Literatura paulina

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Caderno de Literatura Paulina Um guia de estudos

Prof. Humberto Macharetti h.macharetti@yahoo.com.br www.humbertomacharetti.blogspot.com.br

STBC – Seminário Teológico Batista Carioca Ltda ME Rua Ferreira Borges, nº 54 – Campo Grande – RJ – CEP: 23.052-350 Tel.: 2412-2308 – e-mail: teologica@gmail.com CNPJ: 10.946.666/0001-90 Rio de Janeiro, 2014.


Macharetti, H. Caderno de Literatura Paulina, Um guia de estudos, Rio de Janeiro, Edição do Autor, 2016


Bibliografia Recomendada 1. BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 2004. 2. BROWN, R. E. As igrejas dos apóstolos, São Paulo, Paulinas, 1986. 3. BRUCE, F. F. Paulo, o apóstolo da graça – sua vida, cartas e teologia, São Paulo, Shedd, 2003. 4. CARREZ, M., DORNIER, P., DUMAIS, M & TRIMAILLE, M., As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas, São Paulo, Paulinas, 1987. 5. CARSON, D.A., MOO, D. J. & MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1992. 6. CROSSANT, J. D. & REED, J. L., Em busca de Jesus. Debaixo das pedras, atrás dos textos. São Paulo, Paulinas, 2007. 7. DANA, H. O mundo do Novo Testamento, Rio de Janeiro, JUERP, 2a edição, 1977. 8. HALE, B. D. Introdução ao estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro, JUERP, 1983. 9. HORSLEY, R. A, Paulo e o Império, religião e poder na sociedade imperial romana, São Paulo, Paulus, 2004. 10. KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1977. 11. JEREMIAS. J. Jerusalém no Tempo de Jesus - pesquisas de história econômico - social no período neotestamentário. São Paulo, Paulinas, 1983. 12. KÄSEMAN, E., Perspectivas Paulinas, São Paulo, Teológica-Paulus, 2ª edição, 2003. 13. PACKER, J. I.; TENNEY, M.C. & WHITE Jr., W. O mundo do Novo Testamento, São Paulo, Vida, 1981. 14. PATTE, DANIEL, Paulo, sua fé e a força do evangelho, São Paulo, Paulinas, 1987. 15. PLATÃO, A República, Tradução Enrico Corvisieri, São Paulo, Best Seller, 2002. 16. REICKE, B. I., História do Tempo do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1996. 17. SAÔUT, F. Atos dos Apóstolos- ação libertadora, São Paulo, Paulinas, 1991. 18. SANDERS, E. P., Paulo, a Lei e o Povo Judeu, São Paulo, Paulinas, 1990.


19. SCHREINER, J. & DAUTZENBERG, G. Formas e estruturas do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1977. 20. TENNEY, M. C. O Novo Testamento, sua origem e análise, São Paulo, Vida Nova, 2a edição, 1989.


Sumário 1. O Império Romano

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2. Paulo e o Cristianismo do primeiro século

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3. O início de um Novo Testamento

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4. As primeiras epístolas de Paulo.

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5. A primeira Epístola de Paulo os Coríntios

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6. A segunda Epístola de Paulo aos Coríntios

59

7. A epístola de Paulo aos Gálatas

67

8. A epístola de Paulo aos Romanos

74

9. A epístola de Paulo aos Efésios

83

10. A epístola de Paulo aos Filipenses

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11. Epístolas aos Colossenses e a Filemon

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12. As epístolas pastorais

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1. O Império Romano Objetivos de estudo 1. Delimitar os limites geográficos do que se entende por Mundo do Novo Testamento. 2. Descrever a organização política e social do Império Romano. 3. Listar os imperadores romanos que interferiram com a história bíblica dando as características principais de cada um deles. 4. Listar os governantes romanos que, direta ou indiretamente, se relacionam com os fatos descritos nos livros do Novo Testamento e mencionar as principais características de cada um deles. 5. Descrever com suas próprias palavras a situação política da Palestina nos tempos do Novo Testamento. 6. Relacionar os governantes da Palestina que participaram os eventos bíblicos narrados nos livros do Novo Testamento mencionar as principais características de cada um deles.

Geografia Política do Império Romano Chamamos de “Mundo do Novo Testamento” a um conjunto de terras situadas em volta do Mar Mediterrâneo oriental que serviu como cenário geográfico para os fatos narrados nos livros históricos do Novo Testamento: Os quatro evangelhos e Atos dos Apóstolos. Estes fatos incluem o ministério de Jesus Cristo, a expansão inicial da Igreja na Judéia, a obra missionária dos cristãos primitivos e o processo de institucionalização da igreja ocorrido no final do primeiro século. As terras em estudo se estendem desde a península itálica, no ocidente, até o deserto da Arábia, no oriente e desde o limite norte do deserto de Saara, ao sul até um paralelo que tangencia o norte


2 do Mar Negro, ao norte. No tempo em que se passaram os fatos descritos nos livros do Novo Testamento todo este território integrava o Império Romano. Muitos dos nomes das regiões que encontramos na Bíblia tais como Síria, Ásia, Bitínia, Galácia, Ponto, Macedônia e Grécia, são nomes de províncias dados pelos dominadores romanos. O império romano, criado por César Augusto, se constituía numa espécie de mosaico político e étnico resultante da junção de um grande número de unidades geográficas denominadas províncias. O sistema político romano foi constituído de maneira a respeitar as peculiaridades dos povos submetidos, especialmente as suas religiões. Cada província podia manter a sua própria língua nativa, adorar os seus próprios deuses (desde que concordassem em cultuar a deusa Roma e o Imperador) e, na maioria dos casos, era governada por líderes nativos que juravam lealdade à Roma e recebiam por méritos militares (ou compravam por grande soma) o título nobiliárquico de cidadão romano (Atos 22.24-29). Em virtude da helenização instituída por Alexandre e por seus sucessores a língua grega era o idioma comum às províncias da parte oriental do império enquanto o Latim era falado no lado ocidental. Este fato (a existência de uma língua comum) associado à implantação de um eficiente sistema de estradas terrestres e de rotas marítimas e à segurança decorrente da presença de tropas romanas por toda a parte, foi de extrema importância para o livre deslocamento de missionários dentro do império e possibilitou também o surgimento do Novo Testamento.

Panorama histórico do Império O Império Romano se originou da pequena república de Roma cujo território inicial se limitava à parte central da península itálica. Depois de haver passado por lutas, nas quais foram derrotados vizinhos rivais tais como os etruscos, ao norte, e os cartagineses,


3 ao sul, Roma adquiriu o domínio completo das rotas terrestres e marítimas do Mediterrâneo, o que lhe permitiu uma expansão geográfica sem precedentes na história. Roma se estruturou inicialmente na forma de república com Júlio César, e, posteriormente, com Otaviano, que a si mesmo se denominou César Augusto, transformou-se num império onde um sistema de patronato e clientela1 era o elo de união entre todas as províncias. Nesse sistema se destacava a suprema veneração à deusa Roma e ao imperador. O Apocalipse de João o movimento de resistência dos cristãos do final do primeiro século contra a exigência de prestar culto ao imperador. A mensagem deste livro é dirigida particularmente aos crentes perseguidos da província da Ásia, estimulando-os à perseverança e à fidelidade. A sucessão dos imperadores não era hereditária, mas cada um deles tinha a prerrogativa de indicar seu próprio sucessor o qual era submetido à aprovação do senado. Nos livros do Novo Testamento são citados alguns imperadores romanos. Na tabela abaixo aparecem os nomes dos imperadores romanos cujos governos cobrem o período em que se deram os fatos relatados nos livros do Novo Testamento, isto é, no século I da era cristã. Pode-se observar que o tempo de governo dos imperadores era muito variável. O período que se seguiu à morte de Nero, 68-69, ficou conhecido como o ano dos quatro imperadores e foi caracterizado pela rápida substituição de três deles. Parecia que o Império havia chegado ao fim. Foi nesta época que mais se intensificou a luta dos judeus contra os romanos. O apocalipse de João descreve este ano como o período em que a cabeça da besta foi ferida (Apocalipse 13.3). Vespasiano que assumiu em 69,

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HORSLEY, RICHARD A., Paulo e o Império, religião e poder na sociedade imperial romana, São Paulo, Paulus, 2004. Parte II – Introdução: Patronato, sacerdotados e poder.


4 reordenando a política, inaugurou a dinastia dos Flávios e curou o “ferimento aparentemente mortal” da cabeça da besta. Alguns destes imperadores merecem Quadro 1 - Os imperadores atenção especial ou romanos porque seus nomes Imperador Início Término são mencionados na Bíblia ou porque César 27AC 14 DC durante seu governo Augusto ocorreram fatos que Tibério 14 37 repercutiram Caio 37 41 profundamente na His(Calígula) tória do Cristianismo. Cláudio 41 54 Augusto governava na época do nascimento Nero 54 68 de Jesus Cristo (Cl 2.1) Galba 68 e Tibério no período Otão 68 em que iniciou a Vitélio 69 pregação de João Batista no deserto da Vespasiano 69 79 Judeia (Cl. 3.1-2). Tito 79 81 Cláudio era o goverDomiciano 81 96 nante na época em que foi dada ordem para expulsão dos judeus de Roma conforme foi relatado pelo historiador Suetônio; as evidências mostram que foi neste período que Áquila e Priscila saíram daquela cidade (At. 18.2), Nero promoveu perseguição aos cristãos acusando-os de haver mandado incendiar Roma. Vespasiano e seu filho Tito participaram como comandantes na Guerra Judaico-Romana (66-70). Domiciano, também filho de Vespasiano, segundo as hipóteses mais aceitas, era o imperador na época em que foi concluído o texto do Apocalipse de João.


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Classes sociais e distribuição de riquezas Havia um grande número de pobres nas províncias. Os romanos, entretanto, só se preocupavam com os ricos. Eles sempre procuravam se associar aos ricos de cada província e lhes davam cargos importantes no governo os quais eram ricamente remunerados assumindo, muitas vezes a condição de arrendatários do Império. Saoût2 nos apresenta uma descrição bastante minuciosa da vida econômica no Império Romano. O pró-cônsul desta província da Ásia tinha um salário de um milhão de sestércios (talvez o equivalente a 2.500.000 francos franceses). O salário de Galião (Atos 18.12) não devia ser muito inferior... Segundo Atos 12.21, Herodes Agripa, naquele dia estava vestido com trajes reais. Flávio Josefo, que narra o mesmo episódio, precisa que estas vestes eram totalmente em prata e de um tecido admirável.

Se havia estes casos de riqueza, por outro lado, havia as classes pobres; os escravos, as viúvas, e também aqueles que faziam da pobreza uma opção de vida tais como os escribas judeus3. Os romanos sempre escolhiam os ricos das terras dominadas para ocupar posições importantes no governo.

A Palestina sob o Governo Romano Geografia física da Palestina A Palestina se situa no braço ocidental da região que ficou conhecida como O crescente fértil, uma área com a forma de

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Saoût, I. Atos dos Apóstolos- ação libertadora p. 179. JEREMIAS. J. Jerusalém no Tempo de Jesus—pesquisas de história econômicas—social no período neotestamentário. São Paulo, Paulinas, 1983.


6 meia lua que, iniciando na península do Sinai, se estende para o norte pela faixa territorial compreendida entre o mar Mediterrâneo e o deserto da Arábia, até a Síria. Daí se dirige para o oriente e para o sul pela Mesopotâmia, acompanhado os vales dos rios Tigre e Eufrates até o Golfo Pérsico. Como caminho natural entre dois polos onde se desenvolviam grandes impérios, o Egito ao sul e Assíria, Babilônia e Pérsia, ao norte, a Palestina foi, por todo o período veterotestamentário, alvo da cobiça dos governantes vizinhos que dela se serviam como via natural e base estratégica para as suas conquistas militares e, eventualmente, como alvo para suas pilhagens. Depois de um curto período de independência política resultante da revolução doas Asmoneus, as lutas entre Aristóbulo e Hircano pela sucessão no trono pontifical dos Macabeus abriram o caminho para que os romanos, comandados por Pompeu, entrassem na Palestina e fizessem a sua anexação ao Império como província subsidiária da Síria no ano 63 A.C. No tempo do Novo Testamento a Palestina era uma província romana limitada ao ocidente pelo mar Mediterrâneo, ao norte pela província da Síria, ao sul pelo Egito e ao oriente pelo deserto árabe. Esta pequena faixa de terra estava dividida em cinco distritos: Judeia, Samaria, Galileia, Decápolis e Pereia. A Judeia era o centro da vida religiosa e social do povo judeu. Em Jerusalém, sua capital religiosa, se encontravam o templo reconstruído por Herodes o Grande e o Sinédrio, uma espécie de Assembleia Nacional. Na capital política, Cesareia marítima, onde se alojavam os governantes e as legiões romanos, o próprio Herodes mandou construir dois templos, um em honra à deusa Roma e outro em honra ao Imperador. Principais cidades da Palestina. Jerusalém - A capital religiosa e principal cidade do país. Nela


7 se encontrava o templo que a tornava o centro da vida social e religiosa do país. A presença do templo determinava um grande movimento de peregrinos que iam anualmente às festas e entregavam os seus dízimos. A prática do segundo dízimo que determinava que cada fiel gastasse em compras na cidade de Jerusalém uma quantidade de dinheiro igual àquela que havia sido entregue no templo, promoveu na cidade um florescente comércio, principalmente de “souvenires”. As festas eram celebradas segundo o calendário litúrgico dos judeus e muitos dos fatos do ministério de Jesus são datados em relação às suas idas a Jerusalém para participação em festejos religiosos. Cesaréia marítima – Situada à margem do Mediterrâneo, com um porto anexo, foi construída por Herodes, o grande, para ser a capital romana da Judéia. Nela se encontravam templos dedicados à adoração de Roma e do Imperador, a residência do Governador Romano e as bases de operação das legiões romanas, entre outras coisas. É citada no livro de Atos dos Apóstolos. Aparece nos episódios da conversão do centurião Cornélio e do julgamento de Paulo que lá permaneceu preso por volta de dois anos, antes de ser encaminhado para Roma. Tiberíades – Edificada por Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, tetrarca da Galileia e da Peréia, para ser sua capital. Essa cidade começou a ser construída após o ano 14 d.C., quando morreu César Augusto e foi sucedido por Tibério César, que permaneceu no comando do império até 37 d.C. Apesar de todas as homenagens, Antipas não conseguiu realizar seu intento de ser reconhecido elos romanos como rei de seu país. Principais governantes da Palestina Os governantes da Palestina no período bíblico foram sucessores da dinastia dos asmoneus, que começou a declinar em 63 A.C. quando Pompeu dominou a região e acabou,


8 dizimada por Herodes, o Grande. 1. Herodes, o Grande (37 A.C. - 4 D.C.) - Herodes recebeu o poder dos romanos, por negociação de seu pai Antípater, um idumeu, e consolidou-o pelo casamento com Mariane, filha de Antígono, um rei asmoneu. Depois de haver conseguido o apoio dos romanos, assumiu o domínio de Jerusalém das mãos de Antígono e nomeou um sumo sacerdote de sua própria escolha, Anás, que não pertencia à linha sacerdotal tradicional (zadoquitas). Seu governo foi caracterizado por grandes obras públicas dentre as quais se destacam a reconstrução do templo de Jerusalém e a construção da fortaleza da Massada no extremo sul do país e de suntuosos edifícios na cidade de Cesareia marítima. . Seu nome é citado em Mateus 2. 22 quando se descreve o retorno de José e Maria da terra do Egito. 2. Arquelau e seus irmãos (4-6 D.C.) - Depois da morte de Herodes o reino foi dividido entre seus filhos. A Arquelau coube a Judéia, a Samaria e a Idumeia. A Antipas coube a Galileia e a Pereia. Filipe (4-36 D.C.) - É mencionado em Lucas 3.1 como tetrarca da Itureia e de Traconitis. Seguindo a tradição de seu pai, empreendeu grandes construções e ficou conhecido como um governante justo e pacífico. 3. Herodes Antipas (4-39 D.C.) - É o governante mais citado nos Evangelhos. Jesus o chama de esta raposa (Lucas 13.32). Ele ordenou a morte de João Batista que o denunciou por causa do seu casamento ilegal com Herodíades4. 4. Agripa I - Neto de Herodes o Grande e de Mariane, é o governante quando ocorrem os fatos narrados no livro de Atos dos Apóstolos. Foi nomeado rei pelo imperador Calígula para governar as tetrarquias que antes haviam pertencido a Antipas e

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Mateus 14.1-12


9 a Filipe. Foi o responsável pelo martírio de Tiago, entre outros. Ele não usava o título de Herodes porque preferia se considerar um sucessor legítimo da dinastia asmonéia. Paulo se refere a ele chamando-o de rei Agripa. 5. Governantes Romanos - Paralelamente ao governo autóctone da província havia governantes romanos que, na realidade, detinham o poder supremo. O mais conhecido destes foi Pôncio Pilatos que emitiu a sentença de condenação de Jesus Cristo à morte na cruz.

