Revista PROARTE

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E mais

Entrevista Lima Duarte Perfil Rita Lee

ART 1ed.

Out - Nov 2011

A hist贸ria e a arquitetura dos teatros municipais brasileiros

Luzes

da ribalta

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PROART é uma publicação mensal da Luz Editora.

CARTA AO LEITOR

Diretor-geral: Pedro Herz Diretora de redação: Thaís Arruda Editor-chefe: Luciana Silva Rodrigues Editor: Gustavo Ranieri Assistente de redação: Clariana Zanutto Videomaker: Pedro dos Santos Diretora de arte: Carol Grespan Redatora: Mirian Paglia Costa Revisores: Carina Matuda, Gustavo Pizzicola Colaboradores: André Afetian, Caroline Vieira, Christian Petermann, Christina Stephano de Queiroz, Cláudio Portella, Eduardo Medeiros, Gérson Trajano, Guilherme Bryan, Julio Ibelli, Kelly de Souza, Luiz Rebinski, Marcelo Cipis, Marco Carillo, Nádia Mariano, Rodrigo Takeshi. Agradecimentos: Alexandra Corvo, Ana Paula Padrão, A Recreativa, Nelson Motta, Raphael Mandarino Junior, Sérgio Amadeu. Projeto gráfico: LS Editorial Pré-impressão e impressão: Pancrom Tiragem: 30 mil exemplares

Neste mês, daremos início às temporadas 2011 no Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo. O espaço passou por reforma para a ampliação de seus recursos cênicos, o que permitirá às diversas produções usar o mesmo espaço em dias ou horários alternados. Muito em breve, teremos a programação para os Teatros Eva Herz de Brasília e de Salvador. Em abril, estreia A casa amarela, espetáculo solo do ator Gero Camilo, sob direção de Marcia Abujamra. Logo em seguida, Antonio Abujamra também estará atuando em nosso teatro, ao lado de Tatiana de Marca, para representar Uma informação sobre a banalidade do amor, de Mario Diament. A tradução, adaptação e direção foram realizadas pelo próprio Abujamra. Já no início de maio, receberemos mais duas excelentes atrações teatrais: Édipo, de Sófocles, com direção de Elias Andreato, que também assina a adaptação e atua ao lado de Eucir de Souza, Tânia Bondezan, Romis Ferreira, Nilton Bicudo, Daniel Maia e Clovys Torres. E, alguns dias depois, acontece o retorno aos palcos da premiada peça Um porto para Elizabeth Bishop, escrita por Marta Góes, com a atriz Regina Braga dirigida por José Possi Neto – a obra representa com bastante sensibilidade a vida da poeta norte- americana no período em que viveu no Brasil. Vale lembrar que, neste ano, Bishop faria 100 anos (leia mais sobre ela no perfil da edição de março da Revista da Cultura). Falando nisso, comemoramos, ainda neste ano, o centenário do Teatro Municipal de São Paulo e, para destacar a importância dessa data, preparamos aqui uma reportagem (página 34) contando também um pouco da história de alguns dos mais importantes e antigos teatros municipais do país, como os do Rio de Janeiro, de Salvador, Recife, Belém, Manaus, Porto Alegre e Ouro Preto. Teatros que foram e continuam sendo espaços fundamentais para a nossa cultura, para a preservação de nossa memória e arquitetura. Boa leitura!

Luciana S Rodrigues Editora


Sumário

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Entrevista – Lima Duarte Wiscilit, quat. Mod modip enim ecte dolor sequis nim at. cum am, venis nulput vullutat. Ut praesto consequipit la con.

Diversão – Enquanto isso, na sala de justiça Wiscilit, quat. Mod modip enim ecte dolor sequis nim at. cum am, venis nulput vullutat. Ut praesto consequipit la con.

História – Memória urbana Wiscilit, quat. Mod modip enim ecte dolor sequis nim at. cum am, venis nulput vullutat. Ut praesto consequipit la con.

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Perfil – Rita Lee

Wiscilit, quat. Mod modip enim ecte dolor sequis nim at. cum am, venis nulput vullutat. Ut praesto consequipit la con.

Capa – Palcos Brasileiros

Wiscilit, quat. Mod modip enim ecte dolor sequis nim at. cum am, venis nulput vullutat. Ut praesto consequipit la con.

Música – Prelúdios de um concerto

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Lima Duarte Por Amilton Pinheiro

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ator Lima Duarte, que recentemente completou 82 anos, tem uma galeria de personagens inesquecíveis tanto no cinema quanto no teatro e principalmente na televisão. Certa vez, Paulo Autran disse que Lima era o único ator brasileiro a ter mais de meia dúzia de super personagens na telinha. Isso, muito devido ao tempo em que está no ar, desde a fundação da TV brasileira, em 1950, e principalmente pelo talento para compor personagens com a cara e a alma do povo brasileiro. De suas interpretações nas tramas da Tupi e depois, na Rede Globo, é impossível esquecer figuras emblemáticas como o matador Zeca Diabo em O Bem Amado (1973); o empresário Salviano Lisboa, da primeira versão de Pecado Capital (1975); e principalmente o Sinhozinho Malta, que lançou o famoso bordão “Tô certo ou tô errado?”, de Roque Santeiro (1985).

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E se foi a televisão a responsável por projetar o seu nome aos quatro cantos do país, foi no cinema que Lima viveu os mais elaborados papéis da carreira. É também na sétima arte que o ator mais poderá ser visto neste ano. Em junho e julho estreiam dois dos filmes em que trabalhou: a comédia Família Vende Tudo, de Alan Fresnot, e Assalto ao Banco Central, de Marcos Paulo. No segundo semestre, é a vez de Colegas, o Filme, de Marcelo Galvão, e o E a Vida Continua, de Paulo Figueiredo, isso sem contar a participação especial no filme Cadeira do Pai, de Luciano Moura. Nesta entrevista, o ator fala sobre sua chegada a São Paulo, em 1946, literatura, faz críticas à maneira como as novelas são produzidas atualmente e dispara: “a cultura de massa é uma tragédia no Brasil de hoje”.

“Algumas palavras são bonitas que nos abrem o mundo. O ator tem que saber penetrar no âmago delas. Tem de buscar o que são, significam e dizem como uma coisa viva. Afinal de contas, a palavra é orgâniza e, inclusive, uma arma de guerra”

Você nasceu no lugarejo mineiro de Desemboque, morou no início da adolescência em Ribeirão Preto e voltou para Minas antes de se mudar de vez para São Paulo. É isso mesmo? Foi. Lembro que cheguei em São Paulo em 1946, depois que briguei com meu pai e disse que ia embora de casa. No outro dia, já tinha esquecido o que havia lhe dito, mas meu pai não. Ele chegou e disse: “Vatimbora”. Era assim que falávamos lá em Minas Gerais. Ele falou com um amigo que estava vindo para São Paulo com um caminhão cheio de mangas. Vim então em cima da boleia, envolvido pelo cheiro das mangas rosa. Fomos para o Mercado Central e ajudei o amigo do meu pai a descarregar a mercadoria, em gratidão pela carona. Foram três dias de viagem, mas, apesar do cansaço, o meu olhar de adolescente, sedento de tudo, veio se deslumbrando com as passagens, as paragens e as pessoas.

