Livros históricos do novo testamento

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Livros Históricos do Novo Testamento Um guia de estudos

Prof. Humberto Macharetti h.macharetti@yahoo.com.br www.humbertomacharetti.blogspot.com.br

Rio de Janeiro, 2015

STBC – Seminário Teológico Batista Carioca Ltda ME Rua Ferreira Borges, nº 54 – Campo Grande – RJ – CEP: 23.052-350 Tel.: 2412-2308 – e-mail: teologica@gmail.com CNPJ: 10.946.666/0001-90


Livros históricos do NT - Programa Ementa: Estudo do início do movimento cristão conforme relatado nos evangelhos sinópticos. E no livro de Atos dos Apóstolos. Reconhecimento das diferentes tradições orais por meio das quais os ensinos de Jesus Cristo foram veiculados nas comunidades primitivas até sua fixação por escrito. Compreensão da maneira como a necessidade de explicar o fenômeno Jesus Cristo no contexto de diferentes culturas moldou as diferentes formas pelas quais ele é apresentado nos evangelhos.

Objetivo: Entender a formação da fé cristã na sociedade primordial onde ela se originou e a maneira como esta sociedade a comunicou aos seus contemporâneos de culturas alternativas.

Programa analítico: Unidade 1. Problema Sinóptico 1.1 Crítica da fonte 1.2 Crítica da forma 1.3 Crítica da redação Unidade 2. Evangelho de Marcos 2.1 Autoria 2.2 Data 2.3 Local da escrita 2.4 Propósito e mensagem 2.6 Destaques Unidade 3. Evangelho de Mateus 3.1 Autoria 3.2 Data 3.3 Local da escrita 3.4 Fontes 3.5 Estrutura 3.6 Propósito e mensagem 3.7 Destaques Unidade 4. Evangelho de Lucas 4.1 Autoria 4.2 Data 4.3 Local da escrita 4.4 Fontes 4.5 Estrutura 4.6 Propósito e mensagem 4.7 Aspectos distintivos de Lucas Unidade 5. Atos dos Apóstolos 5.1 Autoria


5.2 Data 5.3 Local da escrita 5.4 Fontes 5.5 Estrutura 5.6 Propósito e mensagem 5.7 Destaques Critérios de Avaliação: Avaliação escrita, apresentação de seminário e/ou atividades acadêmicas individuais ou em grupo. Leitura e resenha de livros selecionados pelo professor.

Bibliografia Básica 1. ALAND, K. & ALAND, B. O TEXTO do NOVO TESTAMENTO, Tradução de Vilson Scholz, Barueri, SP, Sociedade Bíblica do Brasil, SP, 2013. 2. BITTENCOURT, B. P. O Novo Testamento: metodologia da pesquisa textual. 3ª ed. RJ: JUERP, 1993. 3. BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 2004. 1135 p. 4. BRUCE, F. F. Merece confiança o Novo Testamento? 2ª ed. SP: Vida Nova, 1990. 5. DANA H. E. O mundo do Novo Testamento. Vida Nova. 6. DRANE, J. W. Jesus: sua vida, seu evangelho. Paulinas. 7. GUNDRY, Robert. H. Panorama do Novo Testamento. Trad. de João Marques Bentes. 4ª ed. SP: Vida Nova, 1991. 8. HALE, B. D. Introdução ao Estudo do Novo Testamento. 3ª ed. RJ: JUERP, 1989. 9. HALLEY, H. H. Manual Bíblico Vida Nova. 10. JEREMIAS, J. Jerusalém nos tempos de Jesus. São Paulo: Paulinas. 11. KUMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. 12. LACELOTT, A. O evangelho e a crítica moderna. Petrópolis: Vozes. 13. LELOUP, JEAN-YVES, O Evangelho de Tomé, Petrópolis, Vozes, 1997. 14. LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. JUERP. 15. MOULE, C. F. D. As origens do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1979. 16. NAHMAD, C. & BAILEY, M., Ensinamentos ocultos de Maria Madalena, Rio de Janeiro, Nova Era, 2007. 17. PAUL, André. O que é Intertestamento. 2ª Ed., SP, Paulinas, 1981. 18. ROPS, H. D. A vida diária nos tempos de Jesus. Vida Nova. 19. TAYLOR, W.C. Dicionário do Novo Testamento grego. 9ª ed. RJ: JUERP, 1991. 20. SALDARINI, A. J. A comunidade judaico-cristã de Mateus, São Paulo, Paulinas, 2000. 360 p. 21. TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento: sua origem e análise. 2ª ed. SP: Vida Nova, 1989.


