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Djalma Pinto

aCidade dos MENINOS

formação e consciência política para jovens



aCidade dos Meninos



Djalma Pinto Advogado e ex-Procurador do Estado do Cearรก

aCidade dos Meninos


Copyright © 2006 Djalma Pinto Direção Editorial Luís-Sérgio Santos Capa e Ilustrações Mario Sanders Revisão Sandra Nagano Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido por nenhum meio mecânico ou eletrônico, incluindo fotocópia, scanner, duplicação ou distribuição via internet, sem autorização escrita do editor.

FICHA CATALOGRÁFICA

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Pinto, Djalma. A cidade dos meninos / Djalma Pinto. – Fortaleza: OMNI Editora, 2006. 64p. ISBN 85-88661-99-3 — The International ISBN Agency

1. Literatura cearense. 2. Política - adolescente. Política – criança. I. Título.

3.

CDU: 869.0(813.1)

Omni Editora Associados Ltda. Rua Joaquim Sá, 746 n Fones: (85) 3247.6101 e (85) 3091.3966 CEP 60.130-050 n Aldeota, Fortaleza, Ceará, Brasil e-mail: df@fortalnet.com.br www.omnieditora.com.br IMPRESSO NO BRASIL


Luísa, Lara e Rafaela um novo dia surgirá com o sol brilhando mais forte. Para Carmen, Rosângela, Edvaldo e Valquíria na certeza de que o amanhã será ainda melhor. Uma homenagem a todos os professores que acreditam ser possível mudar um país através da boa formação dada a cada aluno.



mãe de Marcos o acordou cedo, como fazia todos os dias. Ainda sonolento, ele tomou banho, vestiu sua farda, bebeu um copo de leite e entrou no carro que o levaria para a escola. Chovia muito naquela manhã. Duas ruas antes de chegar ao colégio, o carro caiu numa vala e estourou o pneu dianteiro. A chuva forte impediu que Marcos e sua mãe deixassem o veículo e fossem andando até a escola. Pelo celular, o pai foi chamado e, após algum tempo, chegou num táxi. Marcos e a mãe correram para dentro do táxi enquanto o pai permaneceu no local para providenciar a substituição do pneu. Ao ver o carro danificado, em virtude da falta de manutenção da via pública, o pai não escondeu sua revolta: — Isso é um absurdo, o prefeito não aplica corretamente o dinheiro que o povo paga ao governo. Se aplicasse bem tudo o que é arrecadado, a cidade não viveria cheia de crateras, quebrando o carro da gente. O garoto ouviu em silêncio aquelas palavras. Enquanto seguia no táxi, observou algumas crianças, que não tinham carro e iam molhadas para a aula. Ficou incomodado com a falta de conservação das ruas de sua cidade e penalizado com os garotos que seguiam, tremendo de frio, no caminho para a escola. Após entrar na sala, ele explicou que chegara atrasado porque um buraco, no meio da rua, furou o pneu do carro dirigido por sua mãe. Afirmou que seu pai ficara no local para consertar o veículo e estava enfurecido com a situação de abandono da cidade. A professora Diana falava, nesse momento, sobre meios de transporte. Marcos, então, indagou: — Professora, por que existem tantos buracos no meio da rua?

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Meu pai acha que é porque os prefeitos não aplicam bem o dinheiro do povo. É verdade? A professora ouviu atentamente a indagação. Sensibilizada com a situação noticiada por Marcos, disse: — Seu pai tem razão. Muitos homens que se tornam autoridades não sabem trabalhar para melhorar a vida da população. Pensam apenas em si. É preciso formar o bom governante. Daqui a algum tempo, alguns de vocês poderão ser deputados, prefeitos, vereadores, governadores ou até presidente da República. Devem, por isso, se qualificar muito bem. — O pior é que o tempo passa. Sai homem velho e entra homem novo e se percebe que muitos deles estão preocupados apenas em se perpetuar no poder e em ficar rico — observou Marcelo. — Como será possível mudar isso? — indagou André, resumindo a opinião de seu avô, revoltado com alguns políticos que se mantinham à frente de funções importantes, mesmo após cometerem crimes. A professora permaneceu por algum tempo em silêncio. Manteve-se pensativa, enquanto caminhava de um lado para o outro da sala, na frente dos alunos. Em seguida, ergueu a cabeça e falou com a voz firme: — Precisamos enfrentar essa situação imediatamente. Devemos educar o homem, a partir da infância, para ser um bom político. Fazer com que sinta vergonha de praticar ações irregulares que prejudiquem a população. Vamos formar aqui, nesta sala de aula, um esboço da Cidade dos Meninos, onde os espertalhões não terão vez. Facilmente compreenderemos o grande papel dos prefeitos e das autoridades que comandam o povo. Os governantes jamais devem agir para prejudicar a população. — Como será o esboço dessa cidade? — perguntou Karla. — Vamos elaborar as normas básicas que farão parte de um livro que chamaremos de “Constituição”. Nesse livro serão colocadas as regras fundamentais, que todos devem saber, a fim de disciplinar a forma de ingresso no poder, as garantias dos cidadãos e os direitos que precisam ser respeitados pelo Estado e por cada um dos moradores.


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— Nós vamos elaborar lei? — indagou Priscila. — Sim. Vamos produzir a lei maior. A lei mais importante de todas. Como falei, será ela denominada de Constituição e não poderá ser violada por nenhuma outra lei nem por ato de nenhum cidadão. Esta sala de aula, a partir de agora, se transformará na “Assembléia Constituinte”. Vocês são os “legisladores-constituintes”, responsáveis pela elaboração da constituição. — Eu, como constituinte, poderei apresentar proposta para ser convertida em norma integrante da Constituição? — quis saber Rodrigo. — Claro que sim. Vou explicar melhor. — Quem quiser, pode apresentar suas idéias para que sejam incorporadas na lei. Cada proposta apresentada será votada por todos. Se a maioria aprovar, passará a integrar a Constituição de nossa cidade. Escreverei, então, no quadro, para que todos tenham conhecimento. Em seguida, pediu a Veruska que copiasse no caderno todas as normas votadas e aprovadas, após serem escritas no quadro. Avisou que, após a aprovação de todas as normas que fariam parte da Constituição, colocaria tudo no computador e imprimiria um exemplar para cada um. — Nessa Cidade dos Meninos só vai morar homem? — indagou Talita, que estava sentada na última fila. — Não. A cidade será dos meninos e das meninas. Será de todos. Não haverá discriminação. Os homens e as mulheres serão tratados igualmente. — Será também dos meninos de rua? — perguntou Carlito. — Sim. Os meninos de rua existem porque há governantes que roubam o dinheiro da população e não dão escola para as pessoas mais humildes — bradou Priscila com muita convicção. — É certo, professora, que os meninos de rua são filhos dos que governam mal? — quis saber Vera, tentando descobrir a causa desse grave problema. A professora parou no centro da sala. Pensou um pouco e disse:

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— Os meninos de rua são crianças como vocês. Têm desejos de ter casas e brinquedos, apenas não receberam atenção dos pais nem do Estado. Se os governantes tivessem compromisso com a educação, quisessem torná-los cidadãos, não deixariam que eles ficassem perambulando nas esquinas sem estudar — afirmou a professora. — Então, professora, pode existir uma cidade sem menino de rua? — indagou Hélen. — Pelo menos com bem pouquinho menino nas esquinas, é possível — completou Ricardo. — Claro. Basta aplicar o dinheiro do povo com competência, de forma correta, sem desviar, sem roubá-lo, buscando resolver com eficiência e seriedade esse problema. O drama dos meninos de rua começa com a falta de atenção à maternidade, que deve ser mais responsável para evitar o sofrimento de crianças que nascem sem ter o que comer nem onde morar — disse a professora. Veruska levantou a mão, pediu autorização para falar. Após lhe ser concedida a palavra, ela disse: — É preciso aprovar uma lei inteligente para proteger e impedir a existência do menino de rua. É muito triste você nascer para viver na rua, acordar e dormir sem saber se vai comer. Proponho esta norma para a Cidade dos Meninos: “Todas as crianças terão direito a uma casa e à escola de qualidade”. — Para não haver menino de rua, a mãe só pode ter filho se puder comprar comida pra ele. Se ela não queria que sua própria mãe a deixasse na rua, como pode ter filho sem ter condição de criar? — indagou Débora. — O menino de rua é conseqüência da falta de solidariedade dos governantes. Se eles fossem mais humanos enfrentariam o problema com seriedade. Aplicariam o dinheiro na educação, sem desviar qualquer valor. Estimulariam as pessoas, que têm vocação para atuar na área social, a desenvolver todo o seu potencial, trabalhando para educar as crianças carentes. Só aqueles que têm amor ao próximo devem ser chamados para trabalhar com os excluídos socialmente. Não adianta empregar parente, ou contratar quem quer que seja para


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lidar com crianças. Se a pessoa não tem jeito para essa função, nem tem noção alguma de solidariedade, acaba prejudicando tudo — insistiu Veruska. — É preciso fazer alguma coisa pelas crianças de rua. Sem estudar, elas não terão futuro nenhum. Hoje, olham tristes para os homens e pedem comida. Precisam que alguém aponte um bom caminho para seguirem. Se nada for feito por elas, amanhã poderão agir com violência, assaltando e ameaçando todo mundo. Isso qualquer pessoa que quiser pensar poderá compreender — advertiu Débora. — O mínimo que se espera é que seja dada orientação e condições para as mulheres carentes não terem tantos filhos para colocar na rua — explicou Priscila. A professora submeteu à votação a proposta sobre os meninos de rua. Todos levantaram a mão, aprovando-a. Enquanto escrevia no quadro a proposta que acabara de ser aprovada, ela disse em voz alta: — É proibido existir menino de rua na Cidade dos Meninos, porque lá cada pessoa terá compromisso com o melhor para todos. Ninguém, que estiver no comando do governo, vai agir pensando somente no seu interesse e prejudicando todas as demais pessoas. O Poder Público dará condições para que as mulheres mais carentes só tenham os filhos que realmente desejarem. Todos serão tratados com igualdade e receberão a mesma oportunidade para passar pela vida com dignidade. — Se a mãe não deseja mais ter filhos e o Estado, por incompetência dos governantes, não lhe assegura o direito de fazer a cirurgia indicada para o caso, é claro que há muita omissão nisso. A mulher rica pode criar mais filhos, porém, paga a sua operação e só costuma ter dois. A mulher humilde, que só pode criar um, não tem como se operar e acaba tendo cinco. Ela até chora ao saber que está grávida de novo — protestou Melissa. — É aí que começa a desarmonia. A mãe entra em desespero por ter muitos filhos e não possuir dinheiro para comprar comida. As crianças, então, saem de casa e vão para as esquinas. Os homens responsáveis pela saúde pública ficam apenas passeando e falando

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como se vivessem num outro mundo. Não dedicam qualquer atenção para esse grave problema — completou Carolina. Após ouvir as observações dos alunos, a professora lembrou-se das imagens exibidas de várias meninas, que se tornaram mães antes da adolescência. Lembrou-se de mulheres com mais de três filhos, chorando, em programas apresentados na televisão, ao receberem a notícia de que seriam mães, pela quarta vez, sem nenhuma condição de sustentar mais uma criança. Em seguida, disse ela: — A escola não pode ficar indiferente ao tema da sexualidade. Muitas garotas da idade de vocês, de 12, 13 e 14 anos deixam de estudar para se tornarem mães. É preciso ter mais calma com o sexo. Muitos pagam caro pelo descontrole. Na vida, há muito tempo para desfrutá-lo com segurança e sem remorso. — O menino que é pai de uma criança, mesmo que só tenha 15 anos, deve ser obrigado a pagar pensão, não é mesmo professora? — gritou Mariana. — É claro. Quem coloca filho no mundo deve antes pensar bastante. Deve lembrar-se que terá de garantir uma vida digna à criança. Por isso, cuidado. Cada filho deve ser fruto do amor entre um homem e uma mulher. O amor estimula a dedicação dos pais para educar e cuidar bem dos filhos — ensinou a professora. — E as mulheres que querem ter filho, pensando apenas na pensão que o marido vai pagar? — indagou Thiago com a voz rouca. A professora se espantou. Ergueu a cabeça e disse: — Elas não agem de forma correta. Como já afirmei, um filho deve ser apenas o resultado do amor dos dois, jamais instrumento de sobrevivência da mãe. Cabe ao homem ter cuidado para não cair em armadilha. Pensa ele, às vezes, que é o “rei do pedaço”, sem saber o que lhe aguarda. Os alunos riram da ingenuidade daqueles que se julgam idolatrados pelas mulheres e depois reclamam da pensão alimentícia cobrada por elas. Concluiu, em seguida, a professora, com a voz pausada: — O filho não tem culpa de nada. Não pediu para nascer. Depois de nascer, só há uma coisa a ser feita: dar-lhe amor para que desfrute


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muito bem a vida. Mariana pediu para falar e, após obter autorização, afirmou: — Proponho que seja votada esta norma: “ O pai dará pensão ao filho, conforme a sua situação econômica, sem precisar de ordem do juiz”. Imediatamente, Thiago falou: — Quero propor a seguinte norma para votação: “A mãe também deve pagar pensão ao filho”. — Vamos colocar em votação primeiro a proposta da Mariana. Quem estiver de acordo, levante a mão — disse a professora. Todos ergueram o braço. — Agora, quem estiver de acordo com a proposta de Thiago levante a mão — ela recomendou. Apenas Mariana ficou contra. — Vou resumir, numa só norma, as duas que acabaram de ser aprovadas — avisou a professora. Escreveu, então, no quadro: “Pai e mãe pagarão pensão ao filho, conforme a sua situação econômica, sem necessidade de ordem judicial”. — Alguém discorda do texto? — Não. Gritaram os alunos. — Professora, sem igualdade não pode haver harmonia entre as pessoas. Os que gozam de privilégios prejudicam o esforço dos outros que se qualificam estudando muito, mas não conseguem emprego — advertiu Karla. — Quero apresentar esta proposta para fazer parte da lei maior da cidade, que será chamada de Constituição: “Todos são iguais, não podendo haver privilégio para contratação em cargo público” — disse Lucas. — Mas não adianta apenas escrever na Constituição que todos são iguais. É preciso que cada um tenha o compromisso de não agir, provocando desigualdade. Por exemplo, quem nomeia parente para cargo público, deixando de fora uma pessoa muito competente, é nocivo ao sentido da igualdade. Não tem sequer noção do que seja isso, ainda que estude Direito todos os dias — advertiu Cíntia.

