ensaios sobre o tempo
Coletivo Punctum
Apresentação
O tempo, o espaço e a fotografia Brasília é uma cidade nova, mas tem suas (muitas) ruínas. Essas paradoxais ruínas precoces levam a pensar na história da capital e nos contrastes entre utopiaerealidade.Masinstigam,também,reflexõesquevãoalémdoconcreto. Uma delas é a formação das memórias afetivas e seu papel na construção das nossas visões – sempre plurais – da realidade. Essas e várias outras questões são levantadas neste projeto, concebido como uma investigação imagética das relações entre o tempo, a cidade e seus habitantes. Num processo criativo que também fala de si e por si, os três autores usaram a fotografia como ferramenta e como o próprio objeto a ser fotografado. Inicialmente, cada um registrou um tema de sua escolha. Seis fotografias de cada tema foram ampliadas em grande formato e coladas em lugares públicos – em Brasília, Taguatinga, Núcleo Bandeirante, Candangolândia, Vila Telebrasília e Planaltina. Durante os meses seguintes, os artistas fotografaram o desgaste dessas imagens nas ruas. Arthur Monteiro, com sua sensibilidade para a delicada arte do retrato e seu interesse pelas pessoas e suas histórias de vida, entrevistou e fotografou dez moradores da Candangolândia, pioneiros e pioneiras da construção de Brasília. Entrou em suas casas e locais de trabalho, ouviu seus casos, olhou seus velhos álbuns de fotos. A emoção que compartilhou com os retratados transparece nas imagens. Henry Macário, nadador de longas distâncias, tem a água sempre presente em seu trabalho fotográfico. Não por acaso escolheu como tema a desativada Piscina de Ondas do Parque da Cidade. Lá ele pretendia fotografar exfrequentadores, mas a administração só lhe permitiu entrar na velha piscina
por um dia. Essa dificuldade, que a princípio inviabilizaria a ideia, acabou se transformando em fermento para a criatividade. Henry fotografou o local abandonado e depois, sobre as mesmas fotos, fez duplas exposições para retratar os personagens. Corajosamente utilizou filmes, não equipamento digital. O processo e o resultado, além de belos, guardam perfeita harmonia com o conteúdo do projeto. Isabela Lyrio recorda com carinho os passeios que fazia com sua mãe na W3 sul. Ela era criança, os shoppings ainda não haviam chegado à cidade e a avenida era um grande centro comercial, onde ficavam as melhores lojas. O abandonodasduasdécadasseguinteslevouolugaraumestadochocantede deterioração. O contraste entre a quase morte da avenida e a vívida memória afetiva de Isabela foi um dos fatores que levaram à concepção deste projeto. Na W3 de hoje, ela fotografou um sem-número de fachadas pichadas, dezenas de curiosas portinhas, grades dos mais diferentes padrões, múltiplas texturas nas paredes e nas calçadas. Foi como se reunisse uma coleção de figurinhas – um contraponto às suas memórias, uma coleção de ruínas. Tempo e espaço são dois elementos fundamentais daquilo que chamamos de realidade. No entanto, eles não são absolutos – são elementos relativos, mutantes; são variáveis sobre as quais cada um de nós tem uma visão pessoal. A fotografia talvez seja a mais interessante linguagem para falar sobre essa relatividade, pois envolve um paradoxo muito próprio: espera-se que a foto revele objetivamente as facetas de seu assunto, mas o que ela faz é traduzi-las, impregnando-as de subjetividade. Ao falar de tempo, de espaço e de fotografia, e ao compartilhar essa fala com o público, nas ruas da cidade, este trabalho articula experiências múltiplas, reunindo o objetivo ao subjetivo, o concreto ao abstrato, a visão dos autores àvivênciadasimagenspelosespectadores.Commuitapropriedade,aborda as sutilezas de seu tema por vários ângulos e de várias formas, mas da única maneira viável: poeticamente.