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Como foram os primeiros dias na capital paulista? Fiquei dormindo debaixo dos caminhões e, durante o dia, me oferecia para ajudar a descarregar as mercadorias. Foi assim que me iniciei nessa cidade de pedra, cantada lindamente por Caetano Veloso na música Sampa. Sei que nessa época a literatura já fazia parte de sua vida. Como se deu o seu primeiro contato com um livro? Um dia, quando já morava em Ribeirão Preto e trabalhava numa loja de materiais de construção, estava fazendo uma entrega de um vaso sanitário, levando-o na cabeça, sob um calor infernal. Estava descalço, e a quentura do chão machucando meus pés. Então, antes de chegar ao destino, parei para descansar, encostei-me numa árvore que dava uma sombra gostosa e, sem mais nem menos, olhei para cima e vi num letreiro a palavra “biblioteca”. Nunca havia entrado numa. Como estava descalço, tinha vergonha de entrar nos lugares, mas deixei o vaso escondido, tomei coragem e entrei assim mesmo. E que livro era esse? Era Grandes Esperanças, do [Charles] Dickens. A Inglaterra vitoriana de Dickens era muito parecida com Ribeirão [Preto] daquela época, pelo menos na minha mente, que sempre foi delirante (risos). Eu era muito parecido com o pequenino Pip [o personagem principal do livro] a procurar a minha miss Havischam por aí. Não a encontrei naqueles tempos de menino, mas, quando cheguei em São Paulo, a minha miss se materializou em Madame Paulette [senhora judia que Lima conheceu quando foi para a “zona”. Ela o “adotou” e foi muito importante na sua vida e no início de sua carreira]. Mas, certa vez, você declarou que o seu livro preferido era o Grande Sertão: Veredas... Pode parecer Grande Sertão: Veredas, mas é Grandes Esperanças, do Dickens. Eu tinha até recentemente todas as edições do Grandes Esperanças, em francês, inglês, italiano e espanhol. Sei trechos dele em inglês [começa a falar a parte em que o personagem Pip fala de sua miss Havischam]. É tão bonito isso, é tão da época. As relações humanas e as relações do meio social eram parecidas com o Brasil dos meus tempos de menino. Mas claro que o Grande Sertão: Veredas é um dos meus

livros de cabeceira, desde que ele foi publicado. Tenho um que gosto muito também. Chama-se Viagem na irrealidade cotidiana (esgotado), é um livro de crônicas do escritor Umberto Eco e muito bonito. Como você define a importância das palavras para o ator? São fundamentais – o que escondem, o que representam em si, sua beleza gráfica. Algumas são tão bonitas que nos abrem o mundo. O ator tem que saber penetrar no coração delas, no âmago. Tem de buscar o que são, significam e dizem como uma coisa viva. Afinal de contas, a palavra é orgânica e, inclusive, uma arma de guerra. Nessas últimas seis décadas, você fez muitas novelas, começando na primeira de todas: Sua vida me pertence, de 1951. O que mudou nesse fazer? Agora, a novela é muito diferente daquela época. Com o advento da internet, tudo ficou frenético, cortado e extremamente gritado. Os primeiros diretores da televisão vinham do rádio, onde também comecei minha carreira em 1946 [Lima começou de fato em 1947, quando foi trabalhar na rádio Tupi,ligando as válvulas de transmissão dos programas]. Agora não, eles vêm da própria televisão e também da internet. Hoje, as novelas não dão mais espaço para reflexão, e o ator não tem mais tempo para pensar no que foi dito e no que ele tem que falar depois. Uma das novelas de maior sucesso da Rede Globo foi Roque Santeiro, de 1985, na qual você dava vida ao Sinhozinho


DIVULGAÇÃO

E porque modificaram o destino do personagem? Porque cismaram que era a história do Lula, pô. Não tinha nada a ver com o Lula. Inclusive, acho que o Lula não aprendeu até hoje o que ele é, o que ele significa. Ele não chegou ao entendimento (risos). Deve estar muito feliz agora com a divisão do PT, que fragmentado pode ser destruído. Mas, voltando ao personagem, a sua mudança foi apressada. Eles [da direção da Globo] achavam que Sassá era feio, sujo e pobre e, por isso, não vendia nada, nem adubo (risos). O que ele tinha de grandioso era o fato de as flores vicejarem. Viúva Porcina (Regina Duarte) e Sinhozinho Malta (Lima Duarte), em Roque Santeiro (1985)

Malta e que será reprisada pela primeira vez na íntegra, a partir de julho, no Canal Viva. Como será que o novo telespectador absorverá a novela? Difícil responder. Eu estou até com um pouco de receio. Estão falando tanto dessa reprise, há tanta expectativa, que me faz refletir: “Será que o novo telespectador vai achá-la chata, lenta?”. Aqueles personagens foram feitos para se comunicar, se identificar com o público da época. Não sei se eles vão falar ao coração desse de hoje, mas tomara que sim. Curiosamente, apesar do sucesso de público e de crítica do seu personagem Sinhozinho Malta, você costuma preferir o Sassá Mutema de O Salvador da Pátria. A novela foi ao ar em 1989, em plenas eleições para presidente, vencida por Fernando Collor de Mello, mas a trama não fez tanto sucesso... É também por isso que gosto tanto dela. A concepção era primorosa e extremamente humana. A novela foi imaginada para terminar no dia das eleições e conta a história de uma pessoa que vai do nada ao entendimento. Tinha uma metáfora muito bonita por trás da construção do personagem Sassá Mutema. Ele era um jardineiro sem instrução nenhuma, mas, quando pegava as flores, elas vicejavam. Mas aí ele tem que aprender as outras coisas, como saber ler, se relacionar socialmente, amar. Quando ele aprende tudo e sabe tudo, as flores não vicejam mais em suas mãos. Ele pega nelas e elas morrem. Isso é um momento terrível para Sassá Mutema, que termina a novela como senador da República, embora fosse para terminar presidente.

O que você acha da cultura de massa no Brasil? A cultura de massa é uma tragédia no Brasil de hoje, quando se glamouriza a ignorância, o completo desinteresse pelo conhecimento e pela leitura. Não podemos estimular e aceitar uma sociedade que se molda pela falta de educação. Isso é um crime de lesa-pátria. O filme que fiz, Família Vende Tudo, fala dessa cultura por meio dos seus personagens. O longa tem um ódio visceral de tudo o que representa essa cultura de massa. No filme, a esperança, a fé e o amor destroem (risos). O meu personagem, Ariclenes, é muito engraçado, apesar do tempo que o diretor imprime ao filme. Dizem que sou muito crítico com o resultado dos personagens que fiz no cinema e na televisão. Elaboro esses personagens de forma quase insana. Quero ir à alma e à psicologia deles, inseri-los no mundo e na vida das pessoas. Esse entendimento e essa busca muitas vezes me frustram com o resultado, o que deixa os diretores e autores chateados. Foi assim com o meu último personagem Max Martinez [da novela Araguaia, de Walther Negrão, que estava no ar na rede Globo no horário das 18h]. Ele deixou de ter motivações próprias, ficou em função dos outros personagens, perdeu aprofundamento e nuances. Isso é o que me deixa frustrado. I Você fez muito teatro no início da carreira, primeiro os teleteatros na televisão, depois o Teatro de Arena, do qual participou por dez anos, de 1961 a 1971. Podemos destacar, por exemplo, o espetáculo Bonifácio Bilhões, ao lado do Armando Bogus. Mas, então, por que você não sobe no tablado há mais de 20 anos?

Fico muito estimulado com o processo de criação do espetáculo, dos personagens, do texto, mas, quando a peça entra em cartaz, perco completamente o interesse. Não tenho paciência para ficar todo final de semana falando o mesmo texto. É possível, no entanto, apontar algum personagem que você fez no teatro, no cinema ou na televisão que o tenha deixado plenamente satisfeito com o resultado? Olha, eu tinha uma ideia muito ousada mesmo. Ousada até para o João Ubaldo [Ribeiro, autor do livro Sargento Getúlio]. Ele falou para mim que estava querendo fazer com o Sargento Getúlio algo um pouco diferente do personagem que ele havia concebido para o livro. O Sargento Getúlio é um dos mais ricos e instigantes

“A cultura de massa é uma tragédia no Brasil de hoje, quase se glamouriza a ignorância, o completo desinteresse pelo conhecimento, pela leitura. Não podemos aceitar uma sociedade que se molda pela falta de educação. É um crime de lesa-pátria”

personagens da nossa literatura. Aquele homem que não entende as mudanças que vão acontecendo ao seu redor e luta para preservar o mundo que ele compreende. Lembro que, quando João Ubaldo viu o filme [Sargento Getúlio, de Hermano Penna, lançado nos cinemas em 1983], chegou para mim e disse: “Mas aquele [personagem] é um matador safado. Ele degola as pessoas e a gente fica torcendo para ele. O que você fez do meu sargento?” (risos). Eu adorei esse personagem, esse homem que não vai acompanhando e nem entendendo o avanço do progresso. É muito bonito. Mas não fiquei plenamente satisfeito, porque o filme foi feito de forma muito precária, o que atrapalhou o resultado. Mas é um grande filme, apesar da sua precariedade. riuscil ip etue exer illamcommy numsan volortio dolenisl utpat wiscidunt alissis ero ea faccumsan euguerc ipisisl ute dit lut .Borperiu scipsum incilis nummy nisci tio esent ilit nullaorem erciduisl diamcor.

