Até que as ondas percam o sal - Danilo de Albuquerque

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© 2018 Direitos reservados de acordo com a legislação em vigor. Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Por questões estilísticas e de verossimilhança, o texto da presente obra foi mantido em sua versão original. Edição: Título: Autor Editora: Revisão:

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1ª – maio, 2018 Até que as ondas percam o sal Danilo de Albuquerque Copyright ©Danilo de Albuquerque, 2018 Luz da Razão Editora Copyright ©Luz da Razão Editora, Porto, 2018 Aline Job e Daniel Gruber Copyright ©Aline Job, 2018 Copyright ©Daniel Gruber, 2018 Ulisses Comunicação - www.ulisses.com.pt Copyright ©Ulisses Comunicação, 2018 Grandfailure/istockphoto.com Copyright ©Grandfailure/istockphoto.com , 2018 Ulisses Comunicação Copyright ©Ulisses Comunicação, 2018 Sindplus Card Copyright ©Sindplus Card, 2018 Empresa Diário do Minho, Lda, maio de 2018 978-989-99817-1-3 XXXXXX/18

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Aos meus filhos



isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além Paulo Leminski, “Incenso fosse música”.



A miserabilidade da condição humana torna-se mais perceptível àqueles que resistem aos processos de embrutecimento coletivo. Talvez por isso ele tenha optado por um modo tão excêntrico de fazer justiça. Demorou a perceber que a concepção de vida prática não ultrapassa a singularidade de mundos privativos. Aliás, por mais de dez anos vinha ponderando sobre o que de fato deveria ser tratado como prioridade, sobre os objetivos que poderiam dar um pouco mais de sentido ao seu cotidiano e às suas relações. Então, depois daquele emaranhado de eventos atordoantes, decidiu que não mais restringiria sua existência a um conglomerado pasteurizado de aço, pedra e gente, e que de agora em diante os seus dias seriam vividos de acordo com o que ele, alguns anos atrás, havia estabelecido como plenitude de consciência. Só não podia imaginar, é claro, que a maior das provações ainda estava por vir. *



1 Se houvesse hierarquia entre as árvores da Mata Atlântica, alguém poderia dizer que este cedro exerce a autoridade de um cacique. Seu tronco é largo e tem uma textura que lembra pedra. Além disso, a pessoa teria a impressão de que o surgimento desta árvore tem a ver com explosão ou algo assim, e que logo depois da explosão esse mesmo tronco bifurcou-se em toras espessas e roliças que, por sua vez, entrelaçaram-se como sucuris gigantescas em noite nupcial. Alguns galhos parecem predestinados a servir de poleiro às aves nativas, e talvez por isso tenham escapado precocemente pela horizontal. Uma arara de cabeça vermelha segue sobre um deles. Suas passadas trôpegas e o gingado do corpo refletem o caminhar de um bêbado. Vaidosa, ela expõe a exuberante progressão de cores ilustrada 13


pelas penas. O vermelho se torna azul, mas antes disso percorre uma gama sutil de tonalidades alaranjadas. Com as asas abertas, berra e mergulha a cabeça no vento enquanto tenta se equilibrar. Salta, golpeia o ar ao estilo de um grande predador e sai a planar, rente aos cipós, com a fluidez de um avião de papel. Volta ao lugar onde estava e espera reticente. O rapaz enfia a mão na bolsa e apanha sementes de girassol. Estica o braço na direção da ave, que se pendura de ponta-cabeça e arrisca bicar algumas. No entanto, esse jeito desconfiado e um pouco rebelde do bicho faz com que o rapaz caia na gargalhada. Mas logo ele nota que está diante de uma criatura melindrosa, pois ela protesta escandalosamente e faz ecoar pela floresta seus gritos histéricos, como se estivesse a convocar todas as araras do mundo para que aquela atitude debochada fosse de alguma forma hostilizada. A cachorrinha que o acompanha, orelhas duras como ponta de adaga, pelagem rala que deve ser branca após o banho, rodopia sobre o próprio eixo numa velocidade admirável. Precisa demonstrar sua bravura à ave audaciosa. Portanto cisca o chão com as quatro patas, criando assim uma nuvem de terra ao redor. Não bastasse isso, deixa registrado seu inconformismo através dos latidos estridentes, tão precisos e ritmados que causariam desconforto nas pessoas com grau de irritabilidade acima da média. “Sossega”, diz o rapaz, que veio de Porto Alegre e recebeu o apelido de Gaúcho por conta do sotaque. 14