QUADRO 2- Paulo e Platão Compare:

Platão: E podemos supor que os amigos dos deuses recebem deles o melhor de todas as coisas, exceto apenas por aquele mal que é a necessária consequência de seus pecados anteriores? Glauco: - Certamente. Platão: Deve ser então de nosso consenso que o homem justo sempre que se encontra em pobreza ou doença, ou em qualquer outro infortúnio parecido, todas as coisas irão, por fim cooperar para seu bem na vida e na morte; pois os deuses têm cuidado de qualquer que deseje tornar-se justo e vir a ser igual a Deus, na medida em que o homem possa atingir a semelhança divina, pela busca da virtude? Glauco: - sim, disse ele; se o homem é semelhante a Deus, seguramente não será esquecido por Ele. (Platão - A República Livro X, [613]) Com: Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos; (Rom. 8.28-29)


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2. Paulo e o cristianismo do primeiro século Objetivos de estudo 1. Descrever de maneira sumária a formação cultural e religiosa do apóstolo Paulo. 2. Descrever de maneira sumária os itinerários das viagens do apóstolo Paulo, narradas no livro de Atos dos Apóstolos 3. Delimitar os períodos históricos do primeiro século 4. Descrever a estrutura das comunidades cristãs no século I

Paulo, o cidadão romano. Paulo era, segundo ele mesmo descreve, hebreu de hebreus5. Sua ligação religiosa era com a corporação dos fariseus6. Sua cidade de nascimento foi Tarso, na província da Cilícia, embora sua família provavelmente fosse originária de Roma. Do ponto de vista étnico Paulo, cujo nome de berço era Saul, pode ser descrito como um judeu helenista da diáspora. O idioma nativo de Paulo era o Grego comum, língua usada pelo povo no lado oriental do Império Romano. Paulo era um homem culto, conhecia os filósofos e poetas gregos (V. Quadro 2, pag. 9) que citava frequentemente em suas obras 7 . Paulo possuía uma

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Filipenses 3-5 Ibidem Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos como até alguns dos vossos poetas o têm dito: Porque dele também somos geração (Atos. 17.28). Essa citação não implica em que Paulo concordasse com o que ela declara.


11 biblioteca que carregava consigo em suas viagens missionárias8. Paulo tinha conhecimento da língua e da cultura hebraica. Como qualquer garoto judeu, aprendeu a leitura e a interpretação da Torá na escola da sinagoga. Seus estudos superiores em doutrinas judaicas foram feitos em Jerusalém, onde teve por mestre Gamaliel, neto de Hilel. A escola de Hilel representava o lado menos radical do judaísmo. Fez sua iniciação no farisaísmo e se tornou doutor da Lei9. Provavelmente Paulo era pessoa muito bem relacionada nos meios políticos e religiosos de Jerusalém. Ele conseguiu uma autorização assinada pelo sumo sacerdote para perseguir os cristãos e foi observador na cerimônia de apedrejamento de Estêvão. Paulo era também um cidadão romano por direito de nascimento. Sua família residiu por muitos anos em Roma. Posteriormente radicou-se em Tarso, na província da Cilícia. Eram artífices que, segundo as evidências fazem crer, fabricavam e forneciam tendas para as legiões romanas. A carreira política e religiosa de Paulo foi interrompida quando da sua adesão ao Cristianismo. Ele entendeu que o Senhor a quem ele perseguia o chamava para uma missão profética de importância ímpar, a de ser o portador da mensagem do amor de Deus a todos os povos, especialmente os pagãos10. O livro de Atos dos apóstolos nos dá um esboço de suas viagens pelo Império Romano desenvolvendo o trabalho de proclamação do evangelho objetivando principalmente a comunidade gentílica. 8

Quando vieres, traze a capa que deixei em Trôade, na casa de Carpo, e os livros, principalmente os pergaminhos (2 Timóteo 4:13).

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Filipenses 3.5

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Gálatas 2.6-8


12 À semelhança de Jesus Cristo, Paulo reuniu e preparou um grupo de discípulos que foram habilitados para assumir cargos de liderança nas igrejas que ele fundava: Timóteo, Tito, Epafras, Apolo etc. Paulo pode ser chamado de “o segundo fundador do Cristianismo”, uma vez que as principais doutrinas cristãs (soteriologia, antropologia, santificação, eclesiologia) estão esboçadas em suas epístolas.

O cristianismo do primeiro século Períodos históricos O primeiro século do cristianismo pode ser dividido em períodos históricos que possuíram características diferentes. O conhecimento desses períodos históricos muito nos auxilia a compreender por que motivos foram possíveis a expansão inicial do cristianismo e a formação do novo testamento. É usual dividir o primeiro século nos períodos que seguem: 1. O período de Jesus Cristo vai do início do século até o ano 33, quando ocorreu a ressurreição. 2. O período da igreja primitiva, que também pode ser chamado de período apostólico, vai do ano 33 até o ano 70, quando o templo de Jerusalém foi destruído pelas tropas romanas comandadas por Tito. 3. O período final, denominado pós-apostólico ou sub-apostólico, se estende do ano setenta até o final do primeiro século. Cada um destes períodos teve características particulares e deu contribuições decisivas para a formação do Novo Testamento. No período de Jesus Cristo os cristãos eram um pequeno grupo de dissidentes religiosos, denominados inicialmente como seita dos nazarenos, que não passava de cerca de duzentas pessoas, incluindo as mulheres. Neste período não ocorreu composição de qualquer literatura escrita. O tempo em que


13 Jesus ensinou e agiu foi rico na produção de material que foi veiculado por seus discípulos na forma de tradição oral. Os discípulos ouviam e decoravam o que mestre falava. Nesta categoria se encontram as parábolas de Jesus e as narrativas de seus feitos: milagres, curas e exorcismos. O período apostólico se caracteriza pelo aparecimento de igrejas com pequeno número de membros, reunidas em casas de famílias, sob a direção de leigos orientados por apóstolos. O apóstolo que permanecia na igreja urbana, visitava periodicamente as demais igrejas a ele ligadas ou se comunicava com elas por meio de cartas. O adversário das igrejas neste tempo era o poder religioso dos judeus que perseguiam os cristãos acusando-os de serem politeístas por confessarem a divindade de Jesus Cristo. A ênfase do período foi a expansão missionária. Neste período foi composta a maioria das epístolas e, provavelmente também o evangelho de Marcos. O período sub-apostólico (pós-apostólico) seguiu-se à morte dos apóstolos e à destruição do templo de Jerusalém. Este período assistiu a estruturação das igrejas com seleção e preparação de lideranças locais. O inimigo deixou de ser o governo judeu e passou a ser o império romano. O desafio já não era expandir a fé e sim manter a convicção dos crentes diante das crescentes pressões para que seguissem heresias diversas (gnosticismo) ou apostatassem da fé retornando ao judaísmo. Algumas epístolas, os evangelhos, o livro de atos e o Apocalipse foram compostos nesta época. As comunidades Os cristãos do primeiro século estavam organizados em comunidades. Para entendermos o que designamos por comunidade, precisamos rever nossa conceituação de


14 Cristianismo Primitivo. A população cristã do primeiro século nunca foi, como vinha se acreditando há muito tempo, formada por um grupo unitário de igrejas, homogêneo em termos de doutrinas e de práticas religiosas. Pelo contrário, os cristãos do primeiro século formavam um grupo heterogêneo que estava estruturado em comunidades - grupos de igrejas - que guardavam em comum, além de sua origem histórica, o respeito a um mesmo líder e um repertório limitado de doutrinas e de práticas religiosas.11 Esse repertório doutrinário de cada uma das comunidades diferia bastante dos repertórios das outras comunidades congêneres com as quais ela se identificava apenas pela aceitação de um núcleo doutrinário comum denominado kerygma apostólico, uma espécie de profissão de fé primitiva que definia um programa mínimo de Cristianismo. Moule12 nos declara que: Um viajante, logo depois da metade do primeiro século, por exemplo, lá pelo ano 60, que fosse de Jerusalém para Éfeso, encontraria uma variedade notável de doutrina e prática entre comunidades que, não obstante, reivindicavam todas estar relacionadas com Jesus de Nazaré. Em qualquer lugar da Judeia, ele poderia encontrar o círculo de Tiago, irmão do Senhor, que ainda prestava culto numa sinagoga cristã, formada de judeus praticantes, que também criam em Jesus como o Messias de Deus, mas que podiam ter progredido muito pouco com respeito à formulação da doutrina da divindade de Jesus: o cristianismo do tipo ebionita caracterizava--se por uma reduzida cristologia. E que

11 A maior parte dos livros do Novo Testamento foi escrita no último terço do Século I. Este período, que Brown, R.E. (As Igrejas dos Apóstolos, São Paulo, Paulinas, 1986) chama de "período subapostólico", se caracterizou pela organização das igrejas em comunidades centralizadas na pessoa de um apóstolo. Mais tarde, após a morte dos apóstolos, as igrejas locais foram adquirindo maior autonomia. 12 Moule, C.F.D., "As origens do Novo Testamento", São Paulo, Paulinas, 1979. pp. 175 -177.


15 podemos dizer a respeito do tipo de cristianismo que se desenvolveu em Samaria? Provavelmente, tinham lá em alta conta o nome de João Batista (cuja missão tinha sido intensa naquela região, e cujo túmulo talvez eles orgulhosamente custodiassem) e recolheram tradições, muitas das quais estão agora incorporadas no Quarto Evangelho. Eles concebiam Jesus como aquele que estava para vir, isto é, o profeta como Moisés. Na cosmopolita Antioquia (ainda que para julgar a partir de não mais que as referências a ela no Novo Testamento, sem considerar a sua história posterior) poder-se-ia encontrar uma notável variedade de tipos de comunidade, ou seja, gentias, judaicas, judaizantes, helenizantes, com diferentes formas de cristologia; enquanto que, se nosso viajante seguisse pelo vale do Lico, encontraria uma estranha amálgama de astrologia oriental, de legalismo judaico e de crenças cristãs (cf. a carta aos Colossenses e comentários a respeito). Ao fim de sua viagem, ele estaria preparado para a fervilhante diversidade de Éfeso, onde as igrejas paulinas estavam sendo invadidas rapidamente pelo antinomismo, pelo cristianismo do tipo joanino (Cf. Atos 20.29ss, Apocalipse 2.1ss, O Evangelho e as Epístolas de João). Se, depois tomasse um navio de Mileto para Alexandria, ele mesmo podia ver-se confrontado ali com uma ulterior variedade de comunidades cristãs, ou, se ele já as tivesse encontrado em Éfeso, ou em qualquer outro lugar, nesta cidade elas estariam até mais concentradas e com uma fisionomia mais definida (cf., por exemplo, Hebreus e Atos 18.24ss). Finalmente, em Roma, ele poderia encontrar toda a sorte de tendências se acotovelando umas às outras; eram as sinagogas cristãs judaizantes; as espécies de gnósticos mais liberais dentre os liberais, muito mais próximas do culto de mistérios do que do Israel de Deus; congregações petrinas e paulinas, e tudo mais (cf. Fl. 12.17 e as impressões de Rm. 15.20).

Essa heterogeneidade doutrinária fica bem patente quando examinamos a vida de igrejas de grandes metrópoles como a de


16 Corinto cuja congregação era composta de crentes de diferentes origens e tendências doutrinárias: Uns eram de Pedro, outros de Paulo (igreja apostólica), outros de Apolo (comunidade joanina) e outros de Cristo (I Co. 3.1-7). Na sua primeira epístola aos Coríntios o apóstolo Paulo tentou, por meio de restrições e de concessões parciais, estabelecer um denominador comum que permitisse a irmãos que divergiam com tal intensidade conviver e comungar sob um mesmo teto 14 . Para atingir tal objetivo era estritamente essencial saber distinguir o cerne da doutrina cristã dos seus ramos supérfluos que podiam ser podados sem prejuízo para ninguém. 13

Aceita-se hoje que a existência de várias comunidades- diríamos em termos atuais, a existência de várias denominações- dentre os cristãos primitivos foi um dos fatores determinantes do surgimento e da canonização da literatura constituinte do Novo Testamento. Cada comunidade contribuiu pela composição de um ou mais livros. A contribuição particular da comunidade 13 Das formas de vida dos cristãos resulta um espectro que se estende desde um hebraico-cristianismo aramaico, passando por um cristianismo judaico-helenista até um cristianismo gentílico-helenista. Sob o ponto de vista sociológico, porém ele não se apresenta geralmente como distribuição temporal e espacial sobre comunidades e grupos de comunidades, mas como correntes que, em grande parte, correm paralelas. Como se podem constatar nos partidos de Jerusalém (At. 6.1) e de Corinto (I Co. 1.11 s), essas correntes surgiam, na maioria das vezes, em um mesmo lugar. Leonhard Goopelt, "Teologia do Novo Testamento", São Leopoldo, Sinodal / Vozes, 1982, 2o Vol. p. 313. 14 Paulo foi o grande artífice da unificação do Cristianismo primitivo. Por ser homem de formação eclética, versado tanto na filosofia dos gregos, quanto na sabedoria dos judeus, conseguia entender e aceitar sem preconceitos crentes das mais diversas raças e culturas. Para ele não poderia haver diferenças na igreja por que: não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo ‚ tudo em todos (Co 3.11). Pois quem faz injustiça receberá a paga da injustiça que fez; e não há acepção de pessoas. (Co 3.25)


17 joanina está constituída pelo quarto evangelho e pelas três epístolas que levam o nome do apóstolo do amor. Cada comunidade era constituída por uma igreja-mãe onde ficava o seu líder principal e de várias igrejas filhas onde ficavam líderes regionais. O primeiro líder de cada comunidade foi um apóstolo no sentido mais amplo do significado desta palavra, um missionário cristão - o qual, após sua morte, foi sucedido por um bispo ou um presbítero. O apóstolo e os seus sucessores eram os guardiães da fé‚ num tempo em que ainda não havia um Novo Testamento escrito. Em seu conjunto, os líderes da comunidade formavam uma escola15. Aceita-se hoje que o discípulo amado (João 21.24) foi o fundador da escola joanina e que seu primeiro sucessor foi o presbítero (I João vs.1). Esse panorama - Um Cristianismo dividido em comunidades – perdurou até o final do século primeiro. A partir do segundo, em decorrência da distância cada vez maior que os cristãos ficavam dos primitivos, tanto no tempo quanto no espaço, e também por causa do desenvolvimento de uma palavra escrita resultante da junção dos diversos corpo, as igrejas locais foram se tornando cada vez mais independentes. A responsabilidade de interpretação da palavra escrita com estava ao encargo do bispo de cada uma delas.

15 O fenômeno de transmissão de verdades religiosas por meio de escolas está muito bem estudado para o profetismo veterotestamentário. Elias e Eliseu foram profetas de uma mesma escola. Fala-se hoje no livro da escola do profeta Isaías (V. Joseph Schreiner, "O livro da escola de Isaías" in Schreiner, J. Ed., "Palavra e Mensagem - Introdução Teológica e Crítica aos Problemas do Antigo Testamento", São Paulo, Paulinas, 1978.).


18

3. O início de um Novo Testamento Objetivos de Estudo 1. Listar os principais fatos históricos que motivaram a produção das epístolas neotestamentárias. 2. Listar e discutir as condições vigentes no Império Romano, durante o século I, que permitiram o desenvolvimento da literatura epistolar cristã. 3. Listar e discutir as principais características estruturais da literatura epistolar do Novo Testamento. 4. Discorrer sucintamente neotestamentárias.

sobre

a

estrutura

das

epístolas

5. Listar as principais questões doutrinárias e éticas discutidas nas epístolas. 6. Conceituar corpus paulino e descrever sua estrutura.

A motivação para a escrita das epístolas O Novo Testamento começou pelas epístolas. Quem lê o Novo Testamento pela primeira vez e encontra, de saída, a coleção dos evangelhos pode, com facilidade, concluir erroneamente, que eles são o que de mais antigo possuímos em termo de literatura cristã. Esta concepção é totalmente equivocada. Muito antes de surgir o primeiro dos evangelhos (Marcos) a maioria das epístolas já estava escrita16.

16 É aceito hoje que os evangelhos começaram a ser escritos durante a guerra judaico-romana, (65 – 70). A mais antiga das epístolas (Tiago) foi


19 Porque as epístolas foram aceitas tão precocemente como obras com autoridade pelas igrejas cristãs? Seguramente porque a autoridade das epístolas deriva da autoridade apostólica. A autoridade dos apóstolos foi reconhecida muito precocemente: quando se instalou a primeira comunidade cristã em Jerusalém e os problemas começaram a surgir, os apóstolos foram consultados sobre a maneira de resolvê-los. Desde então as palavras deles passaram a ter força de sentença judicial nas questões de doutrina e de prática eclesiástica. Isso ocorreu, por exemplo, na controvérsia judaizante 17 narrada no capítulo 15 do livro de Atos dos Apóstolos. Os cristãos judeus entendiam que os gentios que se convertiam deveriam ser submetidos ao rito de iniciação da circuncisão tornando-se prosélitos do Judaísmo. Os cristãos gentios, por outro lado, entendiam que a circuncisão era um ritual que deveria ser observado exclusivamente por judeus e que eles, portanto, não precisavam ser circuncidados para ser cristãos. Os apóstolos, reunidos em Jerusalém, sob a presidência de Tiago, consideraram a questão e emitiram uma sentença que passou a ter força de lei para todos os crentes. Com o passar dos tempos ocorreu a expansão geográfica do Cristianismo. Algumas igrejas, que se encontravam longe demais para poder ter a presença do apóstolo ajudando-a a resolver os seus problemas mandavam emissários com mensagens escritas ou orais 18 para consultar os apóstolos sobre problemas

escrita cerca de duas décadas antes. 17 Os judaizantes eram um grupo de fariseus convertidos ao Cristianismo que entendiam ser necessário impor aos gentios que se convertiam o cumprimento da lei judaica para que eles pudessem alcançar a salvação (v. Atos 15). 18 Na sua primeira carta dirigida aos crentes de Corinto, Paulo informa ter sido consultado por pessoas da família de Cloé. I Coríntios 1.11.


20 específicos. O apóstolo, impedido de viajar até o lugar onde se encontravam aqueles irmãos, respondiam-lhes por carta. A reposta era lida para a igreja que havia feito a consulta original e dela eram feitas cópias que eram enviadas às igrejas vizinhas que se interessavam pela carta porque estavam enfrentando problemas da mesma natureza19 . Após a morte dos apóstolos, as igrejas cristãs se habituaram a fazer e manter coleções de cópias dos escritos apostólicos que eram compartilhados entre elas e consultados sempre que surgia um problema doutrinário 20 . Estava nascendo o Novo Testamento.