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Sumário LIVROS HISTÓRICOS DO NOVO TESTAMENTO

1. O PROBLEMA SINÓTICO ..................................................... 1.1. Propósito ............................................................................. 1.2. Que é um evangelho? ......................................................... 1.2. Quantos evangelhos foram escritos? .................................. 1.3. Quantos evangelhos foram incorporados ao Novo Testamento? ..................................................................... 1.4. Crítica Bíblica do Novo Testamento .................................... 1.5. A árvore genealógica dos evangelhos ................................ 1.6. Conclusão ...........................................................................

2. O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO .................................... 2.1. Nossas Bíblias ..................................................................... 2.2 História do Texto do Novo Testamento ................................ 2.3. Divergências nos textos ......................................................

2. O EVANGELHO SEGUNDO MARCOS ................................. 2.1. Propósito ............................................................................. 2.2. Introdução ........................................................................... 2.2. O problema da autoria ......................................................... 2.3. Data, local de composição e primeiros leitores. .................. 2.4. Objetivo e mensagem central .............................................. 2.5. A estrutura do livro .............................................................. 2.7. Os exorcismos de Jesus .....................................................

3. O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS ................................. 3.1. Propósito ............................................................................


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3.2. Introdução ........................................................................... 3.3. O problema da autoria ......................................................... 3.4. Data, local de composição e primeiros leitores. .................. 3.5. Objetivo e mensagem central .............................................. 3.5. Conteúdo e plano ............................................................... 3.6. Destaques e peculiaridades ................................................

4. A OBRA LUCANA – PARTE 1: O EVANGELHO DE LUCAS ................................................................................. 4.1. Propósito ............................................................................. 4.2. Introdução ........................................................................... 4.3. Autoria – evidências internas .............................................. 4.4. Autoria – evidências internas .............................................. 4.5. Fontes e metodologia do trabalho do autor ........................ 4.6. Data, local de composição e primeiros leitores. .................. 4.7. Objetivo e mensagem central .............................................. 4.8. Divisões ...............................................................................

5. A OBRA LUCANA – PARTE 2: OS ATOS DOS APÓSTOLOS ............................................................................. 5.1. Propósito ............................................................................. 5.2. Introdução ........................................................................... 5.2. Fontes e metodologia de trabalho do autor ........................ 5.3. Data e local de composição ................................................ 5.4. Propósito do autor .............................................................. 5.5. Estudo do conteúdo ........................................................... 5.6. Grandes temas de atos dos Apóstolos ................................


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Unidade I – O Problema sinótico Os evangelhos sinóticos Propósito No estudo desta primeira unidade de “Livros Históricos do Novo Testamento” pretendemos abordar algumas questões significativas para o início de nossos estudos. Existe em nosso Novo Testamento nada menos de quatro livros denominados “evangelhos”. A final de contas, que é um evangelho? Por que existem quatro deles e não apenas um já que seus conteúdos são muitas vezes repetitivos? Foram escritos outros livros que também recebem o nome de evangelhos? Se o foram por que motivos eles não estão em nosso Novo Testamento? Quando estes livros foram escritos? Quem foram os seus respectivos autores? O que os motivou a escrever? Quem foi o seu público original na época em que escreveram? O que é a crítica bíblica e em que ela nos ajuda a compreender os evangelhos? Estas perguntas constituem o roteiro de uma longa viagem que iniciaremos logo. Não deixe que elas se afastem de suas preocupações porque se isto acontecer você poderá perder o “caminho da fonte”. A bibliografia adicional indicada nas notas de rodapé pode auxiliá-lo grandemente nesta tarefa. Boa sorte e boa viagem.


