Perfil - Este lado para cima

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LUCAS BOTELHO

ESTE LADO PARA CIMA LUCAS BOTELHO

ESTE LADO PARA CIMA


Este lado E

nquanto o galo ainda nem cantou e a cidade inteira ainda dorme, Edinete já está de pé. Põe o pão de queijo, o bolo e as rosquinhas no forno pra assar, frita o pastel, passa os cafés e faz o chá que só ela sabe fazer; joga a cobertura no bolo, pega os sanduíches que fez na noite anterior e, então, guarda cada lanche na sua caixa, cada caixa numa das bolsas térmicas, pra tudo permanecer quentinho até mais tarde. Às 07h ela sai de sua casa no Itanhangá, bairro da zona norte de Goiânia, e se dirige ao Campus Samambaia. Quem vir a cena talvez nem acredite: uma mulher, uma moto e muitas bolsas, penduradas nos braços, nas costas, no meio das pernas e até no pescoço se for preciso. É o pátio da FIC/FCHF, na Universidade Federal de Goiás, o lugar onde Edinete encontrou o público fiel às suas maravilhas. Quem chega já vê de longe a mulher agitada que, com frio, veste um lenço cinza e branco por cima da touca que prende os cabelos. Ela usa uma pochete grande na cintura e veste uma regata preta. Por cima da regata preta, uma camisa social xadrez. Por cima da camisa, um blazer preto. A calça, também preta, é de moletom, e os pés, que estão protegidos por meias cinzas, calçam uma sandália de couro trançado: a cara das humanas. No meio do pátio, a Tia tem duas mesas dobráveis de ferro e um banquinho de madeira como vitrine de seus produtos. Por cima do forro verde de lã grossa se espalham as seis garrafas térmicas, com diferentes chás e cafés, uma caixa de leite, um pote de Nescau, um potinho de moedas, sachês de ketchup e maionese apimentada, álcool gel, copos descartáveis, um rolo de guardanapo e as cinco bolsas térmicas com todos os sagrados quitutes.

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– Você conquistou o povo aqui, hein! – A gente conquista é com pequenas coisas. Eu sou uma mulher conquistadora desde criança, e se não fosse assim, eu não teria muita coisa na minha vida. – Tia, além de tudo a senhora é carinhosa, é carismática, é tudo de bom aqui nesse pátio. Abraça todo mundo, beija... Para os clientes-amigos-sobrinhos, ela é a Tia, sejam eles/elas

Eu me vejo como uma máquina. E se eu não fosse assim, eu não saberia como eu seria, porque eu gosto de ser assim, dinâmica.


o para cima alunos/as, técnico-administrativos/as ou funcionários/as terceirizados/as. No máximo, sem muita intimidade, chamam de Tia Nete. Ela realmente conquistou cada um deles – pelo bolso e pelo estômago também, mas principalmente pelo coração. O carinho e a simpatia – que são raridade não só no comércio – transbordam das sacolas, copos e vasilhas que Edinete carrega, e envolvem qualquer pessoa que chegue para comprar seu lanche ou café da manhã. – Bom dia amor! – Bom dia, Tia! Me dá um pão de queijo. – E um cafezinho, não vai querer hoje? – Hoje não, tô com dor de cabeça... – Tenho remédio aqui, você quer? Entre um pastelzinho de carne, um sanduíche natural e um copo de café, são centenas de “Oi lindinha”, “Fala meu rei”, “Como você tá, querida?”, todas as manhãs e todas as tardes. Ela só faz uma pausa por volta de meio dia, quando volta pra casa pra fazer almoço, vai comprar as coisas que precisa para preparar a comida do dia seguinte e arruma os produtos que leva para vender a tarde, a partir das 15h, no mesmo local. Faz tudo sozinha, e a rotina é intensa. Mas é disso que Edinete gosta: de estar pra cima e pra baixo, trabalhando, e não parada em casa.

Trabalho final da disciplina de Jornalismo Literário, ministrada na UFG pela professora Angelita Pereira em 2016