Ele oferece um pedaço de banana à cachorra, que investiga a fruta com nojo instintivo. Mesmo assim, talvez receosa pela possibilidade de perder a refeição, decide tomar pelos dentes aquilo que provavelmente se trata da sobremesa predileta dos psitacídeos, mas que, não raras as vezes, faz os cães sentirem-se oprimidos pela lancinante tarefa de ter que ingerir alimentos com baixo teor proteico e elevada carga de frutose. “Fresca”, ele diz, e sai a caminhar pela mata. Então enfia na boca o que sobrou da banana verde, e isso dá uma sensação tão estranha que chega a ser repugnante. Os dentes parecem ter perdido o esmalte e ficam adstringentes, algo como aqueles bochechos com Coca-Cola quente feitos na infância, só que dez vezes pior. Alguns espectros amarelados conseguem se desvencilhar das copas das árvores e tocar o chão, coberto por folhas secas e galhinhos que se quebram quando ele pisa. A cadela fica para trás e fuça alguma coisa no mato, mas logo vem em disparada e o alcança. Contorce o corpinho e murcha as orelhas quando passa, depois segue em frente até encontrar uma moita para urinar. O rapaz caminha por dez minutos e chega a uma casinha de alvenaria, rodeada por ripas pontudas enfiadas no chão. No geral, é como aqueles casebres exibidos em documentários sobre a seca no Nordeste, com a diferença de que este fica no meio da mata fechada. Suas paredes foram erguidas de modo 15


certamente relapso, pois o rapaz tem a impressão de que elas estão ali meio que desequilibradas, fazendo algum tipo de malabarismo sobre a fundação quadrada e cheia de rebarbas. O telhado de queda única é sustentado por dois troncos de eucalipto, separados um do outro por cinco ou seis passos de homens medianos, e parece estar prestes a desabar. Se o Gaúcho olhasse com atenção para a porta da frente, veria que ela está repleta de rachaduras aleatórias adquiridas com o tempo e recoberta por uma camada rala de tinta azul não aderida muito bem à madeira, e que bem no meio dela foram pintados alguns garranchos também de forma relapsa: Vende-se peixe fresco. Ele bate palmas e espera. A cadela abana o rabo em câmera lenta. Encara a porta com os olhos congelados, as orelhas retesadas em estado de alerta. No entanto, como se precisasse de uma pausa para se recompor, personifica uma entidade ou algo do tipo, que imprime ao próprio semblante uma negligência notável. Ela dobra as orelhas cartilaginosas para trás e neste momento seu olhar perde um pouco do foco. Ganha traços de dependência e submissão. Sua língua foge pela lateral do focinho comprido e oscila no ritmo da respiração acelerada. Sai um homem arrastando sandálias de couro com algumas tiras estouradas. Ele usa camisa xadrez desabotoada de mangas curtas, que revoa sobre o calção preto. Sua barriga é saliente e dura e se destaca do corpo pequeno e magricela e quase sem pelos. E se 16


