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A LIN
DA Á
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NHA
ÁGUA MARINH A 3
Jayro Schmidt
MICROENSAIOS
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Nota do autor
Ao receber um poema de Fernando Karl em memória de seu pai, que conhecia o mar, enviei a ele uma espécie de contraponto, no qual apareceu um verso que lhe chamou a atenção: a linha da água marinha. Tanto é que o poeta me propôs escrever “micro-ensaios” sem nenhuma preocupação com a verdade, e com títulos dados por ele. E assim foi escrito a linha da água marinha, que conforme sua indicação deveria ser chamada a façanha.
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Ao poeta Fernando José Karl e a quem não for incrédulo.
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O ato por meio do qual se declara irreal um objeto afirma a existĂŞncia do real em geral. Bergson
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A influência do voo do peixe-voador na linguagem dos catalães
O peixe-voador, desde tempos imemoriais, tem influenciado a linguagem dos catalães, fazendo-os declinar cada palavra conforme as vibrações de suas barbatanas. Dizem até que os catalães surgiram graças a este peixe que não se contenta em nadar, voando para exprimir que as águas do céu não lembram as águas do mar.
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Como construir uma casa à beira-mar?
Existem muitas maneiras de se construir casas, mas construir à beira do mar é uma arte que, como diz as vogais desse nome, remonta à construção de barcos. Casa em barcos é comum de se ver, não barcos em casa, daí o artifício de navegar ao se construir uma casa perto das ondas, que são teimosas sucessões, enquanto a casa é a esguelha de um tronco bem cortado.
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Os mistérios da palavra wabi
A palavra wabi é um graveto que tem ocupado a mente de muitas gerações. Não há outra maneira de conhecer seus mistérios, mas, às vezes, uma única pessoa é capaz de prová-los com as mãos, quebrando-o aos poucos para ouvir o que os mistérios dizem. Se ouvir, e esse é o maior mistério, não poderá transmitir aos demais.
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O traço fino do lápis khol-kajal numa onda de Hokusai
De Hokusai alonga a ponta do lápis no traço que não se acomoda na onda, fino osso como chamavam os desenhistas antigos, ou seriam crinas, rendas, lágrimas, sendas, ou ainda, ouça, concha no ouvido.
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O que Joan Brossa pensa quando escuta a bulha da chuva nas telhas goivas?
O poeta icônico Joan Brossa empreende longas caminhadas enquanto pensa. Caminha olhando para onde não pisa e tropeça para alcançar o que pensou. Nos dias de chuva abriga-se em beirados musicais, e continua andando em lençóis que enxugam seus pés. Joan Brossa, na escuta do que diz a chuva de bulha, pensa o pensamento.
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Godard filma a sombra de uma avenca no muro
Ao filmar, Godard não olha o muro onde está a lembrança da avenca iluminada. Se alguém passa e vê sua projeção distraída, terá que soletrar os nomes de todas as plantas que conhece como se estivesse lendo um livro em cujas páginas não há muro, somente Godard abrigado na sombra da avenca.
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Este madeiro que me refresca a fronte é galho de limoeiro
A mão tateia espinhos, os espinhos ficam brancos. A mão que apalpa a escolopendra. Tanto melhor, bem melhor espremer a ciografia de gomos. O madeiro refresca quem vê a fronte do limoeiro. Rescende o sudário. O galho amanhece.
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Quem bebe do leque da pavoa esquece vírgulas e mata a morte
O pavão não desdenha o leque da pavoa que o povoa senhora ocelada no branco anseio da página um leque de silêncio para não dizer mais do que diz o beber louvor no sozinho dele para matar a morte dela.
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O unicórnio sem nenhum chifre
O unicórnio ferido deixa de ser benéfico e não encontra seu nome no líquido espelhado. Sem o chifre retorcido não pode mais combater o sol na juba do leão, nem curar males, o chifre na fenda da árvore. Triste, sem o falo divino, é fácil capturá-lo com a virgem que é levada ao meio do bosque, bosque no colo para o animal místico descansar.