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DiVersテグ

Enquanto isso, na sala de justiテァa A perfomance do super-herois na velha luta do vem contra o mal, demonstra as transformaテァテオes da sociedade e busca a eternidade ao adaptar-se a diversas plataformas Por Paulo Floro

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esde que Superman apareceu numa revista periódica vestindo sua apertada fantasia vermelha e azul e dando longos saltos entre prédios (ele ainda não voava nesse primeiro momento), os super-heróis mexem com o imaginário popular e influenciam a cultura do Ocidente. Presentes em diversas mídias, tornaram-se uma poderosa máquina de produzir dinheiro, com números que impressionam em quantidade de exemplares vendidos e, mais recentemente, em bilheteria nos cinemas e em royaltes de merchandising. Produtos intrinsecamente ligados à cultura norte-americana são estudados por seu poderio simbólico, que, para os críticos, superam em muito os superpoderes que mostram nas histórias. Representariam um discurso imperialista baseado na velha luta contra o mal, que por vários momentos mudou de representação: o nazismo nos anos 1940, o comunismo nos anos 1950 e 1980 e, atualmente, o terrorismo. O meio acadêmico passa a ver esses personagens uniformizados com um olhar histórico e se apoia na filosofia, na sociologia e até na teologia para buscar entender o que os super-heróis representam para a sociedade de nossa época e em que eles foram importantes nas transformações

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vividas no século passado. Já os editores se debruçam sobre outro problema. Os quadrinhos vivem uma crise criativa sem respaldo da crítica e sofrem com o problema de renovação de leitores. Os quadrinhos já eram consumidos em larga escala desde o início do século 20, por meio das tiras de jornais como Yellow Kid, de Richard Outcault, Flash Gordon, de Alex Raymond, e outros. Mas foram as revistas periódicas de super-heróis que sedimentaram o gênero dos quadrinhos como entretenimento de massa. As tiras eram distribuídas pelos syndicates, agências especializadas que as vendiam para jornais de todos os EUA. Com as revistas, os personagens conquistaram o público infantil, que agora não dependiam do jornal dos pais para acompanhar suas histórias preferidas. Essas revistas tinham suas origens nos pulps, folhetins publicados em papel barato e que tinham apelo maior para os pequenos do que a narrativa de três quadros das tiras. Para os pesquisadores Carlos Patati e Flavio Braga, autores do Almanaque dos quadrinhos, a expansão do gênero dos super-heróis nas revistas representou uma simplificação ideológica das HQs, que levava o leitor a identificar o herói

não só na primeira página, mas no primeiro quadro, com a ajuda dos chamativos uniformes coloridos. As histórias exploraram à exaustão a ideia maniqueísta do bem contra o mal. Num período anterior, algumas tiras conseguiam trabalhar com roteiros mais realistas, a exemplo de Agente Secreto X-9, um herói não uniformizado escrito por Dashiell Hammett, autor do best seller O falcão maltês. Outras traziam texto elaborado, com influência da literatura. O primeiro herói mascarado surgiu nos jornais: o Fantasma, de Lee Falk, em 1936. Sucesso nos diários americanos, o personagem, a exemplo de Mandrake e outros, teve compilações em formato revista, mas ainda tendo o público adulto como alvo. Os criadores do Superman, Jerry Siegel e Joe Shuster, arriscaram seguir o mesmo caminho ao tentar vender a ideia para editores de jornais. Ouviram recusas com a alegação de que o público não aceitaria algo tão inverossímil como um homem com superpoderes. Eles foram encontrar nas crianças um meio mais fértil para crescer e transformar o negócio numa explosão global. O famoso herói inaugurou em 1938 uma nova publicação, a Action Comics, ainda hoje em circulação no


A versão de quarteto fantástico para cinema, em 2005; o sombrio Batman em quadrinhos de 1998

mercado norte-americano. “As histórias faziam uma mistura de vários gêneros que já eram sucessos na imprensa: a fantasia, o policial e a aventura”, analisa Marco Túlio Vilela, historiador e pesquisador de quadrinhos, autor de Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. “Os roteiros trabalham com as f rustrações do leitor, um estilo escapista que causou empatia imediata no público. Trata-se de um arquétipo idealizado do ser humano”, diz. No final da década de 1930 e início dos 1940, os comics, como ficaram conhecidas as revistas em quadrinhos, se tornaram sucesso de vendas, o que levou editores a encomendar outros personagens fantasiados. A criação de Batman um ano depois do Superman, por Bob Kane, polarizou o combate ao crime com um visual mais soturno e histórias mais violentas, incluindo assassinatos cometidos pelo protagonista. A partir daí, teria início a indústria que se tornaria um mercado competitivo anos mais tarde com a chegada da Marvel Comics, casa do Quarteto fantástico, do X-Men e do Homem-Aranha.

Heróis estrelados Até a década de 1940, existia no mundo um vilão muito conhecido e temido, o nazismo, e isso não passou em branco na indústria dos comics. O Capitão América, um soldado que vestia um uniforme com as cores da bandeira dos Estados Unidos, foi criado em 1941 e logo

depois apareceu em uma revista própria esmurrando a cara da personificação do mal, Adolf Hitler. Mais icônico impossível. “É possível fazer um estudo das transformações na sociedade através dos super-heróis”, diz Nadilson Silva, doutor em Sociologia e pesquisador da Universidade Católica de Pernambuco. “Esse gênero explora o imaginário do poder e isso mudou através das épocas, passando do nazismo para o combate ao comunismo no período da Guerra Fria, chegando hoje a uma atualização dos dilemas trazidos pelo terrorismo do mundo muçulmano. Os heróis estão sempre combatendo o mal, que pode ter uma representação simbólica, como seres de outros planetas, até versões mais explícitas”, acredita. Numa outra leitura, Túlio Viana enxerga o período da Guerra Fria como um momento em que as histórias puderam explorar a ambiguidade. Foi um momento de queda das vendas das revistas, que seriam revitalizadas com o surgimento dos super-heróis da Marvel nos anos 1960, explorando o universo adolescente e origens pseudocientíficas para os superpoderes, a exemplo do Homem-Aranha, um nerd franzino que ganha dons sobrehumanos após ser picado por uma aranha radioativa. O quarteto fantástico faz alusão à corrida espacial entre EUA e União Soviética ao falar de uma família que consegue poderes após uma exploração espacial. Hulk remete ao uso da energia nuclear e suas implicações. Os X-men, grupo de superseres nascidos com mutações que

lhes conferem poderes, fazem uma leitura do preconceito sofrido pelas minorias ao defender um mundo que os hostiliza. Roteiristas como Alan Moore, Dennis O’Neil e Neal Adams exploraram nos anos 1970 e meados dos 1980 tramas com temáticas da vida real, como drogas, miséria e racismo. “As HQs acompanharam o crescimento do público. A cada década, as histórias e os personagens são reformulados e por isso eles raramente envelhecem”, diz Viana. O aumento da criminalidade gerou histórias mais violentas a partir dos anos 1980, como Batman – O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, e culminaram com textos mais adultos e de forte teor político, a exemplo do clássico Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. “Foi também nesse momento que os super-heróis passaram a perder público novamente, desta vez por conta da competição com outras mídias, entre elas a televisão e, atualmente, a internet, que se tornaram entretenimentos de massa mais atraentes”, analisa Túlio. A indústria dos comics não demoraria a ganhar o mundo, com maior ou menor inserção, dependendo da influência exercida na imprensa local. No Brasil, os superheróis estão presentes desde os anos 1940, com as publicações da editora Ebal, como detalha o escritor Gonçalo Júnior no livro A guerra dos gibis. Nos anos 1980 e 1990, a Editora Abril dominou as bancas com o apelo colecionável de suas revistas mensais. Mas uma nova crise se avizinhava. Os leitores cresceram mais uma vez. proart

