George O Guardião da História (Prévia)

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O Guardião da História José Antonio Pedriali (Organizador)


Copyright © José Antonio Pedriali Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Coordenação editorial Christine Vianna Editora assistente Isabelly Bianchi Capa, projeto gráfico e editoração Marco Tavares Revisão José Augusto Pereira Patrocínio Promic: 20-038 SEI Nº 19.024.039731/2020-57

Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) G348 George : o guardião da história / José Antonio Pedriali (organizador). – Londrina : Atrito Arte, 2020. 198 p. : il. Vários autores. Inclui bibliografia. 1. Smith, George Craig, 1909-1992 – Biografia. 2. Pioneiros – Londrina (PR) – Biografia. 3. Londrina (PR) – História. I. Pedriali, José Antonio. CDU 981.622(091) Bibliotecária: Solange Gara Portello – CRB-9/1520

Atrito Arte Editora Rua Isaías Canet, 685 - Londrina - Paraná - Brasil - CEP: 86067-020 E-mail: atritoart@gmail.com - www.facebook.com/AtritoArte




Sumário Noventa e um anos atrás . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 O menino eterno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Tem início a epopeia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 E foi assim que aconteceu . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 Casa Sete. O centro social do sertão . . . . . . . . . 71 Partida e retorno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 O reconhecimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Cartas que compõem um testamento . . . . . . 137 Tributo a um pioneiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 “Busquem o líder da caravana espiritual” . . . 193

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Apresentação “George, o guardião da história” é uma coletânea de reportagens, documentos, depoimentos e fotos sobre George Craig Smith, que em 1929, aos vinte anos de idade, liderou o grupo avançado de funcionários da Companhia de Terras Norte do Paraná, responsável por iniciar o desbravamento desta região, uma das mais prósperas do país. Contribuem para esta coletânea: Alberto João Zortéa Antônio Mariano Júnior Domingos Pellegrini Elias Karam Erwin Fröhlich Eugênio Victor Larionoff George Craig Smith João Arruda José Antonio Pedriali Jorge Cernev Michely Massa Raquel de Carvalho Widson Schwartz

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Noventa e um anos atrás * “Chegamos.” “Chegamos onde?” “Nas terras da companhia.” Esse diálogo prosaico, entre o agrimensor Alexandre Razgulaeff e o funcionário da Companhia de Terras Norte do Paraná George Craig Smith, aconteceu no final da tarde de 21 de agosto de 1929. Smith, de 20 anos de idade, chefiava o grupo encarregado de abrir a primeira clareira numa área de 546.078 alqueires, ou 13.166 quilômetros quadrados, comprados do governo estadual pela empresa de capital inglês. Saíram de Ourinhos na madrugada do dia anterior, pernoitaram em Jatahy, atual Jataizinho, venceram o traiçoeiro rio Tibagi em canoas que puxavam os burros a nado, recorreram a um índio para cruzar os 22 quilômetros de mata para, finalmente, acampar no local indicado por Razgulaeff. Aguardava-os uma noite convulsionada por mosquitos, insetos, calor e fumaça. Tinha início uma das maiores epopeias da civilização, que foi a colonização do Norte do Paraná, regida por um projeto cuidadoso de distribuição de lotes, aproveitamento da água, abertura de estradas e disseminação de núcleos urbanos próximos uns dos outros e com infraestrutura que garantisse o bem-estar de seus habitantes, escoamento e comercialização de seus produtos. Idealizado cinco anos antes, o projeto começou a ser consumado num momento * Adaptação do artigo “Os 90 anos da epopeia norte-paranaense”, de autoria do organizador desta coletânea, publicado na “Folha de Londrina” em 21 de agosto de 2019.

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de grande turbulência mundial - a depressão norte-americana deflagrada dois meses depois da chegada deste grupo pioneiro e que se estenderia durante toda a década seguinte. Década que terminaria sob a Segunda Guerra Mundial. Conflagrações e genocídio lá fora, levantes militares em território brasileiro: as insurreições de 1930 e 1932 levaram à ditadura de Getúlio Vargas e consolidação do seu poder. O mundo se destruía enquanto o Norte do Paraná construía uma sociedade operosa e harmônica formada por 33 nacionalidades, mais os brasileiros, com predomínio de paulistas, mineiros e nordestinos - estes, aliciados para a derrubada da floresta e abertura de estradas. Londrina, Maringá, Apucarana, Arapongas, Rolândia, Cambé, Astorga, Mandaguari, Nova Esperança, Jandaia do Sul, Cianorte e Umuarama são as principais cidades nascidas deste empreendimento colossal. Empreendimento que mudaria não apenas a configuração do Paraná – a floresta foi substituída vorazmente pela lavoura e núcleos urbanos -, mas daria grande impulso à economia brasileira por causa do café, que reinou nas primeiras quatro décadas da colonização. Erradicado após a geada de 1975, o café deu lugar principalmente à soja, milho e trigo, o que impulsionou a agroindústria e agregou valor à produção do campo. O Paraná é o maior produtor de grãos do país. O projeto foi bem elaborado e executado – primeiro pelos ingleses, depois pelos paulistas que os sucederam pouco antes do fim da Segunda Guerra, renomeando a empresa como Companhia Melhoramentos Norte do Paraná. Mas os principais responsáveis por seu êxito foram as mulheres e os homens que se engajaram na epopeia. Sofreram todo tipo de privação física, inconstância climática, oscilação de 14


preços, controle férreo do governo sobre a comercialização do café. E se impuseram pelo trabalho e perseverança. Londrina, 21 de agosto de 2020, aos 91 anos da epopeia fecundada sobre uma mesa de bilhar, planejada em Londres, iniciada sob a liderança de George Craig Smith e concretizada por mulheres e homens abnegados, que venceram dificuldades de toda ordem. O calendário oficial de Londrina dedica o dia de hoje a esses pioneiros. Homenagem mais do que justa aos que estão entre nós todos os dias por meio de seu legado.

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George Smith, aos 18 anos, na Fazenda Santa Emília Acervo George Smith/Museu Histórico de Londrina


O menino eterno ­ desejo de aventura se impôs à recomendação dos O pais para que cursasse a faculdade. Afinal, haviam investido em sua formação de ensino médio internando-o em uma escola da Inglaterra, onde passou quatro anos, período em que seu contato com a família foi por meio de cartas, restrição atenuada pela proximidade da avó inglesa, a quem visitava nas férias. O desejo de aventura o fez trocar o conforto de São Paulo pelo trabalho árduo numa fazenda de algodão e em seguida pelos sobressaltos de uma floresta a ser conquistada. Aos vinte anos, chefiou a equipe de exploradores, nominada pela história como a “caravana pioneira”, que deu início ao processo de colonização do Norte do Paraná. O pai, engenheiro e professor da Universidade Metodista Mackenzie, construíra uma casa senhorial no elegante Jardim Europa. E ele abriu mão de tudo isso para dormir em ranchos de palmito assaltados por hordas de insetos e animais peçonhentos. Ele queria se aventurar. E fez de sua vida uma aventura permanente e mutante, pois foram várias suas facetas: o menino confinado no outro lado do Atlântico, o jovem audacioso que enfrentou a rusticidade do trabalho agrícola e participou decisivamente da transformação da imensa floresta numa das regiões mais prósperas do Brasil e do mundo. O adulto que resgatou um amor juvenil para se frustrar quando o consumou, frustração que o fez iniciar novo ciclo de aventura, desta vez no terreno espiritual, o de missionário às margens do rio Araguaia. Ciclo que sublimou voltando na velhice à cidade que ajudou a nascer, 17


para, além de continuar se dedicando à evangelização, testemunhar com sua presença, documentos e depoimentos que colheu dos outros que estiveram ao seu lado, a epopeia que protagonizou. Em todas essas fases, o menino esteve presente, pois manteve a ingenuidade, a gentileza, os gestos contidos, o respeito ao semelhante, em qualquer situação, que caracterizaram o aluno do internato. O menino jamais abandonou o jovem aventureiro, trabalhador, divertido e sedutor – como, afinal, as moças conseguiriam resistir ao seu mais de 1,80 metro de altura, porte altivo, traços faciais suaves porém varonis, testa frondosa e fulgurantes olhos azuis? O menino esteve ao lado do adulto que retornou à casa dos pais para se dedicar ao prosaico trabalho de representante comercial, na temporada mais longa de permanência ao lado da mãe, que venerava. O menino o aconselhou a retomar o amor da juventude e o levou ao encontro com Deus após a desilusão amorosa, conduzindo-o a um seminário nos Estados Unidos para prepará-lo para a fase espiritual de sua aventura permanente. O menino o inspirou no contato com os colonos e índios do Araguaia, tão carentes de amor e atenção quanto de cuidados espirituais, e ordenou voltar ao passado que jamais o abandonara para desempenhar sua última missão em vida: o de guardião da história. E expressou toda a pureza através do olhar arrebatadoramente luminoso em seus últimos dias, marcados pela ansiedade para incorporar-se à “caravana celestial”. George Craig Smith nasceu em São Paulo em 15 de abril de 1909, filho de Sydney Alfred Smith, inglês, e Jane Craig, brasileira. Aos onze anos, foi internado para cursar o ensino secundário na Clayesmore School, Winchester, Inglaterra, de 18


onde voltou quatro anos depois, em 1924, para no ano seguinte ser contratado como trabalhador braçal da fazenda Caiuá, em Cambará, Paraná, um dos experimentos da Brazil Plantations Ltd. para o cultivo de algodão. Experimento que, como os demais desta empresa no Brasil, revelaram-se frustrantes, fazendo-a apostar todas as suas libras, por meio da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), na colonização de 546.078 mil alqueires de terra. A mudança de enfoque empresarial foi um sucesso absoluto. O baixo desempenho do rapaz nos serviços braçais, sua formação cultural e espírito de liderança aconselharam o diretor da empresa, Arthur Hugh Miller Thomas, a promovê-lo a capataz. Tarefa igualmente árdua para George, pois entre os comandados estavam “bolchevistas russos com cara vermelha como o diabo, bigodes longos e horríveis e pequenos narizes escondidos entre duas faces gordas”, como descreveu em carta para os pais. Ganhava pouco, trabalhava muito, sofria demais com o desconforto, o baixo salário e os mosquitos – e sob a ameaça permanente da malária -, mas aguentou quatro anos e foi recompensado por Thomas com a chefia da caravana pioneira, como a História registrou o grupo encarregado de montar o primeiro acampamento na imensidão da área comprada pela Cia. de Terras do governo do Paraná. Esse grupo chegou à divisa das terras em 21 de agosto de 1929, depois da travessia temerária do ameaçador rio Tibagi, em canoas e com as mulas nadando ao lado. No local conhecido como Patrimônio Três Bocas, pertencente ao município e ex-colônia militar de Jataí, hoje Jataizinho, montaram o primeiro acampamento. Era o início de Londrina e a semente da qual brotaria o próspero Norte do Paraná. 19


