_luĂs fernando siqueira dias
{pra colocar cada coisa em seu lugar
{
_
_luís fernando siqueira dias (luíç caixote)
Pra Colocar Cada Coisa em seu Lugar Monografia apresentada ao Departamento de Desenho da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Gráficas.
Brígida Campbell_orientação Patrícia Azevedo_co-orientação
_belo horizonte _escola de belas artes _ufmg _julho de 2011
Projeto Gráfico Luíç Caixote
Revisão Thalita Evaristo Couto revisão@thalitacouto.com
EBA | UFMG BH | 2011
EpĂgrafe
Helena Almeida Dentro de mim, 1998
Sou grato ... aos meus pais que, lá em Bocaiúva, botaram um lápis e um caderninho na minha mão me incentivando a iniciar os passos pelo cascalho sem medo de gastar as alpercatas e, desse jeitinho tão deles, me ensinaram a estrada que levava à escola. Hoje realizo um sonho que não é só meu; ajudo a realizar um pedacinho daquilo que Sô Antônio e Dona Zélia sonharam: ver os filhos chegando longe. … meu coração tem gratidão tão especial à
Thalitinha por sua pre-
sença, sua calma, seu carinho... por me agüentar, por estar sempre ao meu lado… e pelo seu amor. … aos que nesse estrada asfaltada da cidade grande me acompanharam, principalmente, na caminhada acadêmica. Agradeço aos
amigos
(co-
legas e professores) pelos bons momentos que foram marcados pelas conversas amigáveis (pausa para o café, piquenique ou o simples e leve
bom papo). Todos foram importantes porque o tom descontraído de cada conversa afogou a tensão desse percurso de trabalho e suor.
Sumário_4
Eu tinha que {Tentar dizer todo o possível em
algumas palavras_5, mas o espaço é sempre pouco, falta linha, falta palavra, falta o que mais dizer e no fim sempre sobram brancos. Já que o meu estava pouco fui atrás de {O espaço para cenas_6, aí achei bom lugar para contar as {Estórias que alimen-
tam_10 e que me levam a outros lugares. Ouvi dizer de {O olhar que paira_15. Investiguei e investi nesse olhar. O que descobri jorrava, foi como uma hemorragia, uma sangria que se desatou quando comecei a {Contar um pouco de mim_19, jorrou muita coisa que até eu mesmo nem conhecia. Tudo isso porque me permiti {Molhar
os pés na fonte_23. Parei e dei tempo para me ouvir, me investigar e então pude perceber o que eu queria. O que eu buscava, na verdade, eram formas de {Povoar o mundo com criações e
criaturas_29. A descoberta veio um pouco tardia, pois eu já havia povoado muito lugar por aí. Mas restou um pouco de tempo, pois sempre
{Sobra tempo para leitura_41.
_4
Vejo que para as narrativas se constituírem, vão sendo alimentadas por fragmentos de fatos, de estórias, de relatos, de acontecimentos. Enfim, são esses detalhes que enriquecem o conjunto do que é narrado. A pes_5 quisa apresentada nessa monografia versa sobre uma produção que explora diferentes meios para se contar as estórias que podem existir por trás das coisas, ou seja, é uma pesquisa sobre meios de se narrar. Uma escrita fragmentada foi escolhida porque atua como facilitadora dessa fala. Além disso, esse formato possibilitou que o texto fosse se alimentando com o desenvolvimento do trabalho. Foi uma forma de emparear a produção com a pesquisa teórica. O texto flui baseado em uma estrutura semelhante a uma entrevista. As perguntas são feitas por um Luíç Caixote curioso em entender um pouco mais sobre Luíç Caixote e seu processo produtivo. No entanto as perguntas não vêm só desse Luíç imaginário, algumas foram feitas por professores ou amigos que tiveram contato com o processo de amadurecimento da produção, e essas perguntas vieram para dentro da monografia porque se mostram muito importantes para ajudar a compreender melhor o trabalho. No percurso de leitura desse texto inseri variações no corpo tipográfico, ou seja, destaquei (grifei) algumas palavras ou expressões aumentando seu corpo porque julguei que fossem importantes e de forte presença na produção.
{ Tentar dizer todo o possível em algumas palavras
Mesmo sendo uma escrita fragmentada que se apóia no jogo de perguntas e respostas, a monografia foi dividida em dois momentos, ou melhor, em duas partes. Na primeira parte estão os três principais eixos orientadores que são a Cidade, a Narrativa e a Fotografia. Busco costurálos entre si no trabalho prático também. Na segunda parte adentro mais nesse Luíç Caixote produtor (uma mistura de artista, autor e narrador) falando do que o motiva. Além de produções pessoais, são apresentados outros artistas e os trabalhos que de alguma forma influenciam Luíç Caixote.
parte 01
{O espaรงo para cenas
Guia Sinais de Bolso, 2010 Intervenção urbana.
Luíç Caixote, o que é cidade pra você? É um habitat1. Lugar para se habitar. Espaço (ou território) amplo onde a realidade e o imaginário podem coexistir e conviver. Muitas vezes, _7 chegam tão perto um do outro (realidade e imaginário) que se tocam, cruzam e efetuam trocas.
E como seria
viver
nesse habitat?
Habitar esse lugar se dá no ato de experimentá-lo. Caminhar sentindo as transformações e as mudanças debaixo do solado. O espaço que se habita não é apenas arquitetura, vai além do concreto da calçada; é mais do que prédios, mais do que fluxo, mais do que gente. O habitat é constituído não só pelas esquinas, becos, janelas, frestas ou pelo buraco da fechadura, mas, também, pelo instante em que a cabeça busca se esquivar de tudo. Quando a mente, às vezes, cansada da visão rotineira, tenta enxergar o que há à volta através de nuances, detalhezinhos quase imperceptíveis ou, quando, a mente divaga mergulhada em fantasias ou devaneios. A imaginação é uma parte constituinte do habitat, pois ela vive, interage ou coexiste com algum elemento da realidade.