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Que é um evangelho? Logo que abrimos o Novo Testamento encontramos um conjunto de quatro escritos que apresentam em comum o fato de serem denominados evangelhos. O que significa este nome e por que ele é utilizado? A primeira pergunta tem uma resposta simples. A palavra evangelho é originária da língua grega e foi utilizada nas províncias orientais do Império Romano para denominar as novidades interessantes que eram divulgadas pelos arautos do império. Literalmente significa boas novas ou boas notícias. Por meio delas o povo ficava conhecendo o que o imperador e seus prepostos nas províncias estavam fazendo em seu favor. A ideia contida nela é a publicação dos decretos generosos que um rei baixava em favor de seus súditos. O Cristianismo, nascido dentro do império, reconheceu em Jesus de Nazaré seu legítimo rei. Assim pareceu bem aos escritores cristãos dos primeiros séculos usar a palavra evangelho para identificar os relatos dos atos e ensinos benéficos do rei Jesus a favor daqueles que o aceitavam como salvador e mestre. Nos três primeiros séculos do Cristianismo, dezenas de livros receberam esta denominação. Destes, quatro apenas foram escolhidos para integrar a literatura litúrgica dos cristãos. São aqueles que encontramos em nosso Novo Testamento cujas autorias são atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João. Dizemos que eles foram canonizados. Outros evangelhos, como os atribuídos a


9 Tomé, Maria Magdalena e Valentino foram descartados. Em tempo próprio estudaremos os critérios que presidiram a escolha dos quatro e a rejeição dos demais. O estudo científico da composição destes livros utilizando as mesmas ferramentas aplicadas pelos literatos na análise de outras literaturas antigas é denominado “crítica bíblica”. Uma das tarefas da crítica bíblica é tentar determinar a data de composição dos livros. As evidências reunidas até hoje permitiram concluir que a mais antiga destas obras é aquela cuja autoria é atribuída a Marcos. Autores antigos não colocavam títulos em suas obras nem as assinavam. Em geral se usava a primeira palavra significativa do texto para identificar a obra. O livro de Marcos começa com as frases: Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Como está escrito nos profetas: Eis que eu envio meu mensageiro diante de tua face, que preparará teu caminho diante de ti. Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas.1

A palavra evangelho, por ser a primeira significativa do texto, foi escolhida para designar o livro. As frases seguintes nos dão uma pista para descobrir o modelo usado pelo autor. Ele faz referência aos livros dos profetas do antigo testamento. Estes livros serviram

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Marcos 1.1-4


10 como modelo para o relato das obras e ensinos de Jesus. Na língua grega comum, em que os evangelhos foram escritos, o primeiro deles se tornou um paradigma para a composição dos seguintes. Estava estabelecido um novo gênero literário de uso exclusivo dos cristãos: O Evangelho. Entenda-se que os evangelhos não têm a pretensão de ser uma biografia de Jesus Cristo. Estão mais interessados em seus ensinos do que em seus feitos. Por esse motivo omitem muitos dados que não são importantes para seus objetivos. É o caso, por exemplo, dos fatos ocorridos na infância de Jesus, que são, na sua maioria, desconhecidos.

Quantos evangelhos foram escritos? Não sabemos com exatidão. Além dos quatro evangelhos canônicos contidos no Novo Testamento de todas as versões da Bíblia temos muitos outros livros que não foram incorporados ao cânon2. Dentre eles são mais conhecidos o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, o Evangelho de Maria Madalena, o Evangelho de Valentino, o Evangelho da Verdade e o recentemente descoberto Evangelho de Judas Iscariotes. Se receberam todos a mesma designação, e de se esperar

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Cânon, palavra da língua grega para a vara que os construtores usavam para medir as obras. Na critica bíblica é utilizada para rotular o conjunto de livros cuja utilização nas celebrações litúrgicas é autorizada pela igreja.