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— Essa história de chegar ao poder para encher as repartições de parentes e de simpatizantes políticos é imaturidade para o seu exercício. O poder é para servir ao povo, não é para servir aos políticos que ganham a eleição. Eles não podem encher os cargos com pessoas incompetentes, sem noção alguma dos assuntos tratados nas repartições que passam a comandar — acrescentou Priscila. — Morreremos todos um dia. Não se justifica que uns tenham todas as oportunidades porque nasceram de pais com melhores condições e outros amarguem muitas dificuldades, apenas porque são filhos de pessoas pobres. Toda criança deve receber as condições para crescer na vida e deixar sua contribuição para melhorar o mundo — observou Pedro, que se mantivera pensativo por algum tempo. — Vamos votar a proposta do Lucas. Quem estiver de acordo levante a mão — sugeriu a professora. Todos aprovaram mais uma norma da constituição, que foi imediatamente escrita no quadro, destinada a assegurar a igualdade na Cidade dos Meninos. — Peço que seja votada esta proposta: “O prefeito deve visitar, pelo menos, duas escolas por mês na cidade que administra” — disse Jorge. — Essa norma é importante. Afinal, só assim o prefeito fica sabendo como funcionam as escolas de sua cidade — acrescentou Adriana. — O mais importante é que vai perceber o semblante triste dos alunos, toda vez que ele roubar o dinheiro da merenda escolar. Não é possível que não fique penalizado com as crianças pálidas de tanta fome — observou Jorge. — Quem estiver de acordo com a proposta do Jorge levante a mão — falou a professora. Todos levantaram o braço. Ela, então, escreveu no quadro a norma que acabara de ser aprovada. Marcelo aguardou que a professora escrevesse no quadro o texto da nova regra aprovada, pediu a palavra e disse: — Gostaria que fosse apreciada e votada a seguinte norma: “É


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proibido o ingresso de pessoa incompetente no serviço público”. — Eu concordo. Não é justo o cidadão pagar salário para o servidor público que não entende nada de sua função. O pior é que essas pessoas ainda tratam mal aqueles que vão à repartição, para encobrir a sua incompetência — observou Adriana. Karina pediu licença para contar um fato lamentável, que teria presenciado e comprovaria a necessidade de competência dos servidores públicos, sobretudo, dos dirigentes escolhidos através de eleição. Disse ela: — No último dia do ano, um homem se afogou numa praia com muitos banhistas. Todo mundo gritava, pedindo socorro, mas não existia nenhum salva-vidas. Um surfista entrou no mar e com muito esforço conseguiu colocar o homem na sua prancha. Trouxe-o para a areia. O homem estava desacordado e foi levado para o hospital. A esposa e os seus filhos gritavam desesperados. As pessoas ficaram revoltadas com a omissão do poder público e recriminaram a incompetência do prefeito por ter deixado sem qualquer proteção um local freqüentado por muita gente. — O serviço público, pago através do dinheiro dos contribuintes, não é lugar para gente incompetente. Abaixo o nepotismo e a fraude nos concursos. Quem pratica irregularidade em concurso público deve ser preso. Sequer é capaz de avaliar o mal que faz à sociedade — advertiu Lívia. — Vamos votar a proposta do Marcelo contra o ingresso de gente incompetente no serviço público. Quem estiver de acordo, levante a mão — disse a professora. Todos os alunos se manifestaram pela aprovação. Ela, então, escreveu no quadro mais uma norma que integraria a Constituição daquela cidade. — Professora, eu tenho uma curiosidade, por que muitos homens grandes, quando chegam ao poder, roubam o dinheiro do povo? — indagou Fábio, sem esconder sua indignação. A professora tomou um susto. Não conseguia esconder a surpresa com o interesse demonstrado pela classe inteira em discutir os erros

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dos adultos. Passados alguns segundos, ela parou no centro da sala e disse: — Roubam porque não aprenderam a pensar em fazer o melhor pela sua cidade. Não aprenderam que o poder é um meio de servir ao povo. Não é uma fonte para aumentar a riqueza particular do governante. Quem usa o poder para ficar rico é apenas ladrão do povo. É preciso que cada pessoa compreenda isso desde criança. Ladrão da pior qualidade. Peço que gravem esta observação para o resto da vida: morrerei de vergonha se um dia souber que alguém, que foi meu aluno, tornou-se ladrão do dinheiro da população quando chegou ao poder. — E por que quem rouba dinheiro do povo não vai preso na cadeia? Não fica no mesmo lugar onde ficam aqueles que roubam o relógio das pessoas na rua? — questionou Cíntia, impressionada com a desigualdade de tratamento entre os criminosos. — Por que só vai presa uma pessoa que é pobre? — completou Cibele, revoltada. A sala inteira ficou em silêncio. A professora olhou no semblante da cada aluno e disse: — Muito boa pergunta. Não vai preso quem rouba dinheiro do povo porque muitos homens adultos são tolerantes, não querem punir quem comete esse crime. Fazem com isso um mal muito grande. Vocês vão estabelecer um pacto para mudar tudo isso e fazer os mais velhos sentirem vergonha por não reagirem, com rigor, contra os que desviam dinheiro da população. — Mas, até a gente crescer, eles roubaram tudo e a cidade estará mais cheia de buraco, lama, sem escola para os pobres e para os meninos de rua. Por isso, eles já terão se transformado em ladrões perigosos — observou Talita. Ninguém disse uma única palavra durante alguns segundos. A preocupação de Talita era a mesma de todos que ali se encontravam. Nenhum aluno conseguia esconder seu espanto com a falta de reação dos homens grandes contra aqueles que roubam, sem nenhum constrangimento, o dinheiro do povo.


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Jorge, que estava sentado na primeira fila, levantou o braço, pedindo para falar. Estava tão emocionado que ficou de pé. Assim que lhe foi dada a palavra, indagou em tom dramático: — Os mais velhos não compreendem isso? Não sabem que são eles que têm de impedir que os governantes ladrões se aproveitem do dinheiro do povo? Foi aplaudido pelos colegas e sentou-se. Ana Cláudia, em seguida, disse: — Tenho certeza, professora, que quando chegar a nossa hora de governar, nós seremos diferentes. Não vamos empregar parentes, nem ficar com o dinheiro que a população entrega ao Poder Público através dos tributos que é obrigada a pagar. Quando meu pai compra uma roupa ou um telefone, parte do dinheiro que ele paga corresponde a imposto que deve ser entregue ao Estado. — Vamos pensar sempre no melhor para todos. Ninguém aqui vai querer chegar ao poder, quando tiver oportunidade, apenas para ficar rico, pegar no dinheiro do Estado e passar tudo para o seu nome ou para o nome do amigo. Isso é coisa de gente deformada, que não recebeu noção alguma do que seja o exercício do poder político — completou Ana Cláudia. A professora, após sentir-se emocionada com as ponderações dos alunos, falou secamente: — Já observei a vida de pessoas muito ricas, pobres, de ocupantes do poder e até de falidos. Percebi que não é o poder, o dinheiro nem o aplauso que torna o homem diferente e respeitado. É a grandeza do espírito, a sua noção de justiça e os bons valores cultivados. — Mas entre um pescador e um grande empresário, todos entendem que o grande empresário é sempre superior e mais respeitado — contestou Marcos. — Nem sempre. O pescador pode ser maior do que o grande empresário — afirmou ela. — Como assim? — indagaram dois alunos. — Vou explicar com este exemplo. Um pescador encontrou o barco de outro pescador repleto de peixe, parado no mar. O homem

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encontrava-se morto, vítima de um enfarte. Imediatamente, ele passou o corpo e todos os peixes para o seu barco, conduzindo-os até a praia. Ao chegar em terra, o cadáver foi retirado do barco para exame e, posteriormente, entregue à família para sepultamento. Muita gente ofereceu-lhe dinheiro, querendo comprar o peixe que encontrou no barco do morto. Entretanto, optou por entregar tudo à família deste, que ficou surpresa com o seu gesto. — Só que o grande empresário tem mais aplauso, é prestigiado por todo mundo — argumentou Ana Cláudia. — Nem sempre. O empresário rico, que adultera gasolina, frauda concorrência, que engana o consumidor que compra seus produtos, é muito menor do que o pescador que entregou os peixes à família do verdadeiro dono. — Então, a grandeza de um homem não está na quantidade do seu dinheiro nem no tamanho do seu poder? — questionou Cibele. — Claro que não. O valor de um homem não se mede pela quantidade do seu dinheiro, pelo tamanho do poder que detém ou pela sua capacidade de puxar o saco de pessoas influentes. O grande homem vale pelo que realmente é, não pelo que tem. Engrandece o mundo com a sua existência e faz a diferença para abrandar as coisas amargas da vida — disse a professora. — Quem seria um grande homem? — indagou Jorge. — Nelson Mandela. Foi preso vários anos e após tornar-se presidente da África do Sul não perseguiu seus adversários. Quando todos queriam que ele voltasse ao poder, disse que já tinha dado a sua colaboração. Pediu que esquecessem o número do seu celular. É um grande homem porque está acima dos interesses mesquinhos daqueles que fazem qualquer negócio para não largar o poder. É preciso formar líderes com esse perfil. Pessoas que dêem bons exemplos no exercício do mandato. Todos ficaram emocionados. A sala se manteve em silêncio por algum tempo. André, porém, não se conteve e falou em tom grave: — Professora, me desculpe, mas os homens que ficam com o dinheiro da população deveriam ter vergonha de dar esse exemplo


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para os seus filhos. Se o meu pai fizesse isso, eu diria para ele: “pai, seja honesto, pois a coisa mais triste é um filho ter vergonha de seu próprio pai. E eu tenho vergonha do senhor. Seja pobre sem roubar dinheiro do povo que ainda assim terei orgulho de você”. A professora surpreendeu-se com a voz emocionada de André ao invocar a figura do pai. Aproveitou-se do silêncio demorado de todos e disse: — Tenho uma idéia. A Cidade dos Meninos deve passar a ter vida, não apenas quando vocês estiverem adultos daqui a vários anos. Vai ter vida a partir deste momento. Vocês, como pequenos cidadãos, vão começar a mudar a cabeça dos adultos a partir de agora. Vão dizer a todos os seus amigos para que advirtam seus pais e todas as pessoas mais velhas sobre o fato de que os filhos sentem vergonha do pai que, no exercício do poder, rouba dinheiro do povo. Espalhem para todo mundo que quem vai ocupar o poder não deve ir pensando em se beneficiar, mas em fazer o melhor para a coletividade. Sejam enfáticos na advertência de que quem desvia dinheiro do Estado deve ser preso, seja qual for a pessoa e independentemente do tempo de sua atuação na política. — Professora, mas como a gente vai saber se a pessoa roubou dinheiro do povo? — indagou Paula. A professora ouviu a pergunta com atenção. Reconheceu que era uma pergunta inteligente e respondeu com muita segurança: — Existem pessoas que fiscalizam todo o caminho percorrido pelo dinheiro que é passado ao governante para ele aplicar em benefício dos cidadãos. Por exemplo, um homem gasta muito dinheiro na construção de uma estrada. A fiscalização vai ao lugar onde ele disse que fez a estrada asfaltada e só encontra mato. Ele pegou o dinheiro que era para fazer a estrada e colocou no seu bolso. É um ladrão da pior qualidade. Prejudicou toda a população. Um homem que entra pobre no poder e fica rico está fazendo coisa errada. Quem exerce o poder deve dar bons exemplos. É como se fosse um professor, um educador das pessoas que confiaram nele. O mau exemplo do homem público estimula a ação criminosa de inúmeras pessoas, por todos os

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lugares. — E quem nomeia os homens que vão julgar as contas dos governantes? — perguntou Marcelo. — São os próprios governantes. O pior é que os nomeados são políticos que apóiam integralmente o governo chefiado por quem o nomeou — explicou a professora. Rodrigo levantou a mão e advertiu: — É claro que essa fiscalização de colega por colega do mesmo partido não vai dar certo. Apresento esta proposta para resolver esse problema: “Quem estiver no exercício do mandato político não pode ser nomeado nem para órgão de fiscalização de contas nem para o Poder Judiciário”. — Quem estiver de acordo com a proposta do Rodrigo levante a mão? — indagou a professora. Todos levantaram o braço, aprovando a norma. Enquanto ela escrevia no quadro o texto da norma que acabara de ser aprovada, André disse: — É uma aberração a pessoa, no exercício do mandato que recebeu do povo, sair para fazer parte de órgão de fiscalização de contas ou para ser membro de tribunal integrante do Poder Judiciário. Alguns ainda continuam com atuação política. É troca de mandato por cargo. Uns até ameaçam desaprovar as contas de quem não votar no parente, que deixou no seu lugar, após renunciar o mandato. Isso, as crianças e os jovens não podem aceitar. Ninguém pode usar função pública para extrair proveito pessoal. — Professora, para diminuir a interferência dos grupos políticos nos julgamentos das questões e neutralizar a submissão do julgador em relação a quem o nomeou para o cargo, meu pai já me deu uma idéia — disse Lucas. — Qual foi essa idéia? — indagou Cibele. — O governante deveria indicar três nomes com boa reputação, pessoas de elevado conceito no meio em que vivem e com muito saber jurídico para ocupar o cargo. Após essa indicação, qualquer cidadão poderia, num prazo determinado, representar contra o nome


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do indicado, denunciando, por exemplo, o cometimento de ação que o desqualificasse para o exercício da função de julgar. Os membros do Poder Legislativo, na condição de representantes do povo, após assegurar o direito de defesa ao acusado, diriam se ele teria ou não condição de permanecer na lista dos indicados para a nomeação. Depois de aprovados os três nomes pelo Legislativo, realizaria-se um sorteio entre os indicados. A pessoa que fosse sorteada seria, então, nomeada. Isso reduziria muito o compromisso do escolhido com o grupo político que sugeriu ou lutou pela sua nomeação. O sorteio é uma fonte segura de independência do nomeado através desse critério. — Boa sugestão. Qualquer cidadão que souber de irregularidade cometida por aquele que pretende integrar um tribunal deve ser chamado para noticiar o fato à sociedade antes da nomeação. Se a pessoa já cometeu algum ilícito, antes de ser nomeada, só vai prejudicar a imagem do órgão que integrará. Ninguém terá certeza de que julgará apenas com base na sua consciência. O melhor é fazer uma triagem segura e só deixar entrar nos órgãos que julgam os homens, pessoa de conceito inquestionável. Quem tem rabo de palha não pode julgar ninguém — observou Ana Cláudia. — Vamos avançar no nosso objetivo. — Se os filhos, professora, dissessem para os pais desonestos que sentem vergonha deles porque gastaram o dinheiro da construção de escola e não construíram escola alguma, acho que não fariam mais isso — afirmou Andréa, buscando encontrar um meio para desestimular o desvio de verba pública. — Os pais, mesmo aqueles mais velhos e convencidos de que mandam em tudo, sentirão muita vergonha dos seus filhos se fossem para a prisão, depois de serem descobertos roubando dinheiro do Estado. Sem prisão, eles ficam gananciosos e com muita coragem para ficar com o dinheiro destinado à escola, prejudicando, enfim, todo mundo — advertiu Adriana. — E será preciso a gente crescer para colocar esses ladrões na cadeia? Onde estão os juízes, os que fiscalizam as contas dos