George tornou-se o provedor do primeiro núcleo urbano, abastecendo-o de produtos que recolhia em Cambará e Ourinhos. A travessia do Tibagi foi, assim, feita inúmeras vezes, e todas de maneira igualmente temerária como da primeira vez. E a estrada, uma trilha no meio da floresta, exigia do viajante coragem, esforço, abnegação – e mulas vigorosas ou um potente caminhão, muitas vezes vencidos pela adversidade. O projeto de colonização era promissor, e o resultado atesta a acuidade de seus idealizadores, mas enfrentou no nascedouro três grandes adversários: a depressão mundial de 1929 e as revoluções domésticas de 1930 e 1932 – estas isolaram o povoado e impuseram severas restrições a seus moradores. George escapou do primeiro conflito, mas engajou-se na Revolução Constitucionalista ao lado dos revoltosos paulistas, e com eles amargou a derrota para as forças de Getúlio Vargas. A vida na incipiente Londrina era inóspita, mas George, como os demais pioneiros como ele, impuseram-se às dificuldades. Trabalhar, trabalhar, trabalhar: a rotina era árdua, os sacrifícios de toda espécie, que os desbravadores atenuavam com a camaradagem, as partidas de tênis que congregavam ingleses, brasileiros e o resto do mundo – 36 etnias compuseram a base social da colonização – e os bailes. Sobretudo os bailes promovidos na Casa Sete, residência dos funcionários administrativos e solteiros da CTNP, primeiro centro social da floresta, invadida a cada dia por levas e levas de colonos. George deixou Londrina em 1937, voltando a residir com os pais em São Paulo. Alegou a necessidade de tratar da malária, que o acometera duas vezes. Essa versão 20


encobre a necessidade de proteger-se de um marido furioso, colega de empresa e cuja esposa, que conhecera na Casa Sete, não via impedimento em ser casada e manter o relacionamento com ele. A morte do marido os reaproximou, casaram-se – e começava um relacionamento traumático para George. Desse trauma nasceu uma profunda religiosidade, que o levou em 1954 a cursar durante um ano o seminário Kennedy School of Missions, em Hartford, Connecticut, Estados Unidos. Mudança radical de vida, fidelidade ao espírito aventureiro: ele queria evangelizar onde quer que fosse, desde que nos confins do mundo. Formado, passou um ano numa missão menonita às margens do rio Araguaia, no município de Araguacema, Goiás – hoje pertencente ao desmembrado estado de Tocantins. Inadaptado aos padrões culturais e religiosos e ao primitivismo social dos menonitas – sua congregação era a batista -, voltou a São Paulo para imergir na obscuridade. É um período de sua vida sobre o qual se limitava a informar que trabalhara como representante comercial ao mesmo tempo em que professava a fé religiosa. Em 1972 – trinta e cinco anos depois de deixar a cidade que ajudara a fundar – aceitou convite de professores de História e Letras da Universidade Estadual de Londrina para depor sobre a epopeia da qual participara. O depoimento aconteceu em outubro de 1972. Deslumbrou-se com o que viu – a cidade tinha aproximadamente trezentos mil habitantes -, e o que viu o convenceu a voltar definitivamente a Londrina três anos depois para reconciliar-se com o passado que jamais o abandonara.

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“Alguns nascem grandes, outros conquistam a grandeza e ainda outros têm a grandeza jogada por cima deles”. William Shakespeare, citado várias vezes por George Smith ao definir sua participação na história do Norte do Paraná. 23



PARTE 1

Tem início a epopeia

Colonos em frente à sede da Companhia de Terras Norte do Paraná Museu Histórico de Londrina

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Ourinhos, madrugada de 20 de agosto de 1929. O grupo de funcionários da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP) escalado para demarcar o primeiro núcleo urbano do projeto colonizador inicia a viagem rumo ao desconhecido. Terá de vencer a estrada – mera picada rodeada de mato por todos os lados -, a voracidade da Serra Morena em cobrar vidas, a solidão da antiga colônia militar de Jataí, ultrapassar o traiçoeiro rio Tibagi, embrenhar-se nos próximos 22 quilômetros guiado por um índio e, então, montar o acampamento que será o ponto de partida da colonização. O jovem paulista George Craig Smith lidera o grupo. Veste botas até os joelhos, calça bufante nas coxas, colete e paletó, chapéu de abas largas. Sua elegância vai além do traje, estendendo-se ao trato, aos modos, à forma de se expressar. É o mais jovem do grupo – tem apenas vinte anos e está ansioso por aventuras -, mas se impõe pela liderança e determinação combinada com a polidez. Os companheiros são o engenheiro agrimensor russo Alexandre Razgulaeff e seu subordinado Spartaco Bambi, o húngaro-alemão Erwin Fröhlich, Geraldo Pereira Maia, Joaquim Benedito Barbosa e os peões encarregados da derrubada chefiados pelo português Alberto Loureiro. Para eles, uma viagem trivial, de serviço. Para a história, o marco inicial da epopeia que resultou no Norte do Paraná. Esta primeira parte do livro, que enfoca a colonização do Norte do Paraná e contextualiza a importância de George no processo, reproduz trechos de “A vitória do trabalho”, deste organizador, editado pelo Sindicato Rural Patronal do Paraná (2017).

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Uma mesa de bilhar 1924. A recusa do major Antônio Barbosa Ferraz à proposta de venda de sua fazenda causa mal-estar a seus convidados. Sobretudo ao autor da oferta, Simon Joseph Frazer, lorde Lovat, que fora generoso. A propriedade possuía cinco mil alqueires e um milhão de cafeeiros. Ferraz não queria vender a Fazenda Água do Bugre, em Cambará, pela qual deixara a vida próspera e confortável em Ribeirão Preto (SP) para se aventurar no Paraná, na região hoje conhecida por Norte Velho, que começara a ser explorada havia poucas décadas por mineiros e paulistas. Ele queria um investidor para a Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná, da qual era mentor e sócio, que estendia seus trilhos de Ourinhos, ponto final da Estrada de Ferro Sorocabana, a Cambará, distante 29 quilômetros. O empreendimento era vital para seus negócios. Afinal, era preciso fazer chegar sua produção a São Paulo e Santos, e nada melhor, seguro e econômico, diante do péssimo estado das rodovias, do que uma ferrovia. Ele e os sócios, no entanto, não estavam suportando os custos da obra, e encontrar quem se interessasse em investir na ferrovia era questão de vida ou morte. Os integrantes da missão chefiada pelo lorde Edwin Samuel Montagu, que chegara de Londres poucos meses antes para assessorar o presidente Arthur Bernardes (1922-26) numa reforma tributária e na renegociação da dívida do Brasil com a Inglaterra, eram os investidores em potencial. Lorde Montagu havia sido secretário de estado para as Índias e secretário financeiro do Tesouro da Grã-Bretanha. Anúncio de página inteira no jornal “O Estado de S. Paulo” atraiu, de fato, um dos membros da missão: lorde 27


Lovat, que acumulava, além das responsabilidades oficiais, a de prospectar terras para a empresa que dirigia e da qual era sócio, a Sudan Plantations. “É de cristalina evidência que essa estrada de ferro terá brilhante destaque entre as de maior renda do nosso país, sem mesmo considerar vir a ser de ligação internacional, pois o seu traçado discorre por toda uma imensa região, afamada pela assombrosa fertilidade de suas terras roxas, excelentemente apropriadas à cultura do café, cereais e alfafa, cortada de diversos grandes rios, alguns dos quais navegáveis, outros apresentando grandes potencialidades hidráulicas e onde se encontram importantes jazidas de carvão de pedra, ferro e cobre”, dizia trecho do anúncio, publicado em 15 de janeiro de 1924, um dia depois da chegada a São Paulo de lorde Lovat, assim anunciada pelo mesmo jornal: “Em trem especial, que deverá entrar na estação da Luz às 15 horas, chegará hoje a esta capital (...) lorde Lovat”. Ele foi recepcionado pelos diretores da Associação Comercial, da Bolsa de Mercadorias e da Liga Agrícola Brasileira, entre outras entidades de classe. Proprietária de vasta extensão de terras na África, a Sudan Plantations produzia algodão para a pujante indústria têxtil britânica. A grandiosidade do território brasileiro e seu potencial agrícola, inexplorado em grande parte, atiçavam a cobiça do empresário. O anúncio do “Estadão” chamou sua atenção mais pelas terras roxas “de assombrosa fertilidade” que propunha singrar do que pela perspectiva econômica da ferrovia em construção. Seu guia até a fazenda foi o engenheiro paulistano Gastão de Mesquita Filho, responsável técnico pela construção da ferrovia, que lembra: Lorde Lovat “descia (do carro) 28


e examinava os arbustos (de algodão) carregados, media os galhos e contava as maçãs em cada pé. Depois, voltava-se para nós, entusiasmado e comentava: ‘Este é um ideal que vocês brasileiros atingiram e que para nós, agricultores do Sudão, não passa de um sonho”*. Jantar servido, proposta de compra recusada, e o convidado do major Ferraz é levado à sala de jogos. Mesquita convida Lovat a se aproximar da mesa de bilhar, abre sobre ela um mapa e aponta as áreas de floresta virgem, cem quilômetros ao sul de Cambará, que, segundo ele, equivalem a uma mina de ouro se colonizadas. O capital investido poderia valorizar até mil por cento, e em pouco tempo, garante. A reação de Lovat incentiva o engenheiro a ir adiante: para explorar aquela rica área de terra é necessário que a ferrovia a alcance. Os dois empreendimentos não podem ser dissociados. Começava sobre aquela mesa de bilhar uma das maiores e duradouras epopeias do Brasil: a colonização do Norte do Paraná, que em poucas décadas transformaria a economia do Paraná e contribuiria decisivamente para a consolidação do Brasil como um dos maiores produtores agrícolas do mundo. Dezenas de cidades, tendo Londrina como pioneira e epicentro dessa revolução econômica e social, surgiriam desse empreendimento, que teve êxito porque se destinou ao pequeno produtor, deu segurança jurídica ao título de propriedade e permitiu que fosse paga com o trabalho de seu detentor.

