Fotolivro - Olha a pamonha! (amostra)

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olha a pamonha!

Alex maia e Caroline almeida



olha a pamonha!



Alex maia e Caroline almeida

olha a pamonha!

Goiânia, 2016


orientação Profª Drª Rosana Maria Ribeiro Borges textos e fotografias Alex Maia e Caroline Almeida projeto gráfico e diagramação Lucas Botelho

MAIA, Alex Bruno de Assis Olha a pamonha! / Alex Bruno de Assis Maia; Caroline Almeida Miranda. – Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2016. (168 páginas) 15cm X 21cm 1. Pamonha. 2. Milho. 3. Tradição. 4. Goiânia. 5. Goiás. 6. Cultura. 7. Pratos típicos.


Ă€queles que nos fazem ter orgulho de nossas origens


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*Cora Coralina Retirado do livro Poemas dos Becos de Goiรกs e Estรณrias Mais (1977)


sumĂĄrio 13

apresentacĂŁo

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pamonha na rua

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pamonha na feira

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pamonha na pamonharia

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pamonha na pamonhada

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todas elas com queijo


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apresentação

É

curioso analisar a importância da comida na vida da gente. Já pensou sobre a quantidade de coisas que ocorrem em torno do ato de comer? São almoços de negócios, jantares românticos, churrascos de comemoração... Mesmo coadjuvantes na ocasião, as refeições dificilmente deixam de estar presentes. E o que faz a alimentação, uma necessidade básica do organismo, receber status de evento? Com essas perguntas, começou a germinar este livro. Nós não sabíamos como responder a esses questionamentos. Como algo tão presente e próximo pode ser tão desconhecido? Buscamos respostas. Hoje, com um pouco mais de conhecimento sobre o assunto, temos ainda mais dúvidas. Descobrimos que a comida é algo mais complexo do que pode parecer. É na culinária que resistem as mais profundas raízes culturais de um indivíduo, que, por mais que não permaneça no mesmo espaço geográfico, leva consigo hábitos alimentares construídos historicamente. Em contato com novos costumes, a tradição sofre adaptações, dando origem a cada vez mais pratos e sabores. E isso tudo tem a ver conosco, brasileiros e, mais especificamente, goianienses, que, em uma definição simplificada, comemos o que negros, índios e brancos comiam há séculos. Como apreciadores de um bom prato e admiradores da cozinha tupiniquim, com um carinho ainda maior pela comida regional, decidimos direcionar nossos olhares a algo que de tão presente no dia a dia, parece simples: a pamonha. 13


Longe de ser comum, o prato tem aspecto folclórico. É o tipo de comida que cria laços entre gerações. É um alimento que traz à tona as origens rurais de uma cidade que hoje é metrópole. É uma preparação feita sob um processo que, mesmo modernizado, não conseguiu dispensar totalmente as características originais. As grandes peneiras de aço e os raladores elétricos tomaram o lugar de seus correspondentes mais arcaicos, mas nada foi suficiente para substituir o trabalho das mãos que fazem a limpeza do milho. É um prato que chega sendo anunciado. “Olha a pamonha!”, dizem. O bordão, que nomeia o livro e é utilizado por muitos vendedores ambulantes, faz parte do imaginário popular. E é difícil encontrar um goiano que não se assuma apaixonado pelo quitute. Não há unanimidade, é verdade. Mas, como resposta, esses quase sempre recebem o ar de surpresa e espanto do interlocutor. O sabor já bastaria para explicar a quantidade de aficionados pelo prato, mas os aspectos invisíveis que o cercam se encarregam de torná-lo ainda mais especial. Afinal, quantas pessoas realmente se dão conta do simbolismo que existe em torno da pamonha? Quantas famílias já sobreviveram dela e por causa dela? Quanta história há escondida por detrás das bancas de feira, das caixas de isopor ou dos tachos ferventes? Quantos estômagos vazios já foram forrados pelo alimento vindo do mais humilde dos vegetais, como poetizou Cora Coralina? 14


Neste livro, não temos a intenção de apresentar os aspectos científicos que envolvem a pamonha. As imagens que o compõem são uma tentativa de homenageá-la e imortalizá-la, ainda que seus inconfundíveis aroma e sabor não possam se fazer presentes. Em cada página, buscamos nos aprofundar nos olhares, nos gestos, nas dores e nas alegrias daqueles que produzem, vendem e apreciam esse prato. Buscamos nos aproximar de pessoas que garantem que essa tradição permaneça viva, mesmo longe dos olhos de grande parte daqueles que amam o que elas fazem. Conhecemos Jorcelim, Maria, Volney, Maria Nailse, Marcelo e Rosana. Nomes próprios, com histórias ímpares, e que aqui também representam Marias, Rosanas e Marcelos que encontramos pelas ruas todos os dias. Conhecemos mais do que eles. Conhecemos suas realidades, seus gostos, suas famílias e seus amigos. Conhecemos seus sonhos. Conhecemos e vivemos também a nossa própria história. Uma história que tem raízes no campo e que é compartilhada em família. Mais do que isso: é compartilhada por gerações. Uma história que, sendo nossa, também será a de muitos que lerão este livro e será a de gente que jamais saberá que este livro existe. É a história de gente que, fazendo a própria história, permitiu que a nossa também acontecesse. É uma história de tradição, identidade e cultura. Boa leitura e... “olha a pamonha”! 15