Luíç Caixote e Camila Ventura Janela de Possibilidades, 2010 Instalação no Mercado Novo (BH)
A coexistência do real e do imaginário permite que o espaço possa ser expandido e explorado para além do limite cotidiano, da monotonia diária da repetição. Pode-se fazer o mesmo percurso, mas de formas diferentes. Às vezes, é preciso caminhar despretensiosamente. Seguir pelas ruas sem estar preso a uma rotina ou a sensação de atraso, apenas 1 ha.bi.tat: (ábitat) sm (3.ª pessoa do sing do pres indic do verbo latino habitare) 1 Biol Lugar ou meio em que cresce ou vive normalmente qualquer ser organizado; ambiente natural. 2 Sociol Área que é ou pode ser habitada por seres vivos. 3 Sociol Meio geográfico restrito em que uma sociedade possa sobreviver.
caminhar. Vaguear com um olhar solto (livre) que possibilite ver e (re) conhecer o habitat por seus detalhes, por sua sutiliza, por sua poesia. Davi Harvey também fala dessa possibilidade de mudança de percurso dentro do próprio percurso: Se descobrirmos que nossas vidas se tornaram muito estressantes, alienantes, simplesmente desconfortáveis ou desmotivantes, então temos o direito de mudar de rumo e de buscar refazer nossas vidas segundo uma outra imagem e através da construção de um tipo de cidade qualitativamente diferente. (HARVEY, 2008) A partir de ações como observar, experimentar, sentir ou de caminhar despreocupado a cidade se transforma. “Detalhes desapercebidos revelam condições e poéticas de um espaço que se movimenta e superpõe informações”. (Priscila Lolata, 2010, s/p.). Na busca dessas informações desapercebidas se estabelece a relação de troca na qual o habitante interage com o meio onde vive moldando-o segundo vontades, sentimen-
tos e percepções pessoais. Assim, uma pessoa frenética pode constituir para si uma visão de cidade acelerada, rápida, estressante, sufocante enquanto uma pessoa calma consegue ver a delicadeza, tranqüilidade e calmaria, construindo uma imagem menos conturbada. Pode se dizer que o habitat acaba por ser um reflexo do interior de cada um.
Quem
é o habitante desse lugar?
O passarinho que pousa no fio. A lagartixa que sobe pelo grafite do muro. O homem que aguarda o sinal abrir. A moça sentada no banquinho de praça que espera seu namorado. E por que não “o banco de praça que contagiado pela moça, espera por um amor à altura” ou “o sofá que leva suas sobrinhas, cadeiras, para um passeio no parque”?! Eles também são habitantes, até parecem devaneios (desvios que a mente cria para fugir um pouco da realidade), mas foram pensados por alguém, desse modo, passam a habitar a cidade. Mesmo que essa seja uma pessoa específica, outras podem ter acesso ou chegar próximas a esses devaneios. Eles não se perdem; dispersam-se pelo habitat e, por isso, podem ser encontrados. O importante é saber como procurar.
Registros para o trabalho: Cada Coisa em seu Lugar, 2011
Quer dizer que isso que você chama de devaneio seria uma forma da imaginação ocupar a cidade? Vejo-os como ferramentas da mente (imaginação) que nos ajudam a experimentar o espaço (habitat). São pensamentos estranhos que constroem situações inusitadas. Um jogo lúdico que pode ser comparado à
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forma com a qual as crianças, sem pudor ou medo, em uma brincadeira, reconstroem a realidade. Como diz Mau Moleón Pradas (1999, p. 44), “pois na lógica da criança, tudo o que se pode representar pode acontece.2” Os devaneios vivem dentro dessa lógica e por isso podem ser transportados para a maneira como se vive na cidade. Devem ser aproveitados nos momentos de tensão, nos momentos em que a rotina nos prende como, por exemplo, enquanto se espera na fila que nunca anda pode-se muito bem espreitar buscando por um detalhe, pelo fortuito ou mesmo dobrar uma esquina sem temer esbarrar no inusitado. É mais que ocupar a cidade; é experienciá-la.
Enfim, que lugar é esse? A imensidão da cidade é além do que se vê na superfície (pessoas, casas, prédios, carros, luzes, asfalto). Ela é um conjunto de informações que se entrelaçam e dão suporte a novos conhecimentos e experimen2 Nota do Autor: Tradução minha “pues en la lógica del niño, todo lo que se puede representar puede ocurrir”.
tações. Como pontua Brígida Campbell (sd., sp.), “As ruas não são apenas um lugar de passagem, são também o lugar de encontro. Seja em espaços previamente reservados a isso, como cafés, teatros, praças ou simplesmente em encontros fortuitos pelas ruas, o movimento, a mistura são elementos da vida urbana”, a cidade se farta dos encontros, do movimento, da mistura num grande acontecimento que não pára, que permite coisas novas se conectarem a todo instante. O espaço urbano ao mesmo tempo possibilita o encontro comum também promove o desencontro, pois por causa de sua imensidão acaba escondendo algumas coisas e perdendo outras no meio de tanta informação que se sobrepõe.
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Cidade é como um cenário gigantesco que se abre para estórias acontecerem e, ao mesmo tempo, é como um baú escancarado de fantasias (figurinos) para se vasculhar em busca daquela que cai bem. Numa analogia literaturesca3, penso que a cidade funciona como um dicionário de rimas que merece ser folheado em busca do verbete que falta para se compor um novo verso a cada momento.
Luíç Caixote e Camila Ventura Janela de Possibilidades, 2010 Instalação no Mercado Novo (BH)
3 N. A.: Criei esse neologismo em prol da construção da frase, pois a que pensei anteriormente soaria muito ambígua: “Numa analogia literária”.
Luíç Caixote e Camila Ventura Janela de Possibilidades, 2010 Instalação no Mercado Novo (BH)
parte 01
{Est贸rias que alimentam
Registros para o trabalho: Cada Coisa em seu Lugar, 2011
Me conta uma coisa, o que é narrar? Narrar, contar, falar, tudo isso é tão antigo na cultura e está diretamente ligado ao desenvolvimento humano, pois isso é comunicação e o ser hu-
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mano precisa de contato e de estabelecer relações com outros humanos por ser um ser social. No princípio usavam da oralidade para transmitir conhecimento, tradições. Um contador (narrador) rodeado de outros que o ouviam, assim ele compartilhava sua sabedoria. Depois a escrita surge para fixar em superfícies ou suportes o que a língua falava. Os canais de comunicação se ampliaram, dava-se chance não só aos ouvidos, mas aos olhos de também terem acesso à mensagem. No fundo, narrar é poder soltar a língua, parar apenas para respirar fundo e buscar mais coisas para falar. É parar para se ter uma boa
conversa. Dar coerência as coisas que se fala de modo que haja sentido. Construir a narrativa é amarrar fragmentos soltos numa liga que une um ponto ao outro, essas amarras constituem algo maior, pois formam o discurso. Nota-se, como afirma Milton José Pinto (2008. p.10.), “A característica fundamental dos discursos é a sua heterogeneidade do ponto de vista semiológico: todo discurso admite pluralidade de interpretações homogêneas, podendo-se, pois, afirmar que são constituídos pela imbricação de diversas mensagens”, que os discursos são amplos e enriquecidos pelo jeito de se narrar. Para contribuir para essa heterogeneidade é preciso, primeiro, empregar o olhar para encontrar a relação entre as coisas e, depois, emprestar a voz para alimentar o discurso. É saber colocar as nuances que valorizam aquilo que se conta. Narrar é
Registros para o trabalho: Cada Coisa em seu Lugar, 2011
brincar com a realidade. Ouvir uma estória1, mudar uma coisinha ou outra e passar para frente. Nesse contar ao próximo (passar para frente) que se enriquece o assunto, cada um reconta de uma maneira diferente retirando, reinventando ou adicionando tantos outros pontos (detalhes).