– Eu me vejo como uma máquina. E se eu não fosse assim, eu não saberia como eu seria, porque eu gosto de ser assim, dinâmica. Gosto de ser essa mulher. – Apesar de ser assim, mulher-máquina, seus olhos também marejam. – Eu gosto disso, eu não sei o quê que é, mas eu abraço isso como a causa da minha vida, de que eu tenho que viver trabalhando, que todo dinheiro que você ganha ainda é pouco. A despesa do jeito que tá, a economia não existe. Tudo que você tem, você vai no supermercado e gasta tudinho. Eu vou no supermercado e vejo o preço de uma maionese, eu não quero comprar a mais ruim, eu quero comprar a melhor. A mais ruim é a metade do preço, mas eu não quero a mais ruim. Ninguém quer nada ruim, e Edinete leva isso a sério – mas não de uma forma individualista. Ela não aceita vender nada que não seja muito bom, mesmo que isso acabe lhe custando mais. Com Edinete, as coisas tem que estar impecáveis. “Tem que ser perfeitas as minhas coisas. Meus filhos odeiam quando eu falo pra eles que tudo tem que ser certo. ‘Mas vocês gosta de tudo perfeito demais!’, eles reclamam. Mas tem que ser, é o certo!” Entretanto, o que se percebe mais facilmente na Tia, antes de dinamismos, manias de perfeição e até de grandes amores pelo trabalho, é o que ela define como “ser servideira”. “A vida inteira precisei das pessoas. Vivi o mundo inteiro precisando.” Como agradecimento, e quem sabe até com alívio, ela diz, “Meu Deus! Como eu gosto de servir!”. Sempre que se chega na mesinha, é essa a energia que Edinete transmite. A de alguém que fez todas as coisas da melhor forma possível, com alegria, e está ali totalmente entregue ao prazer do exercício de sua atividade, por mais simples que ela possa parecer a olhares mais presunçosos. Edinete tem muita história pra contar, tanto que até já escreveu boa parte de uma autobiografia uma vez. Vinda do interior do Rio Grande do Norte, ela começou a trabalhar aos sete anos de idade, vendendo café na rua para ajudar a mãe. Desde então não parou de rodar o país por causa da família e do trabalho. Resumindo, é mais ou menos assim:

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– Edinete Alves Batista de Morais. Edinete Canivete, põe no fogo não derrete. Ando de mobilete, já tive um Chevette. Nasci em 1964 na cidade de Serra Negra do Norte, no Rio Grande do Norte. Quando eu tinha dois anos meu pai morreu, e a gente se mudou pra uma cidadezinha chamada Currais Novos, a 180 km de Natal. Com sete anos, em 1970, eu mudei de lá e vim pra Goiânia. Em 74 a gente foi pra Uberlândia. Em 78, mudamos pra Natal. Ficamos lá um ano, o melhor ano da minha vida, a primeira vez que conheci as praias. Em 79 nós voltamos pra cá, Goiânia de novo. E desde então, eu nunca mais mudei daqui. Mas já trabalhei em toda a região do estado de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul... Eu conheço tudo tudo tudo, trabalhando, vendendo e negociando.


A jornada como vendedora sempre foi cheia de altos e baixos. Muitas coisas decolaram, mas foram seguidas de pequenas ou grandes tragédias e imprevistos que prejudicaram os planos da mulher que em nenhum momento desistiu. – Você viu que eu era pra ser uma mulher de grandes negócios? Mas nunca deixaram. Cada história é uma coisa grande que eu conquisto, que eu consigo, e aí volta tudo pra trás. A última empresa que Edinete abriu, por conta de duas síndicas que lhe deram o cano ao mesmo tempo, fechou. Até 2009 ela tinha um escritório, tão imeeenso que se aumenta a quantidade de e’s, além de 12 peões totalmente por sua conta e até secretária. Era Dona Edinete, a empreendedora. Mas o ex-marido não ajudava em nada, e tinha que fazer tudo sozinha. Em todos os momentos da vida está muito disposta;

porém, quase sempre rodeada por pessoas não tão ativas. Toda a vida foi desse jeito, e quando não era o marido, era aquela que a trouxe ao mundo e sempre a teve como mina de ouro – sua mãe. – Será que isso é o quê, uma sina? Sina ou não, logo que encontra um revés, sempre aparece alguém que lhe estenda a mão. “Onde quer que eu tivesse, com qualquer dificuldade, eu não parava. Eu não ficava. Se meu pneu furava aparecia alguém pra trocar pra mim. As pessoas me davam dormida e comida sem cobrar de mim, aonde eu chegasse, em qualquer cidade. Quando eu vendia roupa por aí, minha mãe só me dava o dinheiro da passagem. Eu que tinha que me virar, com um mundo véi de mala nas costas. Sozinha no mundo. E eu dava conta. Trazia só as malas vazias e o dinheiro no bolso.”


