EU GOSTO É DE CONVERSAR DAYAN E
BORGE
S
Eu gosto é A
cadeira de rodas trava no meio do caminho da sala à cozinha. A locomoção dentro de casa é difícil, ainda mais quando os movimentos estão limitados a olhar fixamente para tentar dizer algo. Era o recomeço de uma vida depois de sete longos dias na UTI. Incapaz de expressar qualquer sentimento, como se meu corpo estivesse em outra dimensão, em um mundo em que não há explicações racionais. Talvez o AVC veio para me mostrar que algo não estava bem. Quem sabe se não tivesse escutado os companheiros do trabalho, hoje estaria tocando teclado nos forrós de Goiânia. Eu trabalhava como pedreiro. Era quarta feira e mais tarde eu iria a um forró tocar. Eu assentava cerâmica em uma universidade na saída do Jardim Balneário e meus companheiros, que trabalhavam comigo, paravam para tomar café. Enquanto eles davam uma pausa para o lanche, eu ia tomar remédio. Eram 15 comprimidos todos os dias para controlar a pressão. - Uai João para disso, isso aí não presta não. Você já tá sadio rapaz, mais do que eu você já tá trabalhando aí ó.
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Eu não sentia mais nada mesmo. Parei de tomar o remédio achando que eu estava bom. Não queria tomar mais remédios com medo de uma possível dependência. Na semana da frente aconteceu o que já era esperado. O Acidente Vascular Cerebral começou a dar os seus primeiros sinais. Cheguei do trabalho. Ainda não sentia nada. Aprontei-me, vesti uma camisa xadrez com detalhes azuis e calcei uma botina que havia comprado alguns dias atrás. Ainda não tinha mui-
Trabalho final da disciplina de Jornalismo Literário, ministrada na UFG pela professora Angelita Pereira em 2016
de conversar Por Dayane Borges
tas pessoas quando eu cheguei à associação dos idosos, que ficava no setor onde eu morava mesmo, no Balneário. Aprontei os instrumentos para começar a tocar. Escolhi músicas do Tonico e Tinoco. Era pra ser uma noite animada. As pessoas começaram a chegar. Liguei a caixa de som e o teclado. A música começou. “O baile lá na roça foi até o sol raiar A casa estava cheia, mar se podia andar Estava tão gostoso aquele reboliço Mas é que o sanfoneiro, só tocava isso” Enquanto dedilhava as teclas do instrumento as pessoas pareciam felizes e dançavam. Dois pra lá e dois pra cá. Todos sabiam coreografia. Eu começava a me sentir estranho. A cabeça latejava e a música entrava de um jeito que me fazia ficar tonto. Eu estava passando mal. - Ó, ele tá passando mal, vou levar ele pra casa. Eu não queria que a noite acabasse ali, mas tive que irembora. Minha sobrinha, Daniele, que trabalhava na associação me levou em casa. Quando eu cheguei já me sentia bem, já não estava passando mal. - Já estou bem. Pode voltar pro forró. - Você tem certeza tio? - Eu tôbão! A sensação de não estar passando mal durou pouco. Eu estava enganando a mim mesmo com aquele papo de que estava tudo
bem. Comecei a sentir dor de cabeça e dormência, entortando a boca e um lado do corpo. Tinha uma mulher que gostava demais de mim, vizinha minha, o apelido dela era Preta. Sai na rua e ela estava no portão, era costume dela ficar observando os passos lentos e os carros apressados. Decidi falar que não estava muito bem e ela chamou o filho. - Ó, ele tá passando mal. Ela mandou o filho dela ir em casa e buscar o carro e quando eu cheguei ao hospital já não aguentava mais andar. Foi tudo muito rápido. Já havia dado o AVC. As enfermeiras ligaram para os meus filhos. Na época eu morava sozinho. Ligaram para eles e não demorou muito para que estivessem todos ao meu lado. Eu fiquei sete dias na UTI. Meu estado era de coma. Fiquei morto, entortei tudo. O meu filho nem me conhecia, o tanto que eu fiquei deformado. Quando eu sai da UTI fui morar com os meus filhos. Fiquei dois meses morando com eles e pedi para vir pra cá.
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Era estranho não poder conversar mais. Ou pelo menos, não conversar como era antes. Mesmo rodeado pelos meus filhos, a sensação de estar sozinho era inevitável. O silêncio me fazia mal. Quando eu pedi para ir para o asilo, meu filho mais velho, Valdeson, não gostou muito. Ele tinha vergonha de falar para os amigos que tinha um pai no asilo. Eu não gostava de me sentir sozinho, diferente de morar sozinho, a sensação era horrível. Eu usava cadeira de rodas. Não conseguia me mover para nada. A cadeira me acompanhava por todas as partes, minha vida havia mudado . Minha ex-mulher foi uma grande parceira depois que sai da UTI. Ela cuidou de mim, cuida até hoje. Quando cheguei da UTI não conseguia deitar na cama, eu deitava no chão. Eu não conseguia mexer, minha vida mudou. Eu gostava demais de conversar e lá na casa dos meus filhos não tinha ninguém e eu só ficava sentado na cadeira de rodas. Quando cheguei aqui, a moça que me recebeu, Cristina, disse que eu já estava quase morto. Ela espantava mosquito da minha boca e me dava comida. Eu não conseguia dizer quase nada. O tempo foi passando e, com a fisioterapia feita por estudantes, eu melhorei. Recuperei alguns movimentos. Foram seis meses fazendo fisioterapia. Da cadeira de rodas passei para o andador e fiquei por um ano. Depois eles voltaram e disseram “agora o senhor vai andar”. Fiz terapia de novo. Depois de dois dias fazendo terapia eu larguei o andador e passei a usar a bengala. E com ela eu estou há quase sete anos, mas eu vou largá-la. Você vai ver. Me perguntam porque eu sou tão animado. Animado eu sou toda vida. Antes de ter o AVC eu conversava demais. Tive que parar por um tempo. A voz não ecoava mais do jeito que eu gostaria. A vontade de falar ficava no movimento dos olhos agitados, esperando ansiosamente a voz voltar. Com a terapia pude, aos poucos, fazer o que me dava alegria, conversar. Eu gosto de ouvir as histórias das pessoas. E gosto de contar a minha também.