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políticos? Até todo mundo desta sala crescer, será preciso fazer um presídio gigante para hospedar tanta gente — ponderou Solin, com o semblante preocupado. A professora, que estava ouvindo tudo com muita atenção, falou com a voz bem pausada: — Vamos tentar convencer os adultos de que quem desvia ou rouba dinheiro do Estado não pode exercer mandato político ou função pública. Os jovens e as crianças da geração de vocês já compreenderam isso muito bem. Pessoas desonestas, enroladas, sem credibilidade devem permanecer longe de qualquer órgão do Estado. Agora, vamos imaginar a Cidade dos Meninos como um modelo de cidade comandada por vocês. Vamos fazer uma eleição, em que cada candidato vai apresentar suas propostas sinceras, sem mentira e sem promessas mirabolantes. — Eu quero ser candidato para governar a cidade. Quero a colaboração apenas de quem não quer roubar o dinheiro que as pessoas pagam ao Estado através de Imposto de Renda, Imposto Predial, Taxa de Lixo, Taxa de Iluminação Pública etc. — disse André. — Quem pensa em roubar dinheiro da população não poderá nem ser candidato — completou Juliana. — Espere, professora, como é que os homens adultos aceitam que uma pessoa, que já desviou dinheiro da Administração Pública, estando esse fato provado até com documentos e fotografias, ainda se candidate e volte a pegar no dinheiro do Estado? — questionou Carlito. — Ou é um caso de amor ao ladrão, ou de cegueira. Parece que os adultos são cegos para não enxergar os males que os ladrões do dinheiro do povo causam à população. Como é que eles entregam o poder, sem nenhuma reação, a quem já roubou o dinheiro deles? É por medo? Doença? Que problema é esse, professora? — indagou Pedro, impaciente. A professora olhou seu relógio. Constatou a expectativa da turma em ouvir sua resposta, disse com muita convicção:


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— É tolerância. Por isso, é preciso compreender o papel do político, a necessidade de tirar qualquer pessoa do poder, sempre que esteja provado que ela ficou com o dinheiro do povo. É um desafio que cabe a todos os cidadãos enfrentar para que uma solução seja encontrada. Foi muito proveitoso o dia de hoje. Pensem bastante sobre o que debatemos e como fazer para tornar a vida de todos melhor — recomendou, encerrando a aula. Os alunos ficaram empolgados com a idéia. Quem seria o prefeito da cidade? João Bicudo, Cibele, André? Talita? Quais leis elaborariam para acabar com a corrupção? Como tornar sua cidade diferente daquelas comandadas pelos homens grandes em que os ladrões ameaçam a todos em qualquer lugar? Essas questões mexeram com a cabeça dos garotos que se dividiam em grupos, discutindo o sentido e a importância da eleição. Antes de deixar a sala de aula, Cíntia falou em voz alta, no meio das amigas: — O João Bicudo, sob hipótese alguma, pode ser candidato a prefeito. — Por que ele não pode, todos são iguais perante a lei? — argumentou Veruska. — Não pode porque um dia, você se lembra, ele roubou a caneta da Cibele. Para ser candidato a pessoa tem que ter a vida muito limpa. Se já tiver feito coisa errada, vai prejudicar a população assim que chegar no poder — reagiu Cíntia. — Mas todo mundo é inocente até ser condenado pela Justiça, a professora já explicou, você não se lembra? — insistiu Veruska. Cíntia balançou a cabeça, desaprovando a afirmação. Chamou duas colegas que estavam bem próximo e indagou-lhes na frente de Veruska: — Quem roubou a caneta da Cibele, aquela de cor vermelha e azul que a tia dela trouxe dos Estados Unidos? — Foi o João Bicudo. Eu vi a caneta na casa dele e pergunteilhe: “por que fez uma coisa tão feia dessa?”. Ele falou até que tinha se arrependido e iria devolvê-la. Todo mundo aqui sabe dessa história. Ele fica vermelhinho quando alguém fala nesse assunto — disse Ana

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Cláudia, gesticulando muito. — Veruska, o João Bicudo não pode ser candidato porque a sala inteira sabe que ele fez coisa errada. Candidato não deve ser pessoa que já praticou um monte de coisa irregular. Precisa dar bom exemplo. É quem vai dirigir a cidade, após ganhar a eleição. Se ele já mostrou que foi desonesto, tomou a merenda dos colegas, precisa ir é para um reformatório, jamais pode disputar lugar de prefeito onde as pessoas usam o bom senso — concluiu Cíntia, com o semblante de revolta. Patrícia, que fora chamada por ela para confirmar o fato, ainda foi mais veemente: — Eu também vi o João Bicudo com a caneta da Cibele. Ele não pode ser candidato. Se já pegou a caneta da colega, vai ficar com o dinheiro da turma quando for eleito. Se todo mundo já sabe que ele aprontou isso, como ainda podemos deixar que seja candidato? Só pode ser candidato quem tem vida limpa. Quem já fez o que ele fez, não pode disputar o mandato de prefeito em nossa cidade. — Então, na próxima aula, vamos colocar na nossa lei uma regra básica para todos, não apenas para o João Bicudo, mais ou menos assim: “Quem já praticou ação desonesta não pode ser candidato para disputar mandato político”. — Claro. Agora, mesmo que essa proibição não estivesse escrita em nenhuma lei, você permitir que seja candidato uma pessoa


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exta-feira, depois do lanche, a professora informou que continuariam na elaboração da lei fundamental da Cidade dos Meninos. Avisou que quem desejasse poderia sugerir normas para serem votadas e, se aprovadas, passariam a integrar a Constituição. — Quero apresentar uma proposta para fazer parte de nossa lei maior, posso, professora? — indagou Veruska. — Claro. Diga qual a norma que gostaria que constasse na Constituição da nossa cidade? — Quem já praticou ação desonesta não pode ser candidato para disputar mandato político — disse. A professora, após ouvir a sugestão de Veruska, virou-se para a

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que já praticou ação desonesta e, depois de eleita, ainda entregar todo o dinheiro da população para ela tomar conta, paciência! É coisa de quem não tem a cabeça no lugar. É querer trazer o ladrão para dentro da própria casa. É problema para psicólogo — disse Patrícia, com a fisionomia séria, tentando encerrar o assunto. — Tudo bem. Vou sugerir que seja colocada na lei da nossa cidade aquela exigência para todos os candidatos. João Bicudo ficará de fora, mas todos que praticaram ações erradas também ficarão — disse Veruska. — Para fazermos uma boa lei, temos de pensar no melhor para a classe inteira. Se cada um for pensar apenas no seu interesse, na situação dos seus amiguinhos, a lei não pode prestar. Na hora de fazer a lei, temos que pensar na melhor regra para nossa cidade. Não podemos esquecer que essa lei vai servir de modelo para outros meninos e outras meninas daqui a vários anos, que vão se inspirar nos nossos exemplos e farão sempre normas melhores para os que virão depois deles — finalizou Cíntia. Todos partiram, enfim, entusiasmados para suas casas.

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turma e falou: — Quem não concorda com essa proposta de lei, levante a mão. Do fundo da sala, João Bicudo gritou: — Quero lembrar que a lei que estamos elaborando é para disciplinar a ação das pessoas numa cidade, não para pessoas residentes num convento. Não concordo com a proposta apresentada. — Pessoa desonesta não pode comandar coisa alguma, nem o pai tem coragem de entregar-lhe a direção de sua empresa. Se ninguém tem coragem de passar o comando dos seus negócios para uma pessoa que cometeu crime, como entregar a direção de uma cidade? — contestou Talita. — O pior é que não existe ladrão só de um roubo no Estado. Depois do primeiro, sem acontecer nada, o homem vira cara-de-pau. Coloca um paletó e fala com muito cinismo — explicou Rodrigo. — Vamos colocar em votação a proposta da Veruska. Quem estiver de acordo levante a mão — disse a professora. Somente João Bicudo não levantou a sua. Todos os demais, com o braço erguido, gritaram: “de acordo”. A professora foi ao quadro, escreveu o texto e disse: — Atenção, uma norma muito importante que constará na lei maior da Cidade dos Meninos: “Quem já praticou ação desonesta não pode ser candidato para disputar mandato político”. Alguém deseja fazer outra proposta? Carlito levantou a mão e falou: — Sugiro que seja incluída na Constituição da nossa cidade uma norma que proíba, durante a campanha eleitoral, o candidato fazer promessa que sabe que não realizará. Prometer aquilo que não fará é estelionato com o propósito de iludir o eleitor. O texto que desejo ver examinado resume esta idéia: “O candidato que prometer fazer isso e aquilo, mas fizer tudo ao contrário do que prometeu, perderá o mandato por haver enganado os eleitores”. — Vamos votar. Quem estiver de acordo levante a mão — avisou a professora. Apenas dois não ergueram o braço.


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Esclareceu ela, então, que integraria também a Constituição da Cidade dos Meninos este texto que escreveu no quadro: “O candidato só deve prometer aos eleitores aquilo que pode fazer. Perderá o mandato aquele que prometer fazer algo e, após eleito, fizer o contrário do prometido”. — Escrevi o que a maioria desejava que fosse escrito? — perguntou. — Escreveu — gritaram os alunos. Imediatamente, Lívia levantou sua mão e disse: — Proponho que seja votada esta norma: “É assegurada a liberdade, o direito de crítica ao governo. A oposição não pode ser perseguida nem é tolerada a mentira de qualquer político, seja da situação, seja da oposição. Todo homem público deve falar a verdade e saber o que está dizendo, para não enganar o povo”. — Aprovam ou desaprovam essa proposta da Lívia? — perguntou a professora. Quase todos levantaram a mão e gritaram: “aprovada”. Essa norma foi então redigida no quadro pela professora para integrar a Constituição que estava sendo elaborada. — Professora, a norma aprovada é importante porque muitos governantes dizem que tomam determinada medida por um motivo tal, quando, na verdade, a causa dessa providência, muitas vezes, é outra, e tem como real objetivo o favorecimento de alguém — observou Thiago. — Isso se chama desvio de finalidade. É uma irregularidade grave e atesta o caráter deformado do governante que age assim. É preciso combater essa distorção, declarando a nulidade do ato praticado. Ninguém pode enganar o povo — ensinou a professora. — Como assim? — perguntou André. — Dizer que vai construir uma barragem para melhorar o abastecimento da água em determinada cidade, quando, na verdade, a obra se destina apenas a favorecer a propriedade de um parente ou correligionário da autoridade que determinou a construção — explicou.

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— Tenho esta proposta de norma para ser incluída na Constituição: “O pai deve dar bom exemplo para o filho, pois o filho costuma repetir aquilo que viu o pai fazer” — disse Jorge. — Essa deve ser uma das normas mais importantes da nossa cidade — aplaudiu Débora. Ana Cláudia completou, preocupada com as crianças mais humildes, que dependem da escola pública e são vítimas dos maus políticos: — Se o pai de uma pessoa comprou e pagou, como governador ou prefeito, mil cadernos para os alunos de uma escola, que só recebeu cem, colocando no próprio bolso o valor correspondente aos novecentos cadernos, pagos mas não recebidos, seu filho provavelmente vai imitá-lo quando também vier a ser um governante, e ficará também com o dinheiro dos cadernos das crianças. Ao ouvirem a explicação de Ana Cláudia de que alguns homens que governam as cidades ficam com o dinheiro destinado à compra de cadernos para crianças humildes, a classe se revoltou. André pediu a palavra e falou emocionado: — Os homens do poder que ficam com o dinheiro dos cadernos das crianças são criminosos, três vezes. Eles são criminosos a primeira vez porque deixam de estimular as crianças para o estudo, transformando-as em assaltantes de rua. Na segunda vez, porque dão péssimo exemplo para aqueles que vão governar depois deles. E são criminosos pela terceira vez porque ensinam os próprios filhos a também serem ladrões. Não se preocupam com as conseqüências para os seus descendentes, cujo patrimônio todos descobrirão ser fruto de desonestidade. Ao terminar suas palavras, André foi aplaudido. Quase todos queriam se manifestar sobre o mau exemplo do governante que rouba os cadernos das crianças. A professora, porém, disse que se todos falassem não conseguiriam terminar a elaboração da Constituição da cidade nunca. Sugeriu que apenas mais dois alunos poderiam se manifestar sobre o assunto. Todos concordaram. Veruska ficou logo de pé. Aguardou que ficassem em silêncio e disse:


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— O exemplo do pai é um negócio sério. Na semana passada, o pai do João Bicudo foi preso porque fez fraude na compra de vacina para gripe. Por isso que ele já fez coisa errada aqui dentro da sala. Todos ficaram mudos por algum tempo. Os alunos sentiram um desconforto com a revelação sobre o pai de um colega. Cíntia, porém, não se conteve e disse: — Agora estou compreendendo por que o João Bicudo roubou a caneta da Cibele. Ele aprendeu com o próprio pai. Ele é uma vítima da própria casa. O pai dele pensava que era sabido, ficando com o dinheiro do remédio destinado a evitar gripe nos idosos. Sem querer, ensinou seu filho a roubar também. Digo sem querer, professora, para não cometer injustiça, pois acho que o pai dele não gostaria que ele fosse ladrão de caneta ou de qualquer outra coisa — concluiu com o semblante penalizado. Todos se viraram para João Bicudo. Ele ficou pálido de vergonha. A professora o olhou e indagou: — João Bicudo, você ficou com a caneta da Cibele? Seja bem sincero. Ele tremeu os pés. Esfregou as mãos e disse: — Professora, eu... eu, eu fiquei. Quero devolver. Amanhã eu entrego para ela. A professora, percebendo a situação desconfortável de João Bicudo e o clima de tensão gerado com a sua revelação, falou: — Prometa, João Bicudo, aos colegas que nunca mais fará isso. Você é uma pessoa boa e já percebeu que não vale a pena ficar com as coisas dos outros. Com a voz embargada, de frente para todos os alunos, que olhavam em sua direção, suando as mãos, disse: — Errei e juro que não tiro mais nada de ninguém. Vi o exemplo do meu próprio pai. A polícia chegou lá em casa, levou o computador dele e um monte de papel. Os policiais colocaram algemas no seu pulso e o empurraram no bagageiro de um carro. Minha mãe chorava e se tremia toda de medo no quarto. Meu pai errou, fazendo besteira com o dinheiro que era para comprar vacina para velhinho. Eu