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A morte lhe cai bem Depois de décadas inundando as bancas com lançamentos, os quadrinhos de super-heróis podem estar destinados às livrarias, com material mais caro e de melhor acabamento. É no que acreditam profissionais da área e jornalistas que cobrem HQ. “O leitor mais jovem tende a priorizar o mangá, o quadrinho japonês. As revistas de super-heróis passam, então, a dialogar com os adultos, com maior poder aquisitivo”, explica Paulo Ramos, jornalista e doutorando em Filologia e Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), autor de A leitura dos quadrinhos e Bienvenido - Um passeio pelos quadrinhos argentinos. A maior crise de público aconteceu nos anos 1990, quando a Editora Abril entregou os pontos e desistiu de publicar quadrinhos. A multinacional Panini há oito anos trouxe estabilidade, qualidade editorial e mais fidelidade aos originais, que os heróis não tinham antes. Mas o problema do envelhecimento do público, que foi driblado em décadas passadas, começa a afetar a indústria. “Não há renovação. As histórias hoje estão intricadas com a cronologia, não dá margem para o leitor ocasional entender. Marvel e DC Comics estão olhando para o próprio umbigo, com sagas que nunca terminam”, segundo Sidney Gusman, fundador do Universo HQ, principal fonte de informação dos quadrinhos no Brasil. As comics passaram a abastecer Hollywood e os heróis agora prosperam com novos formatos e públicos, como videogames. Desde o início dos anos 2000, depois de um longo período de produções fracassadas, novas franquias conquistaram plateias e críticos, como O Homem-Aranha (três continuações), Batman, do diretor Christopher Nolan, O quarteto fantástico e até o controverso Hulk. “Esse incremento das adaptações pode ser explicado pela necessidade da indústria de se apoiar na popularidade dos super-heróis para atingir o público mais jovem”, diz o crítico e doutor em Cinema pela Universidade Sorbonne, Alexandre Figueirôa. “É natural que hoje, com a convergência midiática, não se pense na criação de personagens para serem veiculados apenas num único suporte.” Nis el erit, quismoluptat luptat. Ut la facinissed dolent velit augait nullandre dolor amet utpat. Equisim vel ea consenim quiscipsusto diat acipis ercipsusto dit vent velit ad dio odiate mod esequatetue.

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MULHER-MARAVILHA Para fazer frente à masculinidade dos super-heróis, a Mulher-Maravilha foi criada em 1941 pelo psicólogo William Moulton Marston. Nos anos seguintes, ela foi adotada pelas feministas como símbolo do movimento, foi taxada de conservadora e, mais recentemente, tornou-se polêmica por querer ser sexy ao anunciar que aposentaria seu tomara que caia. Em 2008, a modelo Tiffany Fallon apareceu na capa da Playboy norte-americana vestida como a personagem, nua, tendo apenas o corpo pintado e as botas. Não demorou para a ala feminista e conservadora se manifestar. A blogueira Rachel Edidin, que escreve sobre machismo nas HQs, ganhou voz ao dizer que a personagem era um símbolo do movimento nos EUA. “A Mulher-Maravilha é um ícone feminino poderoso da nossa cultura, e não consigo acreditar que a Playboy não estava ciente de que sua capa faria uma declaração social e política”, postou. Os editores da revista responderam dizendo que ela ilustrava uma edição sobre “Sexo na América”. “A roupa dela é vermelha, branca e azul, com estrelas na parte de baixo – sugere a bandeira americana tanto quanto o Capitão América. Mas gostamos de mulheres nas nossas capas. Portanto, Steve Rogers não era uma opção no caso”, nas palavras sarcásticas do editor Josh Robertson à época. Em julho do ano passado, o escritor J.M. Straczynski deixou o uniforme mais moderno, sem saia e com um collant decotado no lugar da antiga roupa. Conservadores acusaram a personagem de ficar menos patriótica; outros apoiaram, como o NYTimes, alegando um ar mais globalizado. Já o autor foi mais realista na defesa: “Que mulher usa a mesma roupa por 70 anos?”

Capa da primeira aparição do capitçao américa e sua luta contra o nazismo; a versão mais recente deste personagem para as telonas, com estreia mundial prevista para Julho de 2011 Se a indústria dos comics, curiosamente, sobrevive no cinema, esse espectador nem sempre migra para o bom e velho gibi. “A procura pelos personagens tende a aumentar durante a exibição de seus respectivos filmes. Depois, as vendas sofrem pequeno reassentamento. Em alguns casos, temos retenção de novos leitores”, explica o editor-sênior da Mythos Editora, que edita

as HQs na Panini, Levi Trindade. Como principal personagem desse novo momento, Levi também tem sua aposta para o futuro do gênero. “Os jovens estão mais concentrados nas novas tecnologias, principalmente nas redes sociais. Acredito que todas as editoras vão ter de repensar sua forma de trabalhar. Quadrinhos digitais podem ser um via para alcançar esse objetivo”, arrisca.


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HISTORIA

Memória urbana Parques e praças que mantêm suas estruturas originais contribuem para a manutenção da identidade nacional.

LUCIANA SR

Por Nadia Mariano

Foram as raízes das figueiras que quase deram fim às marcas históricas do Jardim da Luz, da cidade de São Paulo. Impetuosas, elas destruíram alamedas, mataram parte da vegetação original e abalaram as estruturas de esculturas e monumentos centenários do parque mais antigo da capital. Criado em 1800, a partir de um horto botânico, ele foi aberto à população 38 anos mais tarde. A princípio, a vegetação diversificada era o único atrativo do local, mas, em 1860, a chegada da linha férrea trouxe consigo a prosperidade. Todos os que chegavam de trem a São Paulo desembarcavam no Jardim da Luz, que, em pouco tempo, se tornou o maior ponto de encontro e lazer da sociedade paulistana. Com o passar dos anos, o parque ganhou diversos atrativos, como o primeiro arranha-céu da cidade – uma torre de 20 metros de altura –, o caminho das águas, formado por lago, fontes e chafarizes, a casa de chá, que ficou conhecida na época como Ponto Chic, e um coreto. Esse cenário, contudo, começou a mudar no início do século 20, quando a cidade ganhou novas alternativas de lazer. Aos poucos, o Jardim da Luz foi decaindo e se tornou ponto de encontro de grupos marginalizados. “O abandono

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era visível, as árvores estavam invadindo tudo e as construções e esculturas estavam ruindo”, diz Ricardo Ohtake, engenheiro e urbanista que deu início à restauração do Jardim da Luz no ano 2000, quando era secretário do Verde e do Meio Ambiente da cidade de São Paulo. Todo o processo de restauração durou pouco mais de um ano, mas a grande quantidade de fotos, documentos e descobertas estimularam Ohtake e seu então chefe de gabinete, o historiador Carlos Dias, a escrever o recém-lançado Jardim da Luz: Um museu a céu aberto, que ressalta a importância de preservar patrimônios históricos. “Esse parque não é apenas um aglomerado de árvores. Dentro dele, temos importantes referências paisagísticas, arquitetônicas e culturais. Ele preserva a nossa identidade”, diz Carlos Dias. Os parques e praças situados em meio a grandes metrópoles são os mais afetados pela passagem do tempo. Poucos são os locais que ainda preservam os símbolos da época em que foram construídos. “Por exemplo, hoje, no Recife, já não encontramos mais exemplares de coretos do século 19 nos parques e praças. Existiram muitos, mas todos foram demolidos”, diz Aline Figueirôa, urbanista e autora do

livro Jardins do Recife: Uma história do paisagismo no Brasil (1872-1937). Por isso, locais que preservam suas características originais são cada vez mais importantes para perpetuar a história do país. Na própria capital pernambucana, a praça Sérgio Loreto é um importante exemplo disso. Em 1926, transformaram um velho aterro, construído para conter os constantes alagamentos no bairro de São José, em uma praça arborizada e repleta de atrativos. Entre eles o coreto, que ainda hoje faz parte do roteiro cultural da cidade e é mantido pelo maior bloco carnavalesco do mundo, o Galo da Madrugada. São Cristovão, no Rio de Janeiro. Inaugurado em 1906, o lugar, que era ermo e perigoso, soube reciclar seus ares e preserva ainda hoje parte de sua estrutura e características datadas do início do século 20, época em que era frequentado por viajantes e tropeiros. Lá, o turista e o morador da metrópole têm acesso a grandes festas e eventos, assim como pode conhecer o maior coreto da cidade. Vera Dias, gerente de monumentos e chafarizes da Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos do Rio de Janeiro, conclui: “Quando preservamos nosso patrimônio histórico, estamos deixando uma bela herança para as futuras gerações”.