Narrar é ordenar, amarrar e
tramar?
É isso e mais um pouco. É também trabalhar com a capacidade transformadora de sentidos que a palavra tem. Não é apenas amarrar um fragmento ao outro, tem de se saber usar as palavras adequadas como liga, construindo uma rede maior de significados. Narrar, antes de mais nada, é saber contar uma estória1. E contar pede a manipulação de palavras, não só as ordenando ou enfileirando em busca da coerência para o bom entendimento, não só manipular a ordem dos fatos, dos acontecimentos ou dos detalhes; mas, narrar, é saber manipular a elasticidade das palavras. Uma palavra é mais que um único sentindo, ela transporta 1 Definição do dicionário Michaelis Online: es.tó.ria sf (gr historía) Narrativa de lendas, contos tradicionais de ficção; “causo”: “Ouviram atentos aquelas estórias de mentira, da ´mula-sem-cabeça’, do saci, do curupira.
Registros para o trabalho: Cada Coisa em seu Lugar, 2011
muitos outros significados (palavras) dentro de si, essa é sua elasticidade. Contar uma estória é jogar com os sentidos buscando transpor os
limites e ampliar o uso das palavras. Como se pode
manipular
os sentidos?
Manipular os sentidos é poder brincar com os significados. Vasculhar o mundo através de seus detalhes e, então, perceber as delicadezas que fazem as coisas diferentes umas das outras; perceber as especialidades.
procurar poesia. Poesia é o que dá dinâmica, cria movimento e ação; é aquilo que transforma os objetos, traduzir o mundo mostrando os sentidos que existem além daquilo que se vê imediatamente. A dinâmica transformadora da realidade é bem explicada e ao mesmo tempo exemplificada por esse fragmento da música Sonho de Uma Flauta da trupe de músicos O Teatro Mágico2: Nem toda palavra é / Aquilo que o dicionário diz / Nem todo pedaço de pedra / Se parece com tijolo ou com pedra de giz // Avião parece passarinho / Que não sabe bater asa / Passarinho voando longe / Parece borboleta que fugiu de casa // [...] Mas sonho parece verdade / Quando a gente esquece de acordar / E o dia parece metade / Quando a gente acorda e esquece de levantar / E o mundo é perfeito / E o mundo é perfeito / E o mundo é perfeito...
Na brincadeira, ou melhor, no jogo de manipulação de significados a
poesia entra como ferramenta que nos ajudar a traduzir o mundo sobre uma ótica diferenciada daquela que estamos habituados. 2 Essa trupe de músicos será melhor apresentada no capítulo {Molhar os pés na fonte.
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Como encontrar essa poesia nas coisas? A cabeça tem a capacidade de criar, sonhar, desejar. Tem a capacidade de transformar. Uma caneta pode deixar de ser um objeto para escrita e se tornar um aviãozinho que plana impulsionado, não só pela mão, mas também pela imaginação; uma réplica em papel de uma cadeira, pode se tornar viva (como um ser humano, andar, falar, sorrir, sonhar, desejar, amar) e passar a conviver com outros mobiliários. Esses objetos transformados (humanizados) podem constituir uma realidade, bem como, uma sociedade própria na qual habitam. Mas podem cruzar a nossa realidade e habitar nosso mundo também. Isso depende da maneira de se ver o mundo, o modo de olhar para as coisas e, como diz Ítalo Calvino (1950, p. 19), “Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.” Abrir-se às outras possibilidades de se enxergar o mundo é buscar a poesia nas coisas.
O que é uma boa
estória?
A boa estória não quer dizer que seja uma narrativa espetacular, mas a boa estória é aquela que agrada, que cativa ou que toca o ouvinte em _13 seu interior. A boa estória envolve todos os rituais: sentar, ouvir, deixar a cabeça aberta aos detalhes. É deixar se encantar por um universo mágico como o de Cobra Norato, numa realidade mítica como de Grande Sertão Veredas. É também se dar ao luxo de ter medo de saci,
mula-sem-cabeça, curupira. Acho que é se enganar por “estórias de pescador”, estórias que soam inverossímeis ou fantasiosas demais, mas que de alguma forma ainda nos deixam curiosos ou nos fazem acreditar irreal. Essa é uma das características da literatura fantástica, assim como descreve Paula Perin dos Santos ao analisar o conto Teleco, o Coelhinho3 do autor Murilo Rubião: “Teleco, o Coelhinho” é inverossímil quanto ao discurso narrativo, mas verossímil enquanto narrativa fantástica. Isso porque o conto apresenta uma sequência de ações que são impossíveis de acontecer “de verdade”, mas o texto nos é apresentado de uma forma interna tão lógica que nos faz aceitar o irreal como sendo real, sem nenhuma reação contrária. (SANTOS, Paula Perin dos. 2008, sp.).
De onde vem o que contar? Registros para o trabalho: Cada Coisa em seu Lugar, 2011
Deixando a mente solta (livre), ela vaga buscando um propósito. Passa a
desconhecer os limites do mundo. Ao tentar extravasar a realidade ela belisca o fantástico e o traz para junto de nós, ou seja, a mente 3 Publicado em O pirotécnico Zacarias (1974).
consegue entrelaçar dois mundos: o real e o fantástico. Aproximá-los e fazer com que caminhem juntos. Uma pessoa é capaz de contar uma estória fantasiosa que pareça impossível de se acreditar, mas ao mesmo tempo pode fazer com que se acredite nela. Tudo depende da forma como se conta.