As condições para o surgimento das epístolas O aparecimento das epístolas neotestamentárias foi favorecido especialmente pelas condições vigentes no Império Romano na época do surgimento do Cristianismo. Vamos recordá-las. Unidade linguística Como fruto da helenização do oriente, todas as províncias do lado oriental do Império Romano tinham no Grego a sua língua comum. Na própria capital do Império, as pessoas cultas conheciam a língua grega e os códigos de direito eram nela redigidos. O Grego, que funcionava naquela época como língua internacional, tal como o Inglês funciona hoje, não era o Grego literário (clássico) ou Ático e sim o koine - (Grego comum) que era usado pelo povo. Se os escritores do Novo Testamento tinham como objetivo ser entendidos pela maioria dos seus possíveis leitores eles precisavam escrever em uma língua que fosse do conhecimento 19 20

Colossenses 4.16 II Pedro 3.16


21 da maioria. A existência de uma língua de comunicação de domínio público permitia que habitantes de distantes províncias se comunicassem facilmente por meio de documentos escritos. A escrita das epístolas neotestamentárias tirou vantagem desta unidade linguística. Convém, entretanto, não esquecer de que muito embora a língua usada na transmissão do pensamento dos autores do Novo Testamento fosse o Grego, o seu conteúdo era essencialmente oriental, tão oriental quanto o próprio Cristianismo. Muitos dos escritores do Novo Testamento pensavam em Aramaico e escreviam em Grego que se evidencia pela abundância de aramaísmos no texto do Novo Testamento. A Pax Romana A ascensão de Otaviano (César Augusto) ao governo de Roma teve como consequência a unificação das províncias em um vasto império com a cessação temporária das guerras. Neste tempo, segundo informam os historiadores, o templo de Marte ficou fechado, os guerreiros guardaram as suas armas e os viajantes gozavam de plena liberdade para ir e vir por todo o Império. Não é seguro que houvesse um sistema oficial de correios naquele tempo, mas muitos viajantes se deslocavam pelas províncias em missões comerciais tanto por terra quanto por rotas marítimas, tratando dos negócios oficiais do império e de seus negócios particulares. Estes frequentemente se tornavam portadores voluntários de correspondência naqueles tempos21. O sistema viário Ao lado da existência de um grande número de viajantes se 21 Os que foram enviados desceram logo para Antioquia e, tendo reunido a comunidade, entregaram a epístola. Quando a leram, sobremaneira se alegraram pelo conforto recebido. (At. 15.30-31)


22 encontrava a existência de vias de boa qualidade tanto na terra quanto no mar. Os romanos foram peritos construtores de estradas 22 e, com a derrota dos cartagineses, garantiram o domínio absoluto no Mediterrâneo Oriental que eles chamavam de Mare Nostrum. Seus navios mercantes e de guerra se deslocavam por ele sem empecilhos durante toda a parte do ano na qual as condições meteorológicas eram favoráveis às viagens marítimas. Esses fatores criaram condições adequadas à existência de uma grande quantidade de correspondência a qual era transportada sem nenhum problema no interior do Império.

A estrutura das epístolas Ao tempo da composição do Novo Testamento, dois tipos de cartas particulares eram muito populares no império romano. Em primeiro lugar havia a correspondência de caráter pessoal, idêntica à que temos em nossos dias. Em segundo lugar vinha a literatura epistolar. A literatura epistolar não era propriamente uma carta e sim um tratado literário apresentado na forma de carta. Isto também existe na literatura portuguesa. Embora apresente grande diversidade de estilos, a literatura epistolar do Novo Testamento se enquadra melhor no segundo grupo: As epístolas aos Romanos e aos Hebreus são autênticos tratados teológicos. As epístolas de menor tamanho (Filemon, II João e III João) parecem mais cartas particulares.

22 Três grandes estradas saíam de Roma. A via Apia, a Via Flamínia e a Via Egnatia. Esta última que ia até Bizâncio (Constantinopla) foi usada pelos missionários cristãos em suas viagens descritas no livro de Atos dos apóstolos.


QUADRO 3 A estrutura de uma epístola típica 1. Introdução a. Identificação do autor b. Identificação dos destinatários c. Saudação d. Oração gratulatória (doxologia) e. Declaração de objetivo 2. O corpo - Apresenta uma série de assuntos incluídos para atender as necessidades ocasionais dos leitores. Encontramos respostas às perguntas, exortações, doutrina, repreensões etc. 3. O encerramento a. Saudações e recomendações pessoais. b. Doxologias c. Bênção.

23 As epístolas do Novo Testamento, especialmente as de Paulo, podem ser vistas como tratados teológicos colocados na forma de cartas. Dessa forma, elas podem ser divididas em três partes distintas: Introdução, Corpo e Conclusão, como se fossem sermões.

Que problemas as epístolas procuravam resolver? Como já foi dito anteriormente o conteúdo das epístolas foi decidido pelo autor com base, por um lado nas consultas enviadas por seus leitores e, por outro, nas necessidades doutrinárias que ele mesmo diagnosticava. As epístolas são documentos produzidos para solucionar problemas existentes na ocasião em que surgiram. Em decorrência disso as epístolas cobrem a quase totalidade dos problemas que afligiram os cristãos do primeiro século e apresentam as soluções que lhes foram dadas pelos apóstolos. Por esse motivo, o conhecimento do conteúdo das epístolas é indispensável ao estudante de Teologia como base para o


24 entendimento da maior parte das doutrinas cristãs, razão por que fazemos, a seguir, uma súmula dos principais temas das epístolas paulinas: 1. Expectativa frustrada da parusia A expectativa das comunidades primitivas, em termos de parusia, era uma consequência natural da sua expectativa messiânica. Assim é que as igrejas cristãs da Palestina, nas quais a expectativa messiânica se fundamentava na espera da chegada de um filho de Davi que viria restaurar a autonomia política de Israel, os fatos ocorridos após a morte e a ressurreição de Jesus Cristo conduziram naturalmente ao desenvolvimento de uma escatologia expectante que aguardava a volta imediata de Jesus Cristo para completar a obra de libertação iniciada e inacabada23. O retardo no cumprimento desta expectativa é um tema desenvolvido nas epístolas mais antigas, dentre elas, I Tessalonicenses e I Coríntios. Por outro lado, nas comunidades formadas com participação majoritária de crentes oriundos da Samaria e da diáspora, que não esperavam qualquer libertação proveniente da família de Davi e sim a chegada de um ser celestial, semelhante a Moisés, que os instruiria na verdade, desenvolveu-se uma escatologia realizada como aquelas que encontramos nas epístolas joaninas. 2. Problemas éticos e necessidade de santificação Ao tempo em que foi escrito o Novo Testamento o mundo helenístico, além de cultuar livremente uma enormidade de deuses, estava dividido entre duas correntes filosóficas principais: epicureus e estoicos. A primeira delas, de cunho hedonista,

23 Então, os que estavam reunidos lhe perguntaram: Senhor será este o tempo em que restaures o reino a Israel? (At. 1.6)


25 ensinava o homem a viver para buscar os prazeres da vida. A segunda preconizava a busca da sabedoria visando uma vida sóbria e livre dos vícios comuns. Já os ensinamentos hebraicos aconselhavam uma vida muito simples nas quais as virtudes deveriam ser cultivadas como resultado da obediência à lei de Moisés. Todas essas tendências estavam presentes nas comunidades primitivas. O choque cultural se tornou inevitável, como ocorre ainda hoje nas missões transculturais, porque, à medida que pregadores judeus introduziam o evangelho em comunidades pagãs, acostumadas a uma vida libertina, estimulada pelo culto aos deuses da fertilidade, viam sua proposição de vida santificada francamente contestada. Algumas das passagens das epístolas foram escritas para estimular os crentes, vindos do ateísmo, a adotar uma postura ética mais coerente com o evangelho e outras para minimizar os atritos surgidos entre eles e os crentes de etnia judaica. A primeira epístola aos Coríntios é uma coletânea de preceitos éticos formulados para responder a problemas específicos de uma igreja metropolitana na qual se congregavam crentes de muitas nacionalidades, línguas e culturas diferentes. Problemas referentes ao casamento, à pureza de vida e à posição social da mulher são amplamente discutidos. 3. Problemas de prática eclesiástica O uso do véu na igreja, a maneira correta de celebrar a ceia do Senhor, a ordem do culto, a participação de mulheres no ministério eclesiástico, os critérios para escolha dos líderes eclesiásticos e muitas outras questões similares são discutidas na literatura epistolar.


26 4. Combate às heresias e à apostasia. Desde o início de sua história, os cristãos foram vítimas de ataques por parte de diversos grupos cujos pensamentos teológicos divergiam do pensamento dos apóstolos o suficiente para poderem ser classificados como hereges. Durante o primeiro século foi muito ativa a heresia conhecida como judaizante que preconizava a obediência integral das leis de Moisés para todos os Cristãos. A partir do final do primeiro século tornou-se mais ativa a heresia gnóstica que questionava a realidade da humanidade de Jesus Cristo. Vejamos mais alguns detalhes sobre eles: a) Judaizantes - Cristãos oriundos da comunidade palestina, provavelmente fariseus convertidos, que não aceitaram o posicionamento do Cristianismo como religião independente e, que por esse motivo, exigiam dos novos cristãos gentios o mesmo nível de obediência à lei mosaica que era exigido dos prosélitos do Judaísmo, inclusive pela prática da circuncisão. A epístola aos Gálatas teve por motivação o fato de estes hereges haverem se espalhado na Galácia contestando a autenticidade do apostolado de Paulo. b) Gnósticos - Cristãos que se diziam dotados de sabedoria de caráter carismático e interpretavam a interação de Jesus Cristo com o mundo dentro da perspectiva helenística do dualismo bem x mal, luz x trevas etc. Eles não concordavam que Jesus Cristo, sendo bom, pudesse ter tido um corpo de carne, porque para eles na carne (matéria) residia o mau. Dessa forma, afirmavam que o corpo de Jesus era apenas uma aparência de carne e desqualificavam o valor de sua morte para a salvação do homem. Eles foram combatidos na primeira epístola de João. c) Outros - Uma das epístolas do Apocalipse de João faz referência aos Nicolaitas e aos seguidores de Jezabel. As


27 epístolas aos Colossenses, de Judas, a segunda de Pedro e as pastorais fazem referência a falsos mestres que ensinavam heresias nas igrejas primitivas. Esse vasto repertório de problemas resolvidos faz das epístolas do Novo Testamento uma coleção de escritos extremamente útil para o pregador moderno que nelas encontra as soluções para problemas similares que surgem em nossos dias dentro de suas próprias igrejas. Não devemos esquecer que na nossa época as igrejas eletrônicas veiculadas pelos meios de comunicação de massa, substituem com grande eficácia os pregadores itinerantes dos dois primeiros séculos do Cristianismo.

As epístolas de Paulo (O corpus paulino). Chamamos de “corpus” paulino a conjunto de epístolas neotestamentárias cuja autoria é atribuída ao apóstolo Paulo. Existem evidências de que esta coleção de escritos se formou muito precocemente, possivelmente no início do segundo século da era cristã. Uma evidência a favor disto é a citação feita na segunda epístola de Pedro (3.15-16) aos escritos de Paulo colocando-os em mesmo status que os outros escritos (Antigo Testamento). O surgimento desta coleção de epístolas é indubitavelmente o resultado do trabalho de colecionadores primitivos, membros de igrejas da comunidade paulina. Nas versões modernas da Bíblia, as epístolas paulinas são arrumadas por seu tamanho e não por sua cronologia provável. As epístolas maiores precedem as menores, independentemente do tempo em que elas foram escritas. Não há nenhuma dificuldade em verificar que a epístola aos Romanos é a maior de todas as epístolas paulinas e que a epístola a Filemon é a menor. Costumase classificar essas epístolas em quatro grupos:


28 1. As primeiras epístolas tratam dos assuntos mais em evidência nos primeiros dias do Cristianismo. A necessidade de santificação dos crentes gentios, o retardo da parusia e a preocupação das igrejas com a sorte futura daqueles que estavam morrendo antes da volta de Cristo. Por causa da crença no retorno imediato de Cristo, muitos cristãos vendiam suas propriedades e depositavam o produto da venda em uma caixa comum de onde de provinha a subsistência para toda a comunidade. Outros preconizavam que os homens casados deveriam abandonar suas esposas para viver em celibato aguardando a volta de Jesus Cristo. Preocupavam-se muito com os destinos dos que estavam morrendo naqueles dias. As respostas para estas perguntas são encontradas nas epístolas aos Tessalonicenses e na primeira aos Coríntios. 2. As grandes epístolas (principais) tratam de problemas muito diversificados. As cartas aos crentes de Corinto, além de focalizar o retardo da parusia e o tema da ressurreição, a ela associado, tratam de inúmeros problemas éticos e problemas de prática eclesiástica. A Epístola aos Gálatas, escrita para combater os judaizantes, discorre sobre a preeminência da graça sobre a lei, além de apresentar uma defesa do ministério de Paulo, que era alvo do ataque daqueles hereges. A epístola aos Romanos, motivada pelo desejo que Paulo tinha de obter o apoio financeiro dos crentes de Roma para uma viagem missionária à Espanha (15.22-24), é um grande tratado teológico sobre universalidade do pecado e sobre a graça salvadora de Deus. 3. As cartas da prisão foram escritas em Roma24, por ocasião da

24 A crítica moderna admite outras hipóteses, inclusive a possível ocorrência de pseudonímia em algumas cartas como Efésios, Colossenses e pastorais. Aceita-se também a possibilidade de alguma delas ter sido


29 primeira prisão de Paulo. Escrevendo aos Efésios, Paulo discorre sobre a vocação dos gentios e sobre a eficácia do evangelho da graça, em oposição à ineficácia da justificação pelas obras da lei. A carta aos Filipenses foi escrita para agradecer uma oferta que os cristãos de Filipos enviaram a Paulo enquanto estava preso e nela o autor procura confortar os crentes daquela cidade. O tema mais geral desta epístola é “alegrai-vos”. A carta a Filemon, escrita simultaneamente com a carta aos Colossenses, devolve ao seu dono um escravo fugitivo recém convertido. A carta aos Colossenses, motivada pelo aparecimento de falsos mestres na Ásia menor, apresenta uma elaboração teológica muito elevada e trata especialmente da preeminência de Cristo sobre todos os poderes cósmicos. 4. As cartas pastorais foram escritas para orientar jovens pastores, Timóteo e Tito, na solução de problemas eclesiásticos e no combate aos líderes hereges. São uma espécie de curso de Eclesiologia e Apologética por correspondência. Seu tema principal é o preparo das lideranças que sucederão os apóstolos no comando das igrejas, isto é, os bispos e os diáconos.

As epístolas Gerais. Essas epístolas são chamadas de gerais, ou católicas, por não terem destinatário específico e poderem, dessa forma, ser aplicadas à vida de toda a comunidade cristã. Seus autores conhecidos eram pessoas que desfrutavam da dignidade de apóstolos embora alguns deles não tivessem participado do grupo que acompanhou Jesus Cristo no seu ministério terreno: João, a quem são atribuídas três epístolas, foi possivelmente o discípulo amado, que acompanhou o Mestre em todo o seu ministério. Tiago e Judas não faziam parte do grupo original dos doze, foram

escrita em Cesareia, onde Paulo permaneceu preso por dois anos.


30 provavelmente irmãos de Jesus que se converteram depois de sua morte. Não conhecemos a identidade do autor da epístola aos Hebreus, mas a qualidade elevada de sua escrita e a maneira de apresentar a sua argumentação teológica deixam entrever que ele foi um cristão convertido dentre os judeus helenísticos da diáspora, possivelmente oriundo da cidade de Alexandria, no Egito. Várias motivações levaram à composição destas epístolas. As de João combatem o gnosticismo. Tiago faz uma apologia à religião prática. Pedro e Judas combatem falsos mestres que estão infiltrando suas ideias na comunidade cristã. Em suma, as epístolas, por serem escritos mais antigos, visam a resolução de problemas mais restritos que os evangelhos.


31 Quadro 4 - A Caverna de Paulo Platão, filósofo da antiguidade grega (século IV AC.), retratou a situação natural do homem preso à sua ignorância como um ser aprisionado e acorrentado no interior de uma caverna obscura (A República, livro VI). Ele permanece com sua movimentação restrita, de costas para uma fenda, por onde entra estreito feixe de luz. Todas as informações que recebe são os sons que lhe vêm do exterior e a sombras que se projetam nas paredes de fundo da caverna à sua frente; sombras que se movem e que, aparentemente, falam. O homem só chegará a conhecer o mundo real, a verdade, se escapar da caverna onde se encontra acorrentado e fizer um passeio pelo mundo exterior. De início seus olhos ficarão ofuscados pelo brilho da verdade. Com o passar do tempo, entretanto, verá nitidamente o que antes só tinha apreciado como sombras e compreenderá uma realidade com dimensões que nunca havia suspeitado antes. Ele nunca mais desejará retornar à caverna de onde saiu. Se ele, entretanto, movido pela piedade aos seus companheiros de prisão, retornar à caverna e relatar-lhes o que viu no mundo exterior, dificilmente conseguirá que lhe deem crédito. Suas narrativas serão interpretadas como alienação e obscurecimento do entendimento. Ninguém jamais admitirá que ele viu a luz e que compartilhou de uma realidade inquestionável.


32 A maneira como Paulo descreve situação do homem natural (Romanos 1) prisioneiro do pecado, é equivalente à que Platão apresenta do ser humano confinado na caverna. Não existem paredes rígidas em volta dele. Existe uma barreira ao entendimento que o pecado ergue em seu interior e cega seus olhos.

Ele não entende o mundo em que vive

porque só vê as sombras. Nos primeiros capítulos da epístola aos Romanos, Paulo nos apresenta o gentio, pecador, como alguém com capacidade inata para conhecer a vontade de Deus para sua vida, para distinguir o bem do mau e para fazer a escolha correta. Este homem, aprisionado pelas grossas e intransponíveis paredes de um juízo embotado pelo pecado que opta pelo mal e assim fica cada vez mais aprisionado e mais entorpecido em seu entendimento de forma a perder a distinção entre o razoável e o absurdo e a se entregar a uma infindável série de degradações. Essa é sua caverna. A única saída possível é alguém escapar do cativeiro para atingir um nível de consciência superior e voltar para mostrar ao homem escravizado que existe outro mundo, uma realidade alternativa mais elevada de cuja existência ele se esqueceu. Mas o homem opta por permanecer escondido na sua caverna particular onde comete todos os tipos de maldades e torpezas. Só escapa dessa situação quando permite que alguém, vindo de fora (um salvador), assuma o comando de sua vida e o guie pelo caminho da libertação.