* “Colonização e Desenvolvimento do Norte do Paraná”, editado pela Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná, 1975.

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A garantia da posse da terra O desafio do engenheiro Gastão de Mesquita fascina o nobre inglês, que telegrafa a Arthur Hugh Miller Thomas, gerente de campo da Sudan Plantations, ordenando que viajasse a Londres para analisar a possibilidade de investimento no Brasil. Um ano depois, surgia a Brazil Plantations Syndicate Ltd., com capital de duzentas mil libras esterlinas, sede em Londres e presidida por lorde Lovat, e sua subsidiária brasileira, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), com capital de mil contos de réis. Os estatutos da subsidiária foram registrados em 24 de dezembro de 1925. Pouco depois, a Brazil Plantations transforma-se em Paraná Plantation e seu capital social é elevado para 750 mil libras. O Paraná interessa, e muito, aos empresários ingleses, que, no entanto, dão prioridade ao cultivo de algodão. Adquirem duas fazendas em Birigui e Salto Grande, Estado de São Paulo (esta última a fazenda Caiuá, onde trabalharia George Smith), e uma usina de processamento do produto em Bernardino dos Campos, também naquele Estado. Enquanto as fazendas são preparadas – o café é erradicado para ceder espaço ao algodão -, Arthur Thomas, nomeado gerente administrativo da CTNP, negocia com o governador paranaense Caetano Munhoz da Rocha (1920-1928) a compra de terras para colonização. Leva a tiracolo o advogado especialista em conflitos fundiários João Sampaio que, devido a problemas de saúde, delega temporariamente suas funções ao colega Antônio Moraes Barros, presidente da companhia. As primeiras compras, totalizando 415 mil alqueires paulistas entre os rios Tibagi e Ivaí, foram feitas em 1925. Nos dois anos seguintes, chegariam a 546.078 mil alqueires. 30


O processo exigiu uma delicada engenharia jurídica: devido ao litígio pela posse de extensas áreas da região pretendida, a CTNP comprou títulos de concessão emitidos pelo Estado em poder de particulares, repassando-os ao governo estadual que, por sua vez, e com autorização do Legislativo, destruiu-os, emitiu outros e os revendeu à empresa. As terras foram, assim, compradas duas vezes – em alguns casos três por causa dos títulos de concessão duplicados. “A razão do grande êxito alcançado pela Companhia nas suas vendas”, observa Gastão Mesquita, “prende-se à total liquidez dos títulos de propriedade que ela oferecia. Explica-se isso porque o bom colono, aquele que leva consigo a família e tem economias para aplicar na compra da propriedade com a qual sonhava há anos, não quer brigas e não aceita riscos. Ele quer trabalhar. E somente poderá alcançar esse ideal em terra inquestionavelmente sua”. As terras eram uma vasta extensão de floresta, pontilhada por raros e minúsculos lotes com produção incipiente, que viriam a ser incorporados pela companhia. A CTNP teria de dotá-las de infraestrutura – rodovias, ferrovia, núcleos urbanos com água e energia, ruas, praças, escolas, serviço médico, oficinas, armazéns de abastecimento e estocagem. O investimento dos ingleses se limitaria ao Paraná diante da frustração de seu projeto algodoeiro em território paulista, abandonado em 1928 com a venda das fazendas e da usina processadora. Figueiras brancas, perobas, cabriúvas e paus d’alho, entre tantas árvores nobres, estavam fadados a ceder espaço ao café, base da economia brasileira, que demandava, e com urgência, solos férteis que São Paulo, seu principal produtor, não mais dispunha. 31


A conquista da floresta

Chegada dos primeiros colonos Acervo George Smith/Museu Histórico de Londrina

Aberta a primeira clareira, no local em que a caravana chefiada por George Smith acampou em 21 de agosto de 1929, é preciso equipá-la minimamente para receber os interessados em comprar as terras da companhia, ao mesmo tempo em que a equipe do agrimensor Razgulaeff faz a demarcação das estradas e lotes. Um armazém e um albergue, que a CTNP nomina poeticamente de Hotel Campestre, são as primeiras instalações do Patrimônio Três Bocas, pertencente ao município de Jataí. Iniciada junto à nascente conhecida por Flor D’Água - hoje Córrego das Pedras, no Marco Zero de Londrina, a clareira se expande. Em pouco tempo, dez alqueires são derrubados, acompanhando o aclive cujo topo é destinado 32


a abrigar o centro comercial e as residências. Os primeiros interessados surgem: são japoneses. Perscrutam a mata, colhem amostras do solo, enfurnam-se no Hotel Campestre, onde passam a primeira noite em claro, discutindo a viabilidade do negócio e, por fim, tornam-se os primeiros compradores. E se vão. Outros interessados vêm, e também se vão: a maioria refuga o negócio, pois o que veem é apenas mato cercado da promessa de que um dia – e isto dependerá do trabalho e do suor, muito trabalho e muito suor, dos interessados – se transformará numa pródiga região agrícola. Um grupo de alemães, frustrado com as condições de trabalho no interior paulista, se apresenta. Têm muito interesse em explorar as terras e nenhum dinheiro para comprá-las. Estão dispostos a se fixar o quanto antes naquele solo promissor. São agricultores e especialistas na derrubada de matas e abertura de estradas. Trocar mão de obra por terra, que tal? A empresa concorda. Está lançada a semente do primeiro núcleo de colonos: Heimtal. É 1930. A clareira vai vencendo a mata quando uma enorme sombra se projeta sobre ela, produzida pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em outubro de 1929, que agravará ainda mais a economia mundial, fragilizada em decorrência da Primeira Guerra. A sombra se adensa sobre o Patrimônio Três Bocas no ano seguinte: a crise econômica abala o relacionamento de paulistas e mineiros, que controlavam a política nacional, uma revolução é deflagrada e dela resulta o golpe de Estado que levou o gaúcho Getúlio Vargas à presidência da República. Poucos se dispõem a enfrentar a aventura comercial proposta pelos ingleses da CTNP, que, mesmo com a quantidade pífia de vendas, 33


continuam investindo na demarcação de lotes, abertura de estradas e no prolongamento da ferrovia que, convencidos pelo engenheiro Gastão de Mesquita, adquiriram em 1928 do grupo comandado pelo major Barbosa Ferraz. Em 1931, e então a picada até o rio Tibagi é alargada para permitir a passagem de carros, surge o primeiro interessado em arriscar-se comercialmente. O alemão Albert Koch abre a loja de quinquilharias ao lado de sua casa no entroncamento estratégico do caminho aberto para acolher os pioneiros com a via que alcançava Heimtal, atuais Avenida Paraná e Rua Duque de Caxias. Vizinho a ele se instalam o também alemão Friedrich Schultheiss, que abre uma padaria, e o libanês David Dequêch, um comércio de secos & molhados. A ferrovia alcança Jataí em 1932, e o marasmo é substituído pela ansiedade dos novos colonos, que chegam em levas. Vêm de São Paulo, Minas, Japão, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, Iugoslávia... vêm de toda parte, compondo um conglomerado de 33 nacionalidades. Registra George Smith que os funcionários da CTNP atendem 67 pessoas de uma só vez para explicar o projeto de colonização, mostrar lotes, detalhar as condições de pagamento. E amontoá-las no Hotel Campestre... Nesse ano, 150 casas, de palmito ou madeira serrada, podiam ser contadas. E eis que em junho a sombra volta a se projetar sobre o patrimônio, sombra que a História registrará como Revolução Constitucionalista – a insurreição dos paulistas contra Getúlio. A divisa com São Paulo é bloqueada, a ferrovia para, estradas se convertem em pontos de emboscada. O patrimônio – e suas adjacências, Nova Dantzig e Colônia Roland – se isola. 34


Começa mais uma provação. Outras virão: o cerco dos jagunços que pretendiam se apossar à força do patrimônio, surto de doenças, limitações de toda ordem, intempéries, perseguição aos colonos alemães e japoneses durante a Segunda Guerra. Mas tudo isso seria vencido pela tenacidade de seus moradores (em 1933 já eram quase quatrocentas as casas no núcleo central do projeto colonizador), incentivada pelo mais rentável produto da época, o café. Quando se descobriu a afinidade desse produto com o solo da região, ela se expandiu a uma velocidade jamais vista no Brasil. E o mundo se voltou para ela.

O meticuloso projeto de colonização O projeto de colonização da CTNP previa o estabelecimento de cidades de médio porte a cada cem quilômetros em direção ao rio Ivaí, limite de suas terras, entremeadas por distritos a cada dez, quinze quilômetros. Os lotes a serem comercializados teriam dez, quinze e vinte alqueires, destinando-se, portanto, a pequenos agricultores. Houve exceções a esta regra, mas poucas. Esse fatiamento da terra permitiria a rápida colonização da região, o povoamento das cidades e distritos e a circulação local do dinheiro advindo da produção. O que se produzisse nela, nela seria comercializado e o resultado desse ciclo virtuoso financiaria a infraestrutura e permitiria a ascensão econômica de seus moradores. Os lotes seriam servidos por água em sua parte baixa e por rodovia na alta. A parte superior, menos sujeita à 35


geada, era ideal para o plantio de café, intercalado de milho, arroz, feijão. Previam-se 1.500 cafeeiros por alqueire. A parte inferior do lote destinava-se à moradia do proprietário e seus auxiliares, ao plantio de verduras e legumes, pasto de gado leiteiro, chiqueiro de porcos e criação de galinhas para venda e consumo familiar. A água estaria próxima, facilitando a captação. A localização das casas às margens dos rios contribuiria para a socialização dos colonos com seus vizinhos. Chácaras para a produção de legumes, frutas, galinhas, ovos e pequenos animais envolveriam os centros urbanos, abastecendo-os de víveres de primeira necessidade. Os lotes destinados à produção de café e outros cultivos viriam em seguida. O pagamento do lote – mais caro se compreendido pelo cinturão de chácaras – era facilitado em até quatro anos, com juros de 8% ao ano. Para assegurar a posse era necessário pagar 10% do valor, e a entrada deveria ser complementada em sessenta dias com mais 20%; assinava-se então o contrato. Após o primeiro ano, pagavam-se 10% – era o início, quando tudo é mais difícil e menos rentável. Os 60% restantes seriam pagos nos três anos seguintes, em parcelas iguais mais os juros. O início era difícil e obedecia a um padrão: o colono se hospedava em alojamento cedido pela CTNP até a formalização do negócio. Sua primeira moradia no lote escolhido era um rancho de palmito, no qual ficaria nas primeiras semanas enquanto construía uma casa de madeira. Além de oferecer-lhe matéria-prima para morar, o palmito alimentava o colono e sua família. A alimentação era complementada com a caça, abundante, e a pesca no rio que abastecia a propriedade. 36