Vender tudo e voltar com as malas Eu sentei na cadeira e vazias agora é a rotina de Edinete. Tudo que ela traz, ela vende. Todos os dias comecei a chorar. E pensei, são 30 pães de queijo, 30 sanduíches, ‘mas será que não vou mudar 40 rosquinhas, duas formas de bolo, uma forma de brownie, 60 pasteizide vida, vou acabar nesse nhos, oito garrafas de café, cinco litros inferno toda vez, sofrendo de chá, um litro de leite e seis litros de suco, além de eventuais mini-pizzas, pra um lado e pro outro, com bolos de milho, pães com salsicha e o minhas comidas tão boas, e que mais lhe for solicitado pelos queridíssimos sobrinhos. não tem pra quem vender?!’ – Tem gente que vem da Biologia, que vem não sei de onde, lá de baixo, da Agronomia, o pessoal da Veterinária, tudo cola aqui. Tem a lindinha do índios, lá da Oca, tudo cola aqui comigo. “Tia, vim aqui comer com a senhora!”. Como que a Tia não vende? O pastelzinho mesmo já tá mais difícil pra mim, mas eu conquistei aqui como a tia do um real, e vai ser um real o ano inteiro, mesmo que sobe tudo, mas eu tenho que manter algumas coisas de um real aqui. A Tia começou a vender no pátio esse ano, em 2016, e está bem feliz, obrigado. Contudo, há poucos meses atrás, no circuito de graças e infortúnios de sua vida, as coisas estavam de cabeça para baixo. – Como você começou a vender aqui no pátio, Tia? – É mesmo, essa parte é importante. Essa parte é boa. Foi uma luta também. Eu tava sofrendo na feira, que eu já tava vendendo macarrão há dois anos. Macarone italiano. Muuito grudento, nunca vi daquele tanto, e caro à beça. – Gostei do italiano! – Eu falo muito bem, obrigada. Mas como eu tava querendo sair fora das feiras, e comecei a vender em uns colégios lá perto de casa. Não deu certo, não vendia. Então eu fui pra aquela faculdade lá na avenida Leste-Oeste, que eu esqueci o nome. Não gostei, além da distância, não foi legal. Caiu uma chuva lá que me espantou. Então vim pra cá, pro terminal no Itatiaia. Montei uma barraca 05h da manhã, com lampião e tudo. Le-

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vei 30 sanduíches, 60 pastéis, uns 30 pães de queijo, um bolo de cenoura imenso, um monte de café, leite, tudo... Uma porrada de coisa. Das 05h da manhã até 11h, consegui fazer 20 conto. Eu sentei na cadeira e comecei a chorar. E pensei, “mas será que não vou mudar de vida, vou acabar nesse inferno toda vez, sofrendo pra um lado e pro outro, com minhas comidas tão boas, e não tem pra quem vender?!”. Nesse mesmo dia, com o carro cheio de comida, e a angústia na mesma proporção, Edinete resolveu ir pro campus. Ainda era recesso, e apesar do local quase vazio, encontrou quem quisesse comprar alguns quitutes. – Oh meus filhos, tô aqui com um monte de coisa gostosa pra vender e não vendi nada. – Tia, deixa a gente ver o que você tem aí. A Edinete que chegou chorosa ao campus já estava diferente ao sair. O primeiro dia aqui já evitou o que seria uma grande tristeza pra mulher que hoje parece estar sempre sorrindo. Não sobrou quase nada. E ainda recebeu a sugestão:

– Você podia voltar, e também oferecer pro pessoal dentro das faculdades, porque aqui vende. – É mesmo?! E foi. – Eu fui entrando aqui pra dentro com um pastelzinho, uma garrafa de café, um pouquinho de suco, um bolinho sabe, bem tímida, bem no cantinho. Vinha aqui em cima e falava “Oi gente, tudo bem? A Tia vende aqui o lanche gostoso, baratinho, e tal.” Fui conquistando. E tô aqui desse jeito que você tá vendo. O pessoal começou a pedir isso, pedir aquilo, e de março pra cá a Tia nunca mais passou prova, nunca mais voltei pra feira. Troquei o carro pela moto, porque eu tava endividada, e as coisas foram mudando. Aumentaram as vendas, e a Tia foi melhorando. Ela se emociona mais uma vez – feliz, agradecida, realizada. Além do comércio, o carinho investido também traz muito resultado. – Foi até os meninos, alunos aqui, que foram na minha casa buscar essas mesas pra mim, porque falaram “Tia, você vai sair daquelas mesas do meio porque os caras tão roubando suas mercadorias”. Os alunos tomaram atitude pra mim aqui. Eles almoçaram na minha casa, e os agrônomos


Agora eu dou conta de cuidar da minha vida e da minha família. E se você ver o investimento que eu tô fazendo nas minhas coisas... [...] Eu invisto em tudo, eu sou empreendedora.