Onde vivem as narrativas? Na escrita? Nos livros? A narrativa não se prende aos limites da margem, do texto, da paginação. Um objeto ou uma imagem (fotografia) podem funcionar como a
caligrafia ou como a voz que narra. Esses elementos distintos ou não se relacionam e constituem uma
unidade muito maior, nasce assim
um texto, ou seja, uma mensagem a ser transmitida. E Carlos Garaicoa (2009, p. 15) diz que “[...] imagem e texto podem conviver, podem retroalimentar-se, podem ser dois textos paralelos e ao mesmo tempo
ser finalmente um único texto”. Nesse relacionamento o texto escorre da imagem, não como um objeto de escrita apenas, mas como a própria mensagem. Escorrer com a conotação de fugir e sair
andando,
correndo pelas ruas, caminhando pela cidade, esta como um território amplo se torna o cenário para muitas coisas acontecerem. As narrativas
habitam as pessoas e por isso fazem parte da cidade também. O que você pode contar de tudo isso? Narrar é saber construir um discurso coerente a partir de fragmentos, mas é saber cativar e saber tramar estórias que cativam por sua leveza, encanto e pela poesia empregada. Poesia essa que dá dinâmica e vida a objetos inanimados como uma pedra, por exemplo, que mesmo parada no seu lugar compõe ações de movimento. O texto gira em torno dela fazendo com que vire um personagem vivo, como o faz Carlos Drummond de Andrade em seu poema No meio do Caminho4: No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra. Registros para o trabalho: Cada Coisa em seu Lugar, 2011 4 Publicado em Alguma Poesia (1930)
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Enfim, as narrativas estão no “nosso caminho”, elas nos cercam o tempo todo, nós nos construímos em cima de contos, relatos, estórias, em cima da fala, pois a comunicação é uma necessidade humana. O que temos à volta é vasto, assim também são as estórias e as formas de contá-las. São variados os estilos, as preferências, as vozes empregadas no contar, o que precisamos é identificar aquele estilo que nos é mais interessante e assim vasculhar em busca de boas estórias. As narrativas estão por toda parte. Estão aí para serem descobertas, escarafunchadas e depois recontadas.
parte 01
{O olhar que paira
Animรกlia, 2009
Como explicar
fotografia
ao pé da letra?
Dissecando-a pela etimologia. -fot(o)- elemento de composição, derivado do grego phōto-, de phōs photós ‘luz’ -graf(o)- elemento de composição, derivado do grego -graph(o)-, de gráphein ‘escrever, descrever, desenhar’ A palavra fotografia é constituída por esses dois elementos que lhe dão o sentido de ‘a arte de desenhar (escrever) com a luz’.
Como desenhar (escrever) com a luz? A fotografia é uma espécie de registro no qual as informações luminosas são capturadas por um aparato (câmera escura), interpretadas em um processo químico ou digital e, então, impressas no suporte. Imprimir a interpretação da luz em uma superfície e gerar imagens através desse processo é produzir o desenho/escrita. Uma fotografia sempre fala do objeto, do sujeito e do próprio meio fotográfico, seja ele químico ou digital. A escrita não se dá apenas pela escolha do sujeito no processo de captura luminosa, existem diversos meios, estratégia ou formas de se produzir imagens fotográficas. Assim como na narrativa, há uma mensagem e tantas outras coisas implícitas. Segundo Roland Barthes (1986), essa mensagem fotográfica se estabelece pela conotação, ou seja, uma imposição de sentidos que se aplica à imagem. A fotografia é uma voz que narra e nem sempre conta tudo de imediato; oculta informações nas entrelinhas para que cada um busque
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fazer sua leitura. Ela carrega uma mensagem invisível e ativa, clara e implícita que se expressa nos diferentes meios de produção, ponto de vista, enquadramento e processos técnicos.
Entre o olho que busca o que fotografar e o olho que vê a imagem, há um percurso riquíssimo que suporta mudanças, alterações, desvios e novas escolhas. O tom da escrita desse texto final (a imagem) é determinado por características caras a cada um dos processos, por isso, técnicas alternativas, como cianótipo, escrevem (produzem) resultados distintos aos de técnicas digitais.
Quem tem o dom especial? A fotografia surgiu a partir de experimentos químicos; hoje em dia ela ganhou novas conotações com a tecnologia digital. Tornou-se acessível a todo aquele que se interesse pelo tema. Como um artigo popular. Caiu a barreira que era o conhecimento químico e, graças às comodidades da vida moderna, qualquer pessoa tem acesso à “escrita com a luz”.
As imagens sempre dizem a
verdade?
Há um senso, quase comum, que diz que a fotografia é a verossimi-
lhança daquilo que ela retrata. Para muitos olhares ela representa a realidade com toda fidelidade possível, mas o fotógrafo pode manipular essa verdade e buscar formas de implantar embustes. Ele tem liberda-
de para montar, editar, retocar, retrabalhar e inserir elementos irreais ou inexistentes, consegue também retirar ou ressaltar detalhes contribuindo para a consolidação da imagem como representação de algo verdadeiramente real. É possível enganar o olhar com coisas absurdas do mesmo modo que faz um narrador ao trabalhar sua trama.
Fotografia
é uma forma de registro?
É uma maneira de registrar que não se limita a essa função. A fotografia se oferece como investigadora daquilo que deixamos passar de-
sapercebido. Por exemplo, posso (podemos) ver o mundo por imagens fotográficas tendo acesso a lugares distantes que nunca visitei (visitamos), tempos passados que nunca vivi (vivemos), como também vasculhar o presente e as coisas ao derredor.
Série opiniões, 2010
A fotografia não congela a realidade, congela aquilo que o fotógrafo determina que pode ser um momento, um estado de espírito, um sentimento, uma lembrança, um acontecimento, pode ser tanta coisa. O
fotógrafo é o narrador que com seu lápis de luz compõe a estória, que escreve os versos, que nomeia a poesia, dá o título e assina. Assim como o texto que se alimenta das palavras e de outros textos, uma
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imagem se constrói a partir de outras. A fotografia atua como a voz do narrador ou as palavras de um texto. É assim que proponho respostas às perguntas de Nelson Brissac Peixoto (2004, p. 31): “A imagem seria capaz de, como postula Deleuze1, exercer um choque sobre a imaginação, levando-a ao seu limite? Um choque que force o pensamento à presença de algo que não pode ser dito. Como podem as imagens abordar aquilo que nos escapa?”. O enquadramento é como uma página, que penso não ter margens. Comparo-o a um espaço imenso e aberto para a mente ocupá-lo. A fotografia possibilita ao narrador caminhar por esse campo colhendo fragmentos, colecionando estórias e, ao mesmo tempo, habitando-o. Ela não recusa o real nem o fantástico, deixa que os dois a habitem, deixa que interajam, permitindo que brinquem por seus espaços e construam algo novo dessa intersecção.