Usha Velasco curadora
O ser Arthur Monteiro
Brasília não se fez só pelas mãos-de-obra. Se fossemsomentetijoloseconcreto,seriaapenasuma escultura morta pelo calor da onda progressista dos anos 50. Para se tornar realmente cidade, muito além de paredes modernas, ela precisaria do ser. O ser que costura a roupa do ser. O ser que vende bebidas ao ser. O ser que faz a casa do ser. Através de retratos e relatos dos primeiros trabalhadores que vieram para Brasília antes de sua inauguração, encontrei um pouco das determinações e sonhos pioneiros da capital. Busquei na cidade que nasceu antes da cidade, antigo canteiro de obras da Novacap e que empresta o apelido dos pioneiros, Candangolândia. Um passado impregnado de presente – um presente longínquo. Hoje. Ontem.
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“Iniciei como contínuo na Novacap. Tive uma trajetória bem bonita, estudei, fiz concurso e me formei como auditor. Venho de uma família muito pobre, lá em casa não tinha nem banheiro, não tinha nada. Mas minha mãe, que era analfabeta, e meu pai, que não conheci, sempre tiveram uma dignidade fora do comum.” Enock Azeredo Correa
“Morei 39 anos numa casa de madeira na Vila dos Operários. Recebia muita gente, eu e meu marido dávamos muita festa...” Maria da Conceição Costa (D. Lia)
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“Hoje mesmo eu encontrei um vizinho da época dos barracos de lona, nos abraçamos e choramos bastante relembrando as dificuldades. Aqui ainda existe o calor humano.” Maria Bizerra “Consegui emprego no Zoológico, dormia num pedaço de madeira em cima da elefante Nely, que foi o primeiro animal do Zôo de Brasília.” José Ferreira de Lima (Zé Mineiro)
Piscina com ondas Henry Macário
Cada lugar, ambiente ou espaço físico pode ser descrito de diversas formas, de acordo com a maneira que os percebemos e os significados que a eles atribuímos. Esses significados atribuídos e repassados para o coletivo passam a alimentar um imaginário, criando histórias, mitos e lendas. Como não vivenciei a antiga Piscina de Ondas de Brasília,restam-meapenasperguntassemrespostas: quais seriam as“cores”daquele lugar quando ainda ativo? Como seriam as tais ondas? Qual seria a minha reação à sua dinâmica? Fotografei os antigos frequentadores buscando sempre elementos que os localizassem no ambiente – fotos, objetos, locais ou atividades que ficaram marcadasnassuasmemóriasequefossemcapazesde transportá-los, mesmo que por frações de segundo, novamente à piscina. Da união de diversas imagens construídas, uma nova piscina aos poucos renasce. Uma piscina coletiva compostapordiferentessignificados,capazdematar a saudade de um lugar que não conheci, mas que agora começa a ocupar o meu imaginário.
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“Olha, eu fui conhecer o mar muito tempo depois, a primeira onda que quebrou em mim foi no cerrado, depois é que vieram as outras...” Raimundo Nonato (Natinho)
“Trabalhei de monitor na colônia de férias. Eu tinha 18 anos. As crianças não podiam ir lá onde as ondas se formavam e quebravam. Tinha uma corda, e os monitores tinham que controlar as crianças para elas não passarem.” Raimundo Nonato (Natinho)
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“Era um local assim agradável, apesar de existir uma dificuldade para entrar, dado o numero de pessoas que queriam frequentar. Existiam bares nas laterais que vendiam pasteis, comidas típicas dos nordestinos e dos sulistas. Tinha locais onde você estendia sua toalha e ali ficava tomando banho de sol com a meninada. Era gostoso mesmo de ver... Demorava meia hora, tocava uma sirene e aí sim vinham as ondas, todo mundo corria para a piscina, era aquela alegria...” Mário Jorge
“Eu morava no Guará... Devia ter nove para dez anos, juntava um grupo e ia de bicicleta para o parque. Às vezes a gente vendia um jornal cedo, para conseguir uma grana e não ter que pedir para os pais. Como a gente ainda era menor, tinha esse esquema de entrar pelo alambrado. A lembrança que fica é a curtição de ir com a galera e dar um tchibum na piscina de ondas. Alegria!” João Paulo Machado
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W3S Isabela Lyrio
Ocoraçãodocomércionasprimeirasdécadasdanovacapital,espaçodecomprasede convívio social ao ar livre e aberto a todos. Autopiadademocraciaurbana,ondetodas as classes sociais poderiam coexistir no mesmo horizonte, era enfim real. A cidade cresceu, a W3 Sul deixou de ser uma sigla e se tornou um símbolo. Detalhadanosprimeiroscroquisdacidade e pavimentada em seus quilômetros retos por pedras portuguesas, aqui ou ali foi sendoocupadaporretalhosdeconcretoou depoesiadiscreta–queagoraseesgueiram dasruasparaasparedes,ocupadaspelacor dos grafittis. Suas árvores cresceram, seus habitantes se multiplicaram e os centros comerciais chegaram com a promessa de conveniência, segurança e conforto em um só lugar. Asruas,antesfervilhantespelomovimento dos passantes, viram seu fluxo diminuir e abaixar, pouco a pouco, as pesadas portas de metal das lojas. Em um tempo alterado, os olhos baixam lentamenteembuscadeumnovocaminho para suas calçadas tão caminhadas.