33

4. As primeiras epístolas de Paulo Objetivos de Estudo 1. Discorrer sucintamente sobre a cidade de Tessalônica e sobre o início do trabalho cristão naquele local. 2. Discutir o motivo, tempo e local de escrita das duas epístolas aos Tessalonicences. 3. Sumariar o conteúdo de cada uma das duas epístolas aos Tessalonicences e discorrer sobre a motivação de sua composição. 4. Listar e discutir os temas e as peculiaridades mais marcantes destas epístolas.

A cidade de Tessalônica e sua comunidade cristã. A cidade de Tessalônica, fundada em 315 a.C. pelos macedônios, obteve do imperador Augusto os privilégios de “cidade livre”. Tornou-se bastante próspera, pois dispunha de um bom porto e pela cidade passava a Via Egnatia, ligando Roma a Bizâncio (Constantinopla). Era, ao tempo em que foi escrito o Novo Testamento, a capital da província da Macedônia. Uma cidade de cerca de 200 000 habitantes que gozava de relativa autonomia política, sob a supervisão dos romanos e que abrigava uma população heterogênea a qual incluía um número razoável de judeus, com administração e tribunais próprios (At. 17,5-8). Nela existia pelo menos uma sinagoga. Paulo chegou pela primeira vez a Tessalônica por volta do ano 50 – 51 d.C. Segundo a narrativa contida no livro de Atos dos Apóstolos, ele vinha de Filipos, no curso de sua segunda viagem missionária, acompanhado de Silas, Lucas e Timóteo. A implantação do Cristianismo em Tessalônica não foi totalmente pacífica. Uma reação dos judeus daquela cidade precipitou a saída dos


34 missionários que se dirigiram para Beréia de onde posteriormente foram para Atenas e Corinto na província da Acaia (Grécia atual). A população e a igreja de Tessalônica eram constituídas principalmente de gentios. Os judeus daquela cidade rejeitaram totalmente a mensagem dos missionários. Observa-se nas cartas que, desde a sua fundação, a igreja foi perturbada por inimigos judaizantes que questionaram a autenticidade do apostolado paulino.

Onde, quando e por que foram escritas estas epístolas. Aceita-se geralmente que as epístolas de Paulo aos Tessalonicenses foram escritas na cidade de Corinto, no período de cerca de três anos durante os quais Paulo lá permaneceu. Acredita-se que Silas e Timóteo, logo que chegaram da Macedônia (At. 18.5), anunciaram a Paulo que alguns homens, chegados à Tessalônica depois deles, estavam tentando lançar descrédito sobre o seu ministério e os seus ensinos (2.1-16). Paulo, sabendo disto, escreveu imediatamente a primeira carta por volta do ano 50. A segunda carta foi escrita logo no ano seguinte. Sua motivação principal foi o aparecimento de dúvidas quanto a parusia. Algumas pessoas estavam desanimando porque Cristo ainda não havia voltado25.

Tema As epístolas de Paulo aos Tessalonicenses são epístolas muito simples que versam sobre temas práticos. Nelas não encontramos

25 A moderna crítica bíblica admite atualmente que a segunda epístola aos Tessalonicenses seria uma epístola dêutero-paulina, isto é, uma obra pseudônima, escritas por um discípulo de Paulo após sua morte e que levaria o nome do apóstolo como autor.


35 as dissertações teológicas que caracterizam as grandes epístolas. A atenção do autor se volta principalmente para a necessidade de manter os crentes reunidos aguardando a parusia e para estimulálos a observar um padrão de vida puro e elevado (santificação), baseado no amor ao próximo. Primeira epístola - A primeira epístola, escrita depois da chegada de Silas e Timóteo, é praticamente uma defesa da autenticidade do ministério de Paulo em resposta aos ataques que lhe foram feitos pelos judaizantes que o acusavam de buscar o interesse próprio (I Ts. 2,3-16). Nela, a discussão sobre escatologia é apenas superficial. Segunda epístola - A segunda epístola se aprofunda mais na escatologia procurando corrigir os problemas de interpretação que estavam perturbando a vida da igreja26. Adverte que a expectativa do fim e do juízo próximos (2,19s; 4,6) não deve ser pretexto para a ociosidade escandalosa (4,11s; 5,13s), e sim servir de estímulo para uma vida cristã mais digna (3,10-13). Essa foi uma consequência inevitável da frustração experimentada pelos cristãos primitivos em decorrência do retardo da parusia27. Paulo escreve a Segunda epístola aos Tessalonicenses para corrigir 26 A que não vos demovais da vossa mente, com facilidade, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como se procedesse de nós, supondo tenha chegado o Dia do Senhor. (2 Ts 2:2) 27 Naquela época os crentes acreditavam que a ressurreição de Jesus Cristo havia inaugurado a era messiânica que dentro em pouco aqueles que morreram em Cristo também ressurgiriam. Paulo chega a usar o verbo adormecer para representar a morte do crente significando que a sua permanência no túmulo não seria longa. Aos crentes de Corinto, aproximadamente dois anos depois, ele afirma que Jesus Cristo era "primícia dos que dormem" e que, depois dele outros ressurgiriam. Quando isto não aconteceu, Paulo foi obrigado a rever sua posição e admitir que o retorno de Cristo, com a consequente ressurreição de mortos, só se daria depois do aparecimento do homem da iniquidade (Anticristo?). Esta é, ainda hoje, a nossa expectativa.


36 esses erros e esclarecer melhor sobre a vinda do Senhor (2,1-12), exortar na fé (2,13–3,5) e advertir contra a ociosidade (3,6-15).

Conteúdo das epístolas Primeira epístola 1. Introdução- O Relacionamento de Paulo com a igreja de Tessalônica (1.1 – 3.13) a. Identificação dos emitentes (1.1a) b. Identificação dos destinatários (1.1b) c. A saudação (1.1c) 2. Oração e ação de graças (1.2-10) 3. O caráter do ministério de Paulo a. A pureza de seus motivos (2.1-6) b. A pureza de suas emoções (2.7-8) c. A pureza de sua vida (2.9-12) d. A recepção do Evangelho pelos Tessalonicenses (2.13-20) e. Recebendo a Palavra de Deus (2.13) f. Perseguidos por causa da Palavra (2.14-16) g. As intenções de Paulo (2.17-20) 4. A Missão de Timóteo (3.1-10) 5. Oração intercessora (3.11-13) 6. Exortações de Paulo a igreja de Tessalônica a necessidade de santificação a. Sobre a conduta na igreja (4.1-12) b. Afrouxamento moral (4.1-8) c. O amor aos irmãos (4.9-12) 7. Preocupações com o futuro (4.13-18) a. Jesus Cristo voltará (4.13) b. Os remidos voltarão com ele (4.14-16) c. Os sobreviventes serão arrebatados (4.17-18) 8. Sobre a conduta na igreja (5.1-22) 9. Oração final (5.23-24)


37 10. Pedidos finais (5.25-28) Segunda epístola 1. Introdução a. Saudação (1.1-2) b. Agradecimento (1.3-10) c. Intercessão (1.11-12) 2. Instruções aos crentes de Tessalônica sobre temas escatológicos a. A vinda do Senhor não está próxima (2.1-2) b. Virá antes o homem do pecado (2.3-10) i. Seu caráter (2.3-5) ii. Suas restrições (2.6-7) iii. Seu ministério (2.8-10) c. O julgamento dos incrédulos (2.11-12) 3. Ação de graças e oração (2.13-17) 4. Exortações diversas e saudações (3.1-18) a. Chamada à oração (3.1-5) b. Disciplina de vida (3.6-15) c. Oração final (3.16) 5. Saudação final (3.17-18)

Os grandes temas das primeiras epístolas 1. A volta de Jesus Cristo A expectativa de uma parusia 28 iminente foi uma constante nos 28 Parusia era o nome dado a uma festa que a província realizava quando recebia a visita do imperador ou de alguma alta autoridade do império. Naquele tempo tudo parava para honrar o ilustre visitante. Situação como esta ocorre ainda em nossos dias quando recebemos, por exemplo, a visita do Papa. No contexto do Cristianismo primitivo este termo foi utilizado para descrever a comemoração que os cristãos planejavam fazer no retorno do Salvador que havia subido aos céus e que, brevemente, voltaria para implantar o Reino de Deus.


38 primeiros anos do Cristianismo. Os cristãos daquele tempo acreditavam que Jesus Cristo, que havia sido elevado aos céus quarenta dias após sua ressurreição, voltaria brevemente para reunir os seus servos, para exercer o juízo de Deus e instalar o Seu Reino no mundo. Esta esperança tinha raízes antigas. Seus primeiros sinais se encontram na pregação de João, o batista, quando anuncia: “O machado já está posto à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não dá bom fruto é cortada e lançada no fogo.” 29 Com isso queria ele Dizer que muito em breve Deus exerceria o juízo na terra e implantaria definitivamente o Seu reino. Jesus Cristo sancionou esta interpretação quando deu instruções a seus discípulos para a realização de uma investida evangelística dentre os judeus: “Em verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas se cumpram. ” 30 A partir deste momento, os discípulos passaram a viver aguardando que Jesus se dirigisse a Jerusalém e se assentasse no trono na casa do Pai. Essa expectativa não se realizou. Após a morte e ressurreição, Jesus ensinou que iria ter com o Pai mas que voltaria. Mais uma vez os discípulos esperavam que ele implantaria um reino glorioso: “Eles estando reunidos outra vez, perguntaram-lhe: Senhor, é agora, porventura, que restabeleces o reino a Israel?” 31 Os cristãos de Jerusalém viveram uma ardente expectativa da volta do Senhor e não ousavam afastar os pés do templo porque aguardavam que naquele lugar o Senhor reapareceria para inaugurar o reino: “Diariamente perseverando unânimes no templo, e partindo pão em casa, comiam com alegria

29 O machado já está posto à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não dá bom fruto, é cortada e lançada no fogo. Mateus 3.10 30 Em verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas se cumpram. Mateus 24.34 31 Eles estando reunidos outra vez, perguntaram-lhe: Senhor, é agora, porventura, que restabeleces o reino a Israel? Atos 1.6


39 e singeleza de coração,” Por causa desta convicção chegaram a criar um sistema de vida comunitário no qual os crentes, deixando seus afazeres diários, se desfaziam de seus bens e participavam de refeições em mesa comum33. 32

Com a difusão do evangelho através da obra missionária, a expectativa de parusia iminente com a esperança que ela alimentava também se difundiu. Os cristãos de Tessalônica viviam nesse clima: “… e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro, e para aguardardes dos céus seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos — a saber, Jesus que nos livra da ira vindoura. ”34 A problemática abordada nesta epístola se levantou porque a volta de Jesus estava demorando para se realizar e alguns crentes estavam morrendo. Os que ficaram vivos começaram a se preocupar porque, segundo entendiam eles, seus queridos que morreram haviam perdido a oportunidade de participar do reino que Jesus Cristo implantaria no mundo quando voltasse. Paulo, nestes escritos, procura tranquilizar a igreja a respeito desta preocupação. Ele desenvolve o que poderíamos chamar de primeira escatologia cristã. Essa escatologia previa: 1) A volta iminente de Jesus Cristo que Paulo acreditava que se daria ainda no tempo de sua vida na carne.35 2) A ressurreição daqueles que

32 Diariamente perseverando unânimes no templo, e partindo pão em casa, comiam com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. Todos os dias acrescentava-lhes o Senhor os que se iam salvando. Atos 2.46-47 33 E vendiam as suas propriedades e bens e os repartiam por todos, conforme a necessidade de cada um. Atos 2.45 34 E como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro, e para aguardardes dos céus seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos—a saber, Jesus que nos livra da ira vindoura. I Tessalonicenses 1.9b-10 35 Isto vos dizemos pela palavra do Senhor, que nós os que vivermos, os


40 haviam morrido na fé, 3) A transformação radical e instantânea dos que permanecessem vivos, 4) O arrebatamento da igreja para se encontrar com Jesus nos ares, 5) A necessidade de remoção de um obstáculo que ele chama de “o homem da iniquidade”37 e 6) O estabelecimento do Reino de Deus na terra. 36

Na segunda epístola aos Tessalonicenses, Paulo adverte os cristãos daquela cidade de que a volta de Cristo seria precedida pela apostasia e pela chegada do “homem da iniquidade” que se oporia a tudo quanto se chama Deus ou é objeto de culto. A análise da história do povo de Israel nos mostra os modelos nos quais Paulo pode ter se baseado para elaborar o perfil desta figura: 1. No século II A.C., quando a Palestina estava sob o domínio dos reis da dinastia Selêucida, Antíoco IV, cognominado Epifanes, empreendeu um movimento de helenização da Palestina38. Ele determinou que fossem construídos ginásios e estádios onde os jovens se exercitavam nus. Determinou também que um altar a Zeus fosse construído no recinto do templo de Jerusalém e que os judeus fossem proibidos, sob pena de morte, de circuncidar seus filhos, obedecer à Lei e guardar os rituais do culto. O “abominável da desolação” de que fala o profeta Daniel, e também o primeiro livro de Macabeus se refere a este episódio.

que formos deixados até a vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que já dormem; I Ts. 4.15. 36 Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes a respeito dos que dormem, para que não os entristeçais, como fazem os demais que não têm esperança. Pois se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, assim também Deus trará com Jesus os que nele dormem.1 Ts 4:13,14 37 Ninguém de modo algum vos engane; porque o dia não chegará sem que venha primeiro a apostasia e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição, 2 Ts 2:3 38 I Macabeus 1.


41 2. O historiador judeu Flávio Josefo nos conta em “Guerras dos Judeus”39 que o imperador romano Caio Calígula (37 – 41 E. C.) determinou a Petrúcio, alto oficial romano sediado em Antioquia da Síria que introduzisse sua estátua no templo de Jerusalém. Ele partiu para lá com uma tropa a fim de atingir este objetivo, mas foi interceptado por uma comitiva de Judeus quando acampou na cidade de Tolemaida. Os judeus o convenceram a não colocar a estátua e a escrever ao imperador solicitando a revogação da ordem. Venturosamente, enquanto este processo tramitava, Calígula veio a morrer assassinado. Como no Império Romano a validade dos decretos do imperador acabava com sua morte, as estátuas nunca chegaram à Jerusalém. 2. Defesa do apostolado de Paulo Na primeira epístola Paulo se defende de duas acusações que lhe são feitas por seus adversários; provavelmente judeus da seita dos fariseus descontentes com o fato de ele ter se passado para o lado dos cristãos. A primeira acusação é de que ela pregava o evangelho visando obter remuneração, isto é, ele seria um mercenário. No capítulo 2 de I Tessalonicenses, Paulo apresenta como defesa um relato da maneira como procedeu enquanto esteve na cidade de Tessalônica40. Ela lembra os leitores de que trabalhou com as próprias mãos para prover seu sustento e de que não foi pesado a ninguém. A segunda acusação, respondida mais adiante, é a e que ele não era fiel à palavra empenhada porque havia prometido voltar à Tessalônica para visitar a igreja e não cumpriu a promessa. Paulo esclarece que não foi por vontade própria que deixou de ir e sim

39 Flávio Josefo, Guerras dos Judeus, livro 2. 40 I Tessalonicenses 2.9


42 porque motivos independentes de seu controle (Satanás) havia lhe impedido de realizar o seu projeto41. Uma constante na vida de Paulo era a presença de inimigos que o atacavam em qualquer lugar em que estivesse. 3. Crítica a um sistema de vida decadente A convicção de que Jesus Cristo voltaria rapidamente levou os primeiros cristãos a se esquecerem da recomendação do Mestre para que se espalhassem pelo mundo e a se fixarem em Jerusalém 42 , fundando um sistema de vida comunitário no qual todos permaneciam juntos e participavam de uma mesa comum43. As consequências do erro não se fizeram esperar: Inicialmente, a igreja foi envolvida numa controvérsia racista na qual cristãos judeus palestinos discriminavam cristãos judeus helenistas provenientes da diáspora 44 . A situação foi tão grave que os apóstolos levaram a igreja a eleger sete homens para administrar o problema. Posteriormente, a concentração em Jerusalém de um grande número de pessoas que nada mais fazia que se reunirem para cantar hinos e falar de um líder que havia sido crucificado atraiu a desconfiança das autoridades que acabaram por lhe mover uma perseguição que resultou no apedrejamento de um deles. Os cristãos de Tessalônica se tornaram, em tudo, imitadores dos

41 I Tessalonicenses 2.18 42 Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, e até as extremidades da terra. At 1:8 43 Diariamente perseverando unânimes no templo, e partindo pão em casa, comiam com alegria e singeleza de coração, At 2:46. 44 Nesses dias, porém, crescendo o número dos discípulos, houve uma murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas daqueles eram esquecidas na distribuição diária. At 6:1


43 cristãos da Judeia e reproduziram o seu sistema de vida . Muito cedo a igreja começou a sofrer por causa desta opção. Problemas como a ociosidade, a intromissão nos negócios alheios e a maledicência passaram a ser uma constante na sua vida46. Paulo precisou corrigir a igreja levando os irmãos a reconsiderarem esta situação. 45

4. A necessidade de santificação O evangelho chegou ao mundo dos gentios. Gentios que na sua vida anterior estavam acostumados à idolatria e a toda uma sorte de práticas sexuais imorais47. Agora, era necessário estabelecer a comunhão desses gentios convertidos com os cristãos judeus. Na vida, como na aritmética, não é possível somar grandezas heterogêneas. Não podemos somar bananas com laranjas. Evidentemente, ninguém, que fosse suficientemente lúcido, pensaria em rebaixar o padrão de santidade observado pelos cristãos judeus para que o evangelho se tornasse mais acessível aos gentios. É possível que nos dias de hoje alguns grupos religiosos pensem desta forma. A solução evidente e lógica seria então levar os cristãos gentios a viver no mesmo patamar de santidade dos cristãos judeus. Impunha-se a santificação da igreja. O processo de santificação implicava em dois objetivos a serem atingidos. O primeiro seria o abandono dos padrões de vida gentios contaminados pela idolatria e pela prostituição48. O segundo seria a

45 I Tessalonicenses 2.14. 46 I Tessalonicenses 4.11,12, II Tessalonicenses 3.10. 47 Porque eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que tivemos entre vós, e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro, 1 Ts 1:9. 48 Pois esta é a vontade de Deus, a vossa santificação, que vos abstenhais da fornicação, que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santidade e honra não na paixão da concupiscência, assim como fazem


44 adoção de padrões de vida mais puros e sadios como aqueles que eram observados pelos cristãos judeus. A santificação era, para os nossos primeiros irmãos, um alvo desafiador e continua sendo desafiador para nós ainda hoje.

os gentios que não conhecem a Deus; e que ninguém transgrida e defraude nisto a seu irmão, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como antes vo-lo dissemos e testificamos. Pois Deus não nos chamou para imundícia, mas em santificação. 1 Ts 4: 3-6


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5. A primeira epístola de Paulo aos Coríntios Objetivos de Estudo 1. Discorrer sucintamente sobre a história e as condições de vida na cidade de Corinto do tempo do Novo Testamento. 2. Discutir sucintamente o processo de formação da comunidade cristã em Corinto. 3. Discutir a autoria, tempo e local de composição desta epístola. 4. Apresentar os principais temas e divisões do texto desta epístola.