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Perfil

A libertária

Rita Lee

Artista de muitos timbres e de colaboração fundamental para a histõria de nossa música, a dama do rock and roll brasileiros se isola, mas matém o encanto em alta. Por Gabriel Louback

“É triste falar de Rita no passado, no entanto, é a realidade. Nos últimos anos, ela se distanciou não só de mim, mas de diversos amigos. Não tenho mágoa, ressentimento, nem nada, é apenas a tristeza de não conviver mais com uma pessoa tão brilhante e espetacular, referência na minha vida.” Quem fala é a fotógrafa Vania Toledo, velha amiga de Rita Lee, mas que hoje se vê distante de alguém que admira. Ao escrever esse perfil sobre a cantora, tive a sensação de que a cantora é uma pessoa interessante para se conviver. Essa é a Rita Lee de hoje: algo mais distante de alguns amigos cultivados nas últimas décadas e mais dedicada à família, fazendo o papel de avó de Izabella, 5 anos, filha de Beto Lee. Antonio Bivar, escritor e dramaturgo, é outro companheiro de longa data. Dirigiu seu primeiro show em carreira solo e com ela fez dupla em um programa da Rádio 89, em 1986, e no TVLeezão, no início da MTV. Ele conta que, quando era casado com uma inglesa chamada Jenny, Rita cantava para ele: “Joga bosta na Geni!”, o que criou certo clima entre ele, a esposa e a amiga, mas nada que abalasse a amizade. “Desde 1994 não vejo mais a Rita. Ela sempre foi uma mulher extraordinária e maravilhosa, além de muito generosa. Certa época, conseguiu me arranjar um quarto no hotel Chelsea, em Londres. Mesmo se declarando ateia, a Rita tem uma formação católica muito forte e acho que isso contribui para sua generosidade com os outros, além de ela procurar refúgio na família que construiu. Por isso, nossa amizade acontece quando ela me procura, já que respeito sua decisão.”

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A menina com um pé no circense e outro no rock and roll ficou conhecida no Brasil e no mundo com o estouro do grupo Os Mutantes, aos 20 anos. “Ouço Rita desde criança. Na adolescência, já pesquisando música e com ganas de montar banda, conheci o passado dela com Os Mutantes. Não sei pinçar exatamente em que aspecto de minha carreira a tenho como influência, mas percebo que é algo entranhado profundamente, inconscientemente. Mais do que usar sua obra como referência, a questão é que sinto uma identificação grande nas coisas que ela fez e faz, no jeito de levar a vida. Talvez a gente tenha vindo do mesmo planeta e, quando olho pra ela, me reconheço de alguma forma, como se, de repente, no meio de uma raça estranha, encontrasse alguém da minha espécie”, confessa a cantora Pitty. Em sua biografia, publicada em seu site oficial, é possível verificar que a artista nasceu no último dia de 1947. Texto importante esse, já que ela deixou de dar entrevistas ao vivo, por telefone ou mesmo por e-mail. Em maio do ano passado, ela falou ao jornal O Globo depois de 12 anos de silêncio com a imprensa. Em março deste ano, deu uma entrevista à coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, mas por e-mail. Dessa vez, para a Revista da Cultura, sua assessoria de imprensa negou a solicitação em entrevista, alegando problemas de agenda.

Se a recente produção musical da cantora for comparada aos anos anteriores, é sua colheita menos feliz, em termos de novas músicas e composições. Essa reclusão é sentida também em sua vida pessoal. Rita Lee parece ter procurado e encontrado um pouco de paz no ambiente familiar (marido, três filhos e uma neta) e de poucos amigos. A cantora deixou Os Mutantes em 1972. Na época, ela afirmava ter saído por decisão própria, mas, em 1986, durante uma entrevista, revelou ter sido expulsa. Em 2006, Arnaldo Baptista assumiu ser o responsável pela saída dela, mas no documentário Loki, sobre a vida do tecladista dos Mutantes, Liminha e Dinho (baixista e baterista originais da banda, respectivamente) dizem lembrar-se de Rita ter pedido para sair. Depois do lançamento do filme (2008), Arnaldo disse que o acontecimento estava nebuloso em sua mente e que clareou quando ouviu as histórias no documentário, concordando com os músicos. Rita Lee formou a dupla Cilibrinas do Éden com Lúcia Turnbull, em 1973 (que não durou muito), e no mesmo ano montou a banda Tutti Frutti, gravando quatro álbuns em cinco anos, com músicas como Agora só falta você, Jardins da Babilônia, Coisas da vida e Ovelha negra. Apesar de ter saído em carreira solo, a artista sempre escreveu muito com outros compositores. Uma dessas parcerias, em 1976, rendeu casamento com o músico

Roberto de Carvalho, na época integrante da banda de Ney Matogrosso. A parceria Lee/Carvalho iniciou a década de 1980 com o álbum Lança perfume (esgotado). Nos anos 1990, a cantora lançou discos mais “calmos”, mesmo no retorno ao rock purista do álbum Rita Lee, de 1993. Desde então, ela só gravou mais três álbuns com músicas suas e inéditas: Santa Rita de Sampa (esgotado) (1997), 3001 (esgotado) (2000) e Balacobaco (2003). Entre os outros discos estão uma releitura dos Beatles, um acústico pela MTV e três compilações de shows ao vivo. O fato de ser mulher roqueira e, por isso, figura marcante na rock nacional, também colabora para o status de mito alcançado por Rita. Pitty segue dando a letra: “Ela foi pioneira nessa questão de trazer as mulheres à tona na música de forma mais livre. Quebrou muitos paradigmas ao longo dos tempos. A existência de Rita comprova uma teoria minha de que rock é muito mais estilo de vida e postura do que um rótulo para vender disco. Porque, veja, Rita começou com o experimentalismo e a miscelânea dos Mutantes, ficou mais rock and roll no Tutti Frutti e, depois, enveredou para um lado mais de canção, quase MPB. A alma dela é libertária, seus pensamentos são vanguardistas”. Se depender de Rita Lee, o rock não morreu e não morrerá, já que se baseia no espírito livre sem amarras e sem estar preso a um período de tempo. proart

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PALCOS BRASILEIROS Um passeio pela história e importância cultural de alguns dos mais antigos teatros municipais do país Por Guilherme Bryan

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o dia 12 de setembro, o Teatro Municipal de São Paulo completa 100 anos como um dos principais palcos do país. Cerca de 20 mil pessoas compareceram à inauguração e se reuniram na Praça Ramos de Azevedo, junto ao Vale do Anhangabaú, até então uma parte nova que se transformaria no centro da capital paulista, para assistir à ópera Hamlet, de Ambroise Thomas. Aliás, foi para esse tipo de espetáculo que o teatro foi projetado por Cláudio Rossi e Domiziano Rossi, inspirado na Ópera Nacional de Paris, na França. Lá estão os grupos de esculturas representando o Drama e a Música, que nada mais são do que imitação de obras idealizadas pelo arquiteto Charles Garnier para o espaço parisiense.