alguém quisesse ver algumas figuras parecidas, bastaria que fosse em plena segunda-feira àqueles botecos de periferia com mesas de bilhar na frente. “Pensei que não viesse mais”, diz o morador, que se chama Joaquim. “Que nada”, retruca o Gaúcho. “Sobrou tainha pra mim?” O pescador convida o visitante a entrar, mostrando a ele uma cadeira. Volta um pouco depois, as tainhas embrulhadas numa folha de jornal. Na outra mão, um copinho de cachaça. “Essa é da boa. Ganhei de um turista mineiro”, e oferece a bebida ao rapaz. Ele aceita e vira tudo num só gole. A ardência toma conta da garganta e por causa disso ele espreme os olhos e repuxa a cara exibindo os dentes. Devolve o copo a Joaquim e guarda os peixes no isopor encardido, que ele sempre faz questão de carregar para cima e para baixo por conta das cervejas produzidas em casa que ele guarda ali. “Vai querer?” O Gaúcho mostra as garrafas. “Ainda tenho duas na geladeira.” Na semana anterior, encontrou Joaquim trabalhando na beira da praia. Tentou puxar conversa, saber por que o pescador viera ao Bonete, mas o velho só disse que nascera em Pernambuco e que se mudara bem novinho para São Paulo. “Tu parecia meio ocupado outro dia”, comenta o Gaúcho. 17


Joaquim roça as unhas no mamilo enquanto pensa. Seu olhar expressa aquele padrão plácido e compenetrado das pessoas que cavoucam a memória no intuito de juntar as peças de um evento desfragmentado pelo cérebro, até que um tremelique súbito renova sua postura, imprimindo àquele corpo sofrido uma dose cavalar de autocomplacência. “Tinha muito peixe pra guardar, não consegui te dar atenção”, ele explica. “Não gosto de conversar quando estou trabalhando. Ainda bem que você percebeu e foi embora.” Irrompe um som que parece o motor engasgado de um Fusca velho, mas é a ignição da gargalhada medonha do Joaquim, que engata uma sequência de rajadas sonoras, estridentes e espaçadas, culminando em três ou quatro tossidas secas, arrematadas por uma pigarreada longa e reverberante. “Brincadeira”, diz o velho. “Vou pegar uma belezura ali dentro.” “Certo.” “Fica sentado aí!”, e repete a gargalhada assombrosa. Entra varrendo o chão com as sandálias. Volta trazendo uma garrafa transparente, cheia de um líquido amarelo-ouro. Uma mão no gargalo, a outra no fundo de vidro grosso: um campeão carregando o troféu. Puxa uma cadeira de praia e despenca o corpo sobre ela. Estica as pernas amarronzadas e repletas de pontinhos pretos, e esses pontinhos pretos são dezenas de picadas de borrachudos e outros insetos que já estão 18


cicatrizadas e que por isso ficaram assim. “Vim pra cá tem uns vinte anos. Morei até os quarenta e poucos em São Paulo.” Joaquim puxa a rolha da garrafa, ouve um estouro oco e despeja cachaça no copo. Bebe tudo de uma vez, como se fosse suco fresco. “Trabalhei desde os catorze nas lanchonetes da Maria Borba. Passava o dia inteiro na frente da chapa, fritava hambúrguer e bacon pros alunos do Mackenzie. Também tinha que controlar a chave do banheiro”, salienta. “Emprestava quando alguém aparecia no balcão pedindo pra mijar.” A cachorra vem cheirar os joelhos do Joaquim, e ele bate o pé para afastá-la. Ainda sentado, torce o corpo sobre a cadeira, voltando-se para trás. Aperta um lado do nariz e expulsa uma bolota de ranho pelo outro. Joaquim suspende a bunda do assento sem se levantar. Remexe o bolso do calção com tanta dificuldade que chega a dar dó. Enfim, depois de uma batalha épica envolvendo a cadeira e o próprio corpo, arranca do bolso um maço de cigarros, que por sinal está um bagaço. Puxa um deles com a pontinha dos dedos. Risca o palito de fósforo. Leva o cigarro à boca. Quando encosta o fogo na ponta e tenta dar uma tragada, desconfia de que alguma coisa esteja errada, mas não tem a menor ideia do que é. “Acho que o senhor acendeu do lado errado”, diz o Gaúcho. “Eita.” Joga aquele fora e consegue mais um. Suga o 19


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