Construir uma casa melhor não era prioridade, e sim tornar a propriedade produtiva. A mata era derrubada – havia trabalhadores especializados nessa tarefa, mas a maioria dos colonos arriscava-se por conta própria. A madeira de lei foi um dos produtos mais rentáveis no início da colonização. As fases seguintes eram a queima do que restara da mata, a coveação e o plantio do café, que só viria a dar a primeira carga três anos depois, entremeado por milho, feijão, arroz, de produção rápida e liquidez imediata. Os colonos eram atraídos por anúncios em jornais e revistas, no Brasil e exterior – propagava-se a fertilidade do solo e a ausência de pragas, com destaque para a saúva, que tanto atormentavam os produtores – e também por agenciadores. As etnias mais numerosas tinham intermediários de seu próprio país. Assim, Carlos (nome original: Karl) Strass e Guilherme (William) Kernkamp cuidavam dos alemães, Eugênio Brugin dos italianos, o barão Friedrich von Drachenfelds dos russos e alemães de origem russa e Hikoma Udihara dos japoneses. Udihara foi o responsável pela venda dos primeiros lotes. Eram oito os interessados, visitaram o Patrimônio Três Bocas em dezembro de 1929 e em março e abril do ano seguinte seis deles concretizaram o negócio. Pela ordem de compra: Mitsugi Ohara (quinze alqueires), Toshio Tan (dez), Massaharu Ohara (vinte), Massahiko Tomita (quinze), Toshikazu Yamate (dez) e Yamazaki Moshin (dez). Os lotes adquiridos integravam a Gleba Cambé, que os japoneses rebatizariam de Ikku e Nikku, contíguas e localizadas próximas ao ribeirão Limoeiro (onde está o aeroporto atual). Mais tarde surgiria outra, também destinada aos colonos dessa etnia, a Tiouku (hoje entre o Jardim Shangri-lá e o Estádio do Café). 37


Por serem os primeiros compradores, os japoneses tiveram um desconto no preço: quatrocentos mil réis à vista o alqueire ou 450 mil em três anos. O preço original era seiscentos mil, pois se tratavam de chácaras próximas ao núcleo urbano. Cada colônia tinha direito a um alqueire para a construção de escola e centro esportivo. A CTNP responsabilizava-se pela terraplenagem. Os japoneses foram os primeiros compradores, mas somente viriam a se instalar no patrimônio em 1931, um ano depois do início da colônia de Heimtal.

A frente agrícola se expande Enquanto as colônias Heimtal, Ikku e Nikku e o núcleo urbano se consolidavam, embora lentamente em consequência da crise mundial e da situação política nacional, duas novas frentes de colonização eram abertas na rota delineada para a rodovia e a ferrovia: Nova Dantzig e Roland. Originários da Cidade Livre de Dantzig, enclave alemão na Polônia, os primeiros moradores de Nova Dantzig, que se estabeleceram no início de 1932 no local – distante a pouco mais de dez quilômetros do Patrimônio Três Bocas -, não tinham tradição agrícola. Eram desempregados que venderam à vista o que tinham a receber a prazo do seguro-desemprego para investir nas terras oferecidas pela CTNP. Viviam numa casa comunitária, elegeram um líder inexperiente como eles e se dedicavam mais à caça do que ao cultivo de seus lotes. 38


Pouco além, a colônia Roland teria um desenvolvimento mais rápido e organizado. Incumbido pela Sociedade para Estudos Econômicos do Além-Mar de encontrar terras que pudessem acolher colonos e não colonos da Alemanha, que precisava oferecer trabalho a milhões de desempregados, Oswald Nixdorf impôs método e aplicou os conhecimentos que adquirira na Escola Colonial de Witzenhause, em Hesse, e que aperfeiçoara em fazendas de café em Sumatra. Nixdorf era natural de Bremen e foi quem deu o nome à colônia em homenagem ao patrono de sua cidade, Roland, sobrinho e chefe da guarda pessoal de Carlos Magno, rei dos francos e lombardos e imperador romano no período de 768 a 814. As terras destinadas a esses colonos foram negociadas em Londres com lorde Lovat, a localização definida por Nixdorf – que buscava topografia menos vulnerável à geada –, Alexandre Razgulaeff fez a medição dos primeiros onze lotes, com dez alqueires cada, e a primeira clareira, com cinco quilômetros de diâmetro, foi aberta pelos moradores de Heimtal sob a chefia de Carlos Strass. Foram eles também que ergueram a Casa de Recepção, destinada a acolher os colonos pioneiros até que pudessem se instalar em suas propriedades. E esses mesmos trabalhadores derrubaram um alqueire de mata de cada lote para permitir que fosse ocupado o mais rapidamente possível. Nixdorf, que se instalou no núcleo urbano de Três Bocas com a família para recepcionar seus conterrâneos, transferiu-se em pouco tempo para Roland para administrar a colônia e gerenciar uma estação experimental de suínos e bovinos, árvores frutíferas e culturas tropicais e europeias. Sua “granja” – era assim que a chamava – tornou-se ponto obrigatório de visitação de compradores de 39


terras em potencial, jornalistas e autoridades do Brasil e exterior. Nixdorf transformou-se em conselheiro de Willie Davids, gerente técnico da CTNP, e consultor dos produtores. Rolândia, nova denominação de Roland, emancipou-se de Londrina em 1943 e Nova Dantzig em 1947, assumindo o nome de Cambé.

A ferrovia que salva os judeus

Museu Histórico de Londrina

Os ingleses não se interessaram em se associar à Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná, conforme proposta feita pelo major Antônio Barbosa Ferraz ao lorde Lovat, que o visitou em Cambará em 1924. Mas uma ferrovia, assim como uma rodovia e estradas vicinais, era indispensável ao projeto colonizador da Paraná Plantation e sua filial no Brasil, a Companhia de Terras Norte do Paraná. Sociedade não, domínio absoluto: os ingleses compram a empresa em junho de 1928, trocam a equipe comandada pelo engenheiro Gastão de Vidigal, que fica com um pequeno lote de ações, pela da Mcdonald, Gibs & Co., sediada em Londres, e começam a estender os trilhos em direção à imensa floresta que pretendem transformar em campo agrícola. 40


Jataí é alcançado em 1932 pelos trilhos, que, a partir daí, enfrentam o maior desafio: a transposição do rio Tibagi, trabalho vencido dois anos depois. Para levantar recursos para a construção da ponte, a empresa resgata as apólices que havia comprado do Porto de Paranaguá, em 1927, do governo do Paraná. Em outubro de 1933, o Estado paga o valor principal dessas apólices - 1.647 contos de réis de um total de 2.556 somados os juros -, condicionando a aplicação desses recursos “exclusivamente na construção do trecho da Estrada de Ferro São Paulo-Paraná, do rio Tibagi em direção a Londrina”. A primeira etapa do desafio fora vencida: o marco inicial da colonização estava servido pela ferrovia. Era preciso agora levar os trilhos aos confins das terras da CTNP, que resvalavam nas fronteiras da Argentina e Paraguai. Londrina, Cambé, Rolândia: os trilhos avançam à medida que a floresta é substituída pela agricultura, servindo no trajeto a povoados que se multiplicam e se expandem sob o impulso da produção de café. O Norte do Paraná vive um ciclo de euforia e atrai investidores, trabalhadores de toda ordem, representantes comerciais e colonos dispostos a pagar com o trabalho, a terra que lhe será vendida a preço e condições de pagamento acessíveis. Enquanto isso, o mundo acompanha com perplexidade a radicalização do governo chefiado por Adolf Hitler. Uma de suas decisões afeta diretamente o Norte do Paraná: a proibição de investimento no exterior. O veto interrompe a venda de terras para os colonos daquele país, intermediada pela Sociedade para Estudos Econômicos do Além-Mar, até que uma alternativa engenhosa é posta em prática: o aporte de capital na indústria ferroviária alemã em troca de bônus 41


para serem aplicados nas terras da CTNP. Em contrapartida, o governo alemão forneceria trilhos e maquinário para a ferrovia mantida pela empresa. O escambo permitiu, além da continuidade da vinda de colonos para o Norte do Paraná, que dezenas de famílias judias, mesmo que se dedicassem a outra atividade, encontrassem refúgio no Brasil antes que Hitler desse início à política de extermínio racial, a chamada “solução final”.

Os ingleses vão embora A troca de trilhos por terras salvou famílias alemãs de origem judaica do extermínio ordenado por Adolf Hitler, mas a Segunda Guerra Mundial expulsou do Brasil os investidores ingleses. O esforço de guerra britânico contra os alemães exigiu o repatriamento de capitais no exterior, entre eles o aplicado na colonização do Norte do Paraná. A CTNP e a empresa ferroviária foram postas à venda. Gastão de Mesquita Filho, o engenheiro que comandara a primeira fase da obra, aconselhara lorde Lovat a investir no Norte do Paraná e fora afastado quando os ingleses compraram a ferrovia, liderou um consórcio que arrematou as duas empresas. O consórcio era formado por representantes de três grupos econômicos, além do engenheiro, mas dois desistiram e a sociedade ficou restrita a Mesquita e a Gastão Vidigal, do Banco Mercantil de São Paulo. A negociação, concluída em 1942, foi árdua e teve de vencer a exigência de Getúlio Vargas para autorizar a sua consumação: que a ferrovia fosse revendida ao governo federal 42


com valor abaixo do de compra. Soma-se, subtrai-se e conclui-se que, mesmo assim, o negócio é vantajoso. Os novos proprietários da CTNP, que em 1951 mudariam o nome para Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, ampliaram as fronteiras do projeto colonizador. E, para evitarem a autofagia da empresa, que deixaria de existir assim que vendessem o último lote, preservaram sessenta mil alqueires na região de Umuarama e vales do Ivaí e Paranapanema para exploração agrícola e agropecuária.