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prometo aqui que não vou seguir seu exemplo. Nunca mais tirarei nada de ninguém. A dor que minha mãe sentiu com aquela prisão, lá em casa, não será jamais esquecida. A sala explodiu em aplausos. João Bicudo chorou. Cíntia não se conteve e disse: — Parabéns, João Bicudo, você é uma pessoa de coragem. Assumiu que vai mudar para melhor. Sabe, professora, a culpa principal de o João Bicudo ser assim é do próprio pai dele. Não mandou que devolvesse a caneta com a qual apareceu em casa sem ter sido dada por ele. Se o pai procurasse saber quem deu ou de onde saiu a caneta que ele levou para casa, o João Bicudo não teria feito isso. — Mas o pai dele não tinha tempo para saber o que ele fazia, estava preocupado em desviar o dinheiro da vacina dos velhinhos — observou Cibele, indignada com o desaparecimento da sua caneta. A professora pediu que ficassem todos em silêncio e disse: — Quem estiver de acordo com essa norma: “O pai deve dar bom exemplo para o filho, pois o filho costuma repetir aquilo que viu o pai fazer”, levante a mão. Todos levantaram, inclusive, João Bicudo. Ela escreveu no quadro mais essa regra da Constituição da Cidade dos Meninos. Aproveitando-se do silêncio na classe, disse Patrícia: — Peço que seja votada mais esta: “Ninguém fará com o outro aquilo que não deseja que façam consigo”. Após ouvir a proposta da colega, Ricardo não se conteve e falou: — Essa norma é muito importante para qualquer sociedade. Se eu não quero que o muro do meu prédio seja pichado, não devo pichar o do prédio dos outros. Não desejo que ninguém leve o meu telefone celular, então, não vou levar o telefone dos outros. A professora colocou a proposta em votação, sendo aprovada por todos. — Tenho uma proposta a fazer — disse Paula. — Qual é? — indagou a professora. — É esta: “É proibido veicular propaganda de bebida e cigarro,


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de sete da manhã às dez da noite, no rádio e na televisão”. — Por que esta proposta? — questionou Marcos. — Porque a propaganda de bebida e cigarro estimula as crianças ao consumo daquilo que faz mal à saúde delas. Quem fuma acaba morrendo de câncer e quem bebe muito faz muita besteira e passa vexame — explicou Paula. — Só bebe quem quer — reagiu Karina. — Mas não é correto estimular uma pessoa desde pequena a beber. A propaganda, para piorar, não mostra o lado amargo de quem bebe. Não divulga nenhum bêbado fazendo besteira, tirando a roupa, brigando com os amigos, atropelando e matando as pessoas no carro. É enganoso, afinal, todo comercial de bebida, pois não exibe o lado deplorável daqueles que se embriagam — advertiu Ana Cláudia. — Não tinha pensado nisso. A propaganda de bebida realmente não mostra a verdade. Não mostra a desgraça da pessoa que ficou de porre, matou o amigo e não se lembra depois de absolutamente nada do que fez ...— acrescentou Paula. — A empresa faz a propaganda, estimulando as crianças e os jovens a beber. Ganha com a venda da bebida muito dinheiro, entretanto, seus diretores nunca aparecem para visitar, no hospital, as pessoas que ficaram embriagadas, bateram o carro ou caíram da moto. Bêbado andando de moto é tragédia na certa — constatou André. — Pior que isso. Ninguém das companhias de bebida vai aos presídios saber da situação daqueles que, estimulados pela propaganda que assistiram, beberam, ficaram embriagados e tiraram a vida de inocentes. Aquelas empresas deixam as desgraças para o Estado resolver. Isso é pura covardia — ponderou Jorge. — Qualquer pessoa que bebe pode transformar-se em alcoólatra. Dizem os estudiosos que pelo menos 15% da população que consume álcool ficará com o vício de beber compulsivamente. Por isso, a advertência “beba com moderação” é inútil — explicou a professora. — Meu pai garante que bebe com “moderação”, mas virou até o carro, embriagado. A minha mãe falou que ele é alcoólatra e precisa

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de tratamento — confidenciou um garoto, visivelmente angustiado. Todos os alunos aprovaram a norma proibindo propaganda de bebida. A professora escreveu, então, no quadro, mais um regra que faria parte da Constituição. — Professora, e quem julgará os conflitos, as brigas que surgirão na Cidade dos Meninos? — indagou Marcos. — Os juízes. Seria bom que vocês criassem as normas para a escolha e atuação dos julgadores — ela sugeriu. — Posso fazer a minha proposta para ser votada e, se aprovada, transformada em lei? — perguntou Bruno. — Claro. Qual a sua proposta? — questionou a professora. — Nenhum juiz receberá dinheiro de ninguém para julgar. Os julgamentos serão sérios. O juiz que exibir riqueza maior do que o seu salário, sem explicar de onde tirou, será imediatamente afastado da função — disse ele com o semblante austero. — Professora, já ouvi dizer que o homem mais importante numa cidade é o juiz. Prende e solta as pessoas. Diz quem está certo e quem está errado nos conflitos dos casais. Cabe a ele decidir se o filho deve ficar com o pai ou com a mãe. Logo, necessariamente, deve ser a pessoa mais séria do lugar. Se os moradores tiverem desconfiança sobre ele, deve deixar de ser juiz — observou Lucas, sob o olhar atento dos colegas. — Então, eu proponho esta norma para a Constituição da cidade: “Pessoa sobre quem recai desconfiança não pode ser juiz” — sugeriu Cibele. A professora, que estava surpresa com o debate sobre a necessidade do comportamento correto dos juízes, colocou em votação a proposta de Cibele, sendo a mesma aprovada por unanimidade. Após anotar no quadro a nova norma, disse: — Quem for escolhido juiz deve ter muita consciência do seu papel. O juiz deve dar sempre bons exemplos, fazer justiça sem querer agradar os amigos, ou extrair proveito em decorrência do exercício da função. Não deve usar o cargo para perseguir inimigos. Para vocês terem idéia da seriedade, da importância da função do juiz numa


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cidade, na primeira lei escrita do mundo, que era chamada “Lei das XII Tábuas”, feita pelos romanos, estava escrito que se um juiz recebesse dinheiro para julgar a favor de uma das partes, em prejuízo da outra, ele seria morto. Essa previsão está escrita na Tábua Nona. — Mas também, professora, a pessoa perder a questão porque o juiz recebeu dinheiro ou quis agradar a outra parte é uma situação muito amarga para quem é derrotado na justiça — indignou-se Marcelo. — Por isso, só deve ser juiz quem tem o compromisso de fazer justiça, quem tem horror à injustiça. Deve o magistrado sempre renovar a determinação de dar o direito a quem tem, sem sujeitarse à pressão de quem quer que seja. Ser juiz é um sacerdócio, exige muita retidão. Se o juiz tiver interesse pessoal em beneficiar uma das partes, ele deve mesmo afastar-se da questão. Só assim, fica respeitado por todos os moradores da cidade — explicou a professora. — Se o ladrão for condenado por um juiz que não for muito honesto, ele vai ficar todo dia muito chateado na sua prisão — advertiu Pedro. — Ele vai querer que o juiz também vá para a cela ao lado — completou Marcelo. — Por isso, não pode haver desconfiança sobre a pessoa de nenhum juiz. Julgar os outros é coisa muito séria. A Cidade dos Meninos deve conhecer e aplaudir os bons juízes — disse a professora. — Tenho esta proposta para a Constituição que está sendo elaborada: “O bom juiz receberá homenagem de toda a cidade, sempre que tiver exercido o seu trabalho com dignidade, aplicando corretamente a lei” — afirmou Marcelo, sensibilizado com o que ouvira. — Quem estiver de acordo com esta proposta, levante a mão — sugeriu a professora. Todos levantaram a mão, gritando: “de acordo”. A professora escreveu, então, mais essa norma, que passou a fazer parte da Constituição da Cidade dos Meninos.

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— Mas, professora, se o mau juiz não for punido apesar de fazer coisa errada, a lei, a justiça, tudo fica desmoralizado — concluiu Débora. — Por isso que os romanos foram implacáveis ao escreverem a Lei das XII Tábuas — informou a professora. — Professora, ontem à noite, ladrões entraram num prédio na minha rua e assaltaram os apartamentos. Parece que todo mundo está querendo virar ladrão, este é o primeiro problema a ser enfrentado: como desestimular a pessoa de se apoderar das coisas dos outros. Gostaria que fosse votada esta norma que, se aprovada, deverá ser respeitada por todos: “É dever dos pais e dos professores mostrar aos filhos e aos alunos que não vale a pena roubar nada dos outros” — disse Marcos. — Já que nós vamos fazer uma cidade, onde todo mundo vai ser educado para não roubar, eu não posso deixar de comunicar esse fato. Não foi só o João Bicudo que fez coisa errada. A Hélen levou meu estojo para sua casa. Isso é muito feio e ela deveria me devolver — reclamou Paula. — Não levei estojo nenhum. Não preciso de estojo de ninguém — reagiu Hélen. — Roubou sim. Você levou o estojo da Paula. Colocou dentro da sua mochila. Eu vi e sou testemunha, até na frente do juiz — gritou André. — Professora, a Hélen rouba objetos da gente porque a mãe dela não manda devolver as coisas com as quais ela chega em casa sem terem sido compradas por ela. Minha mãe já disse, se eu chegar com alguma coisa que ela não comprou, terei que devolver na hora. Se ela saiu de casa sem estojo e voltou com um, a mãe tinha que fazêla me devolver. Aí, eu não ia dizer na sala que ela tinha roubado. Isso é muito feio, mas é verdade — insistiu Paula, revoltada. — Eu não roubei estojo de ninguém — gritou Hélen. — Ainda é cara-de-pau. Eu vi quando ela colocou na sua mochila o estojo da Paula. Ela rouba e eu sou o mentiroso — revoltou-se André.


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— Calma, calma, pessoal. Hélen, vou chamar sua mãe aqui para saber se você chegou em casa com um estojo que ela não comprou — sugeriu a professora. — Eu vou dizer para ela aprender lhe educar, Hélen, para o seu próprio bem. Muitas mães ficam surpresas quando são chamadas na polícia e encontram o filho na prisão. A gente não nasce ladrão. Vai virando, depois de tirar as pequenas coisas. Primeiro, leva dos amigos, depois, dos desconhecidos. Aí não sabe mais viver sem ser roubando. É melhor você devolver logo o meu estojo e não mais passar vexame. Se não mudar enquanto é tempo, ficará ameaçada de prisão quando crescer — advertiu Paula. — Professora, não precisa chamar minha mãe. Eu vou esclarecer tudo. Pensei que ninguém estava me vendo. Achei bonito o estojo e coloquei na minha mochila. Amanhã eu trago de volta — disse Hélen, sob o olhar espantado dos colegas. — Ladrona de estojo — gritou um garoto do fundo da sala. A professora exigiu que os alunos ficassem em silêncio e disse: — Todos perceberam que não vale a pena retirar as coisas dos outros. Por mais que você tenha vontade de possuir um objeto que não é seu, não o toque. Nunca furte nada de alguém. Não compensa roubar. Hélen já sentiu na pele o vexame que isso provoca. Felizmente, teve coragem de confessar, se arrependeu e nunca mais praticará ação como essa. Não é mesmo? — indagou, olhando para a garota. — Nunca mais. Isso eu prometo. Pelo que estou sofrendo, peço que ninguém faça o que fiz. É uma vergonha muito grande que não sei como vou conseguir suportar neste colégio — explicou. — De minha parte, basta ela me devolver o estojo e prometer que nunca mais fará esse tipo de coisa, já está perdoada — afirmou Paula. — Eu prometo. Tive na hora uma vontade de ficar com o estojo para mim, aí coloquei na minha bolsa. A professora retomou a palavra e falou emocionada: — É hora de aprender uma grande lição. Vamos sempre pensar que não compensa ficar com as coisas dos outros. O ladrão, que

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cumpre pena na prisão, primeiro sente a vontade de pegar o dinheiro, o cordão ou os bens da sua vítima. Pensa, durante algum tempo, na maneira como vai agir e, só depois, ataca. Precisamos combater essa vontade inicial. Sempre devemos pensar que é muito feio roubar ou enganar os outros. Isso provoca vergonha nos nossos pais e nos nossos amigos. Bonito é trabalhar, estudar e lutar para conseguir as coisas. Carlito, que até então nada dissera, levantou a mão e perguntou se poderia falar. A professora pediu silêncio e disse: — Vamos ouvir o Carlito que, até agora, só tem observado nossa discussão: — A senhora falou que o ladrão cumpre pena na prisão e que ele primeiro planeja o assalto, só depois ataca a vítima. Meu pai assiste aos noticiários na televisão, e lê jornal todos os dias. Dorme e acorda revoltado. Dá murro na mesa de tanta indignação ao saber que roubaram dinheiro da merenda escolar, dos hospitais, de todas as repartições do Estado, e que ninguém foi preso. Os responsáveis pelos desvios de verbas dizem sempre que não sabiam de nada. Fazem coisas vergonhosas e ainda são aplaudidos e ganham eleição. Será que feio é só criança roubar? — perguntou. Antes que a professora respondesse a questão formulada por Carlito, já menos tensa, Hélen pediu a palavra: — Eu, que levei apenas o estojo da Paula e já vou devolver, sofri tanta humilhação e estou com vergonha de todo mundo aqui da sala; por que os homens grandes também não se arrependem e não sentem vergonha? Será que o paletó que eles usam consegue lhes dar coragem para roubar o dinheiro da população e ainda falar bonito? — Boa observação, Hélen! — aplaudiu Thiago. — Parece que os homens mais velhos acreditam em Papai Noel. As pessoas entram com bem pouquinho dinheiro no poder. Em pouco tempo, ficam ricas e todos parecem acreditar que foi o velhinho do natal quem deu um saco grande e cheio de dinheiro para eles. É por isso que ninguém vai preso, apesar de roubarem tanto dinheiro do povo — ironizou Cibele. — Professora, sinceramente, por que os homens roubam o