A cidade de Corinto A Corinto dos tempos bíblicos era a capital da província da Acaia (atual Grécia) e ficava situada no istmo que liga a península do Peloponeso, ao sul do continente. Sua posição era estratégica porque ficava equidistante de dois importantes portos marítimos, um no mar Jônico (costa ocidental) e outro no Egeu (costa oriental). Dessa forma, a cidade de Corinto era parada obrigatória para os viajantes que vinham por mar do ocidente (Roma) para o oriente ou que de lá retornavam. A antiga Corinto foi destruída por Munius, general romano, no ano 146 a.C. Cerca de um século depois (44 a.C.) Júlio César mandou reconstrui-la e fez dela a capital da província da Acaia, sob o governo de um pró-cônsul. Nesse período a cidade cresceu reunindo pessoas provenientes de todos os recantos do Império, tornou-se importante centro comercial, industrial e cultural. Esse fato determinou a reunião em Corinto de pensadores das mais diferentes correntes filosóficas e também de cristãos de diferentes


46 origens quanto à nacionalidade e quanto à filiação doutrinária. A vida na cidade era a mais libertina possível. Chegou-se a criar naquele tempo o verbo “corintianizar” que pode ser entendido como equivalente do moderno mundanizar. A vida religiosa da cidade era muito variada. O culto ao imperador e à deusa Roma eram as práticas oficiais. Ao lado delas, muitas outras práticas existiam. Espalhavam-se pela cidade templos dedicados às mais diversas divindades, tanto ocidentais quanto orientais. No ponto mais alto da cidade se encontrava o templo de Afrodite, a deusa do amor, com seus rituais de fertilidade, dos quais se ocupava uma grande legião de sacerdotisas prostitutas. Além delas, as mulheres responsáveis da cidade estavam obrigadas a servir periodicamente como sacerdotisas no culto de Afrodite, enquanto cumpriam votos feitos à deusa. Durante este tempo elas deveriam ter suas cabeças raspadas. Paulo escreveu a epístola aos Romanos da cidade de Corinto. Quando ele redigiu o capítulo 1 desta epístola descrevendo a depravação humana, especialmente no campo das perversões sexuais, possivelmente estava se inspirando no dia a dia da metrópole que o hospedava.

A comunidade cristã de Corinto A igreja de Corinto apareceu em consequência à pregação de Paulo em sua segunda viagem missionária. O livro de Atos dos Apóstolos nos dá uma excelente descrição dos fatos ocorridos nessa ocasião49. Entende-se pela leitura das duas epístolas que a igreja de Corinto era uma igreja bastante heterogênea em termos de etnias, doutrinas e práticas religiosas. Essa conclusão é coerente com a posição cosmopolita da cidade que a abrigava. A igreja de Corinto era heterogênea em termos de nacionalidades, línguas, classes sociais e tendências doutrinárias. Podemos dizer

49 Atos 18.1-18


47 que nela se congregavam e comungavam evangélicos de diferentes denominações.

A epístola Autoria, data e local de composição. A autoria paulina destas duas epístolas, bem como das demais constituintes do grupo em estudo, é aceita sem restrições maiores em todo o curso da História do Cristianismo. Elas, inclusive, estavam entre os primeiros livros a serem aceitos no Cânon do Novo Testamento. O Estudo do Livro de Atos dos Apóstolos nos leva a concluir que a primeira das duas cartas foi escrita de Éfeso, mais provavelmente na primavera do ano 54 e a segunda da Macedônia, no outono do ano seguinte. Conteúdo 1. Saudações e ações de graça (1.1-9) 2. Orientações sobre problemas éticos a. Divisões e vaidades na igreja (1.10 - 4.21) b. Tolerância com a imoralidade (5.1-13) c. Litígios entre crentes em tribunais seculares (6.1-11) d. Fornicação e prostituição (6.12-20) 3. Resposta a várias perguntas formuladas pelos coríntios a. Perguntas sobre o casamento (7.1-40) b. Os limites da liberdade cristã (8.1 – 11.1) 4. O manual de Eclesiologia a. A atuação da mulher na igreja (11.2-16) b. Normas para a celebração da Ceia do Senhor (11.17-33) c. O uso correto dos dons espirituais (12.1 – 14.40) 5. Escatologia - a ressureição dos mortos (15.1-58) 6. Conclusão (16.1-24)


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Os grandes temas da epístola Heterogeneidade e divisões na igreja A primeira epístola começa com o tratamento dos problemas disciplinares da igreja que foram apresentados a Paulo. A maioria deles de ordem ética. Encontramos de saída, uma igreja dividida em grupos que se digladiavam como se fossem partidos políticos. A heterogeneidade de origem doutrinária dos membros da igreja fica evidente ao primeiro exame do texto: Uns são de Cefas (cristãos judeus oriundos da Igreja Apostólica da Palestina), outros de Paulo (Cristãos gentios ou helenistas convertidos pela pregação do Apóstolo), outros são de Apolo (Cristãos provenientes da comunidade Joanina), outros finalmente, são de Cristo (talvez judeus da diáspora convertidos durante o Pentecostes)50. Quando esse agregado de grupos, que tinham muito pouco em comum uns com os outros, se reunia sob um mesmo teto não era fácil chegar à uma unidade de identidade da fé. Na realidade, tudo podia acontecer. Imoralidade X santidade Ao mesmo tempo em que estes grupos discutiam entre si para saber quem era mais crente a igreja se apresentava conivente com diversos tipos de imoralidades assimilados do mundo pagão (glutonaria, embriagues, prostituição, incesto)51. Desavenças entre irmãos Na igreja de Corinto as tendências doutrinárias se acotovelavam criando uma grande confusão. As desavenças na igreja eram grandes. Os casos surgidos entre irmãos estavam sendo levados 50 Atos 2.5. 51 I Coríntios 4.21 – 5.1


49 aos tribunais seculares trazendo escândalo para o Evangelho e ridículo para o nome da igreja 52 . Os irmãos daquela igreja não conseguiam chegar a um acordo. Discutiam e se desentendiam por vários motivos. Por vezes as desavenças chegavam às portas dos tribunais seculares. Paulo censura aqueles irmãos por causa de seu comportamento insensato. Casamento e estabilidade familiar Apareceu naquele tempo na igreja um grupo de mestres, (provavelmente suas raízes estariam no comportamento de judeus da seita dos essênios) que aconselhavam os homens da igreja a optar por uma vida de castidade (celibato). Os casados deveriam separa-se de suas esposas para aguardar em castidade a iminente volta de Jesus Cristo. A consulta a cerca desta proposta de comportamento motivou o apóstolo Paulo a escrever um tratado magnífico sobre relacionamento conjugal e familiar que ficou registrado no capítulo 7 de I Coríntios. Dele tiramos os seguintes ensinamentos. 1. O casamento faz parte do plano de Deus para a vida de Seus filhos. 2. Preferencialmente, o casamento deve ser feito com pessoa da mesma fé. O casamento misto deve ser evitado. 3. O casamento tem valor mesmo quando o cônjuge não professa a mesma fé. O cristão não deve tomar a iniciativa de romper com o pacto matrimonial. 4. O relacionamento sexual entre cônjuges deve ser regular e satisfatório para ambos. 5. Em tempos de crise o casal pode, de comum acordo, se

52 I Coríntios 6.1-4


50 privar temporariamente do relacionamento sexual para se dedicar à oração e ao jejum. Liberdade com responsabilidade Paulo ensinava que a salvação dada por Cristo libertava o homem do domínio da Lei. Alguns confundiam a liberdade dada por Cristo com a libertinagem vigente no mundo pagão. Paulo precisou doutrinar a igreja mostrando as diretrizes que limitavam a liberdade do verdadeiro cristão. Nossa liberdade termina onde começa a liberdade de nosso irmão Ordem e desordem no culto – um manual de eclesiologia Comportamento das mulheres na igreja - É muito discutida a recomendação de Paulo para que as mulheres permanecessem caladas na igreja53 e, caso tivessem alguma dúvida, perguntassem aos seus maridos em casa. Essa colocação deve ser interpretada no contexto social do Império Romano no qual o pater familias tinha autoridade incontestável e inquestionável. Algum visitante que, entrando na igreja cristã, visse uma mulher discutindo nas assembleias, poderia interpretar este ato como uma contestação do poder pátrio de seu esposo e portanto, uma ameaça à estabilidade social do Império. Ceia do Senhor X Celebração pagã A celebração da ceia em Corinto estava totalmente errada. A ceia deles não era a ceia do Senhor, era uma celebração mundana onde havia ostentação, glutoneria e embriagues. Paulo orienta a igreja quanto a maneira correta de celebrar.

53 I Coríntios 14.34


51 Dons espirituais a serviço da comunidade A comunidade era francamente carismática e Paulo os repreendeu mostrando-lhes que, ao valorizar dons espirituais de caráter transitório tais como as línguas e as profecias, eles se comportavam como crianças mau educadas que se julgam com direitos especiais por serem as donas da bola (Capítulos 12,13 e 14). Paulo lhes mostra que todas aquelas vaidades que separavam os cristãos deveriam ser desprezadas a favor de uma vida forjada no legítimo amor de Cristo (Cap. 13). A igreja também tinha problemas com aqueles que se envaideciam por se julgarem portadores de dons espirituais em maior número de e de dons espirituais mais valiosos que os outros, segundo seu próprio critério: Uns falavam em línguas estranhas, outros profetizavam. Paulo aproveita a situação para lançar as normas para a ordem de culto que podem ser encontradas nos capítulos 12, 13 e 14. Recapitulemos algumas delas: 1. Tudo que acontece no culto deve contribuir para a edificação espiritual da comunidade. 2. Os dons espirituais são distribuídos por Deus visando atender as necessidades do trabalho. 3. Com exceção do amor, que é perene, todos os outros dons têm prazo de validade. Todos os outros cessarão quando a perfeição for atingida. 4. Há uma hierarquia de dons espirituais. Os mais úteis são mais importantes. 5. No culto é essencial a existência de ordem. Qualquer elemento do culto que não contribua para a edificação da igreja deve ser evitado. Expectativa de parusia e ressurreição Restava ainda uma dúvida a respeito daqueles que estavam morrendo antes da parusia. Paulo socorre os crentes de Corinto


52 apresentando a doutrina da ressurreição dos mortos, no melhor estilo herdado do judaísmo farisaico: Os vivos serão transformados na volta de Cristo e os mortos ressurgirão revestidos de corpos espirituais incorruptíveis para se encontrarem com o Senhor. Diante disto é preciso saber guardar a esperança e se empenhar com todas as energias in trabalho do Mestre (15.58).


53

A evolução de Paulo Charles Darwin biólogo inglês (1809 - 18820) revolucionou a ciência do século XIX quando propôs que as espécies animais e vegetais não eram fixas, mas na realidade, se transformavam umas em outras pelo processo que ficou conhecido pelo nome de evolução. Seu livro “A origem das espécies” (1859) se tornou um “best seller” e suscitou polêmicas intermináveis A teologia do apóstolo Paulo, registrada na epístola aos romanos, mostra um processo por meio do qual é possível, a partir de uma espécie existente, chegar a outra com caraterísticas diferentes. Paulo não fala de evolução e sim de uma nova espécie criada com virtudes superiores às daquela que a antecedeu. O mecanismo proposto para este processo foi suficientemente revolucionário no seu tempo para que seus contemporâneos não o entendessem: Deus implantou no útero de Maria o embrião de uma espécie diferente. O embrião se desenvolveu, nasceu e cresceu entre os homens sem que ninguém percebesse até que um dia ele morreu e ressurgiu vivo para nunca mais morrer (Romanos 1.4). Os descendentes de Adão nasciam marcados pelo pecado que acarretava a morte (I Co 15.45). Este novo ser nasceu sem pecado, morreu porque assumiu voluntariamente o pecado dos outros (I Co 15.3) e ressuscitou porque não podia ser retido pela morte. Ele abriu o caminho para que os membros da descendência adâmica pudessem evoluir para a incorporação na nova espécie não por seleção e sim por submissão (R, 10.13). Só precisariam crer. As interferências de Deus em nossas vidas são surpreendentes e difíceis de explicar tanto no campo da ciência como no da fé. O que seria mais fácil entender? O surgimento de aves e mamíferos a partir dos répteis ou o surgimento de uma nova espécie humana, vitoriosa sobre o pecado, a partir da degrada linhagem de Adão. Deus faz coisas que não entendemos em nossas vidas. Mostra-nos direções a seguir nas quais nunca havíamos pensado, manda-nos golpear a rocha para que dela saia água ou ferir as águas para que elas se afastem mostrando terra seca. Só atingimos o objetivo quando cremos e obedecemos.

Para sua reflexão: Você já crê o suficiente para se submeter ao que Deus determina sem nada questionar?


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6. A segunda epístola de Paulo

aos Coríntios Objetivos de Estudo 1. Discutir a autoria, tempo e local de composição desta epístola. 2. Apresentar os principais temas e divisões do texto desta epístola.

Autoria, integridade, data e local de composição. Aproximadamente um ano se passou. As divisões e lutas internas na igreja parecem ter sido resolvidas. Adversários não satisfeitos com os resultados que mostravam a fidelidade da igreja a Paulo resolveram iniciar o ataque contra o apóstolo. Como costuma acontecer nesses casos, não tendo competência para discutir argumentos, os adversários começam a atacar o autor dos argumentos. A autoria paulina destas duas epístolas, bem como das demais constituintes do grupo em estudo, é aceita sem restrições maiores em todo o curso da História do Cristianismo. Elas, inclusive, estavam entre os primeiros livros a serem aceitos no Cânon do Novo Testamento. O Estudo do Livro de Atos dos Apóstolos nos leva a concluir que a primeira das duas cartas foi escrita de Éfeso, mais provavelmente na primavera do ano 54 e a segunda da Macedônia, no outono do ano seguinte. Acredita-se hoje, diante da heterogeneidade de conteúdo do texto, que a segunda epístola, tal como a conhecemos na atualidade, seja uma mistura de fragmentos de, pelo menos, quatro cartas que Paulo teria enviado aos crentes daquela cidade. A primeira, chamada de carta da imoralidade, seria anterior a I Coríntios. Sobressai um grande fragmento identificado como a carta das lágrimas na qual o autor se queixa do desprezo recebido dos


55 crentes. Conteúdo da epístola 1. Saudações e ações de graça (1.1-11) 2. Paulo defende seu ministério (1.12- 6.10) a. Demora no cumprimento das promessas (1.12 - 2.13) b. Um ministério autenticado por frutos (2.14 - 3.18) c. Um ministério cristocêntrico (4.1-15) d. Um ministério de sofrimentos (4.16 - 5.10) e. Um ministério de reconciliação (5.11 - 21) f. Um ministério de abnegação (6.1 -10) 3. Exortação à santidade (6.11 – 7.4) 4. Retrospectiva dos efeitos da primeira carta (7.5-16) 5. Coleta para os pobres de Jerusalém (8.1-9.15) 6. Respostas às acusações sofridas (10.1 – 13.10) 7. Conclusão (13.1-14)

Os grandes temas da epístola Quando comparamos esta carta com a precedente podemos observar uma mudança radical no foco das discussões. Na primeira carta as discussões estavam focalizadas na vida da igreja. Na segunda o foco se dirige para a vida do apóstolo. O que teria motivado esta mudança? Podemos concluir que chegaram a Corinto pessoas que não ficaram muito satisfeitas com os efeitos que a primeira carta causou na vida da igreja, restaurando o prestígio do apóstolo Paulo e que resolveram contra-atacar. Como sempre acontece nestas ocasiões, quem não tem competência para discutir os argumentos do opositor esquece os mesmos e ataca sua vida. A leitura da carta permite concluir que várias acusações foram feitas contra o apóstolo e ele necessitou reservar parte do seu tempo para respondê-las. Paulo faz aqui sua própria defesa. O


56 resultado é que esta carta é uma das cartas mais pessoais do apóstolo, onde ele rasga o coração para a igreja. Talvez esse caráter de personalidade seja superado apenas pela epístola aos filipenses. Quem eram os inimigos de Paulo? Paulo sempre foi seguido, e perseguido, por adversários implacáveis que procuraram atacar e invalidar os resultados de seu trabalho. No início de seu ministério seus adversários foram os próprios judeus54 que se apresentavam com cristãos. Fariseus, antigos companheiros de Paulo na perseguição aos cristãos, não podiam se conformar com o fato de seu líder haver trocado de lado e, por isso, procuravam combatê-lo. As acusações feitas contra Paulo Paulo não tem palavra, ele prometeu visitar a igreja e não foi. A epístola começa com uma longa exposição de Paulo explicando as razões por que ele não voltou à Corinto como era o seu propósito e o que ela havia declarado à igreja. Protesta que ele não pode ser chamado de leviano ou sem palavra. O que ocorreu é que fatores supervenientes de sua vida o impediram de atingir o objetivo. Pelo menos duas razões cooperaram para que Paulo não cumprisse o prometido: 1. Ele protesta que sua visita naquela ocasião levaria tristeza

54 Sendo vós sábios, com prazer suportais os insensatos; pois se alguém vos escraviza, se alguém vos devora, se alguém se apodera de vós, se alguém se exalta sobre vós, se alguém vos dá na cara, o suportais. Falo com vergonha, como se nós fôssemos fracos. Mas naquilo em que alguém se faz ousado, com insensatez falo, também eu sou ousado. São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também eu. São ministros de Cristo? Falo como fora de mim, eu ainda mais; (II Coríntios 11:19 -23a).