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Como seria a DĂŠcima sinfonia de Beethoven?
Acredita-se que outra sinfonia de Beethoven estava na anterior, sem se saber por que nĂŁo tirou do surdo ouvido. Teria olvidado ou ido longe demais? Outras perguntas foram feitas, mas todas nem chegaram perto daquilo que seria a DĂŠcima sinfonia: um acerto de contas consigo mesmo com seu esfege, que espeta os centros nervosos do grilo, paralisando-o e impedindo-o grilar.
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Sherazade, com a língua bem afiada, corta os testículos do sultão lascivo
Afiada a língua de Sherazade com pigmentações de arco-íris, língua salivada que o sultão lascivo não sente a ponta de prata cortar, mas corta enquanto acha que está sendo felado com outra história.
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Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo
Quando nada acontece deixou-se de fazer ícones de madeira ou cera. Quando nada acontece há o milagre da lágrima que escorre da madeira e da cera. Quando se vê o que não estamos vendo.
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Ao ousar novos significantes o poeta aciona o fracasso do signo em dizer algo do que é
Palavras nomeiam o que falta. Infrafinas nomeiam o que não existe e o que não existe é a ação do poeta. Isso ainda não é o fracasso do signo, somente o arremedo do orifício por onde se esgueirar. Ao se dizer presença, diz-se ausência daquilo que se pretende nomear. Esse é o desastroso fracasso do signo, calado na tumba. As palavras recordam o que poderiam ser.
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Um dos suplícios mais usuais da Idade Média consistia em punçar a língua dentro da boca com ganchos de açougueiro
Dos suplícios da Idade Média, ao louco que não parava de grunhir eram aplicados ganchos para arrancar a língua, pois o mestre, encarregado de ministrar antídotos ao poder satânico, empreendia o benefício de maneira gradual, fazendo o transtornado engolir limalha de ferro e sangue de bezerro. Caso estes dispositivos não surtissem o efeito necessário, o jeito – pensava o mestre de funil na cabeça admoestado pelo cônego e admirado pela freira do livro fechado na cabeça – era furar a cachola com a trepanação como se vê na pintura de Bosch, emoldurada com uma inscrição em caracteres góticos: “Mestre, cava fora esta pedra. O meu nome é Lubbert Das”. Enfim, se os grunhidos ainda eram ouvidos, atava-se no pescoço do louco a perfeita corda.
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Eu, marinheiro da Torre de Velásquez, penso bilhas e pátios
Eu, marinheiro que fugiu da Torre de Velásquez para voltar a ser popa, o humilde ofício de cuidar do fogo, preparar o incenso dos sacrifícios, executando-os. Nos últimos dias uma palavra não me soa bem ao ter que acendrar a lâmina com o mais puro brilho. O mestre pergunta: “Agone?” Eu respondo indeciso: “Agonai”, e penso o que são bilhas e pátios.
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Ali onde a “sombra fala”, o homem não existe mais
Vez ou outra a sombra transparece, dessas que se escondem nas rosetas espinhosas do agave, e me fala a sentença latina avt tace avt loquere meliora silentio – que, presumo, deve dizer: cala-te, se o que tens a dizer não for melhor do que o silêncio. Sei o que a sombra quer sugerir por outras vias: fora da sombra não existes.
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Cala-se, de hábito, porque ignora tudo na arte em que é exímio
Conta-se que o samurai Togu, durante o almoço, foi cercado por outros samurais. Togu continuou degustando coração de alcachofra jovem como jovem era o círculo armado em torno de seu impassível silêncio, que a tudo ignora. Ouvia-se somente o varejar de uma mosca que Togu, com o naipe da ponta de sua espada, interrompeu o sobrevoo. O círculo dos armados de desfez.
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O que a Sybilla segredou ao filósofo Sócrates no ano 112 a.C.?
Poucos anos antes de ingerir essência de conium maculatum, Sócrates segredou o sopro sibilino exibindo-o com as costumeiras maiêuticas, dançando e tocando instrumentos musicais, mas ninguém entendeu, nem mesmo Platão, o embusteiro.