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Desde então, passaram pelo palco do Teatro Municipal de São Paulo grandes nomes das artes brasileiras e internacionais, como Cacilda Becker, Maria Callas, Enrico Caruso, Rudolph Nureyev e Procópio Ferreira. Entre 11 e 18 de fevereiro de 1922, foi o espaço que abrigou a Semana de Arte Moder-

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na, grande marco da cultura brasileira, que contou com a presença, entre outros, dos escritores Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, do maestro Heitor Villa-Lobos, do escultor Victor Brecheret e os artistas plásticos Di Cavalcanti, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral.

“O Teatro Municipal de São Paulo é um dos pouquíssimos que pode comemorar e ostentar a cifra de 100 anos, graças a ser vinculado a um município importante do país e ser uma das casas dedicadas ao repertório de grande porte da música lírica. E, a partir de agora, ao ser devolvido à população, ele continuará sendo um centro


cultural importante e moderno para São Paulo”, diz o diretor artístico do teatro, Abel Rocha, que também é maestro da Orquestra Sinfônica Municipal. Ele destaca a importância de o Teatro ter passado agora por grande reforma na parte estrutural, com relação a palco, urdimento, fosso e melhoria acústica, e o fato de abrigar a Orquestra Experimental de Repertório, o Balé da Cidade, o Quarteto de Cordas, o Coral Lírico e o Coral Paulistano. Além disso, há um projeto de lei na Câmara Municipal de São Paulo para transformá-lo em fundação para ter mais agilidade artística.

Preferências O arquiteto e cenógrafo José Carlos Serroni opina: “O Teatro Municipal de São Paulo não se diferencia muito, a meu ver, dos grandes teatros construídos na sua época ou um pouco antes. Ele se assemelha muito, por exemplo, ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro (RJ), ao Theatro da Paz, em Belém (PA), ao Teatro Santa Isabel, em Recife (PE), ao Teatro de Ópera de Manaus (AM) e ao Teatro Pedro II, de Ribeirão Preto (SP). Todos eles têm as mesmas características: palco italiano, plateia em ferradura e níveis, construção com arquitetura eclética e deficiências em seus palcos”. J. C. Serroni esteve presente em vários deles com espetáculos como Macbeth e Hamlet, de William Shakespeare; Saltimbancos, de Chico Buarque, e A gota d’água e, de Chico e Paulo Pontes; e Tartufo, de Molière.

Autor do livro Teatros – Uma memória do espaço cênico no Brasil, J. C. Serroni destaca, entre os problemas do centenário teatro paulistano, o fato de ter à esquerda uma série de colunas que prejudica muito a movimentação da cenografia. Porém, reconhece sua grande importância histórica: “Ele consegue, ainda hoje, embora sufocado pelo desenvolvimento urbano desenfreado, ser um marco na cidade de São Paulo”. O mesmo pode ser dito sobre o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Também inspirado na Ópera de Paris, recorre a muitos ornamentos com o objetivo de obter acentuados efeitos de luz e sombra, mas com muito mais luxo, e tem ainda a presença da escadaria frontal e a grande variedade de material empregado. Inaugurado em 14 de julho de 1909, com capacidade para 1709 espectadores, voltado para o mar e localizado no centro da então capital do país, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro é um dos mais luxuosos do país. De certo modo, ele foi resultado de uma campanha lançada pelo romancista e dramaturgo Artur Azevedo pedindo a construção de um novo teatro para ser sede de uma companhia municipal, nos moldes da Comédie-Française, e que resultou numa lei municipal determinando sua construção. Ele foi projetado pelo engenheiro Francisco de Oliveira Passos e pelos arquitetos franceses Albert Gilbert e René Barba, aos quais se atribui a auto-

ria da fachada. Pelas paredes externas do prédio, é possível observar referências a grandes artistas do Brasil e do mundo, caso do maestro Carlos Gomes, do teatrólogo Martins Pena e do romancista alemão Johann Wolfgang von Goethe. Também tem esculturas de Rodolfo Bernardelli e pinturas de Eliseu Visconti, Henrique Bernardelli e Rodolfo Amoedo. Em 2009, ano do centenário, o teatro passou por extensas reformas de restauração, lideradas por sua presidente, a atriz e cineasta Carla Camurati. O resgate da beleza original necessitou de mais de 900 dias de trabalho até ser reinaugurado em maio de 2010. “Os teatros municipais brasileiros, hoje, principalmente os já seculares, não têm a mesma importância de décadas atrás, quando eram marcos urbanos e culturais. Agora, esses grandes teatros são mais ‘monumentos’ do que ‘teatros vivos’. O teatro mudou muito e as novas propostas e buscas teatrais têm preferido outros espaços”, lamenta J. C. Serroni. No entanto, ele diz que a preservação desses edifícios é importante para o entendimento da trajetória brasileira na arquitetura teatral. “O teatro sempre foi fundamental para a cultura e o conhecimento em qualquer lugar do mundo e em qualquer tempo. Não foi diferente no Brasil, guardadas as proporções de nossa história muito mais recente, por exemplo, do que a dos países da Europa”, argumenta.

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Teatro de Ouro Preto (MG), inaugurado em 6 de junho de 1770.

Essa história começa em 6 de junho de 1770, quando foi inaugurado o mais antigo teatro do Brasil e da América do Sul, em Ouro Preto (MG): a Casa da Ópera de Vila Rica, com formato de lira. Ela foi construída pelo coronel José de Souza Lisboa num modelo típico barroco do século 18. “O teatro da antiga Vila Rica, que eu acho uma joia, era um teatrinho despojado, sem os requintes de ornamentação muito comuns aos teatros europeus da época. Hoje, ele é preservado praticamente como patrimônio histórico. É um espaço mais para a visitação que para a atuação. Ao mesmo tempo, suas dimensões são muito pequenas e seu palco não atende bem à maioria dos espetáculos teatrais concebidos nos dias de hoje”, explica J. C. Serroni. Em 2007, o Teatro de Ouro Preto foi reinaugurado, com capacidade para 300 pessoas, e tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional. Atualmente, recebe em torno de 13 mil visitantes por ano. Dispondo de quatro ordens de camarotes, encerrados por balaustradas de madeira recortada, o espaço serviu de palco para artistas da Inconfidência Mineira, como os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, entre outros. Há quem garanta que a sala de espetáculos era iluminada por velas entre os camarotes. “Sua edificação reflete um momento na história do teatro brasileiro, no qual começou a haver a passagem das representações em espaço aberto (na rua) ou em locais adaptados (em casas e palácios) para um ambiente especi-

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ficamente destinado às apresentações musicais e teatrais”, explica Elizabeth Azevedo, professora de Teatro Brasileiro e História do Teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). “Todos esses teatros têm mais ou menos a mesma idade e função e foram construídos para receber as grandes companhias de ópera vindas do exterior. Era normal que companhias francesas, italianas e alemãs colocassem, por exemplo, 20 cantores, 60 bailarinos, orquestra, cenário e figurino de cinco ou seis óperas dentro de um navio e viessem para a América do Sul, começando pelo norte do Brasil até chegar ao Teatro Colón, em Buenos Aires, na Argentina”, conta Abel Rocha, que se apresentou em todos eles como maestro da Orquestra Sinfônica Brasileira e também como regente e diretor musical de várias óperas. “Os teatros de Manaus e de Belém, por exemplo, são duas pequenas joias incrustadas no Norte do Brasil. Apesar de menores do que os de São Paulo e do Rio de Janeiro, eles são de uma grandeza artística incomparável e, se não estão mais bem encaixados na programação da cidade, é só por falta de incentivo. No Theatro da Paz, tudo que se canta, fala e toca no palco é ouvido de maneira perfeita pela plateia”, acrescenta. A diretora do Theatro da Paz, em Belém (PA), Ana Cláudia Moraes, também destaca a capacidade sonora do espaço: “Uma das características é sua famosa e lendária acústica, talvez pelo fato de não possuir galerias ou pela existência de uma piscina de 40 mil litros de água em seu

