Sistema de Desenvolvimento Local de João de Barros

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CAPITAL SOCIAL, CULTURA E DESIGN UFPE | 2010.1

SISTEMA DE DESENVOLVIMENTO LOCAL DE JOテグ DE BARROS

CAPITAL SOCIAL, CULTURA E DESIGN UFPE | 2010.1 Profツェ. Ana Emテュlia Grupo: Aline C. Matoso, Emmanuel Gomes, Matheus Calafange, Laura Morgado e Rodrigo Aguiar


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APRESENTAÇÃO

Este relatório tratará de analisar historicamente e conceitualmente os processos de desenvolvimento de capital social na comunidade de João de Barros, bairro de Santo Amaro, a partir do contexto histórico de criação de entidades, seus líderes, suas potencialidades, relações de parceria e demais formas de representatividade. Foi tomado como parâmetro para análise os 7 pontos elencados no artigo “Cultura: matéria prima de educação e desenvolvimento”, de Tião Rocha.


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MEMÓRIA e MEIO AMBIENTE

O bairro de Santo Amaro, originalmente Santo Amaro das Salinas, localizado ao norte do Recife, entre Olinda e a Boa Vista, viu o início de seu processo de urbanização já em meados de 1590, com as primeiras edificações de beneficiamento de sal, conhecidas como As Salinas1. Embora geograficamente próximo do Porto e dos centros de maior atividade comercial como a Boa Vista e o bairro de Santo Antônio, aquecidos pela atividade dos judeus holandeses a partir de 1630, Santo Amaro permaneceu durante muito tempo como um pequeno núcleo, situado em meio a extensos manguezais. Seu crescimento só foi impulsionado durante o século XIX, na administração do Conde da Boa Vista, com as construções do Hospital e do Cemitério de Santo Amaro. Já no século XX, instalaram-se neste bairro diversas fábricas, a Vila Operária, a Vila Naval e o Parque Treze de Maio, próximo a Boa Vista2. Cerca de 400 anos depois do início do processo de ocupação territorial dos 360 hectares de extensão do Bairro, Santo Amaro adentra pela segunda metade do século XX em meio a um Recife completamente urbanizado, e já marcado profundamente pelo desgaste urbano/humano que assolou o centro histórico da cidade, consequência de uma intensa exploração comercial e da falta de políticas que visassem a ocupacão planejada e ambientalmente consciente das terras. Em 1979, período de governo militar, a comunidade de João de Barros em Santo Amaro (às margens da avenida Agamenon Magalhães, uma das maiores da cidade), já era o endereço de dezenas de famílias. Santo Amaro é o bairro mais populoso do centro da cidade, e no entanto os moradores de João de Barros ainda não tinham calçamento nas ruas, canais de escoamento de esgoto, banheiros nas casas ou mesmo casas de alvenaria. As taxas de analfabetismo e violência refletiam a carência de iniciativas em prol do desenvolvimento sustentável do bairro e da exploração das potencialidades locais, gerando regiões construídas a partir dos esforços fragmentados e espontâneos de um sem número de agentes isolados3. Esse processo predatório culminou no final da década de 1990, quando Santo Amaro já era um quadro forte no tráfico de drogas e pesquisas o apontaram como bairro mais violento do país, título que ainda hoje, com indicativos que já apontam melhoras, ainda estigmatiza e segrega os moradores do bairro.

Fonte: Gaspar, Lúcia. Santo Amaro (bairro, Recife). Pesquisa Escolar On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br Fonte: Recife, Prefeitura. Secretaria de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente. Regiões político-administrativas do Recife: aspectos gerais. Recife: 2001. 33 p. Disponível em: http://www.recife.pe.gov.br/pr/secplanejamento/inforec/RPA.zip Fonte: Maricato, Ermínia. Dimensões da tragédia urbana. Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/cidades/ cid18.htm


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FORMAS ORGANIZATIVAS e FORMAS DE FAZER