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Estado e não vão presos? Mesmo quando são processados vão para todos os restaurantes, sendo ainda aplaudidos como se não tivessem cometido crime algum. A senhora não disse que é feio roubar? Por que as pessoas mais velhas não acham tão feio assim? — indagou André. A professora ficou espantada com o nível de maturidade e de indignação dos estudantes. Respirou fundo. Movimentou-se na frente da sala e respondeu: — Muitas pessoas adultas são nocivas à sua cidade. Não foram educadas para respeitar o dinheiro da população. Chegam ao poder apenas para roubar. Ficam ricas e pensam que ninguém percebe que elas roubaram. Infelizmente, não vão para a prisão por falta de compromisso de alguns juízes, que deixam de aplicar a punição prevista na lei. Mas, aquelas pessoas vivem aprisionadas, mesmo estando em liberdade, porque sabem que roubaram o dinheiro da população. Têm conhecimento de que os amigos dos seus filhos fazem gozação com eles, perguntando onde seus pais “escondem o dinheiro roubado”. Cedo ou tarde, essas pessoas acabam recebendo o tratamento que merecem: são consideradas como marginais acima da lei. No final, morrem arrependidas pelo mal que fizeram. Mesmo velhinhas e andando de bengala, ninguém as respeita porque todos sabem que foram desonestas quando estiveram no poder. Os alunos ficaram em silêncio e bem atentos, enquanto ouviam a explicação. — O inferno está cheio de arrependido — ironizou Melissa. — Professora, só arrependimento não é suficiente para pagar o mal que fizeram. Levaram o dinheiro destinado à construção de estrada, de pontes, escolas e hospitais. Quantas pessoas não puderam ir à escola por que alguém roubou a verba reservada à sua construção? Quem

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faz um mal desse tamanho para o povo deveria ser condenado à prisão perpétua, ou seja, prisão para o resto da vida — observou Ana Cláudia, provocando espanto nos demais alunos. — A indignação que meu pai sente é tanta que quase o faz ter enfarte ao ver os homens, já acusados de diversos crimes contra o dinheiro do povo, ainda poderem ser candidatos. Com o dinheiro roubado, compram os eleitores pobres e famintos. São eleitos e praticam os mesmos roubos que já cometeram, inclusive, estando seus ilícitos comprovados pelos que fiscalizaram as contas de sua administração — justificou Carlito. — Isso é um absurdo. A pessoa diz que fez uma escola, a fiscalização vai olhar e medir a obra, só encontra, porém, mato no lugar. Bate fotografia para provar que quem recebeu o dinheiro ficou com a verba e não fez obra nenhuma. Tudo filmado. Ainda assim, esse ladrão, de crime documentado, pode ser candidato. Ganha a eleição para voltar a fazer a mesma irregularidade. A pobreza do povo é decorrência da falta de vergonha de quem rouba, da tolerância de quem aplica a lei e não proíbe um homem desse de ocupar cargo público. É revoltante essa situação — protestou Cíntia, visivelmente indignada. — Abaixo a ladroagem! Prisão para quem rouba e deixa de punir ladrão — gritou Marcos. — Pior é ver esses homens na televisão, falando bonito e querendo fazer todo mundo de bobo — revoltou-se Karina. Indignação e protestos ocorreram na sala. A situação ficou quase fora do controle. Um aluno sugeriu à professora que levasse um juiz à presença deles para explicar como é possível uma pessoa, que tem contra si documentos que comprovam desvio de dinheiro destinado à construção de uma escola, tornar-se candidato. Roubar, ser eleito, roubar de novo e nunca ser preso por um só dia. Ninguém, ali, conseguia compreender isso. Os alunos não escondiam a sua revolta. Marcos insistiu, questionando e exigindo explicação: — Professora, onde está a falha? Por que os homens não


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noite, em casa, a professora Diana relatou sua experiência ao marido e confessou sua surpresa com o nível de indignação das crianças em relação à corrupção dos adultos. Informou-lhe que precisava encontrar explicações e tentar construir uma cultura de respeito ao dinheiro do povo para ser disseminada entre aqueles que, amanhã, comandariam o destino do Estado. O marido ouviu atentamente seu relato e procurou incentivá-la. Disse ele: — Infelizmente, a solução está na mudança da mentalidade das pessoas. Isso é mais fácil na infância. Temos uma cultura que prestigia

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respeitam o dinheiro do povo, ficando, muitos deles, com quase tudo que passa pela sua frente, quando chegam ao poder? Ao constatar que precisava refletir mais para responder com segurança às indagações apresentadas na classe, a professora achou por bem encerrar a aula. Pediu que refletissem sobre os assuntos abordados. Imaginassem soluções para a cidade, cujas normas estavam produzindo para dar mais harmonia à vida dos moradores. Informou que a discussão seria retomada e continuariam a fazer a Constituição da “Cidade dos Meninos”. Pediu outra vez à Veruska que copiasse as normas que já havia escrito no quadro e lhe entregasse depois para que digitasse no computador. Reafirmou que entregaria uma cópia a cada um, assim que todas as normas da Constituição estivessem votadas e aprovadas. Em seguida, os alunos saíram da sala animados. Estavam vibrando com a idéia de voltar a discutir o problema da corrupção que atormenta a vida das pessoas em muitos países. Estavam todos certos de que poderiam contribuir para a solução desse mal, desestimulando os homens de assaltar os cofres públicos.

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a corrupção. Quem desvia dinheiro público não é punido. Até descobrem os ilícitos, a imprensa faz um estardalhaço. O Ministério Público entra com ações, quebra sigilo, prova tudo. Manda para o Judiciário e todo mundo esquece. Ninguém procura saber por que o Juiz não julgou. Por que demorou tanto tempo; se o julgador protegeu ou não deliberadamente o acusado; se quem julgou o réu foi por ele nomeado para o cargo. Enfim, é invocada a chamada prescrição, que é a impossibilidade de punir o criminoso pelo excesso de tempo consumido, no andamento do processo, sem uma conclusão definitiva. Essa demora torna inútil o próprio julgamento, afinal, não é possível a aplicação de qualquer pena, uma vez consumada a prescrição. — E não há punição para o julgador que deixa acontecer essa prescrição, permitindo que o processo termine em “pizza”? — questionou ela. O marido respondeu-lhe, secamente: — Muitos não dão qualquer explicação. Passam vários anos sem nada decidir, depois escrevem que o “processo deve ser extinto por haver ocorrido a prescrição”. Aí o criminoso sai bradando que é inocente, pois nada ficou provado contra ele. Volta a exercer função pública e a fazer estrago no dinheiro do povo. — E a sociedade não tem como reagir? — indagou a esposa. — Depois que a justiça silencia, informando que ocorreu a prescrição, ninguém diz mais nada. Aliás, quem chama o ladrão de ladrão, acaba processado por ele, alegando que não foi condenado. Aí é que está a grande distorção. Você como educadora pode contribuir para mudar essa situação caótica. — Como assim? — Fazendo o que fez na sala de aula, educando as crianças e os jovens para serem bons políticos, bons juízes para punir aqueles que praticam desonestidade no exercício de função pública, enfim, para serem bons cidadãos. — Então, você acha que estou mesmo no caminho certo? O marido balançou a cabeça em sinal positivo e não escondeu seu orgulho pela iniciativa da mulher:


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— Busque enterrar a “Lei de Gerson”, aquela difundida num comercial de televisão em que esse grande jogador, tricampeão do mundo, recomendava levar vantagem em tudo. Ele acabou fazendo um gol contra quando disseminou essa norma de conduta distorcida na sociedade. Quem vive de levar vantagem em tudo, acaba se enrolando na própria esperteza. O melhor é respeitar os direitos dos outros. A professora sentiu-se revigorada com o incentivo recebido em casa. Ficou ainda mais convencida de que, na sala de aula, bem trabalhada a educação política do cidadão, será possível reduzir o número daqueles que alcançam o poder apenas para cometer irregularidades. Ela percebeu que não basta apenas a pessoa ser muito competente como médico, engenheiro, advogado etc., é preciso, antes de tudo, ser um bom cidadão. Sentir vergonha de se apropriar do dinheiro do povo ou de cometer irregularidades no desempenho da profissão. Para tanto, a família e a escola têm um papel muito importante na formação de cada pessoa. Ao chegar em sua casa, Paula não escondeu a alegria e comentou: — Mãe, a Hélen confessou que roubou o meu estojo. Vai me devolver e prometeu que nunca mais fará isso. — Ainda bem. É muito feio alguém ficar com aquilo que não lhe pertence. — A senhora sempre fala que é culpa da mãe da criança que fica com as coisas dos outros, pois não examina o que o filho traz para casa. — Por falar nisso, vou olhar sua mochila para saber se também não trouxe alguma coisa dos outros. — Está aqui, já aberta. Pode olhar tudo. Mesmo que tenha vontade, jamais ficarei com o que não me pertence. O destino de quem rouba é a prisão. Após vistoriar a mochila de Paula, sua mãe a cumprimentou: — Parabéns. Você me faz sentir orgulho. A mãe que tem um filho preso tem um espinho no coração. Não pára de doer. Se ela o tivesse mandado devolver o primeiro lápis do amigo com o qual chegou em sua casa, não sofreria tanto depois.

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— Prefiro morrer a provocar-lhe esse desgosto — confessou Paula.

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a manhã seguinte, a professora chegou mais cedo ao colégio. Foi direto à sala de aula. Pediu auxílio a uma senhora, que limpava o corredor, e ambas passaram a arrumar as carteiras em círculo dentro da sala. Ficou aguardando ansiosa a chegada dos meninos para responder os questionamentos que lhe fizeram no dia anterior. Os alunos foram chegando animados e com uma pontualidade surpreendente. Quando todos estavam na sala, informou que prosseguiriam com a elaboração da Constituição da Cidade dos Meninos. André, porém, levantou a mão para lembrá-la de que, na aula anterior, deixara de explicar como era possível um homem desviar dinheiro da merenda escolar, não ser preso e ainda ser eleito para deixar mais gente com fome. A professora, imediatamente, respondeu: — Infelizmente, a geração de muitos que ocupam o poder não foi educada para compreender o mal que um governante desonesto causa a toda a população. Muitas pessoas ainda falam bobagens desse tipo: “ele rouba, mas faz”, como se roubar não fosse um crime, nem ladrão da pior qualidade, quem furta dinheiro público. Diversos adultos estão hoje desmoralizados e envergonhados perante vocês. — Essas pessoas estão envergonhadas mesmo? — indagou Paula. — Sim, pois sabem que ninguém acredita nas suas explicações. Seus filhos sentem vergonha de suas ações criminosas. Esse é o castigo maior para quem desvia dinheiro do povo. É perceber que os amigos dos filhos sabem que o seu pai é um oportunista, que prejudica a


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população. Uma coisa, porém, me enche de alegria... — Alegria por quê? Se os velhos continuam fazendo coisas erradas com o dinheiro do povo! — antecipou-se Cíntia, antes que ela concluísse. De forma enfática, explicou a professora: — Estou feliz porque me convenci de que, quando chegar o dia de vocês serem juízes, julgadores integrantes do Judiciário, serão implacáveis com os ladrões do dinheiro da população. Em vez de garantirem que eles desfilem nos corredores das assembléias e das câmaras legislativas, colocarão todos na cadeia. Os alunos de ontem, que hoje estão adultos, exercem funções públicas e cometem irregularidades, nunca participaram de aulas como as nossas. Por isso, fazem essas coisas lamentáveis. — Essa estória de não ser preso porque já está velho é pura conivência com o roubo. O velho é que deve ser preso mesmo. Em primeiro lugar, porque deve ter roubado muito até ser descoberto. Em segundo, por haver dado mau exemplo aos filhos e aos jovens de sua cidade — protestou, com ênfase, Marcelo. ­— A prisão, nesse caso, tem valor importante para que ninguém siga o exemplo do infrator. Se o homem público soubesse que ia ser preso, ao desviar dinheiro do povo, jamais desejaria disputar eleição. Só iria ser político se estivesse realmente com boa intenção — ponderou Cibele. — A população toma os atos dos seus governantes como exemplo para suas ações. Se eles são desonestos e cínicos, muita gente vai imitá-los, cometendo crimes nas ruas dos seus bairros. Esse é o problema mais grave — ponderou Marcos. — Meu pai é delegado. Já contou que muitos presos reclamam porque os políticos e outras autoridades, que cometem crimes até mais graves que os deles, não são também levados para a prisão — disse Adriana. — Se os homens mais importantes da cidade fazem coisas erradas e não são punidos, os mais humildes querem também fazer e receber o mesmo tratamento. Por isso que o bom exemplo do homem

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público é fundamental até para reduzir a criminalidade — assegurou a professora. — Não basta estar bem vestido, usar paletó bonito nem ter bigode aparado. O bom exemplo é fator essencial em todos os momentos de quem exerce o poder — alertou Cíntia. — Abaixo o cinismo dos políticos! Exigimos bom exemplo! — gritou André. Em poucos segundos, a sala inteira fez um coro: “abaixo o cinismo dos políticos! Exigimos bom exemplo!”. Diversas vezes, esse refrão foi repetido. A professora ficou emocionada ao testemunhar essa manifestação espontânea dos alunos. O coração batia forte. A sinceridade estampada na fisionomia de cada um a deixava eufórica. Tinha certeza de que ali estava sendo plantada a semente que germinaria para se tornar a nova geração diferente. Os espertalhões da política teriam encontrado, finalmente, uma reação. Eles passariam a ter contas a ajustar com aquelas crianças. Durante alguns minutos, os alunos agitaram suas mãos, protestando contra o cinismo de muitos políticos. As professoras, que davam aula nas salas ao lado, correram para saber do que se tratava. Alguns alunos saíram atrás delas e se aglomeram na porta. Queriam também participar do protesto. A professora Diana explicou-lhes que estavam elaborando a “Constituição” de uma cidade. Prometeu distribuir uma cópia para cada aluno do colégio, assim que todas as regras fossem votadas e aprovadas. Um garoto, cheio de sarda no rosto, óculos de lentes bem grossas, que se postara no meio da porta, falou em voz alta: — Professora, eu queria era fazer uma passeata com os meninos daqui e de todo o colégio. A gente faria cartazes com estes dizeres: “abaixo o cinismo dos políticos. Exigimos bom exemplo”. Daríamos uma volta no quarteirão. Só assim aqueles políticos, que são caras-depau, iam saber que não gostamos das coisas erradas que eles fazem. — Muito boa sua idéia. Volte juntamente com os colegas para sua classe. Depois que concluirmos a nossa Constituição, faremos uma grande concentração na quadra e, se for o caso, nas ruas próximas