“Todos esses teatros têm mais ou menos a mesma idade e função e foram construídos para receber as grandes companhias de ópera vindas do exterior. fosso. Outra razão é que ele tem as características de sua parte inferior calcadas na arquitetura do Teatro Scala de Milão, o maior teatro italiano e europeu”. Inaugurado em 15 de fevereiro de 1878, ele é o maior teatro brasileiro do século 19 e foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico em 1963. A riqueza do espaço começa no hall de entrada, com ferro fundido inglês nos arcos das portas, escadaria em mármore italiano, lustre francês, piso com pedras portuguesas e bustos dos escritores brasileiros José de Alencar e Gonçalves Dias em mármore de carrara. Ali se apresentaram artistas como o maestro Carlos Gomes, a cantora Bidu Sayão, as bailarinas Anna Pavlova e Tamara Toumanova, e os pianistas Guiomar Novaes, Arnaldo Estrela e Nelson Freire, além de dezenas de companhias de ópera internacionais. “Porto de entrada do Norte, ele recebia as companhias líricas diretamente da Europa no período áureo da borracha. Dotado de belíssima arquitetura, com influência clássica italiana, se afrancesando na reforma de 1905, ele tem a decoração recheada de detalhes, como as pinturas de artistas famosos: Domenico de Angelis (teto do salão de espetáculo), Armando Balloni (teto do Salão Nobre) e Carpezat (pano de boca), além de estatuetas, lustres, espelhos e outras peças que compõem o acervo”, acrescenta a diretora. Os mesmos artistas que trabalharam na construção do Theatro da Paz foram contratados para erguer o Teatro Amazonas, em Manaus (AM).


Teatro de Manaus (AM), 1895

Eram eles os italianos Domenico de Angelis e Giovanni Capranesi, da Academia San Luca de Roma, e o brasileiro Crispim do Amaral, que fora cenógrafo da ComédieFrançaise. Segundo maior teatro da região amazônica, perdendo justamente para o de Belém, foi inaugurado em 31 de dezembro de 1895 e teve projeto arquitetônico do Gabinete Português de Engenharia e Arquitetura de Lisboa. Com capacidade para 701 pessoas, o espaço, que já foi comparado ao Scala de Milão, na Itália, e ao Teatro de Ópera Garnier, de Paris, na França, destaca-se pela presença de estruturas metálicas, principalmente a da cúpula, pelas máscaras em homenagem a dramaturgos e compositores famosos, como os gregos Ésquilo e Aristófanes, o francês Molière, o austríaco Mozart e os italianos Rossini e Verdi, e pela

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Teatro de Santa Isabel, em Recife (PE), inaugurado em 18 de maio de 1850.

pintura do teto, A glorificação das bellas artes na Amazônia, realizada pelo mesmo Domenico de Angelis, em 1899.

Patrimônio Um dos teatros mais importantes da região Nordeste do Brasil é o Teatro de Santa Isabel, em Recife (PE), nome dado em homenagem à Princesa Isabel. Inaugurado em 18 de maio de 1850, com o drama O Pajem D’Aljubarrota, do escritor português Mendes Leal, e tombado pelo patrimônio histórico em 1949, esse teatro é o primeiro exemplar de arquitetura neoclássica no estado, realizado pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthier, e também foi palco de importantes momentos da história, como a campanha abolicionista, quando o político, historiador e jurista Joaquim Nabuco proferiu a frase que está gravada até hoje numa placa memorial assentada a uma parede do teatro: “Aqui nós ganhamos a causa da Abolição”. Há quem diga foi Rui Barbosa discursou durante uma de suas três campanhas à Presidência da República. Como os outros, também passou por uma recente reforma, que procurou preservar a arquitetura original, implantando novos recursos tecnológicos. “O Teatro de Santa Isabel é um dos 14 teatros-monumentos do país, co m 160 anos de existência, chama a atenção pela arquitetura neoclássica do arquiteto francês Louis Vauthier e por ter sido palco da luta abolicionista com grandes discursos de Joaquim Nabuco e Castro Alves”, acrescenta a diretora Simone Figueiredo.

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Na Região Sul do Brasil, destacase o Theatro São Pedro, em Porto Alegre (RS), inaugurado em 27 de junho de 1858, como fruto da iniciativa de uma sociedade acionária que visava obter renda para auxiliar a Santa Casa de Misericórdia. Com projeto elaborado pelo arquiteto alemão Phillip von Normann, o espaço relativamente pequeno, com capacidade para 700 espectadores, destaca-se pelo estilo neoclássico. Foi restaurado entre 1975 e 1984 e reinaugurado com espetáculo de teatro de bonecos do Grupo Cem Modos, o musical Piaf, estrelado por Bibi Ferreira, e apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira, então regida pelo maestro Isaac Karabtchevsky. Por ali já haviam passado, entre outros, o mímico Marcel Marceau, a atriz Cacilda Becker, o dramaturgo Eugène Ionesco e o maestro Heitor Villa-Lobos. Porém, nem tudo é a maravilha que aparenta, e o ator e diretor de teatro Cacá Rosset, líder do grupo Teatro do Ornitorrinco, fundado em 1977, explica: “Genericamente, os teatros brasileiros enfrentam um problema crônico no que se refere ao próprio estado de conservação, com problemas que vão de goteira a madeira podre e fio desencapado, e também em termos de segurança e acomodação para os artistas e para o público. Ou seja, faltam investimentos mais expressivos no sentido de equipar, recuperar e fazer manutenção permanente desses espaços, o que permite que aconteçam coisas do arco-da-velha”. Mesmo assim, não esconde o prazer de já ter se apresentado no Teatro Municipal de

São Paulo e a decepção de ter sido impedido pela então secretária municipal de cultura, Marilena Chaui, de estrear ali o espetáculo O doente imaginário, de Molière, que entrava até com um elefante no palco. Outros problemas muito comuns nesses teatros são palcos pequenos e a carência de coxias, mecânica cênica mais eficiente, espaços p ara grandes retroprojeções e até fossos de orquestra capazes de abrigar algumas sinfônicas. Se há carências de infraestrutura, como garante Cacá Rosset e confirma J. C. Serroni, este observa que os espaços estão bem em termos de conservação. “Nossos teatros seculares, na sua grande maioria, têm passado por constantes reformas, que são acompanhadas muito de perto por órgãos ligados ao Patrimônio Histórico”, garante o cenógrafo, que lembra com certo saudosismo de quem não viveu a época áurea deles. “A concorrência era menor e os espetáculos e o público que os freqüentavam, maiores. O teatro mudou muito e a ópera também. Há décadas que não vemos companhias de fora do país trazendo para cá suas produções”, ressalta. “Por um lado, esses teatros eram lugares de encontro social importantes. Geralmente, todas as camadas da sociedade se faziam ali representar. Por outro lado, foram o local de divulgação da obra artística e/ou de entretenimento para um público o mais amplo possível. Com o surgimento de rádio, cinema e da televisão, o teatro encontrou concorrentes poderosos a essa sua vocação”, finaliza Elizabeth Azevedo.


