OK LADIES, NOW LET'S GET IN FORMATION - Tecituras & Tessituras: uma análise do clipe de Formation

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Ok ladies, now let’s get in formation

tecituras & tessituras: uma análise do clipe de Formation

luísa dal mas - comunicação e cultura de moda



E

m 6 de fevereiro de 2016, a cantora norte-americana Beyoncé lançou o clipe da música Formation, o primeiro single do seu novo álbum intitulado Lemonade. A música e o clipe falam sobre a cultura negra nos Estados Unidos, escravidão, a marginalização desse grupo social, violência policial contra negros no país, entre outros assuntos considerados polêmicos por muitos, gerando reações diversas na mídia e no público. Muitos consideram Formation, e todo o álbum Lemonade, o trabalho mais político da carreira da cantora. Na letra da música, que tem uma batida forte e bem marcada, Beyoncé fala sobre suas raízes, sobre seu pai afro-americano do Alabama, sua mãe descendente de crioulos da Louisiana, sobre seu “nariz de negro com narinas de Jackson 5”. É, essencialmente, uma música sobre empoderamento. Através dessa música e do clipe, Beyoncé estava dizendo para o mundo: sim, eu sou uma mulher negra e tenho orgulho disso. E mais, ela mostrou que ainda temos muito o que discutir sobre racismo, sobre a história da comunidade negra no mundo, sobre escravidão, sobre os problemas que homens e mulheres negras enfrentam diariamente. Afinal, não foi por acaso que o clipe foi lançado em tempo da comemoração do Mês da História Negra nos Estados Unidos. Para reforçar essa mensagem, Beyoncé contou com a ajuda de diversas referências imagéticas, principalmente através das roupas usadas por ela e outras personagens presentes no clipe.


Estética Antebellum o estilo sulista e a história dos negros nos EUA

Em um vídeo publicado no canal oficial da Beyoncé no YouTube, a designer Marni Senofonte, responsável por toda a criação de figurino dos clipes, explica que a inspiração para os looks representados em Formation veio de um período da história americana conhecido como Antebellum. A palavra vem do latim e significa “antes da guerra”. Por isso, esse termo é usado para identificar o período que precede a Guerra Civil Americana, um conflito entre os estados do norte e do sul que teve origem no debate sobre a escravidão no país. Portanto, podemos delimitar esse período entre o final do século 18 até 1861, início da guerra. A economia nos estados do sul girava principalmente em torno da agricultura, pois era uma região com uma grande concentração de fazendas. Ao contrário dos estados do norte, onde o desenvolvimento urbano já estava mais avançado, existiam poucas grandes cidades no sul. Por conta disso, existia uma grande desigualdade social entre seus habitantes. Os landowners, donos da terra, possuíam grande concentração de capital, enquanto centenas de homens e mulheres negras viviam e trabalhavam como escravos em suas propriedades. Como a própria Beyoncé fala na letra da música, seu pai nasceu no Alabama e sua mãe em Louisiana, dois estados sulistas, protagonistas de toda essa história. Portanto, faz sentido que ela tenha escolhido esse período como referência estética para o clipe, já que a sua descendência afro-americana vem dessa região e faz parte da sua história, como da de muitos americanos. A estética Antebellum incorporava vários elementos do estilo Romântico e da Era Vitoriana. No livro “Costume and Fashion Source Books: The Civil War” a autora Karen Taschek explica que as mulheres dos landowners que tinham um status econômico elevado podiam viajar para a Europa e comprar suas roupas em Paris e Londres, trazendo vários aspectos da moda desses países para o contexto americano. Vestidos com grandes saias rodadas e muitos detalhes em fitas e laços eram comuns entre as mulheres dos fazendeiros. As roupas usadas durante o dia tinham a gola bem alta, pois uma boa esposa não deveria exibir a pele antes do anoitecer. Ter o pescoço e os ombros cobertos também servia como uma proteção, pois em uma época onde escravos de pele negra trabalhavam o dia todo sob o sol, ter uma pele pálida era sinônimo de superioridade. Também era comum as mulheres carregarem pequenas sombrinhas, pelo mesmo motivo.