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daqui. Aí, então, você levará suas faixas. — A televisão vai estar lá? — indagou o garoto com o olhar brilhando. — Lá estarão televisão, rádio e jornal. Será o dia do grito de indignação das crianças contra os corruptos e deformados que não sabem pensar no melhor para o povo. Vá para sua sala e aguarde a convocação. — Eu quero protestar contra os velhos safados que autorizam construções irregulares, deformando a cidade — disse o outro garoto que se mantinha quase dentro da sala. — O meu protesto é contra os que falsificam documentos de terra para enganar bancos oficiais — disse o terceiro, com a fisionomia bem séria. — Por favor, voltem para suas classes — exigiu a professora. Os meninos saíram lentamente da porta. — Professora, foi bem lembrada a necessidade de protesto contra banco oficial. Parece que, nesses bancos, só dão cargo alto para “inocentes”, que entregam o dinheiro todo para oportunistas e depois chamam o cidadão para pagar o prejuízo. Isso é revoltante — censurou Thiago, que ouvira atentamente a observação do menino da outra sala. — Diretor de banco oficial que desvia verba ou deixa roubar também não vai preso. Aponte um! — provocou Veruska. — Isso é um absurdo. Essa velharia criou o paraíso dos assaltantes oficiais — ironizou André. É preciso uma reação a isso tudo. Espero que seja urgente — gritou Adriana, visivelmente incomodada. — Nós mudaremos o quadro dessa paisagem muito triste e vergonhosa — tranqüilizou Jorge, confiante. A professora informou que precisavam avançar mais para concluir a elaboração da Constituição. Adriana levantou a mão e disse: — Professora, eu quero propor para votação esta norma: “O mandato dos integrantes do Executivo e do Legislativo será de dois

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anos”. — Dois anos é muito pouco: acho que três anos poderia ser melhor — sugeriu Cibele. — Dois anos são suficientes para saber se a pessoa quer trabalhar pelo povo ou apenas cuidar dos seus negócios — protestou Juliana. Quem estiver de acordo com a proposta levante a mão — sugeriu a professora. Dos quarenta e cinco alunos presentes, vinte e oito levantaram a mão. A professora, após contar em voz alta os que concordavam, disse: — Como a maioria aprovou a proposta da Adriana, constará também na lei de nossa cidade a seguinte norma que escreverei no quadro: “O mandato do prefeito e dos vereadores da Cidade dos Meninos será de dois anos”. — Com ou sem reeleição para o cargo de prefeito? — questionou Marcos. A turma travou uma longa discussão sobre as vantagens e desvantagens da reeleição. — Com reeleição a pessoa mal chega no poder, já começa a agir pensando em voltar. Passa, então, a fazer acordos. Dá cargo até para incompetente para obter os votos da sua família — alertou Cíntia. — Mas sem reeleição, um bom governante não pode, muitas vezes, concluir seu trabalho iniciado e o sucessor pode estragar tudo — refutou Cibele. — Reeleição uma única vez — sugeriu Ricardo. A professora interferiu e disse: — É preciso compreender, desde logo, que quem ganha a eleição deve governar para todos. Não apenas para os amigos nem contra os inimigos. Se o adversário, que estava no poder, fazia obra de utilidade para a cidade, o novo governante não deve parar tudo somente porque foi iniciada por quem não o apoiava. Isso é sinal de despreparo para o exercício da política. O destinatário de tudo é o povo, que não pode ser prejudicado por picuinhas entre homens imaturos. — É preciso grandeza de espírito para ser um bom político — concluiu Ana Cláudia.


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— Haverá ou não reeleição para o cargo de prefeito na Cidade dos Meninos? — indagou a professora. A maioria respondeu sim, uma única vez. Ela, então, escreveu esta norma: “O prefeito pode se candidatar à reeleição apenas uma vez”. — Professora, e se depois os novos políticos da Cidade dos Meninos quiserem mudar essa norma? Poderão alterar tudo, inclusive, ampliar a duração dos mandatos? — indagou Ana Cláudia. — Aí está um problema. Se a norma for produzida com o propósito apenas de agradar aqueles que estão no poder, sem preocupação de longo prazo, quem detiver a maioria, em determinada época, vai fazer tudo para mudá-la. Isso é sinal de imaturidade. As regras que disciplinam o acesso e a alternância do poder devem ser elaboradas para durar indefinidamente. Não podem refletir interesse particular desse ou daquele grupo. Se os políticos ficarem mudando as normas de acordo com as suas conveniências, um dia acaba aparecendo um ditador e rasga tudo. — Ditador, professora, como acabar com essa praga? — indagou Paula, espantada. — O ditador surge da deformação de alguns que supõem que para governar bem é preciso não ouvir o povo. São pessoas que padecem de algum tipo de doença. Chegam ao poder e acham que somente elas sabem o que é melhor para a população. Não aceitam críticas e matam ou mandam matar os adversários. — Matam? — perguntou André, espantado. — Sim. Empolgados com o poder e na ânsia de nele se perpetuarem fazem todo tipo de maluquice. Inclusive, matam ou mandam matar aqueles que lhes fazem críticas. Em toda ditadura há muita corrupção. Nada, porém, é divulgado porque não existe liberdade de expressão. A imprensa não é livre, por isso as coisas erradas não chegam ao conhecimento do povo. — Professora, como é possível evitar a ditadura? — indagou Veruska. — Boa pergunta. Estimulando o amor pela democracia como estamos fazendo nesta sala. Colocando no coração de cada pessoa

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a semente do amor à liberdade, o respeito ao direito de crítica. Propagando a compreensão de que somos todos iguais, morreremos um dia, não adianta querer se perpetuar no poder. O governante não é dono de nada. É apenas um colaborador, indicado pelo povo para fazer o melhor de si pela coletividade. A liberdade de expressão é a base para a prosperidade e essencial na democracia — assegurou ela, em tom solene. — E por que já se instalou ditadura no País? — questionou Adriana. — Pelos maus exemplos dos homens do passado. Não souberam elaborar um processo eleitoral confiável, nem tiveram grandeza para compreender que golpe, para implantação de ditadura, é coisa de gente desqualificada. Nociva às gerações. Incapaz de compreender que, entre as virtudes do homem, está o amor à liberdade. Não apenas à sua liberdade, mas à liberdade de cada cidadão. Ninguém nasceu para ser amordaçado por pensar diferente. — Professora, a democracia é uma arma contra a ditadura? — quis saber Ana Cláudia. — É uma arma muito positiva. Exige, porém, uma compreensão básica. É o melhor de todos os regimes políticos porque nela o poder pertence aos cidadãos, que escolhem livremente os governantes. Não há concentração de poderes e a autoridade não faz o que quer, mas sim o que a lei permite. Para a democracia transformar-se em arma imbatível contra a ditadura é necessário apenas que cada um compreenda que o poder é apenas um instrumento para servir ao interesse da população, não ao interesse pessoal dos governantes. A única forma legítima de acesso a ele é através de eleição. Quem perde deve respeitar a vontade da maioria. Se os estudantes assimilarem isso, teremos paz e prosperidade, quando chegar sua hora de governar — concluiu ela, sob o olhar bem atento dos garotos. Os alunos ouviam com muita atenção as informações. Não lhes passara, até então, pela cabeça a nocividade dos ditadores e a necessidade de preparar o homem para o exercício do poder. Após algumas observações sobre Hitler, ditador alemão


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responsável pela segunda Guerra Mundial e Pinochet, ditador em cujo governo diversas pessoas foram mortas no Chile, a professora fez esta observação: — Já temos aprovadas as normas básicas da nossa cidade. Quem desejar ser candidato a prefeito pode se apresentar. Cada candidato terá, no máximo, cinco minutos para expor sua proposta. Depois que cada um tiver falado, vamos submeter os nomes aos eleitores que serão todos vocês. — Sou candidato — apresentou-se João Bicudo. A sala inteira explodiu num sonoro “não pode”. A professora compreendeu a rejeição dos alunos e falou em tom melancólico: — Infelizmente, João Bicudo, você não pode ser candidato. Não deu bom exemplo ao ficar com a caneta da Cibele sem autorização dela. — Professora, mas eu assisti na TV um professor explicando que ninguém pode ser considerado culpado até que haja contra a pessoa decisão penal com trânsito em julgado, ou seja, segundo ele, decisão da justiça contra a qual não caiba mais nenhum recurso. Tenho ao meu favor a presunção constitucional de inocência. Ninguém pode, por isso, me impedir de ser candidato — argumentou com muita eloqüência. — A exigência do tal trânsito em julgado da decisão penal condenatória para, só então, impossibilitar alguém de ser candidato, é apenas mais um artifício criado pelos homens, que não pensam no melhor para o povo, para entregar o poder aos que já desviaram dinheiro da população — explicou a professora. — Quer dizer que todo assaltante do dinheiro público acaba sendo sempre inocente? Afinal, um processo leva mais de uma década para chegar ao seu término, para nele, então, surgir a chamada coisa julgada. Ou seja, a decisão final contra a qual não pode mais ser interposto nenhum recurso! — questionou André. — Exatamente. Mesmo denunciado e condenado por um juiz, o assaltante do dinheiro do povo afirma cinicamente na televisão que é inocente. Diz, simplesmente, que o processo no qual foi condenado

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pelo magistrado não chegou ao fim. Aguarda o julgamento do recurso interposto no tribunal contra a decisão que o condenou e continua tomando conta do dinheiro da população, dizendo em que deve este ser aplicado — esclareceu ela. — Quer dizer que acreditam mais na palavra do assaltante do dinheiro do povo do que na sentença de um juiz, contra a qual a pessoa condenada interpôs recurso? Essa norma foi elaborada para beneficiar o próprio ladrão? — insistiu Karina. A professora parou no fundo da sala e tentou explicar a incongruência dos adultos captada pelos alunos, que se mostravam curiosos e perplexos. Ela esclareceu: — A mesma lei que afirma presumir-se a inocência de uma pessoa, enquanto não transitar em julgado a sentença penal que a condenou, também exige probidade, moralidade para o exercício do mandato, levando-se em consideração a vida pregressa do candidato para autorização do registro de sua candidatura. O problema é que, na interpretação que se faz para aplicar a norma, só é levada em consideração a parte favorável ao político desonesto. — É a interpretação que o delinqüente da política aplaude, pois não tem qualquer preocupação com a defesa do patrimônio público. Pelo contrário, dá mais estímulo para ele atacar o dinheiro da população por todos os lados — ironizou Marcelo. — A senhora explicou bem, professora. É fácil compreender isso na prática. Se o João Bicudo já ficou com a caneta da Cibele, que tinha todo o cuidado com ela, imagine quando ficar sozinho com o dinheiro da nossa cidade, sem ninguém filmando todas as suas ações na aplicação das verbas — argumentou Paula. — Os adultos são complicados e incoerentes mesmo. Não colocam nenhuma pessoa que esteja indiciada por furto na polícia para trabalhar na sua casa. Se colocarem e descobrirem, ficaram em pânico, mandando-a embora imediatamente. Agora, para cuidar do dinheiro público não se importam se a pessoa já cometeu crime antes. Entregam sem nenhuma preocupação todo o cofre — observou Karla.


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— É porque não têm zelo algum pela coisa pública. Por isso que o povo é pobre. Todo mundo paga muito imposto e não vê resultado. Não tem escola de boa qualidade. Faz pena visitar hospital público. A segurança nem se fala. Para não ser assaltado, você tem que encher sua casa de vigilantes armados, pagando para empresas privadas pela proteção que caberia ao Estado oferecer — enfatizou Rodrigo. — Como é que o guarda municipal vai combater a propina se o prefeito, que é o seu comandante geral, for o maior propineiro da cidade? — indagou Carolina. — “Abaixo os propineiros”! “Denunciado por crime não pode ser candidato”! “Lugar de criminoso é na prisão, não é no poder”! — gritavam os alunos indignados, comandados por Carlito. Após alguma dificuldade para conter a revolta dos estudantes contra os governantes, que recebem propina para conceder favores, a professora exigiu silêncio e falou: O João Bicudo não será candidato. Quem mais deseja candidatarse? — Professora, registre o meu nome como candidato nessa eleição — André pediu. — Registre o meu também — solicitou Jorge. Mais alguém? — ela indagou. Ninguém mais se apresentou. A professora, então, fez um sorteio para saber quem falaria aos eleitores em primeiro lugar. André foi o escolhido. — André, levante-se e apresente a sua proposta de candidato. Terá cinco minutos. André aproximou-se da mesa, no centro da sala, onde a professora se encontrava, e falou: — Colegas, gostaria de explicar-lhes que sou candidato, não por ambicionar o poder. Na minha família ninguém é político. Meu objetivo é apenas colaborar, fazendo o melhor de mim para cumprir a missão de governar a Cidade dos Meninos. Infelizmente, os adultos nos têm dado péssimos exemplos no exercício do poder. Trocam tudo por dinheiro. O fascínio pelo dinheiro e pelo poder os têm levado a

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rastejar na lama. Além disso, ora implantam ditadura, suprimindo a liberdade, ora governam sem preocupação alguma em zelar e aplicar corretamente o dinheiro da população. Acho que cada um tem uma missão a cumprir na vida. A das crianças e dos jovens de hoje é mostrar aos adultos que todos sentem muita vergonha das ações desonestas que muitos deles praticam no exercício do poder. Fez uma pausa. Respirou fundo e prosseguiu: — Um governante sério não dá o menor espaço para que duvidem da sua honradez. Não fica exigindo prova de que cometeu crime, sabendo, através da sua própria consciência, que realmente cometeu, tendo apenas tomado todas as providências para que ninguém conseguisse descobri-lo. Chega de gente desonesta em qualquer função pública. — Muito bem, André! — aplaudiu Cibele, na segunda fila. Ele continuou falando: — Um governante sério presta contas de suas ações todos os dias perante a sua consciência. Seus atos, sem exceção, são todos transparentes. Ninguém ousa pôr em dúvida a correção de suas atitudes, sobretudo aquelas relacionadas com a aplicação do dinheiro dos cidadãos. Um governante honrado não transforma o poder em dinastia para agraciar parentes, amigos e correligionários incompetentes. Sabe que os incompetentes prejudicam a população por nada entenderem do serviço público que deve ser prestado com eficiência. — Valeu André — vibrou Lívia. Ele continuou falando com a voz mais elevada: — Sou candidato porque, como todas as crianças e os jovens deste país, acredito que podemos formar uma nação diferente. Acredito que somos capazes de pensar no melhor para o povo, sem enganá-lo. Basta de espertalhões, que circulam nos corredores do poder, defendendo apenas os próprios interesses. Muitos dos que brigaram entre si pelo poder, apenas para extrair benefício particular, se encontram sepultados, lado a lado, no mesmo cemitério, sem que ninguém se lembre deles. É a falta de grandeza nas ações dos


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governantes que os condena ao esquecimento. — Muito bem — gritaram os alunos. André olhou para o relógio no braço da professora. Sabia que ainda tinha tempo para falar, optou, porém, por falar pouco e dizer muito. Avisou que iria concluir. Disse, então, para finalizar sua exposição: — Nós podemos mudar o mundo. Peço a cada um de vocês que compreendam que a geração dos mais velhos não nos ofereceu bons exemplos na condução do poder público. Por isso, temos de mudar os hábitos horrorosos, que muitos adultos disseminaram, de ficar com o dinheiro público. Todos os dias, os jornais noticiam escândalos de autoridades que, cinicamente, vão à televisão exigir provas de que roubaram. Deviam exigir prova de que deixaram de fazer aquilo que o povo exigia que fosse feito. Deviam exigir prova de que não fizeram o que prometeram nas campanhas eleitorais. É triste esta realidade, mas é possível mudá-la para melhor. Proponho fazer um governo baseado na seriedade para que meus pais sintam orgulho de minha passagem pelo poder. Essa passagem será breve, pois, só movido por má intenção um homem é capaz de tudo para se manter ou se perpetuar no poder. Agradeço a todos os que fizerem a opção pelo meu nome. Obrigado. A sala explodiu em aplausos. Cibele encabeçou o coro: — André, voto em você. A professora aguardou algum tempo, enquanto a classe voltava a ficar em silêncio. Chamou Jorge e avisou-lhe: — Você tem a palavra também por cinco minutos para expor as suas idéias. Ele levantou-se lentamente de sua carteira. Posicionou-se ao lado esquerdo da mesa em que a professora se encontrava e falou: — Professora Diana, inicialmente quero parabenizá-la por ser uma educadora determinada em transformar o mundo pela educação. Vai conseguir isso, tenho certeza. Queridos amigos e amigas. Sou candidato porque acredito no homem. Muitos olham com desconfiança para os políticos. Essa má impressão decorre do fato de que muitos deles não foram bem educados para atuar na vida pública.