Apesar das condições pouco favoráveis, 1979 é também o ano da fundação do Associação Desportiva Palmeiras de Santo Amaro. O Palmeirinhas, como era conhecido, era o time de futebol da comunidade (jogava com camisa verde e branco), e, diferente da maioria dos times de várzea, teve desde o nascimento um CNPJ, sede e diretoria. Não à toa. Um de seus jogadores-fundadores foi Edvaldo Pereira dos Santos, na época com cerca de 20 anos, atuante na militância do movimento estudantil universitário e em movimentos populares da esquerda. Edvaldo já buscava por ferramentas que garantissem representatividade e legitimidade à toda e qualquer iniciativa coletiva, e baseava-se na idéia de que sem um CNPJ uma organização está, para todos os fins, vinculada à condição de indigente. Em 1983, Edvaldo já não estava mais na escalação do Palmeirinhas, mas diretamente envolvido na criação da 1º Lei das ZEIS, as Zonas de Especial Interesse Social (como um complemento à Lei de Uso e Ocupação do Solo, de 1963), na qual a Prefeitura do Recife reconhece a existência de áreas de favelização (“assentamentos habitacionais populares”) e recomenda a necessidade de serem estabelecidas normas urbanísticas especiais no interesse de promover a regularização jurídica e a integração das ZEIS na estrutura urbana. João de Barros se tornou uma ZEIS, esse título se configurou como o início de um período de visibilidade para uma comunidade que começava a se organizar para ocupar espaços políticos e reinvindicar o preenchimento do gap de décadas de negligência dos poderes públicos. Em 1986, tomou posse a primeira diretoria do recém-criado Conselho dos Moradores da João de Barros, a máxima instância deliberativa da comunidade - que também nasceu regularizada e sediada em um pequeno quarto-e-sala. Através do Conselho, a população de João de Barros poderia agir de forma mais precisa nas reivindicações e propostas levadas para as instâncias públicas e no relacionamento com as demais comunidades do bairro. Em decorrência da Lei das ZEIS, foram criados canais de esgoto e as estreitas ruas da comunidade ganharam calçamento. Mas o investimento “paternal” em infra-estrutura, se não vem acompanhado de novas possibilidades de geração de renda para os moradores, cria estruturas inconsistentes, que não mostram sustentabilidade prática para aqueles que deveriam usufruí-la. Segundo Edvaldo, “as pessoas não estavam preparadas para terem banheiros em casa”. Não tinham condições sequer de investir na possibilidade de terem vasos sanitários e pias para utilizar com a nova rede de esgoto que estava sendo construída. A solução encontrada pelo Conselho para garantir a utilidade da obra foi a produção local de vasos sanitários artesanais, a partir de uma tecnologia trazida da Bahia, que possibilitou a venda de um vaso sanitário pelo equivalente a dez reais. Em 1987, os líderes comunitários de João de Barros participaram diretamente também da elaboração da proposta de lei do PREZEIS - Plano de Regulamentação das Zonas de Espcial Interesse Social. Basicamente, a Lei do PREZEIS reconhece o direito à moradia acima do direto à propriedade, protegendo os ocupantes de “assentamentos habitacionais populares” contra o poder e influência da especulação imobiliária. Essa lei, aprovada um ano antes da Constituição de 1988, foi considerada


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de vanguarda e foi utilizada com parâmetro para a lei federal conhecida como o Estatuto da Cidade. Além disso, a lei prevê também a participação popular em diversas etapas relativas ao planejamento e implantação da urbanização e legalização da posse de terra, instituindo as Comissões de Urbanização e Legalização da Possa de Terra - as COMULs, e também o Fórum do PREZEIS. Em 1995, com a reforma proposta pelo Fórum para a Lei do PREZEIS, instituiu-se as Câmaras de Urbanização, Legalização, Orçamento & Finanças, instâncias para consultoria técnica acerca das questões tratadas pelo PREZEIS. Em 1996, foi comprado um grande terreno dentro da João de Barros e construído um galpão, sede do projeto Unidade Profissionalizante de João de Barros. A Unidade funcionou durante um ano trazendo conhecimento de atividades profissionais para os moradores, tempo suficiente para a idealização, em 1997, da Coopromserv, a Cooperativa de Produção de Móveis e Prestação de Serviços, que além de continuar o trabalho de capacitação da Unidade Profissionalizante, já era também o emprego formal daqueles que eram capacitados. Em 1998, através de uma consulta à Câmara de Urbanização, Legalização, Orçamento & Finanças, foi requisitada e obtida a autorização legal para ocupar um novo terreno às margens da Av. Agamenon Magalhães. A proposta apresentada pelos líderes comunitários foi a construção de um espaço de cultura e lazer para a comunidade, algo fisicamente e conceitualmente mais amplo do que o Palmeirinhas e a Coopromserv. Erguido em 1998 pelos moradores da comunidade, e subsidiado por diversas parcerias, o Espaço Cultural de Santo Amaro ganhou um nome que abarca a palavra cultura da forma mais fiel: antropologicamente, para além das linguagens artísticas, o Espaço tinha lugar para tudo: uma área coberta para eventos, escritórios no primeiro andar para sediar e incubar diversas entidades do bairro, aulas de esportes, oficinas profissionalizantes, agendamento para eventos particulares, reuniões do Fórum da comunidade. Em 2000, quando da legalização de seu estatuto, reafirmou-se como espaço de referência dentro do bairro e engrossou o caldo de entidades representativas de João de Barros que eram visualizadas externamente. No mesmo ano foi fundada também a COEPAZ, Centro de Organização Popular das Áreas ZEIS do Recife, uma OSCIP cujo o intuito era ocupar espaço no Fórum do PREZEIS, que reservava em sua composição um percentual para ONGs e OSCIPS e, na leitura dos líderes comunitários de várias ZEIS, essas organizações não estavam agindo de forma realmente comprometida com a agenda que as comunidades julgavam prioritária.