57 aos crentes de Corinto e não alegria, como ele gostaria que acontecesse. Uma explicação plausível para esta declaração está em que se Paulo fosse ter a cidade de Corinto naqueles tempos difíceis precisaria aplicar uma disciplina muito rígida à igreja. Logo depois ele tenta se redimir de sua aparente intransigência recomendando que a igreja proceda misericordiosamente com o irmão que fora afastado da comunhão por causa do incesto56. 2. Outro motivo que entristeceria a igreja seria a contemplação da aparência de Paulo serviria como motivo de escândalo para a igreja. No mundo helênico o homem era julgado por sua aparência. Para ser bom também era preciso ser bonito. Paulo, naquela ocasião sofria de uma enfermidade que provavelmente o desfigurava e ele mesmo dá evidências deste fato. Quando compara seu próprio corpo a um vaso de barro que, apesar de encerrar um precioso conteúdo, está quase de despedaçando, entendemos que uma enfermidade o assolava57. Mais tarde ele fala de um “espinho na carne”, 55

55 Eu, porém, determinei isto por mim mesmo, não ir ter convosco outra vez em tristeza. Pois se eu vos entristeço, quem é, então, o que me alegra, senão aquele que por mim é entristecido? Isto mesmo escrevi, para que, chegando, eu não tenha tristeza da parte dos que me deviam alegrar, tendo esta confiança em todos vós que o meu gozo é o de todos vós. Pois em muita tribulação e angústia de coração vos escrevi com muitas lágrimas, não para que fôsseis entristecidos, mas para que conhecêsseis o amor que mais abundantemente tenho para convosco. 2. Cor 2:1-4 56 2 Cor. 2:5-11 57 Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, a fim de que a excelência do poder seja de Deus, e não venha de nós. Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; derribados, mas não destruídos; sempre levando no corpo a mortificação de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifestada em nosso corpo. Pois nós que vivemos, estamos sempre entregues à morte por amor de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifestada na nossa carne mortal. Assim a morte opera em nós,


58 um “mensageiro de satanás” referindo-se provavelmente ao conceito helênico de que enfermidades poderiam ser causadas por demônios enviados pelo maioral deles. Não sabemos que enfermidade seria esta mas, escrevendo aos gálatas ele revela que não estava enxergando direito59 e diz que eles, se possível fora teriam doado seus próprios olhos em benefício do apóstolo60. 3. Paulo é um mercenário, prega o evangelho pelo desejo de remuneração. Outra acusação feita pelos adversários contra Paulo é a de que ele pregava o evangelho aos gentios para ter vantagem pecuniária. Era hábito entre os judeus que os mestres religiosos fizessem voto de pobreza e não cobrassem nada por seus ensinamentos. (“De graça recebestes, de graça dai”). Já os mestres filósofos das escolas gregas recebiam remuneração de seus discípulos pelos ensinamentos. Assim, Paulo teria optado por pregar aos gentios para ser remunerado. Paulo responde com o 58

mas a vida em vós. Mas tendo o mesmo espírito da fé, conforme está escrito: Cri, por isso falei; também nós cremos, por isso também falamos, sabendo que aquele que ressuscitou ao Senhor Jesus, também nos ressuscitará a nós com Jesus e nos apresentará convosco. Pois tudo é por amor de vós, para que a graça, sendo multiplicada por muitos, faça abundar a ação de graças para a glória de Deus. Por isso não desmaiamos; mas ainda que em nós pereça o homem exterior, o homem interior renova-se de dia em dia. 2 Cor 4: 7-16. 58 E por causa da extraordinária grandeza das revelações. Porquanto, para que eu me não engrandecesse demais, foi-me dado um espinho na carne, mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de eu não me engrandecer demais. Acerca disto três vezes implorei ao Senhor que o espinho se apartasse de mim. 2 Coríntios 12: 7- 8 59 Vede com que letras grandes vos escrevo com a minha própria mão. Gálatas 6.11. 60 Onde está, então, aquela vossa satisfação? Pois vos dou testemunho de que, se possível fora, teríeis arrancado os vossos olhos e mos teríeis dado. Gálatas 4.15


59 61

testemunho de sua vida . Paulo tem dupla personalidade, ele se comporta de uma forma quando está presente e de outra quando escreve. Paulo foi acusado de ter um procedimento muito ousado nas cartas e de ser humilde quando presente na igreja.62 Na sua defesa, ele alega que os que fazem essas declarações as fazem por não o conhecerem como é devido e se basearem apenas em aparências. Na realidade a sua ousadia é maior do que aquela que aparentemente foi demonstrada.

A defesa final de Paulo, seu “curriculum vitae” A melhor defesa do cristão é mostrar que sua vida é coerente com o seu discurso. Dos judeus cinco vezes recebi quarenta açoites menos um, três vezes fui açoitado com varas, uma vez apedrejado, três vezes naufraguei, um dia e uma noite passei no abismo; muitas vezes estive em jornadas, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos da minha raça, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos na solidão, em perigos no mar, em perigos entre falsos irmãos; em trabalho e fadiga, em vigílias muitas vezes, com fome e sede, em jejuns muitas vezes, em frio e nudez; além das coisas exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente,

61 Pois não estamos, como muitos, mercadejando com a palavra de Deus, mas é com sinceridade, mas é de Deus, perante Deus que em Cristo falamos. 2. Cor. 2:17, Despojei outras igrejas, recebendo delas salário para vos poder servir, e quando estava convosco e tinha necessidades, não me fiz pesado a ninguém; pois os irmãos, quando vieram da Macedônia, supriram o que me faltava; e em tudo me guardei e guardarei de vos ser pesado. 2. Cor 11:8-9. 62 Eu Paulo, por minha parte, vos exorto pela mansidão e clemência de Cristo, eu que, estando presente, sou humilde entre vós, porém estando ausente, sou ousado para convosco; sim, vos rogo que, estando eu presente, não seja ousado com a confiança com que me proponho ser atrevido para com alguns que nos julgam como se andássemos segundo a carne. 2. Cor 10:1-2.


60 o cuidado de todas as igrejas. (2 Cor 11.24-28).

Este é o curriculum do apóstolo. Ele seria aceito nas igrejas de nosso tempo?

A oferta para os pobres da Judeia Paulo relata aos cristãos de Corinto que está patrocinando o levantamento de uma oferta especial para ajudar os cristãos pobres da Judéia que padeciam fome por causa de uma seca periódica. Na condução deste processo, Paulo nos oferece o que poderíamos chamar de capítulo 2 de seu manual de eclesiologia quando ele relata todas as precauções que tomou a fim de que não fosse mal interpretado por aqueles que desejavam acusá-lo de estar levando vantagem na condução do dinheiro. Ainda hoje alguns dos grandes obreiros do Senhor têm seus ministérios comprometidos porque não sabem como lidar convenientemente com valores pecuniários.


61

7. A epístola de Paulo aos Gálatas Objetivos de Estudo 1. Discorrer sucintamente sobre as duas hipóteses a respeito da Galácia cujos moradores teriam sido os destinatários desta carta. 2. Discutir sucintamente a heresia judaizante do período do Novo Testamento. 3. Discutir a autoria, tempo e local de composição desta epístola. 4. Apresentar os principais temas e divisões do texto desta epístola.

A região chamada Galácia Duas hipóteses surgiram na tentativa de explicar quem seriam os destinatários desta epístola. A primeira delas foi chamada de hipótese da Galácia Étnica ou da Galácia do Sul. A segunda foi a Hipótese da Galácia Política ou da Galácia do Norte. A região conhecida como Galácia estava compreendida no que hoje chamamos de Turquia Asiática e recebeu este nome porque era primitivamente habitada por povos de origem céltica, ou gaulesa, que de lá migraram para a Europa indo habitar o norte da França (província da Gália) e o sul das ilhas Britânicas (País de Gales) aproximadamente no ano 240 AC. No ano 24 AC o reino da Galácia foi anexado ao Império Romano por decisão de seu último rei. Por duas vezes Paulo visitou a região da Galácia, no início da segunda e da terceira viagens missionárias 63 . Impedido de prosseguir viagem por causa de uma enfermidade, pregou ali o Evangelho durante alguns meses. Pouco depois da segunda visita,

63 At 16.6; 18.23


62 as comunidades da Galácia, formadas por convertidos do paganismo64, foram agitadas pelos judaizantes. Estes são judeu-cristãos vindos de fora que combatiam com virulência o Evangelho livre da Lei pregado por Paulo (cf. Atos 15,1-5). Consideravam a observância da Lei necessária para a salvação também dos gentio-cristãos, e minavam a autoridade de Paulo como apóstolo. Informado da grave ameaça para a fé cristã, Paulo escreve esta carta cheia de ira e paixão, provavelmente de Éfeso, pelo ano 56/57. No tempo em que foi escrita a epístola aos Gálatas, Paulo se encontrava provavelmente nesta cidade, onde teve notícias da chegada dos judaizantes à Galácia.

Motivação da Epístola – resposta ao movimento judaizante O motivo que levou Paulo à composição desta epístola foi indubitavelmente, o trabalho que a seita dos cristãos judaizantes estava desenvolvendo na Região. Van den Born65 assim os define: Os judaizantes são judeus-cristãos da seita dos fariseus (Atos 5.5). O verbo judaizar, no Novo Testamento, significa comportar-se como judeu. Assim todo o judeu vivendo segundo a Lei poderia chamar-se judaizante; mas praticamente o termo é usado apenas para aqueles judeus-cristãos que, mesmo depois da decisão do concílio dos apóstolos (v. Atos 15), continuaram a considerar a observância da lei judaica pelos gentios convertidos como necessária para a salvação. Estes judaizantes foram os adversários mais encarniçados de S. Paulo; em toda a parte tentaram desfazer a sua obra missionária. S. Paulo combate-os em Coríntios, Romanos, Filipenses e, sobretudo em Gálatas. Esses adversários de S. 64 Gl 4,8; 5,2s; 6,12s 65 Pequeno Dicionário da Bíblia- verbete "Judaizantes".


63 Paulo devemos distingui-los bem dos pregadores judaicos gnostizantes cujos erros são combatidos mais tarde nas epístolas pastorais. Os inimigos de Paulo haviam chegado Galácia com suas doutrinas legalistas. Sua principal estratégia era negar a autenticidade do apostolado paulino sob a alegação de que ele, diferentemente dos demais apóstolos, não tinha estado envolvido na obra de evangelização desde o princípio e que, diferentemente deles, pregava uma mensagem que havia recebido de segunda mão. Paulo se defende colocando nesta epístola uma pequena autobiografia onde ele enfatiza o fato de não ter tido necessidade de procurar nenhum outro apóstolo para receber dele informações a respeito de Jesus Cristo e de seu ensino 66 . O melhor entendimento dessa biografia exige a harmonização da epístola aos Gálatas com o capítulo 15 do livro de Atos dos Apóstolos.

Autoria, tempo e local de composição A autoria paulina tem sido aceita sem qualquer restrição desde o tempo dos pais da igreja e, provavelmente esta é a epístola na qual temos maior massa de evidências internas comprobatórias dessa autoria. O tempo de composição mais provável foi fixado entre os anos 54 e 55 e os locais mais aceitos são Éfeso e Macedônia.

Esboço da Epístola 1. Introdução (1.1-5) 2. A autoridade de Paulo e a autenticidade da sua mensagem 3. A originalidade de sua mensagem (1.6-24)

66 Declaro-vos, irmãos, que o Evangelho que foi pregado por mim, não é segundo o homem; pois eu nem o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas sim mediante a revelação de Jesus Cristo. Gálatas 1:11-12


64 4. 5. 6. 7. 8. 9.

A autenticação dada pelos outros apóstolos (2.1-10) Paulo versus Pedro (3.11-21) O caminho da salvação Salvação por fé e não por obras (3.1-14) Salvação decorrente de promessas e não da lei (3.15-22) Os que confiam em Cristo são filhos e não escravos (3.23 4.11) 10. Súplica (4.12-20) 11. Os que confiam na lei são escravos e não filhos (4.21 - 31) 12. O caminho da liberdade 13. A liberdade não pode ser trocada pelo legalismo (5.1-12) 14. Liberdade não justifica licenciosidade (5.13-26) 15. Liberdade se expressa em serviço (6.1-10) 16. O contraste entre a vida de sacrifícios e o legalismo. (6.11-18)

Análise do conteúdo Paulo começa a epístola com uma autobiografia singela, capítulos 1 e 2, cujo objetivo é a comprovação histórica da autenticidade de sua chamada apostólica e a independência de sua doutrina em relação a doutrina ensinada pelos demais apóstolos. Ele pretende deixar provado que o evangelho que ele prega, um evangelho totalmente independente do legalismo judaico não é uma elaboração secundária, um evangelho de “segunda mão” e sim uma obra autêntica. O argumento mais explorado é o autobiográfico. Paulo pretende deixar demonstrado que não recebeu o evangelho de outros apóstolos simplesmente porque não teve contato com eles. Como reforço adiciona uma descrição dos desentendimentos que ele teve com Pedro porque este havia se deixado levar pela bajulação dos judaizantes chegados da Palestina (3.11-21).


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A fonte do conhecimento de Paulo Paulo protesta aos cristãos da Galácia que o evangelho que ele pregava não lhe foi ensinado por homem algum mas recebido por revelação do próprio Jesus Cristo. Gl 1.12. Esta declaração era necessária para responder à acusação feita pelos judaizantes de que o apostolado de Paulo não era autêntico. A reflexão que podemos fazer neste tópico mostra que a palavra apóstolo que Paulo usava () como selo da reivindicação da autenticidade de seu apostolado é usada em dois sentidos complementares no Novo Testamento: em primeiro lugar ela é usada para designar doze homens que acompanharam Jesus Cristo no seu ministério terreno. Posteriormente ela foi usada também para outros homens que conviveram com Jesus Cristo nos quarenta dias que sucedeu sua ressurreição. Neste último caso estão Paulo, Barnabé e Tiago, que Paulo chama de o irmão do Senhor 67 . Dessa forma, Paulo não ensinava um evangelho de segunda mão e sim um evangelho autêntico.

Gálatas e Tiago Talvez a maior contradição que a crítica bíblica encontre no Novo Testamento seja exatamente aquela existente entre as epístolas de Paulo aos Gálatas e a epístola de Tiago. No terceiro capítulo de Gálatas Paulo cita Abrão como exemplo de fé salvadora e mostra que ele não poderia ter sido salvo pela obediência às obras da Lei porque estas só vieram 430 anos depois. Dessa forma os que têm fé são os verdadeiros filhos de Abraão e alcançam a salvação.68

67 Atos 14.14 Mas os apóstolos, Barnabé e Paulo, quando ouviram isto, rasgaram os seus vestidos e saltaram para o meio da multidão, 68 Gálatas 3:7 Sabei, pois, que os que são da fé, esses são filhos de Abraão.


66 Tiago, por outro lado, declara que Abraão, ao ofertar seu único filho no monte Moriá, foi aceito por Deus porque sua fé produziu uma obra perceptível. Assim, a fé que não gera obras é morta e, se queremos provar nossa fé precisamos demonstra-la por meio das obras que praticamos. Na realidade, as duas verdades não são mutuamente exclusivas. A fé na realidade produz obras na vida de quem a possui. O importante é lembrar que o agente motivador é a fé e não a recompensa advinda da prática das obras.

Liberdade e vida no Espírito Os capítulos 3 e 4 apresentam uma réplica de Paulo aos argumentos dos judaizantes. Os capítulos 5 e 6 contém um apelo de Paulo aos cristãos na Galácia no sentido de que não abdicassem da liberdade conseguida pelo sacrifício de Cristo na cruz aderindo ao legalismo judaico. Paulo nos ensina que os frutos que são produzidos na vida do homem não dependem da obediência cega a qualquer lei e sim de uma mudança que o Espírito de Deus faz em nosso interior.


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Paulo e a escravidão Segundo, Juan Luís, A chave antropológica da Cristologia de Paulo, Cibertologia – Revista de Teologia & Cultura – Ano II, n. 7, pag. 52 De fato, isto é assim, pelo menos em certa medida, como se pode ver na forma em que Paulo se dirige aos escravos dentro da comunidade cristã. Já que o escravo é um homem, a revolução humanitária e humanizante proposta pela cristologia paulina lhe é accessível. A maturidade, a liberdade (antropológica, à qual Paulo se refere), os dons do Espírito que transformam o homem num ser novo, tudo isto está tanto ao alcance do escravo como do “homem livre” da sociedade greco-romana. O significado de Jesus Cristo suprimiu pela raiz o muro que segregava os homens de acordo com sua posição social básica escravo/livre. Deve ter-se em conta, além disso, que aquele “em Cristo não há escravo nem livre” não era só, de maneira imediata, um consolo para o que não se podia mudar, e sim de modo mais imediato, a longo prazo, o estabelecimento de um ideal que iria até as próprias estruturas da sociedade e as tomaria de acordo com o princípio praticado dentro da comunidade cristã.