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Imaginam que ser político é apenas falar bonito, enganar o eleitor e ficar com o dinheiro do povo. Esse desvio de conduta, porém, é fruto da má formação de muitos homens públicos. Precisamos mudar e estou convencido de que mudaremos o perfil das pessoas que se dispõem atuar na política. — Perfeito Jorge, como mudar? — gritou Thiago. Sem perder a calma, ele prosseguiu falando: — Para mudar essa situação vergonhosa provocada por muitos dos nossos políticos, em primeiro lugar, é necessário exigir dos juízes punição para quem utiliza de forma indevida, em benefício próprio, o dinheiro do povo. Se eu roubar qualquer verba pública ou me favorecer pelo exercício do cargo, quero ser preso e algemado. Esse deve ser o primeiro bom exemplo do governante sério, exigir a sua própria punição se fizer coisa ilícita. Não adularei os juízes. Quero que eles tenham condições de julgar apenas com base no saber jurídico e na sua consciência. Serei implacável como governante e como cidadão, protestando contra os juízes que prestam maus serviços à população. Quem julga apenas para agradar amigo ou receber promoção, não merece o respeito dos homens. — Está correto — aplaudiu Karla. — Quero governar levando sempre em consideração aquilo que o povo elege como prioridade. Só se faltar-lhe boa intenção, um governante deixa de levar em consideração aquilo que os cidadãos desejam que seja realizado com mais urgência. Terei muito cuidado para não aumentar os tributos, sufocando os contribuintes. Os juros não poderão ser altos demais, beneficiando aqueles que têm muito dinheiro e prejudicando toda a população. Só por má-fé ou por pura incompetência, os juros são muito altos em um país. A primeira providência de um povo, que almeja a prosperidade, é qualificar muito bem, sob o ponto de vista técnico e moral, os homens para cuidar da defesa de sua moeda. Não basta apenas ser um grande economista ou um jurista cheio de títulos. Se faltar nesse homem, bem qualificado tecnicamente, o compromisso de servir à causa pública, de defender o interesse do povo, dando bom exemplo e fazendo realmente o melhor no exercício de sua função, fará ele, na maior surdina, alguma coisa


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prejudicial a todos no desempenho da sua atividade. — Muito bem! — gritaram alguns alunos. Jorge prosseguiu com a voz firme: — Também penso que o homem público deve ser transparente. Deve mostrar seu patrimônio no início e no fim do seu governo. Se ficar rico no poder, nunca mais deve exercer mandato. Sou enfático: lugar de ladrão não é no poder. É na cadeia. A sala inteira explodiu em palmas. Jorge continuou falando, visivelmente emocionado, após os aplausos: — Deixo aqui registrado o meu repúdio aos políticos demagogos. Aqueles que, para alcançar o poder ou nele permanecer, querem agradar os eleitores de qualquer jeito, adotando medidas que, pouco depois, se mostram prejudiciais a todos. Tomam determinadas providências apenas para obter votos, sem nenhum compromisso sério em fazer o melhor para a população. São capazes de nomear pessoas incompetentes para cargos importantes só para conquistar voto. Quem vai exercer qualquer cargo público deve possuir competência, seriedade e dedicação ao trabalho. O pagamento do salário de quem ocupa função pública é feito com o dinheiro que o cidadão paga ao Estado através dos tributos. Quem é incompetente, desonesto e sem compromisso em servir muito bem à população não deve exercer cargo público. — Muito bem, Jorge — aplaudiu André, reconhecendo o brilho do posicionamento do concorrente. Ele prosseguiu: — Abro meu coração perante vocês nesta manhã. Não estou movido por vaidade para exercer o cargo de prefeito da Cidade dos Meninos. Minha mãe já falou que o poder passa rápido demais e muitos homens se encantam tanto com ele que se esquecem de governar. Falta-lhes grandeza para exercê-lo. Pouco tempo depois, ficam com depressão porque ninguém quer conversa com eles. Governar é a arte de escolher as prioridades corretas do povo e executá-las através de pessoas competentes. Os bajuladores são nocivos aos governantes porque nunca revelam as coisas erradas do

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seu governo. Só se preocupam em agradar quem está no poder. — Vou finalizar minhas palavras, pedindo que votem em quem acharem mais útil para governar. Se não quiserem me escolher, não ficarei magoado. Minha intenção é apenas colocar meu nome para colaborar com a administração da cidade. Acho muito errado os homens comprarem voto, matar o adversário para conseguir um mandato. Está claro que quem faz qualquer negócio para chegar no poder não será um bom governante. Quem comete crime é criminoso. Ser um governante exemplar é ficar longe de ilícitos e de gente criminosa. Muito obrigado. — Valeu Jorge! — gritou Marcos, puxando os aplausos. André se levantou e foi cumprimentá-lo, dizendo: — Você falou muito melhor do que eu, parabéns. Os dois se abraçaram no centro da sala e todos ficaram de pé para aplaudi-los. Sentiam os alunos uma emoção inexplicável, que varria o corpo de cada um da cabeça aos pés. Ninguém, ali, tinha mais dúvida de que o mundo poderia ser mudado pela atuação das crianças e dos jovens, provocando vergonha em cada adulto, que sabia, na sua consciência, haver desviado dinheiro do povo. O coração batia forte no peito daqueles estudantes, diante da certeza de que não seriam como os mais velhos, que chegam ao poder para extrair apenas benefícios pessoais, sem vontade firme e determinada de fazer o melhor para a população. Naquele instante, “caía a ficha”. Qualquer país pode ser diferente se o homem, desde pequeno, for educado para exercer bem o poder. A professora comunicou que daria um intervalo de dez minutos para que cada um pensasse em quem iria votar. Em seguida, seria realizada a eleição. Chamou Veruska e Cíntia para que organizassem a urna e as cédulas com o nome dos dois candidatos. — Você vai votar em quem, Talita? — indagou Ana Cláudia. — Não sei. Os dois candidatos são muito bons. O problema da eleição é quando você tem dois candidatos que não inspiram confiança, quando passam a sensação de que fazem promessas só para enganar o eleitor e receber o seu voto. Aí, a falta de opção é cruel — respondeu ela.


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— Vou votar no André. Aquela iniciativa de aplaudir o Jorge e lhe dar parabéns é típica de quem não vai fazer coisa para se favorecer quando chegar no poder — advertiu Cíntia. — Boa observação. Os homens sem boas intenções, aqueles que querem o poder a qualquer custo para roubar, anarquizam os adversários. Chegam ao cúmulo de matá-los. Voto nele também — informou João Bicudo. — Já tenho o meu candidato mas prefiro não revelar o nome para deixar todo mundo bem livre para escolher aquele que achar melhor — disse Débora, saindo da sala. Decorrido algum tempo, a professora pediu que fizessem uma fila para que todos pudessem votar. De forma disciplinada, cada um recebeu a cédula, marcou o nome do candidato de sua preferência e colocou dentro da urna — uma caixa de sapato com um furo na parte superior — onde as cédulas eram depositadas. A votação transcorreu na maior tranqüilidade. Após o último eleitor depositar o seu voto na urna, a professora convocou três alunos para fazer a apuração. Todos estavam ansiosos para saber o resultado da eleição. Após a apuração dos votos, a professora pediu que todos sentassem. Informou, em seguida, que iria divulgar o resultado. Fez-se um silêncio demorado. O rosto de cada um não escondia o nervosismo que tomava conta da sala. Com a voz firme, ela disse: — O vencedor da eleição com 23 votos é o André. O Jorge teve 22 votos. Parabéns aos dois candidatos e a todos os eleitores, que acabaram de contribuir com a perpetuação da democracia. Vamos agora, rapidamente, ouvir a palavra de quem perdeu e de quem ganhou a eleição. — Professora, quem perdeu ainda tem que falar? — questionou Veruska. — Deve falar, sim. É uma questão de elegância e de educação. Quem disputa o poder deve buscar alcançá-lo para fazer o melhor pelo povo. Por isso, o perdedor deve torcer para que o vencedor faça um bom governo. Deve desejar a ele toda sorte possível. Se não for dessa forma, todos perdem. Fale Jorge — ordenou a professora. Ele, com a fisionomia um pouco abatida, disse:

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— Obrigado a todos que votaram no meu nome. Desejo que o André faça um bom governo. No que precisar de minha colaboração, estou à sua inteira disposição. Sinceramente, de coração, muito obrigado pela oportunidade de participar desta festa de consolidação da democracia. — Muito bem. Parabéns Jorge! — gritaram os garotos que o apoiaram. — Com a palavra, o candidato André, vencedor da eleição — disse a professora. — Quero parabenizar, em primeiro lugar, a forma elegante como o Jorge disputou a eleição e aceitou o seu resultado. Agradeço aos que votaram no meu nome e, enfim, a todos os que participaram da eleição. Serei um prefeito de todos, fazendo sempre aquilo que for melhor para a nossa cidade. Todas as nossas ações terão um único objetivo: realizar o melhor para os moradores da Cidade dos Meninos. Muito obrigado. Todos aplaudiram. A professora pediu mais um minuto de atenção. Alguns queriam sair para comemorar a vitória de André. Mostrou, então, a cada um, em papel impresso, a constituição da Cidade dos Meninos, cujas normas foram por eles elaboradas e aprovadas. Após a entrega, disse ela: — Demos um grande passo para a formação dos bons governantes. Cabe a cada um de vocês a missão de dar vida especial à cidade. Lembrem sempre que, sem especial atenção aos meninos de rua, é difícil conquistar a paz em qualquer lugar. Os assaltos são freqüentes. É preciso dar prioridade para encontrar solução a esse problema. Tudo deve ser feito para garantir dignidade à pessoa humana. Boas escolas devem ser instaladas, devendo ser disseminados os bons valores no espírito de cada criança. Só assim uma cidade ou um país pode garantir a felicidade das pessoas, a paz e a prosperidade para todos. Sejam felizes. A classe inteira correu para abraçá-la. Aplausos e lágrimas de algumas alunas encerravam aquele momento muito especial. Afinal, se projetaria ele como verdadeiro marco para a mudança da mentalidade de um povo, já cansado e envergonhado da mediocridade


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de muitos dos seus governantes. No dia seguinte, antes do término da aula, ela entregou a cada aluno o texto da Constituição da Cidade dos Meninos que eles haviam elaborado. Pediu que lessem atentamente para saber se realmente foi aquilo que votaram e aprovaram. Após ser informada de que já haviam lido as normas que integravam a Lei Maior, indagou: — Estão todos de acordo com o conteúdo das normas da constituição, aqui votadas e aprovadas por vocês. Sim ou não? — Sim, gritaram os alunos. — Declaro, então, promulgada a Constituição da Cidade dos Meninos. A partir de agora, todos devem respeitar as normas que a integram. — Professora, falta organizar a festa da posse do André como prefeito — lembrou Cibele. — Isso agora é com vocês. Façam o projeto de como deve ser o evento e depois me mostrem. Todos saíram dali, vibrando de alegria. Um grupo de cinco alunos, coordenados por Cibele, imediatamente passou a cuidar dos festejos da posse. Ficou escolhido um dia de sábado pela manhã. Comunicaram aos seus pais que desejavam fazer uma grande concentração, envolvendo não apenas os alunos do seu colégio, mas dos demais colégios do bairro. Sairiam em passeata com cartazes, protestando contra os políticos desonestos até uma praça próxima dali. O pai de Cibele foi escalado para pedir autorização das autoridades e montar o palanque na praça localizada a algumas quadras do colégio. Ali, a professora Diana receberia uma grande homenagem e uma medalha. Falariam apenas três pessoas: André, como candidato eleito e empossado prefeito, Cibele e a professora Diana. O grupo foi de sala em sala, convidando os alunos para participarem da concentração que passou a ser conhecida como “O grito das crianças contra a corrupção”. Os professores ficaram encantados com a idéia e passaram a estimular os alunos na confecção dos cartazes, que seriam exibidos ao longo da passeata. Havia uma

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expectativa geral, inclusive, na imprensa que noticiava com grande destaque o repúdio das crianças contra os políticos desonestos que provocavam vergonha na população. No dia combinado, por volta das oito horas, os alunos de diversas escolas começaram a sair pela rua com cartazes na direção da praça. No centro desta, um potente equipamento de som, instalado num amplo palanque, convocava todos para participar do grande protesto. Os cartazes carregados por jovens e crianças de todas as idades resumiam a indignação deles: “Governantes, o poder não é para empregar parente, é para servir ao povo”. “Por favor, apliquem o dinheiro da população sem roubar”. “Prisão para os assaltantes das verbas do Estado”, diziam alguns. Um garoto de cinco anos tremulava o seu: “Lugar de ladrão não é no poder, é na prisão”. Os adultos aplaudiam entusiasmados enquanto a meninada caminhava ao som de um carro que tocava música e convocava todo mundo para se deslocar à praça. O locutor era vibrante: — Aqui está a geração que passou a sentir vergonha de muitos adultos. Estas crianças e os jovens aqui presentes irão dar um basta naqueles que chegam ao poder para se transformar em ladrões da coisa pública. Só há um lugar certo para quem rouba dinheiro do povo, é a cadeia. Essa garotada fará diferente, inclusive, colocando esses criminosos na prisão. Uma menina de aproximadamente sete anos tremulava seu cartaz em que implorava: “O mau exemplo nada constrói. É horrível o que muitos fazem no exercício do poder”. A manifestação passou em frente ao apartamento de um político acusado da prática de irregularidades e que jamais sofreu qualquer punição. Ao ler os cartazes agitados pelas crianças, a esposa do homem, que se posicionara na varanda para saber do que se tratava, tomou um susto. Logo percebeu que a censura das crianças se dirigia ao marido. O filho de quinze anos não conseguiu disfarçar o forte impacto que sentiu ao ler o cartaz conduzido por uma linda adolescente de