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VISÃO DE MUNDO,SISTEMAS DE DECISÃO e RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

As entidades nascidas na comunidade foram, pouco a pouco, estrategicamente criadas e posicionadas de forma a garantir o máximo de oxigenação e interlocução entre João de Barros, seus moradores, o poder público e outras entidades privadas, compondo um verdadeiro sistema de desenvolvimento local inteiramente construido de baixo para cima, utilizando intensamente do conhecimento das ferramentas legais numa árdua construção de longo prazo. Assim, desenhando-se o organograma da comunidade, o Conselho dos Moradores garantiria o Fórum da Comunidade, onde seria feita a escuta sobre as reais necessidades e formularia propostas a serem encaminhadas junto ao Fórum das ZEIS, Prefeitura e Governo do Estado. A COEPAZ reforçaria as propostas de João de Barros e Santo Amaro no Fórum do PREZEIS, desta vez de forma integrada, embora contando com Edvaldo na presidência, com as demais 60 áreas ZEIS. Por outro lado, a Coopromserv trataria de capacitar os moradores visando a independência produtiva da comunidade e constituindo-se ainda em um importante vetor de geração de renda, enquanto o Espaço Cultural de Santo Amaro daria vazão ao potencial criativo da comunidade, sendo também uma multi-sede para uma infinidade de outras atividades locais e mais uma frente de interlocução com o governo, através de secretarias de esporte e cultura, e liderando também o Fórum de Cultura de Santo Amaro. Atualmente, depois de um período de esfriamento na atuação das entidades que resultou no abandono do Conselho dos Moradores, paralisação das ações da COEPAZ e dissolução da Coopromserv, novas reformas e um novo processo de ressignificação das estruturas construídas está acontecendo na comunidade. Através do diálogo do Espaço Cultural de Santo Amaro com a representação estadual do Circuito Fora do Eixo, o Lumo Coletivo (entidade sem fins lucrativos) e financiada pelo Governo do Estado (Fundarpe e Secretaria Especial de Emprego e Juventude), uma nova entidade estará sendo implementada no Sistema de Desenvolvimento Local da João de Barros: o Banco Popular Solidário de Santo Amaro. Essa entidade vai ter a missão de transversalizar com todas as outras e fortalecêlas, reativando e garantindo a sintonia entre o Fórum dos Moradores, a diretoria Conselho dos Moradores, a COEPAZ (que está sendo reativada), o Espaço Cultural, a rede de comércio do bairro e estimulando a capacitação profissional e formação de empreendimentos através de núcleos gestores de comunicação, circulação e distribuição, além das várias associações desportivas que surgiram a partir do Palmeirinhas, como o Miseráveis F.C. e o Barcelombra (sic). Verifica-se também que um componente que ainda não havia sido adicionado a esse sistema com a força que poderia é a comunicação. Essa nova etapa de desenvolvimento deverá contar com meios de comunicação internos na comunidade como pontos prioritários e preocupados em atingir as pessoas onde elas realmente estão. Principalmente a comunicação virtual, que tem condições de atingir praticamente a totalidade dos jovens moradores da comunidade, usuários assíduos de lanhouses e já completamente familiarizados com as redes virtuais.


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção da democracia no Brasil, ainda em sua forma representativa, é historicamente muito recente e, no entanto, já povoada de traumas coletivos que cristalizaram-se através das décadas em tristes e preconceituosas definições do “senso comum” acerca de temas como política, representatividade, liderança, participação, coletividade. Pudera: desde os tempos da República Nova, da Era Vargas, o populismo e as políticas assistencialistas vem revogando tacitamente o direito das pessoas a pensarem de forma crítica sobre os processos que regem a sociedade da qual fazem parte, principalmente quando as estruturas de educação oferecidas, quando não são simplesmente ausentes, são tão arcaicas que mantém-se intactas no mesmo modelo de ensino há séculos, reforçando a idéia de que aprender e refletir são, de fato, atividades entediantes. Nesse contexto, torna-se um desafio para muitos intransponível conseguir chegar ao estágio de amadurecimento político que permite o entendimento sobre o seu entorno e a criação de instâncias propositivas para solucioná-los. Talvez esse seja o mais impressionante sobre o processo de desenvolvimento de João de Barros: a clareza política dos líderes que, juntos, compraram a briga contra a maré de fatores desfavoráveis e desencorajadores e se utilizaram de ferramentas legítimas, não visando a barganha das negociatas no varejo com políticos do baixo clero, mas apostando nas estratégias de sustentabilidade a longo prazo para basear suas ações.


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