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8. A epístola de Paulo aos Romanos Objetivos de Estudo 1. Historiar sucintamente a formação da comunidade cristã de Roma. 2. Discutir sucintamente a autoria paulina, o tempo e local de escrita desta epístola. 3. Discutir o propósito desta epístola. 4. Apresentar os principais temas e divisões do texto desta epístola.

A Cidade de Roma Roma, a capital do Império, ficava situada na parte central da península Itálica, junto ao rio Tibre e próxima da costa do mar Tirreno. Perde-se no passado a história das origens da igreja cristã naquela cidade. A interpretação mais correta para a origem do trabalho cristão na capital do império parece ser aquela dada por Ambrosiaster (escritor cristão do século IV) que nega a participação de qualquer apóstolo na evangelização inicial daquela metrópole. Possivelmente alguns judeus daquela cidade estivessem em Jerusalém por ocasião do Pentecostes e, uma vez convertidos, teriam levado o Evangelho até sua cidade natal. Ao tempo em que os livros do Novo Testamento foram escritos Roma era a capital de um grande império que se estendia desde a Armênia (costa ocidental do mar Cáspio), ao oriente até a Lusitânia (Portugal), Hispania (Espanha), Gália (França) e Brittania (Inglaterra) no ocidente. Ao sul, se limitava com o deserto de Saara, envolvendo toda a costa norte da África com o Egito, Líbia e Cirenaica (Tunísia). Ao norte, era limitada pelos montes Cárpatos onde viviam seus inimigos mais ferozes tais como os


69 Partos. Tudo isso fazia de Roma uma grande metrópole onde se concentravam pessoas de muitas línguas e nacionalidades diferentes atraídas pela grandeza da capital.

A comunidade cristã de Roma Havia em Roma um contingente de Judeus dos quais alguns provavelmente estiveram em Jerusalém no Pentecostes e que nesta ocasião ficaram conhecendo o evangelho. A pregação inicial do evangelho em Roma deve ter sido tumultuada pela resistência e oposição dos judeus tradicionais uma vez que o historiador Plínio relata que imperador Cláudio mandou expulsar os judeus de Roma porque eles estavam promovendo tumultos sob a liderança de um Cresto. Isso poderia bem ter sido uma referência ao nome de Jesus Cristo. Alguns gentios se converteram pela pregação dos cristãos de origem judaica. Como não poderia deixar de ser, nesta cidade, da mesma forma que nas igrejas do oriente, eles foram perturbados pelo trabalho dos judaizantes que exigiam a estrita obediência à lei de Moisés inclusive pela observância da circuncisão. Depois que os judeus foram expulsos de Roma o contingente gentio passou a ser o predominante na igreja e possivelmente essa era a situação quando Paulo escreveu sua Epístola muito embora Nero tenha revogado o decreto de seu antecessor permitindo a volta dos Judeus expulsos à capital. Muito provavelmente os cristãos romanos só vieram a receber a visita dos apóstolos posteriormente (por ocasião da perseguição movida por Nero, por volta do ano 67, quando Marcos teria escrito o seu Evangelho). É possível que Paulo tenha estado preso lá antes (ca. 64, 65).


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Autoria, tempo e local de composição A autoria paulina da Epístola aos Romanos (bem como das demais constituintes do grupo das grandes epístolas) vem sendo aceita praticamente sem nenhuma restrição durante toda a História do Cristianismo o que se constitui em evidência externa poderosa. A identificação que Paulo faz de si mesmo se constitui em evidência interna comprobatória. Por esse motivo, não há muito que discutir aqui. Sua data mais provável de composição foi durante o inverno dos anos 55-56, quando Paulo se encontrava na cidade de Corinto. Na sua escrita, Paulo se utilizou de Tércio como secretário (possivelmente era um escravo) e a carta foi levada até Roma pela diaconisa Febe.

Propósito da Epístola Esta é a única carta que Paulo escreveu a uma igreja que não nasceu em consequência de seu trabalho missionário. O objetivo especial de sua escrita pode ser encontrado na análise de algumas passagens, como segue: 1. Romanos 1.8-15 - Paulo comunica aos cristãos de Roma sua intenção de visitá-los para poder conhecê-los mais de perto e contar com a colaboração deles na promoção de uma campanha de evangelização e fortalecimento espiritual na capital do império. 2. Romanos 15.22-24 - Paulo mostra seu desejo de que sua estada em Roma se continue com uma campanha missionária até o extremo ocidente do império, até a Espanha. Para promover esta campanha ele precisava contar com a colaboração financeira dos cristãos de Roma uma vez que os do oriente estariam muito distantes para poder auxiliá-lo. 3. Fica evidente do estudo comparativo destes dois textos que Paulo estava tentando convencer os crentes de Roma a patrocinarem sua viagem missionária. Em consequência ele


71 apresenta a Teologia da Universalidade do Pecado e da Graça. Além disso, Paulo, por não ter nenhuma ascendência sobre a comunidade de Roma precisava prepará-la apresentando as credenciais de seu apostolado uma vez que, naquele tempo, os judaizantes se deslocavam rapidamente por todo o império (2.17-19).

Tema O tema de Paulo é perfeitamente coerente com o seu objetivo. Aos crentes de Roma ele ensina a universalidade do pecado e da graça bem como a necessidade que todos os homens, inclusive os gentios, têm de conhecer a salvação dada por Deus, por meio da fé. Alguns versículos chaves permitem acompanhar o raciocínio de Paulo, o que não é tarefa muito fácil. 1. 3.23 - Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus - O pecado é uma realidade universal. Começando em Adão, ele passou, por hereditariedade, a todos os seres humanos. O pecado atinge tanto a judeus quanto a romanos. Diante dele somos todos iguais. 2. 5.12 - Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte. Assim também a morte passou a todos os homens porque todos pecaram. A consequência do pecado do primeiro homem foi a sua morte. Assim também cada homem que peca morre. A universalidade da morte é a consequência inevitável da universalidade do pecado. 3. 5.21 - Para que assim como o pecado veio a reinar na morte, assim também viesse a reinar a graça pela justiça para a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor. A contrapartida natural do domínio da morte introduzido pelo pecado é o domínio universal da vida eterna introduzido pela graça de Deus.


72 4. 6.23 - Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna por Cristo Jesus nosso Senhor. Temos aqui uma maravilhosa síntese de toda a doutrina exposta anteriormente.

Divisões 1. Introdução e tema a. - Saudação (1.1-7) b. - Ação de Graças (1.8-15) c. - Tema da epístola (1.16-17) 2. A necessidade do evangelho a. A condenação dos gentios (1.18-32) b. A condenação dos judeus (2.1 - 3.8) c. A condenação universal (3.9-20) 3. O plano de salvação a. A justificação pela fé (3.21 -31) b. O exemplo de Abraão (4.1-25) c. Paz com Deus, o resultado da justificação (5.1-11) d. A nova humanidade em Cristo (5.12-21) 4. Réplicas à objeções quanto à salvação pela graça a. Objeção: Ela incentiva o pecado b. Ela produz santificação (6.1-23) c. A Lei e a Graça (7.1-25) d. A certeza de salvação (8.1-39) e. Objeção: Ela anula as promessas de Deus f. A soberana escolha de Deus (9.1-33) g. A necessidade de comunicar as boas novas (10.1-21) h. O futuro de Israel (11.1-36) 5. Exortações práticas a. O serviço na igreja e outros deveres (12.1-21) b. A responsabilidade pessoal (13.1-14) c. Como tratar os enfraquecidos na fé (14.1-23) d. Ambições missionárias de Paulo (15.1 -33)


73 6. Saudações pessoais (16.1-27)

As duas partes da Epístola A epístola aos romanos pode ser dividida em duas grandes partes: a primeira, que vai do capítulo 1 até o 11, especialmente da doutrina da salvação. A segunda, começa no capítulo 12 e discorre sobre temas éticos. Para estudo da primeira parte usamos a tabela de Carrez69 et. al. ESTRUTURA DOS CAPÍTULOS 1 - 11 SEÇÕES

Antes: MISÉRIA Paulo descreve a (incapacidade do situação como homem)

Depois: SALVAÇÃO (onipotência de Deus)

I – 1.18 – Jurista que faz Gentios e judeus Pagãos e judeus salvos sob o pecado e a ira gratuitamente (3.215.11 uma constatação de Deus (1.18-3.20) 5.11) II – 5.12 – Teólogo que A humanidade 6.33 reflete sobre o solidária com Adão batismo. no pecado e na morte (5.2-14)

A humanidade solidária com Cristo, o segundo Adão (5.15-21) e ressuscitada com ele pelo batismo (6).

III – 7.1 – Psicólogo da 8.39 experiência humana concreta.

O homem, escravo da Lei, dilacerado interiormente. (7)

O homem reunificado interiormente pelo Espírito que o torna filho (8)

IV – 9.11 – Historiador do 11.32 desígnio de Deus.

Miséria de Israel separado de Cristo (9.1 – 10.21)

Salvação de Israel reintegrado em Cristo (11.1-32).

69 CARREZ, M., DORNIER, P., DUMAIS, M & TRIMAILLE, M., As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas, São Paulo, Paulinas, 1987. Página 163.


74

Destaque - a cultura secular de Paulo Paulo se utilizou da tese platônica de que os deuses cuidam dos homens que são seus amigos e de que os males que sobrevêm aos homens contribuem para o seu bem, e que a adaptou para o contexto cristão (v. quadro 2). Paulo, nesta epístola mais que em qualquer outra, se mostra conhecedor profundo tanto da sabedoria oriental, herdada dos judeus, quanto da filosofia grega, aprendida na universidade. Sob este aspecto, ele tem, no Cristianismo, uma atuação idêntica à de Filo de Alexandria, no Judaísmo. Ambos fizeram, cada qual de seu ponto de vista confessional, a harmonização entre a sabedoria judaica e a filosofia grega. A formação de Paulo no Judaísmo se deu em uma escola liberal. Seu mestre, Gamaliel, era neto e discípulo do grande mestre Hilel, famoso no tempo de Jesus Cristo por sua interpretação liberal da Lei, ao passo que Shamai, líder da escola oponente, era muito mais radical70. Conta-se, a título de anedota, que certa vez um homem muito rico se aproximou de Shamai e prometeu-lhe dar uma grande fortuna se ele fosse capaz de lhe ensinar toda a Lei enquanto permanecesse de pé sobre um de seus pés. Tendo sido escorraçado, nosso desafiante fez a mesma proposta a Hilel que, sem perda de tempo, colocou-se sobre um pé e recitou: "- Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua força e de todo o teu entendimento e ao teu próximo como a ti mesmo. Aí 70 Hilel e Shamai foram dois de nossos maiores Sábios, cujas discussões sobre a Lei Judaica resultaram na criação de duas escolas de pensamento: a escola de Hilel – que era, geralmente, mais leniente – e a escola de Shamai – que era mais rígida quanto às Leis da Torá. Ensina o Talmud que os ensinamentos de ambas as escolas refletem a Vontade Divina, mas que nós devemos seguir as diretrizes da escola de Hilel. Porém, na era messiânica, ensinam os nossos Sábios, a Torá será seguida conforme os ensinamentos da escola de Shamai. http://estudosjudaicos.blogspot.com/2008/06/quem-foram-hilel-eshamai.html


75 está toda a Lei e os profetas". A formação secular de Paulo se deu na Universidade de Tarso onde estudou Filosofia sendo fortemente influenciado pelo estoicismo. A maneira de escrever de Paulo mostra a influência da filosofia helenística quando ele se utiliza da diatribe (discussão com um dialogante imaginário) para colocar os seus conceitos. Sua ética é predominantemente estoica à medida que ensina a libertação dos desejos da carne para maior dedicação aos assuntos espirituais.


76

9. A epístola de Paulo aos Efésios Objetivos de Estudo 1. Discorrer sucintamente sobre as duas hipóteses a respeito da autenticidade da autoria desta epístola. 2. Discutir a autoria, tempo e local de composição desta epístola. 3. Discutir o objetivo teológico para a composição desta epístola. 4. Apresentar os principais temas e divisões do texto desta epístola.

A autenticidade da autoria desta epístola As epístolas aos Efésios, Filipenses, Colossenses e a Filemon são, em conjunto, chamadas de epístolas da prisão porque, segundo é amplamente aceito, Paulo as teria escrito quando se encontrava preso pela primeira vez. Qual teria sido o local dessa prisão? O assunto ainda é muito discutido. Quando estudamos especificamente a epístola aos Efésios o assunto fica ainda mais complicado porque não se conhece com certeza nem mesmo os destinatários da carta. Quem seriam eles de fato? O que se sabe com certeza é que os manuscritos mais antigos não contem a expressão aos Efésios ou qualquer outra que identifique os destinatários. Por essa razão, muitas hipóteses têm sido levantadas a respeito dos primitivos leitores desta carta. Uma das mais aceitas nos declara que esta seria a Carta aos Laodicenses (mencionada na epístola aos Colossenses71). Outra corrente crítica advoga que esta epístola seria uma carta

71 Lida que for esta carta entre vós, fazei-a ler também na igreja dos laodicenses, e a dos de Laodiceia, lede-a vós também. Colossenses 4.16.


77 circular sem igreja destinatária definida (uma encíclica). A favor desta segunda hipótese está a exiguidade de saudações personalizadas, as quais são muito frequentes em toda a correspondência paulina. Uma terceira corrente advoga que esta seria uma das epístolas dêutero-paulinas. Aceita-se sem discussão apenas o fato de que os leitores eram cristãos gentios. Além disso, a autoria paulina tem sido colocada em dúvida porque: 1. A carta não apresenta referências concretas a fatos da vida do apóstolo Paulo. 2. Observa-se completa ausência de saudações pessoais, o que só tem paralelo em Gálatas. 3. A linguagem e o estilo de composição não conferem com o que se tem nas demais epístolas paulinas. Isto, se não é um argumento definitivo para afastar a hipótese de autoria paulina, pelo menos conduz à hipótese de que o texto atual poderia ter sido editado por um escritor diferente. 4. A teologia apresentada nesta epístola não combina com o que se conhece de teologia paulina porque: 1. Esta carta não faz qualquer referência à volta de Cristo, o que poderia nos levar a datá-la de época posterior ao primeiro século. 2. A visão do casamento como figura da união entre Cristo e Igreja, paralela a figura veterotestamentária da união entre Deus e seu povo, não combina com a interpretação do casamento encontrada em I Coríntios 7. 3. A atribuição a Paulo de um ministério de unificação entre judeus e gentios não combina com o seu conhecido posicionamento com apóstolo dos gentios.


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Tempo, local e objetivo teológico. A análise destes dados tem levado à admissão da hipótese de que esta carta teria sido escrita mais tardiamente por um discípulo de Paulo que teria usado o nome de seu mestre como pseudônimo. O fato de sua linguagem apresentar estilo semita permite concluir que o autor desta epístola era um judeu palestino convertido ao Cristianismo. Dentro dessa concepção uma data alternativa de composição tem sido marcada entre os anos 80 e 100 da era cristã e o local aceito como mais provável é a província da Ásia (Éfeso ?). Se, por outro lado, a carta é realmente autêntica, sua composição deve ser marcada para o ano 62 ou 63 e o local mais provável para Roma. Nesta carta o autor trabalha especificamente o tema “vocação dos gentios” que ele chama de o grande mistério de Deus que permaneceu oculto aos antigos e que, por intermédio de Jesus Cristo, foi revelado aos seus apóstolos e profetas e a necessidade de santificação. Dessa forma, os judeus não são os únicos agraciados por Deus com um lugar especial na História da Salvação. Todo o mundo está incluído.

Divisões 1. Saudação (1.1,2) a. Ação de graças pelo plano de salvação b. O propósito de Deus para igreja (1.3-6) c. A redenção de Cristo traz união (1.7-12) d. O selo do Espírito (1.13,14) 2. Oração (1.15-23) 3. A unidade de todos os crentes em Cristo a. Unidade com Cristo e livramento do pecado e da morte (2.1-10) b. Gentios e judeus unidos pela cruz de Cristo (2.11-22) c. A vocação dos gentios (3.1-13)


79 d. Oração e doxologia (3.14-21) 4. Exortações ao comportamento cristão 5. Para andar na unidade do Espírito (4.1-16) 6. Para andar em novidade de vida (4.17-32) 7. Para andar em amor (5.1-21) 8. Cuidados com os deveres domésticos (5.22 - 6.9) 9. Exortação ao fortalecimento espiritual (6.10-17) - a armadura de Deus 10. Exortação à oração (6.18-24).

Os grandes temas de Efésios A vocação dos gentios A expressão “mistério de Deus” aparece várias vezes na literatura paulina72. Nas epístolas de Efésios73 e de Colossenses74 o tema 72 Romanos 16:25 Agora ao que é poderoso para vos confirmar, segundo o meu Evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério guardado em silêncio durante os tempos eternos, 1 Coríntios 2:7 pelo contrário falamos a sabedoria de Deus em mistério, sim a sabedoria que esteve oculta, a qual Deus predeterminou antes dos séculos para a nossa glória; 73 Efésios 3:3 segundo me foi pela revelação manifestado o mistério, como antes vos escrevi em poucas palavras, Efésios 3:4 pelo qual, quando ledes, podeis entender o meu conhecimento no mistério de Cristo, Efésios 3:9 e trazer à luz qual a dispensação do mistério que tem estado escondido desde os séculos em Deus que criou todas as coisas, Efésios 5:32. Este mistério é grande, mas eu falo em referência a Cristo e à igreja. Efésios 6:19 e por mim, para que me seja dada no abrir da minha boca palavra, para com ousadia fazer conhecido o mistério do Evangelho, 74 Colossenses 1:26 o mistério que esteve escondido dos séculos e das gerações; mas agora foi descoberto a seus santos, Colossenses 1:27 a quem aprouve a Deus fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste mistério entre os gentios, que é em vós Cristo, esperança da glória, Colossenses 2:2 para que os seus corações sejam confortados, estando unidos em amor e para conseguir todas as riquezas da plena certeza do entendimento, para reconhecerem o mistério de Deus, Cristo,


80 “mistério” volta com toda a força. Entendemos que este mistério se refere à vocação dos gentios para a salvação. A unificação da comunidade cristã A epístola aos Efésios trabalha o tema da unidade cristã, isto é da unificação das comunidades cristãs de maioria judaica com as comunidades cristãs de maioria gentílica75. Este é um dos motivos alegados em defesa do argumento de que esta seria uma carta dêutero-paulina. Dizem os críticos que nos tempos do ministério de Paulo nunca houve clima favorável nem oportunidade para esta unificação. A necessidade de santificação (Efésios 5.1-20) Como consequência imediata e indispensável da unificação da comunidade cristã judaica com a comunidade cristã helênica surge o imperativo de apelar aos cristãos gentios para uma vida de santificação sem a qual o ideal da comunhão nunca seria atingido

Colossenses 4:3 orando ao mesmo tempo também por nós, para que Deus nos abra uma porta à palavra, para falarmos o mistério de Cristo pelo qual também estou em cadeias, 75 Pois ele é a nossa paz, ele que dos dois fez um e derrubou o muro da separação, a inimizade, tendo abolido na sua carne a lei dos mandamentos contidos em ordenanças, para que dos dois ele criasse em si mesmo um homem novo, fazendo assim paz, Efésios 2.14-15.