O legado: 63 municípios Do empreendimento iniciado pelos ingleses e herdado por empresários paulistas – uma área colonizada de 546.078 alqueires ou 13.166 quilômetros quadrados – resultou o surgimento de 63 cidades e patrimônios, a venda de lotes e chácaras com área variável de cinco a trinta alqueires para 41.741 pessoas e setenta mil lotes urbanos com quinhentos metros quadrados em média. As principais cidades são: Londrina, Maringá, Apucarana, Arapongas, Rolândia, Cambé, Astorga, Mandaguari, Nova Esperança, Jandaia do Sul, Cianorte e Umuarama. Muitas delas cresceram por conta própria, pois a CTNP, depois Companhia Melhoramentos, apenas as planejou e dotou de escritório de venda de lotes urbanos e rurais, terminal de ônibus e escola. Em contrapartida, exigia que os compradores dos lotes urbanos construíssem no prazo de um ano. Se Londrina é o ponto de partida do projeto colonizador da CTNP, Maringá é o ápice do planejamento urbanístico e 43


comercial da Companhia Melhoramentos. Seu traçado, que a distingue das demais cidades-irmãs e conserva grandes áreas de vegetação nativa em meio a avenidas amplas e arborizadas, foi desenvolvido por Jorge de Macedo Vieira com base no anteprojeto de Cássio Vidigal e Gastão de Mesquita Filho. Itambé, Alto Paraná e São Pedro do Ivaí, entre outras cidades, surgiram de áreas revendidas pela empresa a outros empreendedores. A ferrovia, iniciada na divisa com São Paulo pelo major Antônio Barbosa Ferraz, transpõe o rio Tibagi no município de Jataizinho, alcança Londrina, Cambé, Rolândia, Arapongas e Apucarana, onde se encontra com um ramal procedente de Curitiba e segue para Mandaguari, Marialva, Maringá e Cianorte.

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PARTE 2

E foi assim que aconteceu

Clareira aberta pelos membros da caravana pioneira e que daria origem a Londrina Acervo George Smith/Museu Histórico de Londrina

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Testemunhos de George Smith e de seu companheiro de jornada Erwin Fröhlich sobre a caravana pioneira, uma crônica bem humorada do escritor Domingos Pellegrini sobre as mulas que participaram da aventura e uma reportagem sobre os momentos iniciais do Patrimônio Três Bocas, tendo como cenário o Hotel Campestre.

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A jornada heroica

Membros da caravana pioneira ajudam caminhão a transpor rio Acervo George Smith/Museu Histórico de Londrina

George Craig Smith* No dia 20 de agosto de 1929, numa bela madrugada primaveril, um jovem paulista, filho de ingleses, chefiando uma turma de mais ou menos doze pessoas, partiu de Ourinhos com destino às fabulosas terras roxas do Norte do Paraná. Esse jovem não pensava em discotecas, nem em farras e bebedeiras ou bailes. Foi educado na Inglaterra, num colégio cristão e era forte e sadio, possuído de um ardente espírito de aventura. Desde criança ele queria conhecer lugares longínquos e terras distantes, e ao olhar para o horizonte sentiu um tremendo impulso de saber o que havia além. *

Texto que distribuía em suas palestras.

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Bem, esse jovem, apesar de ter apenas vinte anos de idade, foi honrado por Mr. Arthur Thomas, diretor da Companhia de Terras Norte do Paraná, com a responsabilidade de comandar a primeira caravana – que iria penetrar no sertão bruto e desconhecido do Norte do Paraná a fim de tomar posse das terras e iniciar o desbravamento das matas e outros trabalhos da maior empresa colonizadora da América do Sul e talvez do mundo; dona de nada menos do que quinhentos mil alqueires de terras, todas cobertas com lindas e exuberantes matas virgens que tanto impressionaram lorde Lovat, Mr. Thomas e Dr. Willian Reid, que visitaram esta zona em 1924! Assim, na madrugada de 20 de agosto de 1929, após muitos preparativos e compras de alimentos e arreios e cangalhas e ferramentas e tudo o que seria necessário para a grande jornada heroica, essa primeira turma de pioneiros partiu de Ourinhos e chegou a Cambará, que era conhecida como “a boca do sertão”. Em Cambará, o senhor Alberto Loureiro e sua turma de trabalhadores se juntaram à caravana. Era uma aventura tremenda, pois não era possível prever o que iríamos encontrar pelo caminho, talvez até índios que havia na região de Laranjinhas, como mais tarde foram encontrados. Sendo tempo seco, fizemos uma viagem relativamente boa, apesar das incríveis condições das estradas, e chegamos a Jataí, que se chama hoje Jataizinho, à tarde do mesmo dia. Pelo caminho atravessamos três rios. Os rios das Cinzas e Laranjinhas, em balsas muito perigosas, mas quando chegamos ao Congonhas, não havia nem ponte nem balsa. E agora, o que fazer? Como não era época da cheia e o leito de pedra, com coragem e fé avançamos dentro da água com 48


o caminhão carregado e tudo e, pela graça de Deus, conseguimos alcançar a outra margem, e com o motor roncando com toda a força, subimos a barranca. Com grande alívio, continuamos a viagem até chegarmos à terrível Serra Morena, que era o pavor dos motoristas, pois o caminho estreito que ladeava a montanha era cheio

José Loureiro A Pioneira

de buracos e pedras soltas. Se os veículos não subissem só de uma arrancada, e não tivessem bons breques e parassem no meio da subida, corriam o risco de rolar abismo abaixo, como de fato aconteceu com alguns. Ao chegarmos ao alto da serra, logo demos com a pensão e restaurante do português João Gomes e lá pudemos descansar um pouco, nos lavar, comer algo e nos preparar 49


para a etapa final da viagem até Jataí, aonde chegamos sem maiores problemas à tarde do mesmo dia 20. Em Jataí, a Cia. de Terras havia mandado construir, por intermédio de outro pioneiro escocês, Ian Fraser, da Companhia Territorial Maxwel, dois grandes ranchos de palmito, para servirem de alojamento, escritório e armazém. Em Jataí imediatamente descarregamos o caminhão e nos preparamos para continuar a jornada no dia seguinte,

Gordon Fox Rule, diretor da CTNP, Shopie e Alexandre Razgulaeff, agrimensor Acervo George Smith/Museu Histórico de Londrina

pois o nosso destino eram as terras que estavam ainda 22 quilômetros além do rio Tibagi. O jovem chefe da caravana então tratou de comprar logo várias mulas de carga e montarias necessárias para o resto da viagem, que seria através de um picadão escuro e barrento no meio da mata virgem. Contratou-se até um índio manso para servir de tropeiro. Esse índio falava com as 50


mulas em sua língua e elas lhe obedeciam misteriosamente. Muitas vezes o jovem paulista teve, ele mesmo, de bancar o tropeiro quando o índio não aparecia no serviço. Na madrugada do dia 21, estava tudo pronto para a arrancada final da grande jornada, porém havia ainda um grande e aparentemente intransponível obstáculo: não havia nem ponte nem balsa no grande rio Tibagi. Como atravessar aquelas águas perigosas? A caravana não podia parar. Então tratamos de alugar todas as canoas que havia na cidade e os seus respectivos donos para remá-las. Assim, com grande sacrifício e perigo de vida, conseguimos transportar todo aquele material e toda aquela gente para a outra margem, tendo o jovem paulista feito várias viagens de ida e volta, ele mesmo remando uma das canoas feita de tronco de árvore e com muita perícia. E as mulas? Ah, sim, elas atravessaram a nado ao lado das canoas. Enquanto uma pessoa remava, a outra guiava a mula pelo cabresto. Finalmente, depois de um trabalho tremendo, tudo estava pronto, com toda a mercadoria nos lombos dos burros, em cangalhas, e foi iniciada a longa e penosa caminhada até as terras da companhia. A viagem foi lenta, pois o picadão dentro da floresta fechada era todo cheio de buracos e lama. Depois de muitas horas de marcha lenta, o engenheiro Alexandre Razgulaeff, jovem e dinâmico, olhou para os seus mapas, parou a turma e disse: “Chegamos”. Perguntamos-lhe: “Chegamos onde?”, pois era tudo floresta fechada ao nosso redor. “Chegamos à divisa das terras da Cia. de Terras Norte do Paraná”. 51


Então logo descarregamos e amarramos as mulas para não fugirem, o que seria uma tragédia. O Sr. Alberto Loureiro, português, homem de coragem e grande energia, empreiteiro contratado pela companhia, logo reuniu os seus trabalhadores e abriram uma pequena clareira e construíram dois ranchos de palmito, que foram as duas primeiras habitações nesta zona toda. Essa primeira derrubada e esses dois ranchos estavam localizados onde hoje se encontra a firma Anderson Clayton*. Salvo erro ou omissão, os nomes daqueles bravos pioneiros que fizeram parte daquela primeira caravana são os seguintes: George Craig Smith, funcionário da Cia. de Terras e responsável pela primeira caravana; Alexandre Razgulaeff, engenheiro agrimensor; Alberto Loureiro, empreiteiro; Erwin Fröhlich, Joaquim B. Barbosa, Spartaco Bambi, Geraldo Pereira Maia e vários trabalhadores braçais. E o jovem paulista, que liderou a jornada heroica e que é hoje um dos poucos sobreviventes daquela turma de pioneiros, é o que tem a grande honra e satisfação de falar com vocês. Espero, pois, que esta pequena narrativa possa acender uma centelha de ambição nos seus corações e incentivá-los à vida mais nobre, útil e sadia e de novas conquistas para a grandeza do Brasil e sempre guiados pelo meu e seu melhor amigo, o Senhor Jesus Cristo, o qual é hoje o meu Chefe Supremo, pois a Bíblia, que é a Palavra de Deus, nos promete que: “Em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por Aquele (Jesus Cristo) que nos amou”. (Rom. 8:37).