11 que seus conteúdos compartilhem alguns dados. Afinal de contas, que vem a ser um evangelho? A palavra evangelho não foi inventada pelos cristãos como poderia parecer a quem fizesse uma primeira leitura despreocupada. Ela já existia no tempo em que o cristianismo iniciou suas atividades e era utilizada pelos oráculos do império para introduzir a leitura dos decretos que o imperador, ou algum de seus legados, baixava beneficiando o povo. Os escritores cristãos passaram a utilizar esta palavra para introduzir os relatos dos benefícios que Deus fazia a favor de seu povo. Alguns dos evangelhos mais antigos são apenas coleções de ditos (logia) de Jesus. Outros mais elaborados incluem relatos a respeito da vida e da obra dos Mestre. No tempo em que os evangelhos foram compostos (do primeiro ao terceiro séculos da era cristã) o cristianismo ainda não tinha um repertório de doutrinas estabelecido. Esse fato permitia que muitas variantes doutrinárias convivessem e reivindicassem ser a interpretação autêntica dos ensinamentos do Mestre. Uma das vertentes do cristianismo destes tempos foi o gnosticismo, uma interpretação que ensinava que o grande problema do homem não é o pecado e sim a ignorância. Desta forma, o que salva o homem não é perdão concedido pela graça divina e sim o conhecimento (Gnose 3 ) obtido por meio de uma

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Os gregos conheciam dois tipos de conhecimento. O conhecimento empírico, obtido pela observação da natureza e pela aprendizagem


12 revelação especial. O Evangelho segundo Tomé4 é a obra mais conhecida da biblioteca que nos foi legada pelos cristãos gnósticos. Ele foi descoberto em 1945 no Egito, fazendo parte da chamada biblioteca de Nag Hammadi 5. Este evangelho é uma coleção de 144 “logia” (ditos) de Jesus que teriam sido proferidos diante dos apóstolos que lhes eram mais chegados tais como Dídimo Judas Tomé, que segundo os cristãos gnósticos era irmão gêmeo de Jesus6, nos quarenta dias entre a ressurreição e a glorificação. Não apresenta nenhuma referência à vida do Mestre ou aos seus atos salvadores (curas, exorcismos, purificação de leprosos), mas faz muitas referências a ensinos, inclusive a parábolas que também são encontradas nos evangelhos sinópticos7. Um dos textos mais conhecidos é o “logion” 2 que descreve o processo de iniciação gnóstica:

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cuidadosa de suas regras era o Episteme, de onde deriva a palavra epistemologia. O conhecimento mais perfeito, ou Gnose, por outro lado só poderia ser obtido por um processo de iluminação interior ou pela recepção de ensinamentos secretos passadas por um iluminado. LELOUP, JEAN-YVES (Trad) O Evangelho de Tomé, Petrópolis, Vozes, 1997. Nag Hammadi é uma aldeia no Egito, conhecida como Chenoboskion na antiguidade, cerca de 225 km ao noroeste de Assuan. Nesta aldeia foram encontrados, em 1945, um conjunto de manuscritos que ficaram conhecidos como biblioteca de Nag Hammadi, contendo textos do antigo gnosticismo, onde possui ligação com o " Evangelho de Judas". A palavra grega “Dídimos” significa gêmeo. Sinópticos é uma palavra também de origem grega que significa “vistos de um mesmo lugar”. Ela é aplicada aos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas.


13 Disse Jesus: Aquele que procura, continue sempre em sua busca até que tenha encontrado; E quando tiver encontrado sentir-se-á perturbado; Sentindo-se perturbado, ficará maravilhado e reinará sobre tudo.