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sua idade: “Devolva o dinheiro da população, seu ladrão cara-depau”. Nenhuma dúvida pairava, na sua alma, de que aquela garota se dirigia ao seu pai. Olhou com o semblante entristecido para a mãe e indagou: — Por que o papai faz isso com a gente? Será que pensava que ninguém descobriria suas irregularidades, desviando o dinheiro do Estado? A mulher ficou pálida. Emudeceu. Os olhos lacrimejaram ao perceber o constrangimento suportado pela família. Avaliou o vexame que o filho experimentava, sentindo-se impedido de pronunciar o nome do seu pai, na frente dos jovens de sua idade, dispostos a combater a corrupção. A desolação do filho tocou-lhe o fundo do coração. Sentou-se na poltrona da sala. Com a voz trêmula, falou ao rapaz que permanecia curvado e com os ombros encolhidos no canto da varanda: — Peço-lhe pelo amor que tem a Deus: seja diferente do seu pai. Jamais pratique qualquer ato ilícito. Quando for pai, dê exemplo que cause orgulho ao seu filho. Nunca pratique ações que possam envergonhá-lo. Ela se levantou em seguida e se dirigiu ao quarto. A manifestação seguia, cada vez com mais adesão de crianças, jovens e até adultos, na direção do ponto previsto para a concentração de todos a algumas quadras dali. No palanque instalado no centro da praça, Cibele, Cíntia, André, Jorge e Ana Cláudia aguardavam ansiosamente a chegada dos alunos. As árvores que circundavam o local estavam repletas de faixas, recriminando os atos de corrupção. Uma seqüência de músicas bem escolhidas eletrizava o ambiente. Um alto falante possante garantia um som com bastante nitidez em toda a extensão da praça. O locutor, um senhor de meia-idade, voz vibrante, dava boas-vindas à primeira leva de garotos que ali chegava, tremulando seus cartazes. Lia em voz alta os dizeres, parabenizando a criatividade dos seus autores. O lugar transformou-se pouco depois numa grande festa. Alguns educadores, entre eles a professora Diana, foram

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convidados a subir no palanque. Após a chegada dos alunos do último colégio que participava do evento, André, vencedor da eleição, foi convidado a ler o termo de posse no cargo de prefeito da Cidade dos Meninos. Após a leitura e os aplausos dos presentes, o locutor disse: — Professores e alunos, nada mais agradável, nesta manhã, do que ouvirmos a palavra do nosso prefeito, eleito pela vontade soberana dos colegas de sua classe. André aproximou-se do microfone no centro do palanque. Ao deparar-se com aquela quantidade de gente, tremeu os pés e gelou as mãos. O coração batia como se desejasse pular para fora do seu peito. Não podia, porém, se recusar a usar a palavra naquela ocasião. Nunca se sentira numa situação tão desafiadora. Respirou fundo. Olhou para sua frente, na direção da porta de uma igreja a alguns metros do local, pediu a Deus que o iluminasse e disse: — Professores, colegas estudantes que aqui compareceram para exigir que os adultos parem de dar maus exemplos no exercício do poder. Transformamos esta manhã num dia diferente. Criamos um marco divisório entre as gerações. Pela primeira vez, as crianças e os jovens vêm à praça pública dizer que não suportam mais as irregularidades cometidas a todo instante pelos adultos. Nem aceitam os péssimos exemplos que lhes são dados em todos os níveis do poder. — No passado, parece claro que ninguém teve preocupação de ensiná-los a respeitar o dinheiro da população e o patrimônio público. Só essa omissão pode explicar a preocupante disposição para a prática de tanta ação criminosa. — Mesmo como crianças e adolescentes com menos de quinze anos, sem direito a voto, nós todos aqui exigimos prisão para os infratores que desviam dinheiro do povo. A Justiça não pode ficar indiferente aos crimes cometidos pelos homens públicos. A impunidade dos mais velhos estimula alguns jovens, que são fracos de espírito, a seguir seus exemplos, prejudicando a população inteira. — Nós seremos diferentes. Não desviaremos jamais dinheiro do povo no dia em que chegarmos ao poder. Nenhum de nós provocará vergonha em criança alguma. Quando nos tornarmos homens públicos, ocupantes de mandatos outorgados pelo povo, buscaremos


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o aplauso das crianças, jamais a censura pública pela baixeza de nossos atos. A praça inteira foi ao delírio. Alguns batiam tambores. Aplausos, gritos de todos os lados deixaram André visivelmente emocionado. Após acenar com a mão, pedindo silêncio, já tendo dominado os nervos, prosseguiu falando: — Anuncio ao mundo que seremos diferentes. Afirmo que a nossa geração não fará essa palhaçada com que os mais velhos chocam os governados. Não provocaremos vergonha no povo porque Deus colocou no nosso caminho uma pessoa iluminada que se chama professora Diana. O som dos aplausos demorados o impediu de falar por algum tempo. Restabelecida a ordem, prosseguiu: — Ela compreendeu que não basta ensinar a criança apenas a ler e a escrever. É fundamental também estimulá-la a cultivar os bons princípios. Ela provou a cada um de nós que não vale a pena ser ladrão do dinheiro do povo. Em nome dessa multidão de alunos, aqui presentes nessa manhã histórica, eu lhe digo, professora Diana, de todo o coração: obrigado por nos motivar a ser diferente das pessoas sem alma que roubam até o dinheiro da merenda escolar. Muito obrigado mesmo.

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Após intensa gritaria, choro e aplauso, o locutor chamou a aluna Cibele para usar a palavra. Com a voz trêmula, sem esconder o nervosismo, ela disse: — Não poderia deixar passar esta oportunidade para, em nome dos estudantes, fazer uma homenagem à professora Diana e a todos os professores. — Ninguém costuma pensar nisso, mas a professora atua como se fosse nossa segunda mãe. Ela nos oferece o saber que é essencial para nosso crescimento intelectual e para sermos bem sucedidos na vida. Sem a luz da professora para iluminar nossos caminhos, a existência de cada um seria muito escura. Seríamos muito limitados e jamais ficaríamos preparados para desfrutar o melhor da vida. — Quero neste momento prestar uma homenagem, na pessoa da professora Diana, a todos os verdadeiros educadores. Aquelas pessoas que têm verdadeira paixão pela atividade de educar, de transmitir o saber. Conclamo os alunos de todas as escolas a respeitarem seus professores. Eles desejam apenas o melhor para nós. Quando nos advertem com mais rigor por causa de nossos erros, simplesmente desejam aprimorar nossa formação. — Um grande educador tem competência, tem compromisso com a educação e devoção à sua profissão. Precisamos dar mais importância ao papel do professor na sociedade. Cabe a ele disseminar o saber entre as pessoas e cuidar da boa formação de todos. Sem uma atuação determinada dos educadores, os homens acabam atrasados, passando a agir como os animais. Assaltam e matam, prejudicando a paz na cidade. — Finalmente, professora Diana, passo às suas mãos uma placa para que guarde num lugar especial por toda a sua vida. Estes dizeres, nela gravados, resumem a sua importância na existência de cada um de nós: “Professora Diana, muito obrigado por fazer germinar em nós a semente da vergonha na ação de desviar dinheiro do povo. Se os adultos tivessem tido a senhora como professora, na infância, a realidade seria diferente e não existiria tanta pobreza. Seus alunos de 2006”.


professora recebeu a placa das mãos de Cibele e exibiu-a aos presentes. A praça inteira gritava o seu nome. Acalmados os ânimos, o locutor anunciou: — Atenção, atenção! Para encerramento deste encontro inesquecível, vamos ouvir nesse momento a professora Diana. Ela aproximou-se do microfone e falou com a voz pausada: — Meus alunos queridos, colegas professores e professoras, pais aqui presentes, enfim, uma saudação a todos. Confesso que estou com o meu coração radiante. As crianças e os jovens compreenderam a minha recomendação. Serão diferentes de muitos adultos que, por deformação, só pensam em chegar ao poder para nele se perpetuar e tirar proveito. — Tenho certeza de que não repetirão essas ações vergonhosas, que provocam indignação no povo e nos trazem a esta praça para dizer um basta. Essa certeza me deixa com uma sensação de leveza pelo dever cumprido. — Penso que a vaidade excessiva é uma doença que ataca as pessoas que não descobriram a essência da vida. Quero compartilhar, por isso, a placa que acabo de receber com todos os educadores que, diariamente, fazem o possível para tornar o mundo melhor. — Agradeço de público a colaboração do meu marido e dos meus filhos que sempre me estimularam a fazer o melhor de mim para os meus alunos. — Com o passar do tempo, os alunos esquecem os professores. Podem me esquecer sem problema algum. Conhecerão vocês novos educadores, por isso não serei mais lembrada. Peço a cada um apenas que, pelo resto da vida, nunca esqueça a advertência que sempre costumo fazer: “dinheiro público é coisa sagrada, quem ousar desviá-

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lo deve ter a prisão como destino”. — Não tenho nenhuma dúvida de que, quando vocês chegarem ao poder, eu poderei dizer aos meus amigos: fui professora desse deputado, prefeito, senador, governador, vereador, presidente, juiz, desembargador ou ministro. Sinto orgulho das suas posições porque são sempre pautadas na retidão. É apenas este o presente que espero receber um dia de vocês. Muito obrigada. “Diana, ninguém será ladrão” gritavam as crianças embaixo do palanque. Muitos aplausos e gritos se seguiram. Todos queriam abraçar a professora. O locutor com a voz grave falou: — Já está sendo distribuído entre vocês, o texto da Constituição da Cidade dos Meninos que os alunos da professora Diana produziram. É bom ler com atenção e pôr em prática as normas, ali escritas, que já estão em vigor. Agradecemos a presença de todos. Vamos cantar o hino nacional. Depois disso, estará encerrada esta festa magnífica que ficará para sempre na nossa lembrança. As pessoas, ali presentes, se deram as mãos e cantaram o hino com muita emoção. O garoto, com sarda no rosto e óculos de grau espessos, não conteve o seu ânimo de protestar contra a corrupção. Enquanto todos se concentravam na praça, subiu numa árvore na frente do apartamento do político acusado da prática de diversas irregularidades e colocou uma faixa com estes dizeres: “Não adianta roubar a verba da população, pois até as crianças sabem e não perdoam o ladrão”. Quando todos retornavam da praça, uns para os seus colégios e outros para suas casas, perceberam a faixa tremulando. Quase todos aplaudiam e olhavam para o apartamento do político com ar de desdém. Lá em cima, o filho dele apertava o rosto com as duas mãos e não escondia sua dor por não poder descer e se integrar no protesto dos pré-adolescentes de sua idade. Lágrimas escorriam na sua face. Nada podia fazer para apagar as coisas erradas praticadas pelo seu


pai. É que ele não recebeu educação para lidar com o dinheiro do povo.

Art. 1º — Todas as crianças terão direito a uma casa e escola de qualidade Art. 2º — Pai e mãe pagarão pensão ao filho, conforme a sua situação econômica, sem necessidade de ordem judicial. Art. 3º — Todos são iguais, não podendo haver privilégio para contratação em cargo público. Art. 4º — O prefeito deve visitar, pelo menos, duas escolas por mês na cidade que administra. Art. 5º — É proibido o ingresso de pessoa incompetente no serviço público. Art. 6º — Quem já praticou ação desonesta não pode ser candidato para disputar mandato político. Art. 7º — O candidato só deve prometer aos eleitores aquilo que pode fazer. Perderá o mandato aquele que prometer fazer algo e, após eleito, fizer o contrário do prometido. Art. 8º — É assegurada a liberdade e o direito de crítica ao governo. A oposição não pode ser perseguida nem é tolerada a mentira de qualquer político, seja da situação, seja da oposição. Todo homem público deve falar a verdade e saber o que está dizendo, para não enganar o povo. Art. 9º — O pai deve dar bom exemplo para o filho, pois o filho costuma repetir aquilo que viu o pai fazer. Art. 10 — Ninguém fará com o outro aquilo que não deseja que façam consigo. Art. 11 — É proibido veicular propaganda de bebida e cigarro, de sete da manhã às dez da noite, no rádio e na televisão. Art. 12 — Pessoa sobre quem recai desconfiança não pode ser juiz. Art. 13 — O bom juiz receberá homenagem de toda a cidade,

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sempre que tiver exercido o seu trabalho com dignidade, aplicando corretamente a lei. Art. 14 — É dever dos pais e dos professores mostrar aos filhos e aos alunos que não vale a pena roubar nada dos outros. Art. 15 — O mandato dos integrantes do Executivo e do Legislativo será de dois anos. Art. 16 — Quem estiver no exercício do mandato político não pode ser nomeado nem para órgão de fiscalização de contas nem para o Poder Judiciário.

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i Texto composto no Adobe Jenson Pro corpo 12 entrelinha 16 pela Omni. A fonte Adobe Jenson Pro traduz a essência do design tipográfico da família dos romanas de Nicolas Jenson e Ludovico degli Arrighi. A combinação consistente e bela desses ícones da Renascença resulta em elegante tipologia que inspirou Robert Slimbach, do time de designers de tipos da Adobe, a realizar este revival, o redesenho do Jenson que resultou no Adobe Jenson Pro. O Jenson é um tipo refinado, cheio de poder e flexibilidade, ideal para a composição de textos raramente encontrada na tipologia digital. Os títulos foram compostos na fonte Trajan Pro, desenhada por Carol Twombly em 1989, inspirada em inscrições da Coluna de Trajano, em Roma. Impresso na Gráfica Halley em papel Polen Soft para a Omni Editora. i www.omnieditora.com.br


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evoltados com os crescentes exemplos de corrupção de muitos adultos, que roubam até o dinheiro da merenda escolar destinada às crianças pobres, meninos e meninas resolveram criar a sua própria cidade. Elaboraram uma CONSTITUIÇÃO, proibindo toda pessoa desonesta de exercer o poder político. Na cabeça dos mais jovens, quem comete ilegalidade, se apropriando de dinheiro do povo, deve ficar bem distante de qualquer cargo. Vale a pena conhecer essa cidade. Para habitá-la, basta afastar de perto dos cofres, onde o dinheiro da população é guardado, os homens que adquiriam o hábito de ficar com as coisas do povo.

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