Era estranho não poder conversar mais. Ou pelo menos, não conversar como era antes
- Tudo amigo aqui? - Não, tem uns inimigos também. Não é que é inimigo, é que não conversa direito. Você quer saber de uma coisa? Do jeito que você é no tempo de jovem, quando você fica adulta você é do mesmo jeito. Se você for bruta, se você for uma pessoa ignorante quando você ficar velha ninguém aguenta você. Ninguém aguenta velho rabugento.
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Sair da minha rotina foi o mais pesado. Parar de acordar cedo, entrar nos ônibus e ir trabalhar me fazia falta. Eu me aposentei e parei de traba- lhar. Eu tinha 56 anos. O melhor é que eu sou fácil de adaptar. Minha cabeça é boa. Sabe o que me prejudicou? Só a lateral do meu olho esquerdo. Eu não consigo enxergar. Fora isso, tá tudo uma beleza. Não considero que tive nenhuma dificuldade. Tudo bom. Eu não acho dificuldade em nada.
- Tem alguém no quarto com o senhor agora? - Tem. Meu companheiro ele é engraçado. - Ele tá vivo ainda? - Tá. De vez em quando eu chamo ele. “ô seu Mané”. Só pra saber se ele ainda tá vivo. -Oi! - Tá vivo. Não, né nada não. Pode continuar com seu sono. Seu Mané tem alzheimer. Quando a gente deita passa um pouquinho ele pergunta assim: “João, cê já jantou? Porque eu não jantei ainda não”. E eu falo assim “Já jantou sim rapaz”. Quando eu tive AVC eu comia só sopa. Era o famoso pirão. Aqui é bom que tem comida batida, mas eu não tenho coragem de comer essa comida não. Ah, eu quero te falar uma coisa. Aqui é assim: a pessoa chega aqui entra de um jeito e sai de outro. Tem gente que não acostuma. Tem uma mulher, ela é baiana, ela não acostuma de jeito nenhum, mas eu dou uns conselhos pra ela. O povo aqui gosta de vir conversar comigo. Eles dizem que eu sou o cartão postal desse asilo. Daqui a pouco o lanche chega. Sabe, eu gosto demais daqui. É difícil a gente se acostumar com um lugar né, mas aqui é bom demais. Aqui eu faço tanta coisa. Vou contar pra você. De manhã, eu acordo e tomo banho. Eu gosto de levantar primeiro do que todo mundo, porque senão o banheiro fica com fila. Depois vem o café da manhã. Lá para o meio dia tem o almoço e às 15:30 tem o lanche. A janta aqui é cedo, 18:30/19:00 as meninas já trazem. À noite tem um lanchinho e depois a gente tá livre. Olha aí, eu não disse que o lanche já estava quase chegando? Essa que trouxe o lanche é a Neide. - Ó Neide, eu quero é pão de queijo viu? - Ah não, vai comer é pão. - Oh, Neide, mas você é ruim. Oh Neide, eu falo pra moça que você é ruim. - Sou não, pode comer o pão. O dia que tem coisa boa o senhor não, uma fruta o senhor não quer. - Eu como três pães por dia. Anem, elas traz esse copo pra mim, é ruim esse copo, deus me livre. - Por quê? - Ah, porque não tem asa pra segurar.
Sabe do que eu mais sinto falta? É de tocar o meu teclado. De poder cantar nos forrós. Talvez se eu não tivesse parado de tomar os remédios da pressão. Mas sabe, o que está feito, está feito. É aquele ditado né: não adianta chorar pelo leite derramado. Mas apesar de tudo, eu sou uma pessoa feliz. Já fiz que tinha que ter feito. Mas se alguém me pedir pra fazer alguma coisa eu faço. Gosto de ajudar. Quando meu filho chega aqui me pergunta:
- Ô pai, porque o senhor é tão tranquilo? Não preocupa com nada. -Ah meu filho, eu já fiz tudo que tinha pra fazer. Estou feliz assim. Aqui sempre tem um radinho que fica ligado para dar uma animada. É bom que toca só aquelas músicas antiga. Faz a gente lembrar do tempo que passou. “E o sanfoneiro toca toca alegria Vamos, vamos, minha gente Até clarear o dia”
Ah, deixa eu te falar uma coisa, eu vou comer meu pão. Depois a gente conversa mais, mas se você quiser perguntar mais alguma coisa pode perguntar viu? Eu gosto é de conversar. ***
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Da cadeira amarela ele observa quem passa pela rua. O portão de grades pequenas possibilita uma visão ampla do “mundo lá fora”. As quartas-feiras Seu João Bernardo, que agora tem 66 anos, vai passear com todos do asilo, no mesmo dia em que saia pra tocar no forró, uma espécie de banho de sol no parque. A vida lá dentro parece não passar muito depressa, mas isso não importa. Seu João sabe que realizou tudo que tinha para realizar na vida. Ele é feliz, completo e faz com que todos se sintam, de alguma forma assim, completos. É um verdadeiro conselheiro do asilo, o psicólogo das experiências que já viveu. Por algum motivo, todos gostam de estar perto do seu João. Dizem que ele é o Cartão Postal do Asilo Apóstolo Tomé. Ele ri, ele brinca, ele faz qualquer um se sentir infinito.
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