1 Gilles Deleuze (Paris, 18 de Janeiro de 1925 — Paris, 4 de Novembro de 1995), filósofo francês.
Que estória é essa? Contar uma boa estória exige tempo. Tempo para construir, tempo para falar ou escrever, tempo para leitura. Há bastante tempo envolvido. E tempo a fotografia tem. Para Nelson Brissac Peixoto (2004, p. 25), “A imagem explícita provoca o esgotamento da capacidade de descrever. Sob a ditadura da visão imediata, o olhar perdeu sua abrangência panorâmica”. Ao contrário do que ele diz, creio que a imagem é tempo e não
imediata. Pois por trás da imagem que se vê pronta, há todo um pro-
cesso de produção que exige tempo para buscar o assunto, para medir
a luz, para fotografar, para revelar e para se ver (ler) o resultado. Logo de seu surgimento, nos processos químicos, seu tempo sempre foi mais demorado, mais aproveitado, mas, na contemporaneidade, ele é cada vez mais reduzido, a fotografia se torna mais veloz, mais rápida e de custo baixo. Comparando processos fotográficos (químico e digital), o resultado até parece o mesmo, mas o tempo para cada um é diferente. A questão para o fotógrafo é saber produzir imagens com diferentes tempos de leitura, que trabalhem com a sensibilidade dele e a de quem as vê (lê). Isso é contar uma boa estória.
Toda essa conversa para falar de
poesia?
Fotografar é saber manipular a forma como os processos químicos ou digitais são capazes de ler, filtrar e interpretar as informações luminosas. Munido desse conhecimento é transformar a fotografia em ferramentas como a caligrafia ou a voz para transportar as narrativas
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para essa linguagem. Ela é um olhar diferente sobre o mundo, é uma interpretação química e luminosa, por isso serve como instrumento que amplia e revela detalhes, que conta as estórias das coisas, das pessoas ou dos espaços. A fotografia consegue chegar a lugares fora do olhar corriqueiro e apresentar minúcias que passam desapercebidas no dia-a-dia. A fotografia nos oferece a dimensão do tempo; ela
relata, retrata,
conta. Fala da vida de alguém, mostra uma família à porta da casa, uma menina que brinca no parque. Acompanha desde o nascimento e ainda
fica depois da morte. Permite que se fale de sentimentos, momentos,
sonhos, fantasia e até de mentiras muito bem disfarçadas. Fotografia
é a voz que deixa expressar ou recitar um poema-imagem.
parte 02
{Contar um pouco de mim
Meu mundo de papel, 2010 Maquetes AteliĂŞ II
Luíç Caixote, você pensa que é um narrador? Gosto de criar estórias, escrever contos. No caminhar diário sigo com os olhos atentos aos detalhes, como uma criança que observa o mun-
do e tenta redesenhá-lo segundo sua imaginação. Meus trabalhos surgem desse modo de agir, essa é uma característica que faz com que eu alimente a produção com elementos literários. Do mesmo jeitinho que relata Carlos Garaicoa (2009, p. 17) em entrevista para o catálogo do Centro Cultural Banco do Brasil: Desfruto muito das belas letras [...]. A literatura me alimenta de uma maneira muito mais rica que o discurso teórico. [...] Meu olhar tem um elemento literário. Por trás dos meus trabalhos, sempre tem uma forma muito narrativa, uma história, uma anedota, um conto, algo que está narrando.
Como uma espécie de exercício criativo caminho observando as nuances dos acontecimentos. Ao mesmo tempo em que faço o percurso físico, faço um caminho imaginativo no qual elaboro contos. Quando atravesso uma rua, dobro uma esquina ou espero por um ônibus espreito bastante. Vejo bem os detalhes do fluxo de pessoas, de carros, até o lixo espalhado pela rua. A partir dessa observação escolho um objeto imaginando e contando uma estória que justifique sua existência. Crio um enre-
do, personalidade, modos de falar, dou até um coração para que exista como uma pessoa de verdade. Então penso como esse personagem pode
Meu mundo de papel, 2010 Maquetes Ateliê II
ter chegado ali, como pode partir ou nas interações que estabelece com outras objetos próximos. Imagino-lhe uma vida inteira. Pensando bem sobre isso, acho que sou um narrador sim!
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Como você conta a estória das coisas? Com um olhar que dá vida e ação às coisas, principalmente as peque-
ninhas e desimportantes. Isso é poesia! Conto estórias de objetos, ina-
nimados para alguns, porém pulsantes1 e vivos (respiram, comem, correm, brincam, amam...), enfim, vejo-os como seres viventes. Insiro-me em um mundo fantástico no qual, como exemplifiquei em {Um
lu-
gar para cenas, um sofá pode muito bem se apaixonar por um banco de praça. As coisas que estão ao nosso derredor são dotadas de uma existência sutil, leve e quase imperceptível. A poesia realça essa sutileza, apresenta aos olhos os serezinhos. Se há vida, então eu busco as estórias. Posso até partir das estórias de sua fabricação, sua manufatura ou a estória sobre a pessoa que possuía o objeto, mas o que prefiro mesmo é sair inventando e narrar os contos mais fantasiosos. Uma pedra, igual a de Carlos Drummond de Andrade 1 N.A.: Como disse antes, olho para um objeto e logo atribuo características humanas e até dou um coração que pulsa.
que estava no caminho de alguém, torna-se uma pessoa e dona de sua própria estória: “Pedrinha há dias vivia em agonia, tristonha e chorosa por cometer ato que jamais sonhou praticar. Achou que consertaria tudo
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ao acabar com a própria vida, e para encerrar sua tortura pulou com intuito de afogamento melancólico no fundo. Contudo pedras só afundam, não afogam, e ela não sabia disso.2”
O que seria foto-narrar? Tomando a cidade como um grande cenário, apresento os trabalhos, desenvolvo o enredo e crio as tramas. A fotografia entra como a voz do
narrador que conta através da imagem, do enquadramento e da captura. Entro nesse imenso cenário urbano, levo fantasias implantando-as n’alguns lugares, paro, vejo se desenvolverem e depois sou retribuído com suas estórias. Mesmo que o processo seja montar (colocar os objetos e miniaturas) e encenar as estórias, eu
deixo que essas cenas
falem por si só. Deixo que assumam suas próprias vozes e eu apenas capto para recontar. Já que se acredita na fotografia como verossimilhança, utilizo o recurso para trazer o tom de realidade às estórias, sem excluir o fantástico. Meu mundo de papel, 2010 Maquetes Ateliê II
2 Trecho do conto Pedrinha e sua agonia subaquática, não publicado, de Luíç Caixote.
Mas seu trabalho não é a construção de miniaturas de mobiliário? Não é só a manufatura de maquetes. Construo personagens que também habitam o nosso mundo (vivem em nossa cidade), porém o fazem de maneira diferenciada do mobiliário real. Essas miniaturas são criaturinhas com vida própria, relação social, e que sobrevivem num mundo gigantesco e estranho.