Já os vestidos usados em bailes e eventos noturnos poderiam exibir mais o corpo. Segundo Taschek, o tule de seda em tons claros era uma escolha comum para esses eventos, usado em vestidos de decotes mais profundos e ombros de fora. Um exemplo desse estilo da mulher sulista é a personagem Scarlett O’Hara, no filme E o Vento Levou. Em questão de cores, o branco era uma opção popular entre as mulheres do sul devido ao clima quente da região. Já o preto era usado para momentos de luto. Os tecidos mais usados na época eram a seda, a lã e principalmente o algodão, cuja fibra era cultivada no sul e transformado em tecido no norte do país. O algodão também era uma escolha frequente para a confecção de roupas por conta do clima quente e úmido dos estados do sul. Muitos desses elementos do vestuário da época podem ser identificados no clipe de Formation. É possível dividir o clipe em dois momentos: um mais histórico, com essas referências do período Antebellum, e outro mais atual, com referências do hip hop, do streetwear e da cultura negra atual. As cenas que se encaixam nesse primeiro momento foram gravadas em ambientes que lembram antigos casarões de fazendas. Em uma das primeiras cenas, Beyoncé aparece sentada em um quarto com fotografias antigas, usando um vestido branco de renda de algodão com um corset sobreposto. Apesar da renda não ser um tecido tão comum no período Antebellum, a fibra utilizada e o modelo do vestido se encaixam muito bem nessa estética Vitoriana, por conta da gola alta, os detalhes de babados e as mangas bufantes. A cor branco, o uso do corset, e até mesmo a própria postura da Beyoncé nessa cena ajudam a construir essa imagem de superioridade, e ao mesmo tempo de sensualidade. É quase uma provocação, pois ela está colocando a mulher negra na posição de poder, lugar antes ocupado por aqueles que a escravizaram durante anos. A manga bufante e os ombros marcados reaparecem em uma versão mais atual na cena seguinte, na forma de um bodysuit, peça clássica do estilo da cantora. O tecido foge um pouco do padrão histórico, pois é provavelmente construído em tecelagem plana, para sustentar a estrutura das mangas, usando fibras sintéticas com elastano, para ficar rente ao corpo. O decote profundo e a cor vermelha escura trazem sensualidade para o look, mas o aspecto Vitoriano ainda está presente através da silhueta, do colar de pérolas enorme e do penteado, uma trança que lembra uma coroa. Em outra parte do clipe, Beyoncé aparece sentada em um sofá acompanhada de outras mulheres com vestidos brancos e bem detalhados, todos com algum tipo de referência aos estilos sulistas, como ombros de fora, laços, tule e saias cheias. Um dos momentos mais marcantes do clipe traz Beyoncé na varada de um casarão, possivelmente o mesmo das cenas anteriores, toda de preto. Ela usa um vestido preto de tafetá de seda com um decote ombro a ombro, bem marcado na cintura e saia com uma abertura na parte frontal, deixando as pernas a mostra e a meia-calça de renda em evidência. É um look bem sedutor e misterioso, mas que ao mesmo tempo tem um aspecto sombrio, principalmente por conta do chapéu de feltro preto enorme


que cobre os olhos da cantora. Os homens parados atrás dela também estão vestidos de preto, com ternos e roupas formais, o que dá a entender que eles estão em um velório, já que no período pré-guerra o preto era usado em períodos de luto. O lado mais contemporâneo do look fica pelos acessórios: vários colares de prata sobrepostos, que remetem ao tipo de colar usado por mulheres em tribos africanas. O look mais lúdico dentro desse lado histórico do clipe vem quase no final, trazendo uma homenagem a uma das festas mais tradicionais do estado da Louisiana. Com um vestido Gucci de tule verde e roxo cheio de detalhes com babados, Beyoncé incorpora o espírito e as cores do Mardi Gras, o típico carnaval de Nova Orleans. As cores tradicionais do Mardi Gras são o verde e o roxo e durante a festa a população se vestem com roupas extravagantes, máscaras e colares coloridos, exatamente como Beyoncé e os figurantes e apresentam nessa cena. De maneira geral, o que esse lado do clipe passa é uma provocação. Ela resgata um dos período históricos mais sombrios para os negros dos Estados Unidos e os coloca como protagonistas. Ocorre uma inversão dos papéis, onde é a vez da mulher negra se sentir poderosa, viver nos casarões dos ricos. Ela também não é submissa aos homens, já que os únicos que aparecem estão atrás da cantora, ou seja, ela é a líder, ela tem o poder.