* Atual Complexo do Marco Zero, compreendendo mata nativa, shopping center, loja de material de construção, hotel, etc.

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O “marimbondo”, o negro gozador e o rapaz educado Erwin Fröhlich* (Integrante da caravana pioneira, que aponta o dia 22 de agosto de 1929 como a data em que os enviados da CTNP acamparam no Patrimônio Três Bocas. Para efeito de registro histórico, no entanto, prevalece a data fixada por George Smith – 21 de agosto.) Em 1929, Cambará era considerada a “boca do sertão”, pois dessa cidade em direção a Oeste encontravam-se a Vila Invernada e mais adiante o início de um povoado, conhecido por “82”, distante da hoje Cornélio Procópio seis quilômetros, e Jataí, antiga colônia militar, que vegetava ao sabor dos elementos. Em fins de junho desse ano, trabalhávamos na formação da cultura cafeeira, distante quinze quilômetros de Cambará, com o Sr. Alberto Loureiro, quando um automóvel parou e dele desceu um senhor de personalidade marcante, fazendo logo ver, tratar-se de um estrangeiro. Dirigiu-se ele ao Sr. Loureiro, fez perguntas sobre a lavoura e depois num remate disse: sou diretor-gerente de uma grande organização colonizadora, a qual possui na região, além do rio Tibagi, vasta área de terras. Estamos interessados em abrir naquela região uma grande colonização e penso ser o senhor o homem que precisamos para iniciar as derrubadas. Quererá, pois, o senhor tomar a empreitada para a derrubada de alguns alqueires de mata e construção de estradas? *

“A Pioneira”, número 6, 1949.

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Dias depois foi o Sr. Loureiro ter às tais regiões desconhecidas e voltou empolgado com o sertão que viu. Combinou os serviços todos e no dia 20 de agosto de 1929 partíamos de Cambará rumo ao sertão para fundar novas cidades no Paraná. Compunham a comitiva: Sr. George Craig Smith, Dr. Alexandre Razgulaeff, Sr. Alberto Loureiro, Joaquim Benedito Barbosa, Spartaco Bambi, Geraldo Pereira Maia, o autor deste trabalho e outros, cujos nomes não nos vêm à

Frölich e esposa A Pioneira

memória. Nesse dia chegamos a Jataí, onde dormimos às margens do rio Tibagi. O dia 21 surgiu quente e logo nos preparamos para continuar a jornada. Com os preparativos já quase prontos, encontramos um homem loiro acompanhado de diversos camaradas, vindo do sertão. Esse homem era o Dr. Carlos Rottmann, que regressava das selvas depois de quase três 54


meses de trabalhos árduos de levantamentos dos rios e ribeirões nas terras da Companhia de Terras Norte do Paraná. Ficamos então conhecendo esse varão germânico que todos os anos se embrenhava nas matas e só voltava ao convívio da civilização depois de longos meses de lutas em trabalhos de engenharia. O Dr. Rottmann é um dos mais antigos funcionários da Companhia. Como ia contando, no dia 21 de agosto pousamos no quilômetro 16, na picada Jataí-Sertão, onde havia uma pequena derrubada de mata. No dia 22 erguemo-nos bem cedo e pusemo-nos a caminho, com burros de cargueiros, tão velhacos que derrubavam a carga de tempos em tempos e ainda tínhamos que suportar mutucas, borrachudos, vespas de todas as espécies que se assentavam às centenas para sugar o suor da camisa. Finalmente, às dez horas da manhã, chegamos a uma nascente de água, “Flor d’água” como era conhecida pelos caboclos (hoje Córrego das Pedras), onde começava a vasta área de terras a ser colonizada. Podemos dizer que daí por diante a coisa não foi mais fácil, pois as chuvas torrenciais daqueles meses, os mosquitos “cangalhinha” e as vespas fustigavam a gente o dia todo e, à noite, eram as falenas, às milhares e de todos os tamanhos, a aborrecer-nos. Muitas cenas tragicômicas vivemos no início da derrubada dos primeiros dez alqueires (dois quilômetros de distância do centro da cidade de Londrina) para a construção do Hotel Campestre e do armazém da Cia. de Terras. O preto Geraldo Pereira Maia, o “Paraíba” como era conhecido entre todos, tinha pavor de onças e passava as noites em claro, acendendo grandes fogueiras para assustar “as bichas” - era a sua expressão para se referir às onças. De momento em momento ele nos acordava aos gritos. “Erwin! Joaquim, vejam os óios da bicha! 55


Tragam o rabo de égua (garrucha) para matá-la”. O “Paraíba” tinha sempre disposição para blagues e era de uma alegria que contagiava a todos. Outro também valente e trabalhador era Joaquim Benedito Barbosa, paranaense das bandas de Colônia Mineira (atual Siqueira Campos) e sócio do empreiteiro Alberto Loureiro. Achava os dois braços pouco para o trabalho e queria prestar serviços com os dentes. O empresário Alberto Loureiro, que vivia então entre Cambará e o acampamento trazendo sempre novos camaradas para a derrubada e construção da estrada, era considerado por estes, verdadeiro “marimbondo” de braveza, e com ele não havia meias medidas – era tudo na hora certa e nada de “falas”. Estamos para ver ainda um homem que pudesse acompanhar esse lusitano em qualquer serviço. Era uma fortaleza, o Loureiro. Outro moço que acompanhou a nossa caravana foi o Sr. George Craig Smith, culto, educado, de maneiras tão delicadas que confundia a todos. Esse era chefe dos trabalhadores e representava a Cia. de Terras. Moço notável, o Sr. Smith! Não sabia o que era nervosismo, não se alterava nunca. Trabalhou o Sr. Smith por longos anos aqui, prestando assinalados serviços à Cia. e à região toda. Vem ainda à nossa lembrança o Dr. Alexandre Razgulaeff, engenheiro que havia contratado os serviços de divisão de lotes, levantamento de águas, espigões, demarcação de cidades e tudo mais que se relacionasse à engenharia. O Dr. Alexandre era homem que compreendia tão bem o nosso caboclo, que parecia um autêntico brasileiro. Spartaco Bambi foi sempre um lutador admirável. Passava no mato locando estradas, abrindo picadas como 56


agrimensor, chegando mesmo a não ver a família por espaço de seis meses e mais. Esse mourejador valente só parou de trabalhar quando insidiosa moléstia o atacou, causando-lhe a morte após sofrimentos terríveis. Lutou Spartaco Bambi nesses sertões de 1929 até 1947. Este é merecedor de nossas homenagens, pois foi um bravo.

Cadê o túmulo do pioneiro? Sumiu O topógrafo Spartaco Principe Bambi nasceu em Ribeirão Preto em 1903. Foi o único a trazer a família na viagem. Os filhos foram acomodados em balaios num dos burros que os transportou a partir do rio Tibagi.

Spartaco Bambi Museu Histórico de Londrina

Casado com Maria Marcelino da Conceição, teve três filhos: Nizia e Hildebrando, nascidos em Itapecerica da Serra, e Elta, nascida em Londrina e registrada no cartório de 57


Jataizinho em 1931. Terminado o trabalho de demarcação em Londrina, Spartaco seguiu o avanço da colonização até depois de Maringá. Além de cumprir seu dever, recolhia os animais que encontrava pelo caminho e os enviava ao zoológico de São Paulo. E as cobras ao Instituto Butantã. Bambi protegia os animais, mas, acima de tudo, os filhos. Nizia lavava a roupa na beira de um rio quando foi surpreendida por um tamanduá. Conseguiu se livrar do atacante, subiu numa árvore, pediu socorro, e Bambi matou o animal com seu facão. O trabalho duro na floresta o debilitou. Ele perdeu os movimentos, ficou longo tempo internado e morreu em 1947. Enterrado no terreno 109 da quadra quinze do Cemitério Municipal (hoje São Pedro), que em 1952, por determinação do prefeito Milton Menezes, passou à condição de “aforamento perpétuo”, sua sepultura desapareceu. (Extraído de “A vitória do Trabalho”, citado anteriormente.)

O mistério das mulas Domingos Pellegrini* Por que Londrina começou ali na baixada da Rodoviária Nova e não lá no alto da Higienópolis? Por causa das mulas. George Craig Smith contava que já desde Jataizinho, naquele 21 de agosto de 1929, as mulas *

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“Correio Londrinense”, 10 de dezembro de 1992.


atrapalhavam a marcha da chamada Primeira Caravana, que a rigor não era a primeira: muitas caravanas já haviam chegado até a Serra de Apucarana, atrás de índios (há três séculos) ou de ouro. A trilha que a caravana reabriu a facão e foice na mata era a mesma usada pelos irmãos Palhano, que fizeram agrimensura para a Companhia de Terras e já tinham até fazenda aqui. Londrina é típica cidade-nova brasileira, nascida da noite para o dia, a partir do momento em que alguém fincou, na realidade, a primeira estaca do que até então era um projeto no papel. É como Belo Horizonte, Goiânia, Brasília, Assis Chateaubriand, Alta Floresta e tantas outras, com uma diferença: Londrina foi planejada no exterior, em Londres, e a Primeira Caravana pode ser chamada assim porque era a primeira a não apenas penetrar nas terras da Companhia; pois as mulas e alguns homens até poderiam voltar para seus trabalhos em Jataí e Ourinhos, mas pela primeira vez alguns fincariam pé na “terra dos ingleses” no Sertão do Tibagi. A missão era abrir uma clareira e iniciar um povoado ainda sem nome, na chamada Gleba Três Bocas (três ribeirões), e que seria a primeira cidade de uma série – Cambé, Rolândia, Arapongas, Apucarana –, uma a cada quinze quilômetros como contas de um colar, amarradas pelo fio da ferrovia. No fim das contas seria, como foi e ainda é, o maior projeto de colonização do mundo: um milhão e 250 mil hectares (ou quarteirões, para a gente da cidade entender; é terra pra matar cavalo”, e inclusive por isso a companhia criaria logo o seu cavalo-de-ferro). Mas as mulas vinham atrasando a caravana desde cedo. Cada travessia de ribeirão ou cada grota era um 59