E por que dar vida ao mobiliário? Por que não dar vida a outros objetos? Também dou vida a outros objetos, porém, para o trabalho, escolhi o mobiliário porque é composto por elementos que representam a intimidade (dentro de casa), e que em um certo momento resolvem ir para rua transitar no meio de todos. O trabalho apresenta as vozes (pensamentos, falas, diálogos) dessas criaturas; é como se invadisse o íntimo e trouxesse para o lado de fora, escancarando para quem quiser ver.
Será que pretende habitar os contos junto com a miniatura de mobiliário? Reduzir-se a escala deles? Não pretendo habitar. Quero ouvir
a conversar mais nada. Ser, um
pouco como fofoqueiro, ficar à distância (ficar na janela) com o ouvido Detalhe: Passos de um sonhador, 2011
atento para descobrir tudo que o mobiliário caminhante3 tem para contar. Ou mesmo, puxar uma cadeira de bar, não para sentar, mas puxar assunto para ouvi-la.
O que fazer com essa falação toda? Acho que serve para mostrar que mesmo o objeto mais sem graça contém poesia dentro de si, inspirando ou contando uma estória cati-
vante/interessante. Com isso eu gostaria de apresentar maneiras distintas de se ver as situações rotineiras. Gostaria de abrir, pelo menos, uma janela nessas possibilidades de vislumbrar o mundo e botar para fora tudo que se tem guardado.
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3 O “habitar” desses pequenos seres também é o seu “transitar” pelas ruas.
parte 02
{Molhar os pĂŠs na fonte
Com quem tem aprendido a narrar? Mergulho na literatura fantástica porque gosto de sua plasticidade; do modo como aceita de bom grado a existência de seres que, às vezes, não são bem vistos em nossa realidade. Num mundo fantástico é possível que um saci ande (pule) entre nós. Para falar daqueles que mais me
influenciam será muito justo começar pela literatura. Eu até poderia citar muitos autores estrangeiros e suas experimentações com os textos, mas prefiro pisar em território nacional. Raul Bopp Escritor do movimento modernista, dentre seus trabalhos o de maior destaque foi um poema chamado Cobra Norato. Nesse texto o personagem principal caminha por um mundo de lendas e mitos no qual os
animais e as árvores falam. Dentro do universo do poema é algo extremamente natural conversar com um tatu ou outro animal. Outro ponto interessante do trabalho de Raul Bopp é a forma como ele descreve as cenas e as passagens. “A noite chega mansinho. / Estrelas conversam em voz baixa. / O mato já se vestiu./ Brinco então de amarrar uma fita no pescoço / e estrangulo a cobra. // Agora, sim,/ me enfio nessa pele de seda elástica / e saio a correr mundo: / Vou visitar a rainha Luzia. / Quero me casar com sua filha.”1
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1 Trecho do poema Cobra Norato, publicado em 1931, de Raul Bopp.
Murilo Rubião Um dos maiores ícones da literatura fantástica no Brasil, Murilo Rubião incorpora em seus contos situações
irreais, inverossímeis ou in-
concebíveis. Traz metáforas da realidade e faz ironias com o cotidiano. “Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente: ― Você não dá é porque não tem, não é, moço? O seu jeito polido de dizer as coisas comove-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato, somente o coelhinho falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.”2
2 Trecho do conto Teleco, o coelhinho, publicado em 1974 no livro O pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião.
João Guimarães Rosa Além do absurdo, do irreal e do fantástico, Guimarães Rosa pede licença e traz o mítico do sertão brasileiro. Recheia seus contos de regio-
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nalismos, novos falares e da essência desse território do Brasil, isso resulta em experiências riquíssimas. “Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pios que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e em toda parte poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?! [...]”3
Que imagens tem visto? Ao mergulhar mais afundo nas imagens, surgem narrativas que conduzem não só os olhos como também a mente. Há muitos contos a
serem descobertos e lidos a partir dessa imersão. Jeanete Musatti Jeanete é uma artista que cria pequenos mundos através da colagem de miniaturas de objetos, pessoas, animais. Constrói cenas que ora provocam sensação de estranheza por causa da fusão das figuras e das formas e ora atraem pela delicadeza graças à leveza das cores, simplicidade das cenas e pela relação afetiva que os objetos evocam. Ela recria
realidades. 3 Trecho do conto Conversa de bois, publicado em 1946 na obra Sagarana, de João Guimarães Rosa.
Jeanete Musatti A casa, 2008
François-Marie Banier Artista francês que se destaca na área de fotografia, pintura, desenho e literatura. Um ponto interessante em seu trabalho é o fato de trazer a caligrafia ou o traço
do pincel para suas imagens. Apesar de trabalhar com fotografias em preto e branco, alguns de seus resultados são coloridos. Ele consegue isso com pinceladas ou com a escrita em cores sobre
as imagens. François-Marie Banier Fotografias escritas,
Helena Almeida Artista que narra com a foto-
grafia. Ela faz de partes de seu corpo ou de todo ele personagens e lhes compõe estórias. Em sua narrativa um pequeno gesto, Helena Almeida
um rastro, uma sombra, tudo ga-
Sente-me, 1977
nha valor e é evidenciado pela fotografia. Ao mesmo tempo a
seqüência de imagens evoca o movimento, a ação, o enredo.
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Cenas e encenar? Tem teatro na
estória?