Cultura negra hoje e

EMPO DERA MENTO

O segundo estilo que podemos identificar dentro do clipe de Formation tem uma estética muito mais contemporânea. Para analisar esse lado da produção, é importante entender o contexto em que essa música foi lançada. No último ano, a discussão sobre racismo nos Estados Unidos ganhou muita força, em grande parte graças ao movimento #BlackLivesMatter. O movimento, que surgiu como uma hashtag usada em um post no Facebook, se estabeleceu em 2013 após a absolvição de George Zimmerman, um vigilante de bairro que matou a tiros um jovem negro de 17 anos. Casos como esse continuaram a surgir nos noticiários, gerando protestos e ações do grupo #BlackLivesMatter e despertando um diálogo no país sobre a violência contra os negros, principalmente pelas mãos de policiais. Vários outros movimentos, tanto nos Estados Unidos, como no Brasil e no resto do mundo, vêm surgindo de dentro das redes sociais e ganhando força nas ruas, provocando diálogos e pensamentos. É o chamado ciberativismo, tendência que começou em 2010 com a onda de manifestações conhecida como a Primavera Árabe, que fez uso das redes sociais para organizar manifestações contra os governos de países do Oriente Médio e norte da África. O professor da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, no artigo “Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo”, define o ciberativismo como “um conjunto de práticas em defesa de causas políticas, socioambientais, sociotecnológicas e culturais, realizadas nas redes cibernéticas, principalmente na Internet”. A facilidade das redes como meio de comunicação abriu um novo espaço para debates, dando um novo impulso para a luta de minorias, como é o caso da comunidade negra. Dentro desse cenário de debate e discussão, Beyoncé e sua equipe criativa usaram o clipe de Formation e a forte influência da cantora em uma escala mundial como uma plataforma para ampliar ainda mais essa


discussão. Por conta disso, podemos identificar diversos aspectos da cultura negra no figurino, nos cenários e na própria música. Os primeiros segundos do clipe já deixam essa proposta bem clara. Antes da música iniciar, ouve-se uma voz falando “what happend after New Orleans?” (o que aconteceu depois de Nova Orleans?). Isso é uma referência à tragédia do Furacão Katrina, que destruiu grande parte da cidade e gerou grandes polêmicas sobre o descaso das autoridades na hora do resgate da população negra e pobre da periferia. Logo em seguida, vemos Beyoncé em cima de uma viatura da polícia que está afundando em uma cidade alagada. Ela veste um conjunto de camisa e saia de cetim de seda vermelho. Apesar do tecido nobre, o modelo das peças lembra as roupas usadas por mulheres que trabalhavam em fábricas no início dos anos 20, por conta da gola alta e abotoada até o topo. O look foi completado com um par de coturnos pretos de couro, bem pesados, e o cabelo em um coque desarrumado, o que contribui para essa imagem de mulher trabalhadora, longe da elite. Podemos identificar também muitas referências do hip hop e do estilo que acompanha esse gênero musical desde seu surgimento. O hip hop nasceu nos anos 70 no Bronx, bairro pobre de Nova York cuja população era predominantemente negra e latina. Foi um estilo de música que nasceu na cena underground, que veio de baixo e chegou ao topo, conquistando espaço no mundo todo. Beyoncé resgatou um pouco dessa história na cena em que aparece na janela de uma caminhonete. O casaco de pele usado pela cantora é Fendi, provavelmente feito com pele de Vison (muito usado pela marca, que tem tradição no uso de peles). Casacos de pele tornaram-se um item clássico no estilo dos rappers americanos por conta do ideia de luxo, ostentação e poder que carregam. Nomes como 50 Cent, Kanye West e P. Diddy costumavam compor looks com enormes casacos de pele de chinchila, raposa ou outros animais. Outra cena que carrega muita influência da cultura do hip hop é quando Beyoncé e suas dançarinas entram em “formação” de fato e dançam em um estacionamento. Todas estão vestindo looks totalmente, o