tormento: elas empacavam, depois desembarcavam, iam arredias. Talvez fossem mulas novas; ou estavam ariscas porque o próprio chefe da caravana era tão moço, um até então escriturário de vinte anos à frente de uma tropa de homens mais velhos. Contava George que “um guia índio conversava com as mulas e elas como que entendiam, ficavam mais calmas”. Interessante: três séculos antes, os bandeirantes paulistas e também os espanhóis de Assunção e Guaíra tinham massacrado os dois povos que aqui viviam, os caingangue e os guarani. Agora a caravana multirracial – um escocês, um alemão, um russo, um português, um italiano e um anglo-brasileiro – recorria a um sobrevivente índio para abrir de vez as terras, já então desertas de índios, para colonos que viriam de todo o mundo. Havia na caravana também alguns “peões e tropeiros”, cujos nomes não ficaram registrados, como de praxe. Dizem os chineses que, se fossem escrever nela os nomes de todos que fizeram a Grande Muralha, ela seria pequena. Mesmo com a ajuda do índio, a caravana atrasou muito. São 22 quilômetros de Jataizinho ao centro de Londrina, e hoje, pela rodovia, dá para ir a pé em cinco horas, com dez minutos de descanso por hora, marcha de infantaria. Mas um mateiro faz contas diferentes, mesmo sem levar em conta as mulas. Pelas contas das caravanas anteriores, que tinham medido e planeado as terras durante dois anos, em sete ou oito horas a caravana deveria estar no futuro Patrimônio Três Bocas. No entanto, a floresta intertropical, justamente por estar entre duas zonas de clima, era tão rica de plantas que, com a chuva regular da região, uma trilha fechava 60


em semanas mesmo no inverno. E mesmo que as mulas colaborassem, a caravana não chegaria ao primeiro espigão, no alto da Higienópolis, com luz do dia. Toda lógica mandaria implantar o povoado ou no espigão ou em ponto alto beira-rio, e os colonizadores britânicos não eram marinheiro de primeira viagem. Não iriam fincar a primeira estaca numa baixada sem água, a não ser a mina que ainda hoje jorra mas insuficiente para um povoado. Além disso, havia o costume de arranchar no alto para evitar a malária. E, demonstrando que o ponto inicial era incorreto, o povoado logo seria mudado mais acima na encosta, onde hoje é o cruzamento da Rua Duque de Caxias com a Avenida Celso Garcia Cid. Esta segue ainda hoje o traçado do “picadão dos Palhano”, que de certo foi aberto pela intuição das mulas, pois o mateiro sabe que, diante da mata fechada, a mula ou o chamado burro sempre tomam o caminho mais favorável. Sabe-se lá que mula de que anterior caravana abriu com seu instinto o picadão, que ia pela Avenida Paraná/Calçadão até o coreto, e daí se bifurcava para a fazenda dos Palhano e para o Shangri-lá. O que nos importa, porém, é que logo nos primeiros dias do primeiro arranchamento, George e outros tiraram fotos, iniciando a documentação fotográfica de Londrina. Por ser assim fotografada desde a primeira clareira e os primeiros ranchos, Londrina pegou mania de pioneirismo: a primeira casa, o primeiro prédio, o culto aos pioneiros, principalmente os primeiros; o que geraria disputas como a de David Dequêch com Alberto Koch, sobre quem fez a primeira casa de tábuas no povoado de ranchos de palmito. 61


O certo é que a primeira estaca para o primeiro rancho foi provavelmente cortada por um peão anônimo, dos que iam sob as ordens do construtor Alberto Loureiro, pois os peões estavam ali para isso. George sempre frisou que eles cortaram as primeiras árvores e ergueram os primeiros ranchos depressa, porque logo escureceria. Enquanto George viveu eu jamais escreveria isto, para não ofender o homem que se assumiu como o primeiro londrinense, mas tudo indica que eles fizeram esses pioneiríssimos ranchos ali na baixada por duas razões: primeiro, por causa do atraso causado pelas mulas; e, segundo, porque na floresta o dia escurece bem mais cedo. Pode-se também arriscar que o agrimensor Alexandre Razgulaeff, que deveria indicar onde era o ponto demarcado para o povoado, não sendo nem jovem nem atleta, podia estar pensando também no próprio descanso quando olhou os mapas e disse: “É aqui!” George ria contando que olhou em volta, só mata fechada, e perguntou: “O que é aqui?” O russo respondeu que ali era a data, o terreno onde deviam iniciar o povoado. Quando anoiteceu de vez, os ranchos estavam prontos, e eles dormiram em redes com fogo de folhas verde por baixo, para espantar os mosquitos. E depois Londrina levaria anos para crescer até o alto da Higienópolis, onde decerto deveria ter começado, se não fossem a mata, os carrapatos, as abelhas que picaram a caravana no caminho, o cansaço dos homens, os mosquitos da noitinha e as mulas, principalmente as mulas; tanto que George, sempre que contava esta história, ria: nunca mais vou me esquecer daquelas mulas. Nem nós, George. 62


O velho “Hotel da Companhia” A Pioneira* Não foi sem acurados estudos que a cidade de Londrina se localizou onde está atualmente. Quando a Companhia de Terras Norte do Paraná foi constituída com capitais ingleses, em 1925, e, com a primeira compra de 350 mil alqueires do governo do Estado do Paraná, o plano de penetração e desenvolvimento baseou-se na ideia de um ramal da Sorocabana que, partindo de Regente Feijó ou Presidente Prudente, fosse por um traçado de construção fácil ter na barranca do Paranapanema na altura da foz do Pirapó, e lá passasse o rio para prosseguir em direção Sul até o centro das terras recém-adquiridas. Se tivesse alcançado êxito esse projeto, a sede da Companhia poderia bem ter sido localizada onde está hoje Maringá. Mas por uma razão ou outra, os planos originais tiveram que ser modificados e, em 1928, a matriz de Londres comprou as ações e acervo da São Paulo-Paraná e resolveu penetrar as suas terras por uma linha que, já em tráfego entre Ourinhos e Cambará, ia cruzando os rios das Cinzas, Laranjinhas, Congonhas e Tibagi, até chegar na entrada das terras. Assim resolvido, a construção da estrada de ferro foi iniciada em 1929; as estradas de rodagem que tinham que acompanhar o traçado da via férrea e precedê-la nos sertões foram atacadas, e os planos para a instalações da sede de trabalhos da Cia. de Terras num ponto conveniente foram postos em execução. *

“A Pioneira”, número 2, 1949.

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Nesta época já era possível chegar até Jataí por estradas feitas à custa do governo, mas de trânsito um tanto precário. No rio Tibagi, o Dr. Mábio Palhano tinha instalado uma balsa leve de canoas que afundou na primeira vez que o pessoal da Companhia tentou com ela passar o rio. A oeste do rio, o mesmo Dr. Palhano havia começado, por conta do governo, uma estrada de penetração, mas com apenas dois ou três quilômetros abertos. Saindo desta estrada, a burro (...), representantes da Companhia furaram o mato até cruzar a divisa das suas terras, e pernoitando na picada, exploraram o terreno em

Hotel campestre Museu Histórico de Londrina

diversas direções, notando especialmente as cabeceiras das águas. A topografia em volta de um alto (onde hoje se acha situada a Igreja Matriz de Londrina) impressionou-os como local ideal para uma cidade. Mas era necessário escolher um lugar para a primeira sede, que não atrapalhasse eventualmente o planejamento da cidade futura, e foi escolhido o terreno acima de umas pequenas nascentes situadas uns mil e oitocentos metros a Leste daquele alto. 64


Nos meses seguintes foi desenvolvida uma grande atividade, envolvendo a construção da estrada ligando com Jataí, a derrubada e plantação de dez alqueires de “chácara”, e a construção de dois prédios de madeira cobertos de zinco – um para “hotel” para o pessoal da Companhia e visitantes e outro para servir de almoxarifado e escritório. A madeira foi serrada a mão no mato e as folhas de zinco, o encanamento para água, as camas, trens de cozinha, etc., chegaram de Jataí a lombo de burro pelas picadas. E grande foi a satisfação quando, antes do fim do ano, pôde-se chegar até a “chácara” Rottmann de automóvel, e o hotel esteve em pleno funcionamento. No intervalo, a Companhia contratou os serviços do Sr. Alberto e Da. Frieda Fleuringer, para tomarem conta do hotel, e o prazer que todo mundo sentia em visitar e morar ali era devido, em maior parte, à grande capacidade e devoção demonstradas por Da. Frieda em administrar a casa. Os primeiros moradores foram personalidades ainda bem conhecidas entre nós, inclusive o Sr. Carlos Rottmann, infatigável e abnegado agrimensor no serviço da Companhia; Dr. Alexandre Razgulaeff e sua esposa Da. Sofia; ele, contratado com o seu próprio pessoal para os levantamentos das terras; Sr. George Smith, o primeiro jovem guarda-livros, que superintendeu o transporte dos materiais necessários à construção; e o Sr. Erwin Fröhlich, que passou mais tempo na picada do que no hotel! Visitantes frequentes eram o atual diretor-gerente da Companhia, Sr. Artur Thomas, e o primeiro engenheiro-chefe, Dr. William Reid. Com o começo do ano de 1930 foi inaugurado um registro interessante, mas não sempre completo, dos que frequentavam o hotel. Esse registro foi mantido até o fechamento 65


do hotel em 1933, época em que a cidade nova já estava em condições de oferecer hospedagem em pontos mais convenientes. Não há página, das suas cem páginas, em que este registro não desperte interesse e saudades nos que viveram aqui naqueles anos! Abre-se com o nome de George Craig Smith, que ficou no serviço da Companhia aqui até 1937, e sempre foi uma figura alegre nas regiões e atividades sociais de Londrina. Nota-se na mesma página, como é natural, Carlos Rottmann, em seguida Amadeu Boggio. O Dr. Boggio, então solteiro, trabalhou como engenheiro nos estudos da estrada de ferro. Os seus muitos amigos se recordarão de que quando seus estudos foram completados até Londrina (ou foi até Cambé?) ele mudou de meio de vida, montou serraria em Cambé, casou-se e mais tarde instalou uma serraria maior ainda, em Arapongas, onde funciona até hoje, apesar do Dr. Boggio ter transferido sua residência para São Paulo. Ainda na mesma página ocorrem os nomes de diversos engenheiros da construção (da ferrovia) – C. B. Mcdonald, C. B. Sohlberg, D. H. Lorylon, James I. Adamson e Walace H. Morton. Estes estão agora espalhados por diversas partes do mundo – o capitão Mcdonald, em Trinidade, nas Índias Ocidentais; Sohjberg, no seu país natal, Noruega; Layton e Adamson, na Inglaterra. O bem conhecido Dr. Morton, que chegou a ser superintendente da estrada de ferro em 1933 e manteve este posto até a aquisição da linha pelo governo federal em 1944, serviu nas últimas etapas da Segunda Guerra Mundial na Birmânia e voltou ao Brasil em 1947 para assumir um cargo de grande responsabilidade na Light, em São Paulo. Interessante é o aparecimento do (presumível) primeiro japonês a pisar nesta terra – um tal Morato Yaociti, de 66


