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Célia Musill
from O Fio de Ariadne
célia musilli
Advertência
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Posso me apaixonar, senhor? Olha que o desejo não é pianíssimo, é urro, gemido de floresta no escuro, sinfonia selvagem. Ainda assim, visto azul para disfarçar evidências, até quando? Bandeira, adereços esvoaçando nos pulsos, transparência cigana, tambores cardíacos, vitalidade explícita como o sexo em que tudo é rítmico, um figurino de dança. Antes mesmo já sabemos a resposta. Posso me apaixonar, senhor? A imaginação toma corpo, fetiche de tecido orgânico, vestido de tule, camadas que se desfazem na própria pergunta. Não era mais questão de saber. Quando a mulher despe organzas, a última fita nos quadris a coloca disposta a rumbas. Erotismo, indício de estrelas incandescentes, matéria diáfana com uma potência dos diabos.
Paixão em origami (uma carta, quase um blues)
Não fuja baby, há muita história pra rolar, geografias a percorrer, uma aventura a dois tem um grau de intimidade que nos tira do chão e nos coloca num espaço inimaginado, onde não há razão, só coração, órgão máximo da delicadeza, vaso onde nascem flores de origami que moldamos entre os dedos, fazendo carícias, descobrindo formas de amar. Quando a aventura é grande e a viagem longa, entregamos as identidades e os RGs, vamos em busca daqueles outros que habitam em nós, embora nem sonhássemos com eles na vizinhança. Você tirou algumas outras de dentro de mim, aquelas que dançam rumba, vaporizam perfume no ar, celebram a vida, pelo fato de serem carne que se entrega e arrepia, muito além de um osso duro de roer. Havia tantas lá dentro. Escondidas entre os véus, me espreitando como odaliscas que me habitavam e eu nem sabia. Ou havia esquecido, entre um passo de dança e a necessidade urgente de voltar pra casa, colocando uma a uma em disciplinado silêncio, sem música para não despertar seus sentidos.
Mas estes desdobramentos, estas vozes, estas mulheres teimam sempre em acordar do seu sono profundo, nascidas das memórias que as fazem únicas, herdeiras da aventura de amar. Penélopes e Alices, Helenas e Yokos sopram em meus ouvidos uma canção de coragem, um ato de ternura que irrompe como um animal, entre dengos, sobressaltos e murmúrios. Elas permanecem ali, por um tempo, inspirando-me histórias de Sherazade, num plano de criatividade ao qual dou voz, neste instante, narrando a mesma história, que parece sem fim... Era uma vez tantas vezes. Então, não fuja baby. Há muita história pra rolar, acontecimentos que não se adivinham. Quando nos despimos pra valer há um encontro indizível, uma possibilidade de descobertas que só se fazem a dois, antes que o dia amanheça e a gente pegue o RG como se fossemos um, embora tenhamos sido tantos outros que emergem, se escondem, viajam até as estrelas, desembarcam no quarto. Até a próxima vez, quando o pássaro nos acordar do mistério.
(Texto do livro Todas as Mulheres em Mim/ 2010)
Ariadne morreu distraída
Ela tinha uma visão de vidro que iluminava escuros, dedos que faziam arabescos em superfícies frias, sabia o gosto das lágrimas porque era íntima do sal, ouvia passos de insetos em silêncios insondáveis, adivinhava o perfume em frascos vazios. Tinha os sentidos multiplicados como um alarme orgânico cujo DNA transbordou. Por isso, acusava alegrias e angústias como um sismógrafo e acidentava-se com facilidade. Morreu ao tomar 30 soníferos enquanto assistia a um filme, confundiu as pílulas com pipocas. A vigésima nona engoliu às pressas, achou que o espasmo na boca era a cena final. Fechou os olhos ao beijar James Dean, isso sim era amor. Diante disso, o laudo médico apontando clonazepam no sangue não tinha a menor importância. Sempre soube que a realidade padecia de uma falta enorme de imaginação. O laudo poético seria: Ariadne morreu distraída. Muito mais bonito.