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Fogo no olhar Armando Salmito* Sentia como se estivesse em uma banda de rock. Parceiros, roadies e compositores,ondecadaumtocavaumanotaaocoração.Eratempodecriação. Depois, ficou pior. Passamos a depender daquilo, nos tornamos mais que amigos, ligados por um necessário desejo de expressão. Tudocomeçoucomalgunsencontrosentrepessoascominteressessupostamente parecidos. Discutimos textos, assistimos filmes, nos propusemos desafios idênticos e compartilhamos, depois disso tudo, resultados bem diferentes. Um grupo pequeno que não terminava em si e, sim, recebia grande influência de outras pessoas, de artistas, da vida. Sentia mesmo que tudo fazia parte. Tudo poderia ser objeto. Continuamos juntos com um lema:“atear fogo no olhar e na alma”. Ficamos pretensiosos. Começamos a acreditar que aquilo nos levaria longe e levou: Barcelona, Lugano, Nova Iorque, Paris, Pequim, Havana, Katmandu, Nova Deli. Tão longe quanto se podia chegar. O resultado sempre surpreendia e era razão para muita conversa e novas composições. Interessante o fato de ter que ir tão longe para encontrar algo que está bem próximo, na verdade dentro de nós mesmos. Então, passamos também a ir aos lugares mais difíceis da nossa região. Íamos fundo. Criamos diálogos próprios, diálogos comuns e até dissonantes. Destarelaçãocomeçamasurgirosfrutos.Gestamosgrandesideias,grandes ambições, especialmente, a de mover, de tocar, de instigar o outro, e de maneira serena colocam-se os trabalhos para a apreciação. Que toque a todos com fogo, com paixão e punctum.
* Designer formado pela Universidade de Brasília. Estudou fotografia no International Center of Photography de Nova York. Vive de contar histórias através de imagens.
punctum Coletivo de fotografia fundado em 2007 por Armando Salmito, Arthur Monteiro e Isabela Lyrio, durante trocas imagéticas e ideológicas apaixonadas que buscam, através da fotografia documental, encontrar as camadas sutis e infinitas da realidade silenciosa. A este grupo inicial juntou-se Henry Macário, constituindo um grupo de quatro fotógrafos que se revezam em trabalhos coletivos. O Punctum atuou na curadoria do site homônimo, exposições e projeções e hoje permanece desenvolvendo trabalhos coletivos, sempre com o objetivo de lançar ao “espectador” a oportunidade de mudar pensamento e ação, atear fogo no olhar e na alma.
Concepção Coletivo Punctum Fotografia Arthur Monteiro Henry Macário Isabela Lyrio Curadoria Usha Velasco Edição e design gráfico Usha Velasco Pré-produção Aloísio César Produção Nísia Sacco Coordenação técnica Isabela Lyrio Assistência de coordenação Arthur Monteiro Patrocínio Fundo de Apoio à Cultura (FAC)
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