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Prelúdios de um concerto Nas histórias reveladas pelos músicos da OSESP e da OSB, é possível entender a dificil logìstica de ensaios e turnês de uma sinfonica Por Irineu Franco Perpetuo Fotos Brunel Galhego

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ão é em todas as profissões que encontramos alguém feliz por trabalhar aos domingos. Se em áreas como o jornalismo, ou a medicina, o plantão de final de semana é considerado um “mico” (ou, na melhor das hipóteses, um “mal necessário”), na indústria do entretenimento, ele constitui a ocasião nobre por excelência. Ubiratã Ferreira Rodrigues, de 40 anos, estava feliz por trabalhar no ensolarado domingo de 5 de abril. Vindo do Rio de Janeiro, em turnê paulistana, com a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), o violinista apresentou-se sob a batuta do regente titular, Roberto Minczuk, e ao lado da solista convidada, a violinista nipo-canadense Karen Gomyo. “É muito gostoso tocar na Sala São Paulo, porque ouvimos o concerto de maneira diferente do que acontece na Sala Cecília Meireles, ou no Municipal do Rio, ou no Municipal de São Paulo”, diz Ubiratã, integrante do naipe de primeiros violinos da sinfônica. “Além disso, em viagem, acabamos conhecendo melhor os colegas. No dia a dia, a rotina é tão corrida que todo mundo voa para outro compromisso depois do ensaio, nem dá tempo de conversar”. Colocar um grupo de 80 músicos como a OSB para viajar é uma grande operação de logística, porque, além de todos os integrantes, nas viagens, vão também profissionais que trabalham fora do palco. E alguns instrumentos demandam cuidados especiais, como os violoncelos. Cada violoncelista precisa de duas passagens de avião uma para si e outra para o instrumento.

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Não é incomum, assim, que uma orquestra “domine” um avião ou um ônibus inteiro, mesmo quando o veículo não é fretado, o que dá margem a várias brincadeiras. Na European Union Youth Orchestra, formada por 140 músicos entre 14 e 24 anos, a tradição é imitar o ritual em que se anunciam as precauções do voo, apontando para as portas dianteiras e traseiras da aeronave e batendo com os tênis ruidosamente no teto do avião. Acostumado a sair em turnês, José Ananias, de 51 anos, também não se importa por trabalhar nos fins de semana. Pelo contrário: uma semana antes da apresentação da OSB, em 28 de março, o músico era só alegria por ter de ir até a Sala São Paulo, em um sábado, para tocar A oferenda musical, de Bach. Afinal, a obra marcava a estreia da flauta de madeira recém-adquirida por ele. “Tenho uma outra, de ouro, desde 1998, mas queria muito uma de madeira para executar o repertório mais antigo”, explica. Quando Ubiratã, Ananias e seus colegas sobem ao palco, o que oferecem ao público é a cristalização não apenas de anos de estudo, mas também de um trabalho polido e preparado com paciência ao longo da semana. Na OSB, a rotina é de ensaios matinais, de segunda a sexta-feira, com apresentações na sexta à noite e no sábado à tarde. A Osesp faz sua preparação em dois períodos, o da manhã e o da tarde, com apresentações noturnas na quinta e na sextafeira, e nas tardes de sábado. O tempo que resta é dedicado a estudar o repertório e às atividades paralelas. Ananias é professor da Escola Municipal de Música e tem discos gravados pela Paulus (como Música para flauta – Camargo Guarnieri e Francisco Mignone). Ubiratã leciona em Barra Mansa (RJ), integra o Quarteto de Cordas da Universidade Federal Fluminense, arrisca-se esporadicamente na regência e é o presidente da comissão de músicos da orquestra. Eles também despendem muito tempo cuidando de seus instrumentos. Ubiratã hoje possui três violinos: dois italianos e um brasileiro. “Levei anos para comprar meu violino italiano principal”, conta. “Só utilizo um dos outros quando ele está em reparo.” Ou em apresentações ao ar livre, fora de salas de concerto. Tocar na praia é uma rotina para a OSB e, nesse caso, para enfrentar o calor do Rio, ele prefere levar um instrumento mais robusto e menos delicado que o seu “titular”.

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Duas vezes ao ano, o xodó de Ubiratã é enviado para o luthier, profissional responsável pelo fabrico e reparo de instrumentos musicais. Além de limpeza e ajustes, ele ainda precisa trocar, a cada dois meses, a crina de cavalo de seu arco. E, com a mesma periodicidade, renovar o jogo de cordas do violino. Em outros instrumentos, a rotina pode ser diferente: “O jogo de cordas do contrabaixo custa uma fortuna, porque dura mais, e é trocado uma vez por ano”, afirma Ubiratã, na OSB desde 1991. Na flauta, a rotina é bem mais sossegada. “Apesar de a vida útil ser longa, de uns 50, 60 anos, e, diferentemente do que acontece com as cordas, quanto mais novo for o instrumento, melhor”, conta Ananias. O único cuidado constante é a troca, uma vez por ano, da sapatilha, peça de material orgânico que fica embaixo das chaves. Imprevistos, porém, podem acontecer. “Uma vez, no meio de uma turnê da Osesp nos Estados Unidos, um colega teve um problema com sua flauta. Estávamos em Sacramento, era de madrugada, e a solução foi usar óleo de caminhão para o reparo”, conta Ananias.

“Já sabíamos que o ensaio não ia ser tranquilo quando o Eleazar aparecia de camisa vermelha” Os instrumentos de uma sinfônica, usualmente, se dividem em quatro grandes grupos: cordas, madeiras, metais e percussão. Embora a flauta moderna seja feita de metal, no passado era de madeira, o que faz com que ela pertença a este grupo. As outras madeiras da orquestra - clarinete, fagote e oboé, que antes do concerto toca a nota lá, a partir da qual a sinfônica inteira é afinada - são instrumentos de palheta - uma pequena lâmina de cana, preparada pelo próprio musicista e colocada na embocadura do instrumento. O som se produz com a sua vibração. Mesmo a melhor das palhetas, pelo uso, não costuma durar mais que duas semanas.

Aquecimento e as últimas afinações dos músicos da OSB antes do início do espetáculo na Sala São Paulo


O que oferecem ao público é a cristalização não apenas de anos de estudo, mas também de um trabalho polido e preparado com paciência ao longo da semana.

Mambembe Membro da orquestra há 23 anos, Ananias se considera um dos “velhinhos” da Osesp e foi testemunha privilegiada do processo de transformação que a sinfônica sofreu a partir de 1997, na gestão de John Neschling, quando as condições de trabalho melhoraram tanto que o grupo atraiu músicos estrangeiros, bem como profissionais brasileiros que estavam radicados no exterior. Quando Ananias ingressou no grupo, em 1986, ele estava sob o comando do mítico Eleazar de Carvalho, que permaneceu ali por 24 anos, até sua morte, em 1996. “Era um privilégio trabalhar com o Eleazar”, recorda. “Embora tivesse um jeito austero, tratavase de um personagem com grande senso de humor. Quando ele aparecia de camisa vermelha, por exemplo, já sabíamos que o ensaio não ia ser tranquilo. E era uma enciclopédia musical, que chegava ao ensaio sabendo de cor uma partitura complexa como A sagração da primavera, de Stravinski.” Contudo, o flautista não hesita em qualificar de “mambembe” a estrutura da Osesp naqueles tempos. “Ela vivia apoiada no prestígio do Eleazar e, embora tivesse público, não dispunha de condições adequadas de trabalho. Quando nos mudamos do Cultura Artística para o Cine Copan,

Membro da OSB minutos antes dde subis no palco, preparando as partituras e os instrumentos.

por exemplo, não havia camarins, e os artistas entravam junto com o público”, narra. Depois, veio o Memorial da América Latina, onde as condições tampouco eram favoráveis. “Eu me lembro de ter ensaiado uma obra grandiosa como a Terceira sinfonia de Mahler no restaurante do Memorial, o que era um absurdo”, diz. “Neschling não fez nada sozinho, mas é inegável que ele trouxe modernidade e deu nova estrutura à orquestra, com um importante staff de profissionais que trabalham fora do palco e fazem toda a diferença”. O regente Neschling foi demitido no início deste ano e, enquanto a Osesp

procura por um novo diretor musical, está provisoriamente, até o final de 2011, sob o comando do francês Yan Pascal Tortelier, de 62 anos, filho do grande violoncelista Paul Tortelier (1914-1990) e regente principal, entre 1992 e 2003, da Filarmônica da BBC, sediada em Manchester.“O Eleazar regeu o Paul Tortelier, seu pai, como solista no violoncelo”, lembra Ananias, que define como “lua de mel” o período atual de convivência entre maestro e orquestra. “Tortelier é simples em tudo: nos ensaios, em como se dirigir a nós e em como, sem malabarismos, fazer tudo com respeito à música.” proart

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