quase totalmente, compostos por peças de jeans, em várias lavagens e tonalidades de azul. O jeans esteve inserido na estética do hip hop desde o começo do estilo e ganhou ainda mais presença nos anos 90, com artistas como TLC e Tupac transformando as jardineiras em tendência. A própria gravação dessa cena se difere do restante do clipe, com a imagem de baixa qualidade que lembra as gravações de filmadoras analógicas, comuns nos anos 90. O jeans ainda aparece mais vezes, como na cena em que um homem negro anda a cavalo com um chapéu típico de cowboy, mas com roupas bem atuais e com a pegada streetwear do hip hop (uma calça jeans larga, camiseta e correntes). O detalhe mais interessante é o tênis Adidas branco com uma espora na parte de trás, novamente trazendo esse contraste da cultura sulista e da cultura negra. Assim como o jeans, o tênis teve um papel importante no crescimento do hip hop, pois ganhou seu status cool nos anos 70 através de marcas como Puma, Keds e Converse. Além das questões da música, Formation faz uma referência aos esportes. Em uma parte do vídeo, Beyoncé e as dançarinas dançam dentro de uma piscina vazia. Todas estão vestindo conjuntos de malha de algodão com as cores e a estampa clássica das bolsas Gucci. Ainda que tenham um aspecto de glamour, por conta da referência à marca de luxo, os looks também têm uma aparência bem esportiva, por conta do material. Foram intercaladas imagens de jogadores de basquete negros com seus uniformes. Essas duas imagens combinadas exaltam o fato de que os negros sempre se destacaram nos esportes. O próprio cabelo da Beyoncé nessas últimas cenas só reforça as ideias negritude, onde ela aparece com os cabelos trançados, as chamadas tranças afro. Como observamos no início dessa análise, todo o clipe é construído em um ritmo de contraste: a estética sulista em oposição à estética afro-americana atual, com suas influências musicais, seus problemas sociais e suas características dentro da moda.


Givenchy e Gucci as marcas de luxo em Formation

A label italiana Gucci é a mais presente no clipe de Formation, compondo três looks inteiros da cantora, e isso não aconteceu por acaso. Desde a chegada de Alessandro Michele à direção criativa da marca no início de 2015, as coleções da Gucci ganharam um estilo vintage, com influências dos anos 70 e também do romantismo, referências que se encaixam com a concepção do clipe. Essa proposta da marca se manifesta claramente no look vermelho da primeira cena e no vestido roxo e verde. A mulher Gucci sempre foi sedutora e poderosa, mas nas mãos de Michele ela ganhou uma aura retrô. A stylist Marni Senofonte afirmou que se identificou muito com o espírito atual da marca e quis trazer esse lado old school e vintage para os designs do clipe. Outro fator que liga a Gucci ao conceito do clipe é a relação que o hip hop tem com marcas de luxo, constantemente citando nomes de grifes nas letras das músicas já que elas representam poder e ostentação. Segundo uma pesquisa feita pelo blog oficial da Macy’s, Gucci foi a marca mais citada em músicas desse gênero nos últimos 20 anos. A logomania que dominava os anos 90 e 2000 dentro da cena do rap também se manifesta aqui no conjunto vermelho estampado com o nome da label em uma fonte de caligrafia, assim como nos conjuntos de malha inspirados na bolsa. É, de uma certa maneira, um luxo pop, que se encaixa nesse contraste da cultura negra antes e depois que é tão presente no vídeo. Ao lado da italiana, existe ainda uma protagonista francesa em Formation: Givenchy. Apesar de não compor nenhum dos looks, a marca ocupa lugar de prestígio no clipe, fazendo parte da própria letra da música. Sensualidade, elegância e feminilidade fazem parte do DNA de marca da Givenchy, aspectos que se alinham com o discurso de empoderamento de Beyoncé na música. Além disso, a cantora já usou criações da maison diversas vezes em eventos como o Met Gala. Quando ela canta “I’m so reckless when I rock my Givenchy dress” (sou tão imprudente/ousada quando uso meu vestido Givenchy), está usando o nome da marca como um símbolo de poder, como a vestimenta de uma mulher empoderada, que é dona de si.


O que Formation representa?

Com a análise dos aspectos históricos, combinada com uma análise imagética e têxtil, percebe-se claramente que Formation é uma declaração de empoderamento que contesta a realidade cultural dos Estados Unidos. O contraste existente dentro do figurino escolhido ajuda a criar essa narrativa. As formas clássicas e conservadoras, em relação às peças contemporâneas com influência do hip hop constroem uma ousada comparação entre a realidade dos afro-americanos no início do século 18 e a realidade de hoje. A própria escolha dos materiais aplicados a esses figurinos tem um peso forte na história contada em Formation. Onde há uma referência ao passado, são usados tecidos nobres, rendas, sedas. Já nas cenas que remetem à cultura atual, vemos o jeans e a malha de algodão, materiais mais comuns e populares, mais acessíveis à uma minoria social discriminada por tantos anos. São esses aspectos aparentemente sutis que estruturam uma narrativa tão forte dentro do clipe de Formation. Com esse projeto, Beyoncé contribuiu de forma extremamente marcante à discussão de racismo e preconceito nos Estados Unidos.


centro universitรกrio belas artes - 2016/2


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