Quatá – mas não sabemos quem era. Isto em 24 de maio de 1930. Ele figura na respectiva página entre seis ingleses, três alemães, dois italianos, dois russos, um polonês, um espanhol, um norueguês, um leto e um – somente um! – brasileiro, Manfredo Bezerra. Que verdadeira Liga das Nações! O ano de 1930 não foi, como é de supor, de muito movimento. A Companhia ainda não tinha inaugurado as vendas de terras, o que, aliás, não fez enquanto não adiantou bem os trabalhos de levantamento e aperfeiçoou os seus planos de colonização. De modo que os nomes que figuram no livro são ainda os do pessoal da própria Companhia, curiosos e algumas pessoas com visão das possibilidades da região. Assim, podemos notar a primeira visita de Da. Betty Thomas, acompanhada por uma tal “Bonzo – três anos – Profissão: Rateira – Procedência São Paulo”. E os que conhecem Da. Betty e o seu penchant para companheiros quadrúpedes podem adivinhar que a tal “Bonzo” era sua cachorrinha favorita! No mesmo mês a assinatura do bem conhecido “cônsul” japonês – que, felizmente, ainda vive em nosso meio – Hikoma Udihara. Ele veio trazendo um punhado de patrícios para espiar e avaliar, e de fato as primeiras vendas da Companhia, em dezembro de 1930, foram feitas para japoneses. Nos anos seguintes as atividades do Sr. Udihara foram crescendo rapidamente e pode-se notar a presença frequente de turmas “udiharenses”, que fizeram bons negócios comprando lotes perto de Londrina à razão de quatrocentos mil réis por alqueire, preço da época! Lembramos bem como os costumes destes amigos nipônicos causavam comentários, às vezes um pouco ásperos entre hóspedes do hotel, quando depois de todo o mundo ter voltado de dias trabalhosos no mato, 67


os japoneses passavam a noite inteira juntos, discutindo na sua língua natal e em voz alta, as vantagens e desvantagens, os benefícios e os riscos, de comprar um pouco de terra, para saírem outra vez ao amanhecer do dia seguinte para bater de novo as picadas do mato virgem em procura do melhor! De passagem, deixamos aqui registrado o nome do saudoso amigo de todos Ian Fraser, então estabelecido com olaria em Jataí, e que esteve em visita no hotel a 3 de novembro de 1930. Sabemos que não foi a primeira vez que pisou nessa terra, porque tinha antes percorrido muitas picadas aqui e até contratado a compra das terras que mais tarde se converteram na próspera Fazenda Invernairn, umas das propriedades mais invejáveis da vizinhança. No dia primeiro de abril de 1931, o pessoal do hotel esperava um acontecimento de alto interesse histórico. O então príncipe de Gales (mais tarde, mas por tão pouco tempo, o rei Eduardo VIII da Inglaterra, e hoje duque de Windsor) estava em visita ao Brasil, em companhia de seu irmão príncipe George, duque de Kent (cujo fim trágico em desastre de aviação durante a última guerra será lembrado). Ainda antes de sair da Inglaterra, o príncipe de Gales, conversando sobre os seus intentos com o falecido lorde Lovat, pediu a este que lhes proporcionasse uma oportunidade de ver de perto as florestas virgens do Brasil, e que lorde Lovat os acompanhasse. Dito e feito. Trem especial da Sorocabana de São Paulo até o “km 125” (Cornélio Procópio), ponta de trilhos na época; comitiva selecionada para lhes fazer companhia; almoço íntimo na fazenda dos Barbosas, em Cambará, e pernoite feito no trem, no km 125. O programa para o dia seguinte, primeiro de abril, era percorrer as obras incompletas da estrada nova e chegar até o local de Londrina, mas infelizmente as 68


chuvas do dia anterior, continuadas pela noite adentro, converteram as estradas novas em perigosos lamaçais; e, com medo de ver os ilustres viajantes forçados a passar a noite seguinte na estrada, a viagem foi reduzida a uma inspeção das obras da construção, de Cornélio Procópio ao rio Congonhas. Na impossibilidade de serem avisados em tempo, o pessoal da Companhia em Londrina e os poucos colonos já radicados, que foram convidados a reunirem-se no hotel, acharam-se diante de algum almoço principesco arranjado pela competente Da. Frieda, sem os príncipes. Entretanto, não foi perdido! Uma página especial de registro tinha sido preparada para as assinaturas reais – e o que ainda consta da página, é o seguinte, em letras grandes: “VISITA DE SUAS ALTEZAS REAIS. Infelizmente não compareceram!!! Portanto, as seguintes pessoas assentaram-se à mesa: William Reid, Frieda Fleuringer, Carlos Strass, E. Fröhlich, Guilherme Kernkamp”. Com o início das vendas de terras, o movimento do hotel aumentou muito durante o ano de 1931, e não temos espaço para uma descriminação adequada dos nomes interessantes que aparecem. E, enquanto o ano todo ocupou 23 páginas do livro, o de 1932 encheu nada menos do que 53 páginas. Nesta época constam as visitas de delegados de diversas organizações europeias – polonesas, lituanas, tchecoslovacas e austríacas –, todos encarregados de descobrir terras onde seus patrícios pudessem refugiar-se das tristezas da crise que então assolava o mundo. Vieram em números limitados alguns tchecos e alguns dantziguenses, e, nos anos seguintes, algumas levas consideráveis de poloneses. Mas o movimento de entrada foi, como devia ser, em sua grande maioria, de brasileiros e estrangeiros já há anos radicados no país. Assim, notamos a frequente 69


ocorrência dos nomes dos agentes mais conhecidos da Companhia, trazendo com eles turmas de pretendentes que, geralmente, se tornaram compradores e habitantes da zona. Podemos mencionar, por exemplo, o primeiro aparecimento do jovem Raimundo Durães – idade dezenove anos! – em 13 de abril de 1932, conduzindo os seus primeiros fregueses para comprar terras – e ganhar as suas primeiras modestas comissões! O Sr. Raimundo – hoje tão ativo na vida da região e muito dedicado vereador municipal de Londrina – conta como ele se apresentou pela primeira vez ao diretor-gerente para pedir uma nomeação como agente de vendas. O diretor olhou-o de cima a baixo – que aliás não foi em grande extensão! – e disse em tom de dúvida: “Penso que o Sr. é muito menininho para essa tarefa”. O que Raimundo respondeu não ficou na memória, mas o fato é que foi nomeado agente e, nos muitos anos que decorreram desde então, provou ser um dos mais ativos, dos mais adaptados e dos mais prósperos agentes da Companhia! Escolhemos outra página, desta vez com a data de 4 de maio de 1932. Contém algumas assinaturas que são difíceis de esclarecer, de pessoas que não mais vivem na memória. Eram alguns componentes da comitiva do interventor Manoel Ribas que veio ao Norte para distinguir com a sua presença a inauguração da nova estação de Jataí. A cerimônia teve lugar cedo e a comitiva, atravessando o rio de balsa, foi transportada à cidade, já nascida, de Londrina. A chamada “cidade” consistia na ocasião de umas vinte casas, a mais importante das quais era o prédio do Hotel Luxemburgo, onde, apesar de não estar acabado, seu proprietário, o falecido Dr. Gregório Rosemberg, conseguiu preparar e servir 70


um almoço apetitoso. De lá o interventor foi visitar a sede da Companhia, deixando o fato consignado em nosso livro. Assim, consta que o Sr. Ribas estava com a idade de sessenta anos. Logo abaixo do nome dele, encontramos o do major Antônio Barbosa Ferraz, esta grande figura do desbravamento do Norte e adiantado fazendeiro, que faleceu há uns três anos em São Paulo. Já nesta data a colónia alemã de Heimtal tinha se organizado com grande mérito em esforços tendentes a consolidar-se numa comunidade progressista. Com algum auxílio da Companhia, mas, principalmente pela energia e espírito cívico de particulares, a colónia já possuía a sua pequena igreja, uma escola e casa para o professor-diretor. O Sr. Ribas, com o conhecido interesse que sempre manifestou pelo bem-estar da gente modesta e trabalhadora, fez questão de transportar-se com a comitiva para Heimtal, onde, em baixo das árvores que ainda circundavam a escola, assistiram a um concerto apresentado pelos pequenos escolares, loiros, que com suas danças simples e cantos graciosos conquistaram as simpatias de todos os que os ouviram. O dia do interventor terminou com um baquete organizado pelo povo de Jataí. O Sr. Ribas só foi embora de volta para a capital a alta hora da noite. Pelo resto do ano de 1932, e até abril de 1933, o velho hotel continuou muito frequentado. Mas o aspecto das coisas estava mudando. O Hotel Luxemburgo já estava de portas abertas; a Companhia estava construindo casas próprias para seus funcionários; o Sr. Udihara já havia montado uma pensão para seus amigos japoneses, onde podiam conversar a noite toda sem perturbar a gente mais sonolenta e, afinal, a Companhia resolvera fechar o hotel por 71


ser agora desnecessário e longe do centro de atividades. Por sua parte, a boa Da. Frieda entregou-se à montagem de um hotel próprio e construiu o Hotel Germânia, hoje o Grande Hotel, aliás certamente muito maior e modernizado, para onde aflui uma grande parte do movimento crescente da cidade nova. Tempos velhos mas saudosos! E ninguém que passou pelo velho hotel pode esquecê-lo - os dias árduos e às vezes penosos, as noites de conversa boa e alegre, as excursões pelo mato adentro e o silêncio do mundo em volta, e, melhor do que tudo, a camaradagem sincera e duradoura entre amigos que podem se julgar hoje Pioneiros de Londrina!

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