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pamonha na rua por Alex e Caroline

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N

a casa do final da rua, ao lado da estação de energia, dona Maria nos aguardava com pão de queijo e um café forte, preparados nas primeiras horas da manhã. As mãos ágeis já tratavam de dividir o curau, ainda quente, nos potes que iam para a rua mais tarde. Os olhos esverdeados, expressivos, espiavam a conversa que acontecia logo ali. Era seu Jorcelim começando a contar as histórias de suas vidas. No casamento de 39 anos, os dois tiveram mais do que a companhia um do outro e dos filhos. Há 19, é entre palhas e espigas de milho que o dia começa. Em 1976, teve início a história de Maria e Jorcelim em Goiânia. A capital era jovem, promissora e tinha espaço para sonhos de toda a gente que vinha do interior. Ela morava em Itaguaru e ele em Aurilândia. Duas cidadezinhas do interior goiano que os abrigaram quando vieram de Minas Gerais. Ela, de Quintinos, pertinho de Carmo do Paranaíba, como gosta de destacar. Ele, de Arapuá, ali pertinho também. Há 40 anos, seu Jorcelim não era pamonheiro. A coincidência que costura os fios da longa trajetória empolga o senhor de olhar pesado e riso fácil: todas as profissões que ele teve terminavam em “eiro”. Foi candeeiro, aquele que guiava os animais que puxavam os carros de boi, explicou. Mostrando a memória afiada, seguiu enumerando: foi roceiro, carreiro, carroceiro, lenheiro, sorveteiro, seleiro, leiteiro e, finalmente, pamonheiro. Como nos dias de hoje. Vestimenta alinhada, com camisa social, calça jeans, boné e botas, e seu Jorcelim vai pelas ruas dos setores da região Sul de Goiânia numa pesada bicicleta do tipo cargueira. O grito que anuncia a chegada das pamonhas vem de longe e é inconfundível. Pelas moradias e comércios, todos sabem se ele já passou ou

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não. Quando atrasa, estranham. É o moço que manda “olhar a pamonha”. Até chamado de louco ele já foi, como explica dona Maria. Hoje, não há tanta gente que confunda as vendas com loucura. Entre uma esquina e outra, seguidas de um e outro grito, seu Jorcelim é parado por todos os tipos de clientes. O carisma e a habilidade para o negócio fazem com que tudo pareça fácil, mas nem para ele as coisas sempre foram assim. Por incentivo de um amigo, a produção das pamonhas começou. No início, houve resistência. Ninguém achou que poderia dar certo. O amigo não desistiu e levou o futuro pamonheiro para a rua. Dizia para gritar e chamar a clientela, mas a voz do outro não saía. A timidez era grande, mas não deu para deixá-la vencer por muito tempo. A ideia deu certo e, no melhor dos tempos, quinhentas pamonhas saíam do fogão de dona Maria. Os cerca de dez quilômetros rodados diariamente já foram mais numerosos e garantiram o sustento dos quatro filhos, que agora são adultos. Hoje, já dá pra ter mais tranquilidade. De terça a sexta-feira, seu Jorcelim vai para a rua, levando cerca de 150 pamonhas por dia, que esgotam logo nas primeiras quadras do trajeto. E não é só nas mãos de quem compra que elas vão parar. Enquanto muitos buscam o quitute para variar o cardápio, há quem cruze o caminho do pamonheiro sem nenhuma outra opção de alimento. Relembrando histórias das pessoas que conheceu, com a firmeza de quem já viu e viveu muita coisa, seu Jorcelim conta que há 19 anos, todos os dias, sempre houve quem ganhasse uma pamonha de suas mãos. Para ele, não é só dinheiro. É para matar a fome. 19


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“Nossas pamonhas mataram a fome de muita gente, porque nós não trabalhamos só pelo dinheiro, não. Não teve um dia, nesses 19 anos, que eu não desse pelo menos uma pamonha. Quem precisou, eu dei.” – Seu Jorcelim

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“A pamonha é uma graça de Deus nas nossas vidas. Quando a gente faz uma coisa que gosta e dá cer to, é muito gratificante. A gente criou esses quatro meninos com a pamonha. Acho que se não fosse ela, teria sido bem mais difícil. Isso aqui deu um empurrão grande.” – Dona Maria

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“Se eu vendesse no carro ia dar trabalho pra estacionar. A moto anda muito rápido e não é em qualquer lugar que posso parar. A bicicleta, não. Qualquer cantinho eu encosto. É menos perigoso pra mim.” – Seu Jorcelim

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“O dia em que eu parar, eu vou pintar ela e pendurar na parede. Não vendo, não dou, não empresto. Essa aqui é minha guerreira.” – Seu Jorcelim