O Teatro também tem o dom de nos enganar. Encenar fingindo reali-
dades, contar estórias. Minha vez de perguntar: por que não parar e assistir?! FITO - Festival Internacional de Teatro de Objetos
O Teatro de Objetos transpõe a capacidade de transformação de objetos em personagens aos palcos. São marionetes um pouco diferentes, pois não são bonecos que imitam a forma humana, mas objetos com carac-
Grupo: La Cie du Petit Monde Peça: Toc-Toc
terísticas similares às do ser humano. O interessante e enriquecedor no Teatro de Objetos é a forma como aplicam esse poder criador e transformador. É a mesma capacidade que o narrador tem ao falar de seus personagens, ao dar-lhes as características e personalidades.
Você conhece o próprio
espaço?
Para conhecê-lo melhor é preciso olhar à volta. A intervenção nos
convida a buscar conhecer nosso habitat. Pede que tentemos ir
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mais naquilo que estamos habituados a ver e busquemos o novo. Grupo Poro Propõe formas alternativas de se ver o espaço, sendo o espaço urbano o tema maior de seus trabalhos. O que cativa é a dedicação na busca
da poesia contida no cotidiano e que aparece não só pelo sutil ou
pelo efêmero, mas também na maneira de se olhar para o que nos cerca.
Grupo Poro Enxurrada de Letras, 2004
O que lhe dizem ao
pé do ouvido?
O que entra pelos ouvidos é música. O Teatro Mágico Grupo de músicos que misturam performances circenses em suas apresentações. As letras são carregadas de poética que buscam apresentar a realidade de um mundo que cabe em nossa imaginação e cabe em nosso dia-a-dia. O interessante em seus trabalhos é a dinâmica na qual diversas linguagens se alimentam: poesia, música, teatro. “O cara que catava papelão pediu / Um pingado quente, em maus lençóis, nem voz / Nem terno, nem tampouco ternura / À margem de toda rua, sem identificação, sei não / Um homem de pedra, de pó, de pé no chão / De pé na cova, sem vocação, sem convicção // À margem de toda candura / À margem de toda candura / À margem de toda candura // Um cara, um papo, um sopapo, um papelão // Cria a dor, cria e atura / Cria a dor, cria e atura / Cria a dor, cria e atura // O cara que catava papelão pediu / Um pingado quente, em maus lençóis, à sós / Nem farda, nem tampouco fartura / Sem papel, sem assinatura / Se reciclando vai, se vai // À margem de toda candura / À margem de toda candura / Homem de pedra, de pó, de pé no chão // Não habita, se habitua / Não habita, se habitua”4 4 Letra da música Cidadão de Papelão. Álbum: Segundo Ato, 2008. Artista: O Teatro Mágico.
Um pouco de
tudo
ou de tudo um
pouco?
Acompanho o trabalho de artistas que atuam também no mercado, mais especificamente no mercado de Histórias em Quardrinhos ou HQ’s. Dave McKean (artista plástico) & Neil Gaiman (escritor/ roteirista) Fazem trabalhos na área de HQ (histórias em quadrinhos), literatura e cinema. Os artistas casam, de forma singular e em um mesmo trabalho, técnicas e materiais diferentes. A fotografia salta da pintura, passa pelo desenho, interage com o texto e este responde de volta. As HQ’s se tornam objetos de arte, livros de artista. Eles são conhecidos por trabalhos como Sandman (HQ), MirrorMask (Cinema), Mr. Punch (HQ), The Day I Swapped My Dad For Two Goldfish (HQ).
Neil Gaiman (roteiro) e Dave McKean (ilustrações) Mr. Punch
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parte 02
{Povoar o mundo com criaçþes e criaturas
Fura-bolo, 2010
O que tem
feito
da vida?
Ando escrevendo contos, tirando fotos e outras vezes escrevendo fotos e tirando contos. Misturo elementos e diferentes linguagens na produção de meus trabalhos, por isso esses eles se entrelaçam, retroalimentam-se. Algumas vezes se torna difícil ou quase impossível separálos. Os contos se transformam em imagem ou são contados a partir de fotografias, essas imagens também se transformam em texto como voz ou escrita.
Você trabalha com a interação entre texto e imagem? Quer que as pessoas leiam? Sei que as pessoas não se prendem muito ao texto, mas quando escrevo tento montar uma perspectiva diferente. Tento criar uma possibilidade de olhar ou de enxergar coisas além do que está ali estampado pela imagem. O texto que incorporo é enriquecedor para a leitura.
E de
concreto?
Sabiás, 2010 (blogue)
E a mão na massa?
Uma coisinha aqui e outra ali. Seguindo por um caminho de experimentações: Blogue di Luíç Caixote
(http://diluiscaixote.blogspot.com/)
Uma plataforma virtual no formato de blogue no qual, uma vez por semana, publico trabalhos. No começo o texto e a imagem eram elementos separados, então chegou um momento que busquei interagí-los.
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Daí o texto pulou para a imagem, primeiro com tentativas de inclusão digital, depois ele foi se achegando manualmente com minha própria caligrafia ou através da datilografia em máquina de escrever.
Saci espera, 2010 (blogue) Ele sabe que uma boa hora chegará, por isso não esquenta a cabeça preocupado em fugir. Ele sabe que seu momento chegará. Ele não se importa de estar guardado por figuras religiosas, pois sabe muito bem que um dia conseguirá. Ele sabe que a hora certa há de chegar!
A dois, 2011
Injuada, 2011
Como fio de navalha, 2011
Triangulo Amoroso, 2011
S么 Dot么!, 2011
E essa estória com as maquetes, como se desenrolou? Com trabalhos para a faculdade. No Ateliê I de Artes Gráficas ensaiei as primeiras maquetes, mas nessa época ainda não pensava na narrativa com todo o vigor que busco hoje em dia.
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Começou assim: Conheça o Apartamento Modelo, 2009, Ateliê I de Artes Gráficas.
A proposta inicial do trabalho era apresentar um projeto de ocupação de galeria tendo como tema principal a cidade e no qual houvesse uma conversa entre os conceitos de interno e externo, privado e público, casa e cidade. Construí maquetes e tomei gosto por elas, resolvi adotá-las como “filhas”.
