uma propriedade do homem e contra o controle que o sistema possui dos nossos corpos. Como afirmava Marx as ideias dominantes de uma época são sempre as ideias dominantes da classe dominante dessa época. Enxergar a mulher como uma propriedade e reprimir nosso direito a plena liberdade sexual faz parte das ideias dominantes da burguesia para garantir a sua dominação e exploração sobre a maioria da população. Por isso nossa luta pela liberdade sexual e combate ao machismo deve ser entendida como uma luta maior contra todo esse sistema de exploração e opressão que perpetua a repressão aos nossos corpos e da nossa sexualidade. A nossa luta deve ser parte de um novo projeto que revolucione não só os meios materiais, mas também os meios culturais. Uma sociedade onde todos possam exercer livremente sua sexualidade, livres de toda opressão e exploração.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante Fevereiro de 2015


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.