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É mais salutar para o pensamento caminhar no estranho que se instalar no óbvio
Muitos não querem o desabrigo do que está em formação, satisfeitos com o óbvio do formado. O estranho é simples se é a centáurea no talo de capim e a alméia entre a ave e o voo da ave – que fazem ver o que não era.
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Se eu deixar um copo no quarto escuro, ele aprende a falar grego
É bem provável que tudo tenha vindo do elo vital, que se bifurcou. Instinto e intelecto separaram-se, cada qual guardando a lembrança um do outro. Foi desse tempo que o fascínio da vida começou a sentir nostalgia, cujo poder infusório se manifesta ao se deixar um copo no escuro, com o hábito da apagogia dotando-o de língua canônica que não morre.
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Como, porém, levar água a um tigre pousado numa nuvem?
Dar água a um tigre tem sido meu empenho. O tigre, mais sábio do que todos os sábios, não quer essa água que é a usura de sacrifícios e tempestades. Um tigre não bebe dessa água, o tigre me suporta, o tigre está na nuvem. Uma vez levei água previamente invaginada, promessa de relâmpagos, que ao tigre fiz beber enquanto cavalgava o balde.
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Quanto mais próxima da origem está uma língua, menos gramática tem
Palavras são como gatos: não se sabe como chegam e como partem. As palavras afagadas vão para onde vieram sem gramática: catiti catiti imara notiá notiá imara ipeju
lua nova lua nova lembranças minhas minhas lembranças sopre ao coração
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Me’n vaig arran de l’aigua i recullo: vou rente à água e recolho
Com tantos firmamentos pelo mundo afora, a ave voa rente ao mar. Voa no mar, a ave recolhe a linha da água marinha.
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A longa caravana de nosso desejo nunca encontra o oásis das sombras e das ninfas (Iwan Goll)
Deixei a poesia e agora tenho que retornar no desejo que escrevi ao sol africano. Volto, trabalhei pedras e com uma matei um homem. Na caravana ser alguém não tem oásis de sombras e de que ninfas não sei, amarga beleza Iwan Goll, um bom companheiro.
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Só vaga esperança vive, mas não mais do que vivem as inscrições nos túmulos (Kafka)
Ao se aproximar da estátua, no vapor, ele viu no lugar da tocha uma espada, a vaga permanência da espera. Esqueceu o guardachuva a bordo, buscando-o no porão, onde conheceu o foguista, a quem podia confiar o que acabara de ver, protegendo-o da esperança que não vive mais que inscrições em lápides.
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Ao final, tem-se um excesso de tudo: de pôr-do-sol, de repolho, de amor (Aristófanes)
No final, o excesso é tudo o que não se tem, e parte do corpo que já se foi pode ser um consolo: morre o que faltava morrer.
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Sereibuna ou não ser, eis o verão
Uns dizem ainda não, outros que tudo seja. Que seja ainda sim, verão, digo eu lendo o monólogo de Hamlet. De tanto repetir a leitura, o príncipe parece-me dizer que seja morrer, dormir, talvez sonhar. O fantasma não dorme, essa é a sereibuna ou não ser.
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Cachaça de ver calcinha
Na pesca apassiva de Ma Yuan não é preciso amarrar o bote nas canas. A lua cai no remanso do rio e uma cortesã de calcinha na garrafa de saquê flutua embalada pela brisa. Ma Yuan disse que assim são os dias da velhice.
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O pinguim de louça, do alto da geladeira Cônsul, espia a chuva
O pinguim tem saudade do trema e espia a chuva diacrítica que nada. Nada pode fazer com as aletas asas e os pés nadadores sem metros rasos ou fundos. Quanto mais vê os tremas da chuva, mais saudade sente encarapitado na Cônsul, quase um banzo a seu tempo de bromélia, de folhas aculeadas, verdes que vão para rosas, dessas que os toscos cultivam em cerca viva por não saberem o bem que é ter dois pontinhos lado a lado, um no branco e outro no preto. O pinguim enlouçado só suspira e treme.