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pamonha na feira por Alex e Caroline

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À

s oito da manhã, quando chegamos ao Bosque dos Buritis, fazia quase sete horas que o dia de Volney havia começado. Enquanto muitos ainda pegavam no sono, já era hora de despertar nos lares da família Morais. À uma e meia, começava o ritual de preparação, liderado por Volney e seu irmão Valdir, que descascavam, limpavam e deixavam o milho pronto para ser ralado. Uma parte da massa começava a ser preparada, deixando o toque final, que vem do tempero, para a hora da feira. Às quatro e meia, os demais integrantes da família se juntavam à dupla para iniciar os preparativos rumo à labuta. Além dos dois, iam, naquele dia, Ilma, também irmã, e Letticia, uma das filhas de Volney. Nem sempre a divisão é assim. A equipe, toda formada por familiares, é grande e se divide para conseguir dar conta das duas feiras em que a família trabalha. Na terça, eles vão para a Dom Bosco, que fica no Setor Oeste, pertinho da Assembleia Legislativa. Já aos domingos, a família vai para o Setor Pedro Ludovico, onde a feira é feita ao lado do Mercado que também leva o nome do fundador de Goiânia. Foi na feira de domingo que conhecemos Volney e sua banca. O quitute é famoso e foi indicado por todos os feirantes que abordamos pelo caminho naquele dia. Antes mesmo do meio-dia, não havia mais nenhuma pamonha para contar história. Só depois conheceríamos o sabor da tão falada pamonha. Aguardamos ansiosos. Era uma terça-feira de novembro. A manhã quase nublada dizia que mais cedo havia caído uma chuva fininha, que tinha sido suficiente para levar

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alguns casacos para as ruas de Goiânia. O clima ameno, com aquele quasefrio que só goiano sente, era muito propício para uma boa pamonha. Logo, imaginamos: as vendas vão ser boas. A banca fica após o final da rua, virando à direita, bem aos fundos do Colégio que dá nome à feira. De longe, comprovamos a nossa teoria. O movimento era intenso. Mesmo “escondida”, a venda recebe um grande fluxo de clientes, que começam a aparecer por volta das seis da manhã, em busca de pamonha e café quentes. Não demorou muito para a primeira remessa ir embora. O trabalho era corrido e o atendimento, impecável. Espontâneo e cortês. A timidez de Volney para falar sobre si mesmo contrastava com a destreza apresentada no trato com a clientela. Não foi fácil conseguir arrancar as primeiras palavras do feirante. Entre uma conversa e outra dele com os clientes, nos restavam pequenas brechas para explorar nossa curiosidade. Foi em um desses momentos que ele nos contou que há 23 anos tira seu sustento da pamonha. Com 19, ainda sem profissão e recém-chegado da cidade de Uruana, no interior de Goiás, teve a oportunidade de se arriscar na área. A primeira banca, que os acompanha até hoje, apareceu por meio de uma tia, que insistiu para que eles a adquirissem. Assim, surgia uma das primeiras bancas de pamonha em feiras livres na capital goiana. Com orgulho, Volney relembrou que a receita chegou a ele após ser compartilhada por muitos familiares, como continua sendo ainda hoje. Pelas suas contas, a tradição já passou por quatro gerações, chegando, agora, a seu neto. 53


A garantia do sustento vem de um grande esforço coletivo. Do outro lado da banca, as mãos ágeis de Valdir, Ilma e Letticia iam enchendo de massa os copinhos feitos com a palha do milho. A habilidade surpreende até quem está acostumado com o ritual. As 960 espigas raladas por dia rendem, em média, 250 pamonhas que podem ser “de sal”, “de doce” ou “à moda”. Se o ponto do milho estiver bom, eles também fazem e vendem curau. Enquanto as pamonhas da segunda remessa ainda cozinhavam, os clientes não paravam de chegar. Muitos deixavam seus pedidos anotados e voltavam depois para buscar. Se não pudessem retornar, um dos pamonheiros realizava a entrega nas proximidades. Ao celular, Volney não parava de anotar os pedidos que chegavam. Naquele dia, a maior encomenda contou com 15 pamonhas. A clientela, antiga e fiel, tem até lugar marcado nas mesinhas ao lado da banca, onde ficam esperando a pamonha chegar, sem nem precisar falar qual é o sabor pretendido. Às vezes, passam a manhã toda por ali, se sentindo em casa. Sem demora, pudemos entender o porquê. Ao nosso lado, duas mulheres, que antes não se conheciam, dividiam a mesa e, entre risos, comentavam ter descoberto, naquela conversa, que nasceram no mesmo lugar e tinham muitos conhecidos em comum. Compartilharam curiosidades sobre a cidade natal, depois se despediram e desejaram se encontrar mais vezes. Depois, Volney organizou a mesa em que elas estavam, com um sorriso no rosto que talvez seja a prova de que ele sabe, sim, que aquilo que faz é muito mais do que cozinhar. 54


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