Apartamento modelo, 2009
Apartamento modelo, 2009
Grande Teatro da Vida, 2010
O Grande Teatro da Vida, 2010, Ateliê III de Artes Gráficas
São miniaturas que vão a um passeio pela cidade. Reconstituem situações. A idéia que me moveu foi a de denunciar vestígios da presen-
ça humana através de objetos como livro aberto, xícaras de chá, copos e garrafas, uma carta de amor, mas depois de olhar para o trabalho me pareceu mais justo com as maquetes dar-lhes vida. A partir de então o
próprio mobiliário se torna ator/atriz, encenando uma tragédia, uma comédia e um drama. Aí comecei a delinear personalidades e estórias para cada uma. Surgiram como marionetes e se tornaram
vivas.
criaturas
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Cada Coisa em Seu Lugar, 2011, Ateliê IV de Artes Gráficas
Esse trabalho começou como o
registro das pequenas inserções
de cenas (composição das maquetes representando situações), mais uma vez o mobiliário ganhou vida própria nas imagens e buscou falar por si
mesmo, como se tentasse chamar a atenção. Desviar o olhar. Brincar com a escala. Esse é um exemplo de devaneio, a mente pára para ver móveis, não como seres inanimados, mas para ver seu movimento, sua relação social, ouvir sua voz, saber do que se passa em sua vida. Do registro experimentei trabalhar as fotografias, interferências manuais como escrita, pintura ou desenhos sobre as imagens impressas ou em seu processo de impressão. As vozes do mobiliário entram na própria
imagem para narrarem seus contos, suas vidas, suas estórias. Cada coisa em seu lugar, 2011
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Alguma coisa a mais? Passos de um sonhador, 2011 “Passos de um sonhador” é a história de Fura-bolo narrada visualmente em 05 (cinco) capítulos, cada um deles é composto por uma média de 06 (seis) fotografias. Não há presença de texto, exceto, pelos títulos. As fotografias estão em seqüência e alinhadas na parte inferior de cada página, deixando claro que Fura-bolo, mesmo sendo um sonhador, vai com cautela na escolha de sua morada. As pranchas são montadas como tiras ou charges para contar a história de forma divertida.
Passos de um sonhador, 2011
E para a exposição, o que vai levar? Dois trabalhos em formato de livro. Um livro de fotografias que contam uma das passagens da vida de Fura-bolo, outro livro que trabalha com a
interação de imagens e textos para narrar as estórias de mobiliários que caminham pela cidade, e para a parede levo algumas ampliações em
cianótipo do passeio feito pelo mobiliário.
_39 Esboço para montagem da exposição de Formatura, 2011
Esboço para montagem da exposição de Formatura, 2011
O que experimentou? Experimentei processos alternativos como Cianótipo que apresenta um resultado que impressiona por sua cor e pela definição, mas é uma técnica “arisca”, difícil de ser controlada e complicada para reprodução em uma escala maior. A técnica possui uma linguagem própria que dá outra roupagem às fotografias, podendo revestí-las com o ar de antiguidade, de passagem de tempo (graças a seu desbotamento) ou um ar de inacabado. Além do registro das marcas da matriz, o Cianótipo leva a marca da construção do papel fotográfico, revela as pinceladas do processo que emulsiona o papel.
Foi fiel ao percurso? Não fui. Pensei em pesquisar algo como intervenção urbana. Mas as maquetes de mobiliário eram tão pequenas que não chamavam atenção na cidade. Sonhei com a pretensão de mudar o mundo. Com o tempo vi que não era isso. Voltei-me para a fotografia e com o tempo vi que não era só isso. Tentaram me mostrar arquitetura; também não era isso. O que me movia mesmo era a literatura. Ela já estava mais do que impregnada em mim, por mais que eu tentasse escapulir era difícil; de alguma forma eu acabava voltando. A partir disso, lutei para casar o texto com meu trabalho. Nunca me importei de tê-lo como legenda, nunca me importei que não fosse visualmente plástico. O que me importava era que fosse visualmente plástico em sua forma, que tivesse conteúdo. Meu trabalho bandeou para esse lado.
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O caminho foi penoso? E o que você diz sobre tudo isso? O início guardou certas expectativas, esperanças bem pontuais. A medida que o trabalho se amadurecida, como as próprias maquetes, ditava seu destino, desmanchando idéias que tinha no começo. Vi que eu não mandava na produção, era ela quem mandava em mim. O que fiz, então, foi buscar guiá-la num caminho que levasse a um resultado mais interessante. Foi suor, foi sangue, foi laborioso. Quebrei cabeça, dei todo meu fôlego e me descabelei, mas no fim a recompensa foi ver essas “minhas filhas” terem vida, ver minhas “criaturas” buscando seu lugar no mundo. Não criei monstros, tentei a todo instante puxar a fantasia do mundo para perto de mim e daqueles que tiveram e ainda possam ter contato contato com o trabalho.
{Sobra tempo para leitura? BARTHES, Roland. Lo obvio y lo obtuso. España: Paidós, 1986. CALVINO, Ítalo. Leveza. In: Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1950, p. 15-41. CAMPBELL, Brígida. As cidades. in: Refil: revista em formato laboratório. nº 2. UFMG - Belo Horizonte: sd. sp. Centro Cultural Banco do Brasil. Carlos Garaicoa. Centro Cultural Banco do Brasil - Brasília: catálogo. Brasília, 2009. CUNHA, Antônio Geraldo da; SOBRINHO, Cláudio Mello (assistente); [et. al.]. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua português. 2 ed. 9ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. HARVEY, David. A liberdade da cidade. in: Revista Urbania. nº 3. São Paulo: Editora Pressa, 2008. p. 11-17. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). Série Princícipios. 10 ed. São Paulo: Ática, 2002. LOLATA, Priscila. Algumas percepções de gráficos na cidade. in: Refil: revista em formato laboratório. nº 3. UFMG - Belo Horizonte, 2010. PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. 3. ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. PINTO, Milton José. Introdução: A mensagem narrativa. in: BARTHES, Roland (et. ali). Análise Estrutural da narrativa. 5. ed. São Paulo: Vozes, 2008.
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PRADAS, Mau Monleón. Christian Boltanski: um mundo de fanta-
sia. in: La experiencia de los limites: Híbridos entre escultura y fotografía en la década de los ochenta. Valencia: Instituició Alfons el Magnànim, 1999. p. 44-48. SANTOS, Paula Perin dos. Teleco, o Coelhinho. InfoEscola, 2008. Disponível em: <http://www.infoescola.com/livros/teleco-o-coelhinho/> Acessado em: 29 mar. 2011.
Alguns linques a mais Dave McKean { www.mckean-art.co.uk Fito { www.fitofestival.com.br/home François-Marie Banier { http://www.fmbanier.com Grupo Poro {http://poro.redezero.org/ Murilo Rubião { http://www.murilorubiao.com.br Neil Gaiman { http://www.neilgaiman.com
_belo horizonte
_julho de 2011