vão plantar feijão lá. Você não tem noção como eu sou querida nesse pátio. Minha vida mudou. – As coisas estão rendendo aqui, em Tia. Novamente chorosa, mas dessa vez por bons motivos, Edinete concorda. – Graças a Deus. Porque eu estou lutando. Tô feliz. – A lágrima tão segurada e espremida no canto do olho não segura mais e então se joga. – Porque eu não via retorno. Não tinha dinheiro nem pra pagar a minha energia. E agora eu tô vendo essa mudança, tão boa. E gente querendo me derrubar? Vou deixar não. – A gente também deixa não, Tia. Você é tão querida aqui, a galera vai te defender. – Meu filho, a minha vida mudou. Eu tava deprimida, chorando em casa, sofrendo. Porque, uma lutadora fracassada... E as coisas foram mudando. Agora eu dou conta de cuidar da minha vida e da minha família. E se você ver o investimento que eu tô fazendo nas minhas coisas... Daqui eu já comprei um forno elétrico, um fornão grande, de gás, uma vitrinona, você precisa de ver. O que mais eu comprei...? Ah, a fritadeira! Botei um engate na minha moto, pra poder carregar carretinha. Eu invisto em tudo, eu sou empreendedora. Essas vasilhas que eu comprei, o macaco vai querer roubar mas não consegue levar (gargalhadas altas). Tudo eu tenho que pensar. Edinete pensa muito. Pra agora e mais pra frente. Agora que a vida virou de novo, pro lado certo, ela anda de cabeça pra cima, e a mulher-máquina tem olhos de águia. – Eu preciso conseguir um quiosque aqui, urgente. Você sabe que tem um aqui parado, né? Se isso sair pra eu, eu tô feita na vida. Você não tem noção. Logo que essa frase é proferida, como uma atração, uma grande ironia ou talvez aquela dita sina, surge uma corrente que tenta minar as esperanças de Edinete. No dia 13 de julho, dois funcionários da guarda da UFG foram levar o recado da reitoria à ambulante: ela não poderia mais continuar vendendo os lanches dentro da área do campus, por não possuir nenhum tipo de licença pra exercer a atividade. Edinete foi à reitoria, passou a tarde percorrendo corredores e salinhas burrocratas, e não conseguiu nem informação sobre como obter a bendita licença. No outro dia, retornou ao pátio normalmente. O recado dos guardas, dessa vez, foi de que uma viatura viria apreender a mercadoria, caso ela não se retirasse dali imediatamente. A reação foi imediata. Os estudantes se mobilizaram pela permanência de Edinete no campus através de um abaixo-assinado. No Facebook, um post que denunciou o caso em um grupo de alunos da UFG teve grande repercussão, com [...] eu vou comprar mais de mais de mil e quinhentas curtidas e cento e cinco comentários que um jipe pra mim e vou repudiavam a ação da reitoria. Nesembora. Eu vou conhese dia, aquela que distribuía carinho junto com os quitutes ficou abatida, cer umas praias, saca. mas colheu da seara que plantou, e foi consolada por muitas e muitos.

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Ainda hoje ela está no pátio. Edinete não quer sair dali, e ninguém que foi cativado pela Tia aceita a expulsão. Ainda hoje temos a alegria de, antes da aula, despertar com um bom café e ouvir o “Bom dia, amor!” acompanhado de um sorriso. A pressão sobre os ambulantes no campus é antiga, e pode até continuar a acontecer, mas com a união de tanta gente em prol da Tia, é lá que ela vai continuar, por muito tempo.

eu te contar. Eu vou deixar meus filhos de boa nessa chácara, e quando eu vender a minha casa, eu vou comprar um jipe pra mim e vou embora. Eu vou conhecer umas praias, saca. Eu vou montar um quiosque de coco, alguma coisa que eu consiga carregar, e vender um monte de bagulho que eu sei fazer. Vou dar uma ajeitada em mim, só pra mim ficar curtindo, vendo os gatinhos e vivendo outros ares.

Edinete também tem outros planos pro futuro. Após ser convidada para vender seus produtos em alguns eventos universitários, quer arrumar um espaço para eventos dentro da sua propriedade, e lá “vender os comes e bebes” enquanto o pessoal faz a festa. Mas a melhor ideia, a Tia revela por último. – Sabe o quê que é minha ideia? Deixa

Ela é assim, e não tem quem faça diferente – se concretou desse jeito. – Sou briguenta. Sou guerreira. O meu dinamismo e grande, e não parei ainda não. Nem vai parar. A Tia vai longe, e ninguém segura. Mas por enquanto, não vai sair desse pátio por nada nesse mundo.



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