81

10. A epístola de Paulo aos Filipenses Objetivos de Estudo 1. Discorrer sucintamente sobre a cidade de Filipos e sobre o início do trabalho cristão nesta localidade. 2. Discutir a autoria, tempo e local de composição desta epístola. 3. Discutir o objetivo teológico para a composição desta epístola. 4. Apresentar Filipenses.

a cristologia encontrada na epístola aos

A cidade de Filipos e sua comunidade cristã A cidade de Filipos ficava situada na província romana da Macedônia, ao norte da província da Acaia. Hoje existe uma pequena república denominada Macedônia na Península Balcânica. Entretanto, o que se constituía na província da Macedônia dos tempos bíblicos era uma área bem maior que ficava, em sua maior parte, compreendida no que hoje é território grego. A cidade de Filipos que ficava no percurso da Via Egnatia, apresentava excelente relacionamento com a capital do Império. Seus habitantes, que desfrutavam da cidadania romana, procuravam imitar a metrópole em tudo. Nos tempos bíblicos a cidade de Filipos era um importante centro comercial. Paulo chegou lá por volta do ano 48, acompanhado de Silas, Timóteo e Lucas dando início ao trabalho de pregação com


82 simpatizantes judeus . As primeiras pessoas convertidas foram Lídia, uma comerciante da cidade de Tiatira, e um funcionário público que exercia a função de carcereiro77. A saudação presente na epístola permite concluir que na época em que ela foi escrita a igreja de Filipos já estava plenamente estruturada com um ministério organizado segundo o princípio da divisão do trabalho78. 76

Tempo, e local de composição e objetivo teológico Paulo estava preso quando escreveu esta carta79. Discute-se onde e quando. Tradicionalmente se aceita que esta carta foi escrita durante a sua primeira prisão em Roma o que nos permite datá-la para o ano 63. Alguns argumentos podem ser anotados a favor desta hipótese: 1. A referência à guarda pretoriana encontrada em 1.13. Essa expressão guarda pretoriana era usada para designar um contingente sediado em Roma. 2. A expressão casa de César 80 que se usava para designar familiares e servidores do imperador. 3. A situação de Paulo como prisioneiro sugere que ela aguardava o resultado de um julgamento81. Há, entretanto, alguns argumentos contrários a esta hipótese, vejamos: 1. Sabemos que ao sair de Roma Paulo tinha a intenção de seguir viagem para a Espanha o que dificilmente se concilia

76 77 78 79 80 81

Atos 16.7-13 Atos 16.14, 25-31. Filipenses 1.1,2. Filipense 1.13 Filipenses 4.22 Filipenses 1.19


83 82

com sua intenção de visitar Filipos . 2. A distância entre Roma e Filipos era um impedimento à manutenção de correspondência frequente. Apesar destas alegações a hipótese mais aceita atualmente é de que esta carta foi escrita em Roma. por volta do ano 63. Seus objetivos são claros: Confortar os crentes de Filipos por causa do desânimo que estava tomando conta deles como consequência da prisão de Paulo e agradecer o envio de uma oferta daquela igreja

Tema O tema principal desta epístola pode ser resumido em um imperativo verbal: Regozijai-vos 83 . Com esta epístola Paulo pretende levar a igreja a recuperar o entusiasmo perdido por causa da sua prisão.

Divisões 1. Saudação (1.1,2) 2. Ação de graças e oração (1.3-11) 3. Como devem viver os cristãos 4. Levando e evangelho (1.12,13) 5. Refletindo Cristo em suas vidas (1.14-18) 6. Entre esta vida e a futura (1.19-26) 7. O sentido real da vida (1.27 - 2.30) 8. O valor do conhecimento de Cristo (3.1-16) 9. Contraste entre amigos e inimigos da cruz (3.17 -4.1) 10. Exortações finais (4.2-23).

82 Filipenses 1.26 83 Filipenses 2.18, 3.1, 4.4.


84

A Cristologia de Filipenses A epístola aos Filipenses apresenta um modelo de cristologia que ficou conhecida como a cristologia cenótica, ou cristologia do esvaziamento. No capítulo 2, a partir do versículo 5, encontramos as linhas essenciais desta cristologia: 1. Jesus Cristo é Deus - 2.10,11 - O convite para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho (sinal de adoração) dos que estão nos céus (anjos e demônios), na terra (homens vivos) e em baixo da terra (mortos), mostra que ele é Deus porque um judeu jamais admitiria adorar alguém que não fosse Deus. Confira Romanos 1. 2. Jesus é o mesmo Deus do Velho Testamento - 2.11 - A palavra Senhor () usada por Paulo para denominar Jesus Cristo é a mesma que foi usada para traduzir o nome de Deus na Septuaginta. Isto indica perfeita identidade do filho com o pai. 3. Para poder se relacionar com os homens, Jesus Cristo se esvaziou de seus atributos divinos e assumiu a forma humana, em obediência à vontade do Pai. Esta livre opção o levou até a Cruz.

O cuidado contra a falsa circuncisão Paulo adverse os Filipenses contra os pregadores da falsa circuncisão84. Pode-se entender, a partir dessa recomendação que os judaizantes que tanto perturbaram a vida do apóstolo estavam fazendo duas investidas também na cidade de Filipos.

84 Filipenses 3. 1-11.


85

11. Epístolas aos Colossenses e a Filemon Objetivos de Estudo 1. Discorrer sucintamente sobre a cidade de Colossos e sobre o início do trabalho cristão naquela localidade. 2. Discutir a autoria, tempo e local de composição da epístola aos Colossenses. 3. Discutir o objetivo teológico para a composição desta epístola. 4. Sumariar o conteúdo da epístola a Filemon.

A cidade de Colossos e os destinatários desta epístola. A cidade de Colossos ficava situada na península da Anatólia, atual Turquia, às margens do rio Lico e próxima da cidade de Laodiceia. Sua população, de raça Frígia, tinha como principal religião o culto de Cíbele, a deusa do amor e da fertilidade dos asiáticos. Os dados que podemos conseguir da leitura do texto bíblico nos permitem concluir que Paulo não esteve pessoalmente naquela cidade 85 mas que enviou Epafras 86 (possivelmente outro nome para Epafrodito 87 ) ate lá e que este foi o iniciador da obra de pregação local. Assim sendo, Paulo considerava as igrejas de Colossos como uma extensão natural de seu ministério. Sabe-se que havia pelo menos duas igrejas naquela cidade as quais se reuniam em casas de família. Uma delas ficava na casa de

85 Colossenses 2.1 86 Colossenses 1.7 87 Filipenses 2.25


86 Filemon . A população da cidade era constituída quase exclusivamente de gentios. 88

Objetivo de composição da epístola - a heresia colossense. Aceita-se geralmente que quando Paulo escreveu esta epístola ele estava preso em Roma onde havia recebido visitas de Epafras, Tíquico e Onésimo (este último era escravo de Filemon). Nesta visita eles lhe comunicaram o aparecimento na cidade de falsos mestres que procuravam enganar a igreja por meio de sofismas89. Muito embora não se tenha uma definição exata de quem seriam esses falsos mestres o exame acurado da epístola revela alguma coisa sobre seus ensinos: 1. Davam ênfase ao cerimonialismo90 recomendando a estrita observação das ocasiões festivas tais como os sábados e as luas novas. 2. Ensinavam o culto aos anjos e prezavam as visões que, segundo Paulo, não passavam de produtos de suas mentes carnais91. 3. Desprezavam a obra salvadora de Cristo92. 4. Recomendavam a abstinência de determinados alimentos93. 5. Enfatizavam o ascetismo e a sabedoria94. Este repertório doutrinário não coincide com o que conhecemos a

88 89 90 91 92 93 94

Filemon 1,2 Colossense 2.4 Colossenses 2.1, 17. Colossenses 2.18 Colossenses 2.19,20 Colossenses 2.21,22 Colossenses 2.23


87 cerca dos judaizantes, razão porque não podemos classificar os membros deste grupo como discípulos daqueles. Também não é possível identificá-los com os Gnósticos, que foram mais ativos no segundo século porque estes tinham como doutrina básica a negação da humanidade de Jesus Cristo. Assim sendo, a heresia colossense parece ter sido um desvio doutrinário limitado no tempo e no espaço, que se constituía numa forma de transição.

Tema O tema em destaque é a atuação do Cristo Cósmico na realização do plano de salvação. Será útil fazer um estudo comparativo deste texto com o prólogo do quarto evangelho para perceber os pontos de contato entre a heresia colossense e o gnosticismo. As divisões mais aceitas para a epístola são as seguintes:

Divisões 1. 2. 3. 4.

5. 6. 7. 8.

Saudação (1.1,2) Ação de Graças (1.3-8) Oração (1.9-12) A obra de Deus em Jesus Cristo 1. Redenção (1.13,14) 2. A excelência de Cristo (1.15-19) 3. A reconciliação (1.20-23) O ministério de Paulo (1.24 -2.3) Denúncia do ensino falso (2.4-23) Regras para vida cristã (3.1 - 4.6) Conclusão (4.7-18)

A Cristologia Cósmica95 Em Colossenses encontramos a fundamentação do que se 95 Colossenses 1.14-23


88 convencionou chamar de Cristologia Cósmica, que se apresenta como uma alternativa para a interpretação da pessoa e da obra de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela apresenta o Filho como 1. Imagem do Deus invisível, 2. Primogênito da Criação, 3. Meio pelo qual todas as demais coisas foram criadas e 4. Mantenedor perpétuo da obra criada. Essa cristologia que apresenta pontos de contato com a Cristologia Joanina e diverge bastante da cristologia cenótica, encontrada na epístola aos Filipenses, permitiu que se levantassem dúvidas a respeito da autenticidade da autoria paulina de Colossenses. Alguns autores chegaram a datá-la do século II da era Cristã.

A epístola a Filemon Filemon era um crente de posses que morava na cidade de Colossos. Onésimo, escravo de sua propriedade, fugiu de sua casa e foi ter com Paulo, em Roma. No contato com o apóstolo, Onésimo se converteu ao Cristianismo e foi encaminhado de volta a Filemon com uma carta escrita por Paulo. Esta carta, a mais curta de todas as epístolas paulinas, é um testemunho da transformação que o Evangelho produz na vida de um homem.


89

12. As epístolas pastorais Objetivos de Estudo 1. Conceituar epístola pastoral classificadas sob este nome.

e

listar

as

epístolas

2. Sumariar os conteúdos destas epístolas. 3. Discutir a autoria, tempo e local de composição destas epístolas. 4. Discutir o objetivo teológico para a composição destas epístolas. 5. Identificar os falsos doutores que são citados nestas epístolas.

Que são as epístolas pastorais? O nome Epístolas Pastorais foi criado em 1703 por Bardot para designar as cartas que Paulo enviou aos líderes de igrejas que ele mesmo constituiu. São elas: Duas cartas enviadas a Timóteo e uma a Tito. Timóteo, companheiro de Paulo a partir de sua segunda viagem missionária, era judeu por parte de mãe e grego por parte de pai. Paulo o tomou como se fosse um filho de criação e mandou circuncidá-lo para evitar problemas com os judeus convertidos quando ele viesse a acompanha-lo em suas viagens missionárias96. Estando em Corinto, Paulo o designou para dar assistência à comunidade cristã de Éfeso. Conhecemos pouco de Tito, uma vez que ele não é citado no livro de Atos dos Apóstolos. Tudo que sabemos dele vem das referências que Paulo lhe faz em seus escritos. Sabe-se que era

96 Atos 16.1,2.


90 um cristão gentio e que foi designado para pastorear uma igreja na ilha de Creta. Ele e Timóteo tinham, portanto, uma situação parecida com a de Epafras em Colossos. Parece-nos que Paulo, visando uma expansão mais rápida da obra de evangelização e a melhor consolidação de seu trabalho evangelístico, designava alguns de seus auxiliares mais experimentados para implantar trabalhos pioneiros nas cidades que ele mesmo não podia atingir e também para consolidar o crescimento cristão das comunidades já atingidas. As epístolas pastorais são cartas que Paulo escreve a esses dois líderes orientando-os no combate a hereges que estavam se infiltrando em suas respectivas comunidades.

Tempo e local de Composição Desde que aceitemos a autoria paulina, as datas mais prováveis para a composição das epístolas pastorais devem ser colocadas entre os anos 64 e 68. Estas são, portanto, as últimas cartas escritas pelo apóstolo Paulo. Se, como afirma a tradição, Paulo morreu, de fato, no ano 65, teremos de datá-las entre os anos 64 e 65 da era cristã.

A autoria paulina Estas cartas, juntamente com a epístola aos Efésios, tem tido sua autoria paulina mito contestada. Eis alguns argumentos que têm sido citados contra a autenticidade da autoria. 1. A evidência externa- As epístolas pastorais não citadas nos documentos mais antigos tais como o cânon de Marcion e o papiro p46. 2. A análise estatística do vocabulário usado nestas epístolas mostra diferenças marcantes da frequência de uso de palavras quando as comparamos com as demais epístolas paulinas. O estilo de composição também é diferente.


91 3. O problema teológico - As doutrinas ensinadas pelos falsos doutores (ver a seguir) não combina com os desvios doutrinários já conhecidos na época em que o apóstolo Paulo viveu. 4. Embora as epístolas pastorais não difiram radicalmente das demais epístolas paulinas no seu conteúdo teológico, elas diferem significativamente na terminologia usada para descrever este conteúdo.

Os falsos doutores O reconhecimento da heresia combatida nas cartas pastorais exige que se faça uma identificação dos falsos doutores nelas mencionados. Essa identificação, se feita com exatidão, vai nos permitir tirar conclusão sobre a data provável de sua escrita. O estudo da Epístola aos Colossenses nos permitiu identificar uma heresia que grassava na sia Menor e que apresentava características intermediárias entre a dos judaizantes (predominante no Século I) e a dos Gnósticos (predominante no Século II). Vamos tentar agora caracterizar o tipo de doutrina que esses falsos doutores estavam ensinando: 1. Colocavam ênfase no legalismo97. 2. Prezavam as genealogias98 3. Ensinavam o celibato e proibiam o uso de alguns alimentos. 99

Ensinava uma escatologia realizada (a ressurreição já passou).100 Da mesma forma que na epístola aos Colossenses, podemos ver 97 Tito 3.9, I Tm 6.4, II Tm 2.14-23 98 I Timóteo 1.4 99 I Timóteo 4.1-3 100 I Timóteo 2.18


92 aqui uma forma de pré-gnosticismo na qual os elementos tipicamente judaizantes (legalismo, genealogias) se fundem com as influências helenísticas tais como a negação da ressurreição.

Conteúdo das epístolas I Timóteo 1. Saudação (1.1,2) 2. A situação em Éfeso (1.3-17) 3. A incumbência dada a Timóteo (1.18-20) 4. Instruções sobre o culto público (2.1-15) 5. Qualificações dos oficiais da igreja (3.1-13) 6. Propósito do trabalho de Timóteo (3.14-16) 7. Instruções sobre a Apostasia (4.1-16) 8. Diversos grupos na igreja (5.1 - 6.2) 9. Os falsos doutores (6.3-10) 10. A atuação de Timóteo (6.11 -21) II Timóteo 1.Introdução (1.1-5) 2. A primeira orientação (1.6-18) 3. A segunda orientação (2.1-3) 4. A terceira orientação (2.4 - 3.17) 5. A quarta orientação (4.1-8) 6. Instruções finais e saudações (4.9-22) Tito 1. Saudação (1.1-4) 2. Instruções gerais para a reforma religiosa (1.5-16) 3. Instruções específicas para a pregação (2.1-15)


93 4. Instruções finais para os crentes no mundo (3.1-15)

Destaque- A formação de lideranças A preocupação que sobressai nas epístolas pastorais se refere á necessidade de dotar a igreja cristã de uma liderança capaz de assegurar sua sobrevivência até a volta do Senhor. Os cristãos de primeira geração, os apóstolos que haviam convivido com o Senhor por quarenta dias após a ressurreição e ouvido seus ensinamentos, estavam chegando ao final de suas vidas. Naquele tempo ainda não havia uma coleção de escritos suficiente para orientar a igreja. O cânon do Novo Testamento só foi fechado ao final do século IV da Era Cristã. Era essencial que as igrejas fossem lideradas por pessoas competentes, cujas palavras fossem confiáveis e que lhes transmitissem os ensinamentos recebidos desde o princípio101. Principalmente porque heresias começavam a se infiltrar nas igrejas. Um dos cuidados do apóstolo Paulo foi o de deixar instruções muito precisas para a escolha e preparação dos oficiais da igreja, principalmente bispos e diáconos. Dentro de muito pouco tempo eles estariam assumindo os lugares vacantes pelas mortes dos apóstolos e precisavam, portanto, estar preparados para esta grande tarefa.

101

I João 1.1


94


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