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Uma frase lida no OrĂĄculo Sereno, de Sutton Hoo
Toda frase oracular surte um efeito que o leitor vai viver quando deixar de sentir a dor maior com a dor menor.A mais almocĂĄvar das frases serenas de Sutton Hoo ĂŠ a da chama que evoca umbrais na cera derretida.
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Jamais verei selvagens no Taiti capturarem peixes com lanças à luz da vasilha com brasas
Não verei mais o que vi: a taitiana deitada na nudez, a sacralidade da gruta de jade, a sábia vulva e os selvagens com lanças à procura de mantas no profundo da luz aquosa de brasas.
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Roreja o marisco uma escansão do versículo marinho
O mar, quem o mar. Verso e reverso de minha casa agarrada aqui e alhures escandido versículo que prefere perder a garra, não presa.
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A pluma é a língua da alma
A alma não pesa a mão da criança. A alma é a mão da criança. Se ela morre, Clarice, ela está preparada, não a ave embalsamada do homem que esqueceu que está morto por não ter nascido da leve pena de bambu que se faz com três cortes sem fender a língua almada da pluma, a pluma.
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Ria Munk, em seu leito de morte, bebeu sal para entrar com muita sede no paraíso
Nos instantes em que Ria Munk começou a resvalar, seu rosto cobriu-se de suor e a película de seus olhos se dilatou. Todos que estavam ao redor entenderam. Um deles pegou a espátula da lula e com movimentos amestrados levou os gotejamentos a seus lábios, fazendo-o sussurrar: “Se é para estar na sede, já estou na sede”.
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Polüphloisbos
O carretel de madeira Polüphloisbos anda por todos os cantos e desaparece por longo tempo. Feito com uma vareta que o atravessa, num lado atada e no outro uma estrela, na qual se dá corda, o bicho acorda e na realidade não anda, pula para todas as direções. Quando não há mais isso, é então que desaparece do conto arrastando fiapos, mas com outro nome, Odradek.
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Diga o que você vê na escuridão
Da escuridão absoluta nada posso dizer de seu ponto cego. Na escuridão relativa, que a luz concede, aos poucos a visão fica clara, e o que vejo são constelações que se afastam da terra em alta velocidade, deixando um rastro de fosfenos que jamais se alcança. E há outra escuridão, a das pálpebras fechadas, nem absoluta nem relativa. Escuridão que nos olha.
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Diga o que você não vê na escuridão
O que não vejo na escuridão imagino ver. Isso exige acostumar a vista a sobressaltos de nesgas abraçadas no que não vejo no ato de esfregar os olhos. E assim permaneço sem ver a visão do escuro que tudo oculta ali onde a luz admira seu milagre.
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Aquele anônimo que construiu na areia um dormitório romano
A dança carangueja me distrai nesse ludo corpo a corpo com o buraco dormitório romano, braquiúro o maior que tira a areia e deposita no menor, que a lança nos arredores. O buraco não é anônimo, só o construtor.
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A Balladeuse, aeronave de passeio de Santos Dumont
Dumont, icástico rematado, não deixou por menos e desafiou Eiffel, dando um giro na torre com o risco de na cúpula ficar espetado. Não ficou, embora tivesse que voltar ao solo com fumaça de fim e começo de século. Sem hesitar apagou as labaredas com o chapéu que amassado e chamuscado continuou usando, o que virou moda.
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Eu não sou Rimski-Korsakoff
Se eu não fosse Rimski-Korsakoff eu seria quem fosse RimskiKorsakoff. Seria quem tanto faz o que é feito de um nome que diz que não é o seu nome nem um nome que diz não ter nome para dizer que não sou Rimski-Korsakoff.
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Edição do autor, 2015
Coordenação editorial Projeto gráfico Lucas B. Bernardi Vinhetas e revisão Jayro Schmidt
Fonte Palatino Linotype Edição on-line
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