Os verbos usados descrevem o caminho da iluminação: Buscar (conhecimento), encontrar, perturbar-se, maravilhar-se e reinar (dominar, ter controle). Outro Evangelho famoso dos gnósticos é aquele cuja autoria foi atribuída a Maria Magdalena8. Os gnósticos tinham um grande apreço por Maria Magdalena que eles consideravam a esposa de Jesus Cristo. O último “logion” do evangelho de Tomé faz referência a ela: Disse-lhe Simão Pedro: Maria deve afastar-se do meio de nós porque as mulheres não são dignas da vida. Respondeu Jesus: Eis que eu hei de guiá-la para que se torne Homem. Ela também virá a ser um espírito vivo, semelhante a vós, Homens. Com efeito, toda mulher que se fizer Homem entrará no Reino de Deus.9

Possuímos atualmente a versão incompleta deste evangelho em língua portuguesa. Um de seus “logia” descreve uma conversa de Pedro com Jesus: Pedro falou: Já nos explicaste sobre os elementos da vida e da matéria, e sobre como o mundo se distancia deles. Conte-nos qual é o pecado do mundo, aquele

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NAHMAD, C. & BALEY, M. (Tradutor) Ensinamentos Ocultos de Maria Madalena, Rio de Janeiro, Nova Era, 2007. Evangelho de Tomé, logion 114.


14 pelo qual se deve morrer. O Senhor respondeu: A matéria não possui pecado. O pecado não existe. Sois vós quem os criais. Assim como no adultério sois infiéis a vossa verdadeira natureza e agis conforme o hábito da vossa natureza corrupta.

Aqui temos a colocação de uma doutrina básica do gnosticismo, a inexistência do pecado, na boca do Mestre Jesus Cristo. Essa doutrina é inaceitável para os cristãos tradicionais.

Quantos evangelhos foram incorporados ao Novo Testamento? Dos muitos evangelhos escritos nos três primeiros séculos do cristianismo apenas quatro foram incorporados aos escritos eclesiásticos autorizados para uso no culto. Para compreendermos porque isto aconteceu precisamos ficar conhecendo o processo denominado canonização. Nesse processo, os evangelhos, e demais livros, foram cuidadosamente analisados para se ter certeza de que se conformavam a determinados critérios de fidelidade aceitos pela igreja. 1. O primeiro destes critérios foi o critério de ortodoxia10. Nos dias de hoje quando queremos determinar se uma doutrina ensinada na igreja é correta recorremos à Bíblia que é nossa regra de fé e prática. Nos primeiros séculos do

10 Ortodoxia – palavra grega que significa doutrina correta.


15 cristianismo, a Bíblia ainda não existia. Os líderes da igreja (apóstolos, presbíteros, bispos, patriarcas) detinham o posto de guardiões da ortodoxia e eles eram consultados sempre que se necessitava decidir se um escrito era fiel às doutrinas. Por isso eram realizados concílios onde os líderes eclesiásticos se reuniam para examinar os livros e lançar seus pareceres. 2. O segundo critério foi o de apostolicidade. Os apóstolos sempre foram considerados fiéis depositários dos ensinos de Jesus Cristo. Dessa forma, quando havia dúvidas a respeito de algum ensino eles eram consultados pelas igrejas. O capítulo 7 da primeira epístola de Paulo aos cristãos de Corinto é a resposta do apóstolo a uma consulta acerca de casamento e celibato. Os escritos que podiam ser relacionados de alguma forma aos apóstolos (como seus escritores ou como orientadores de sua escrita) tinham, portanto maior probabilidade de serem ortodoxos e, por isso mesmo, de serem canonizados. Além de garantir a ortodoxia, esse critério garantia também a antiguidade do livro. Pesou muito na canonização da epístola aos hebreus o fato de os antigos cristãos atribuírem sua autoria ao apóstolo Paulo, o que hoje se sabe ser falso. 3. Um terceiro critério foi o de suficiência. Quando dois escritos tinham conteúdos essencialmente


16 repetitivos, isto é, o mais recente não acrescentava nada de novo ao mais antigo, o mais novo não era canonizado porque não traria benefícios à vida da igreja, apenas aumentaria o encargo com a preservação dos escritos. Esses critérios de canonicidade foram considerados na seleção dos livros do novo testamento e levaram finalmente à seleção dos 28 livros no final do século IV, mais precisamente em 397 e 398, nos concílios de Hipona e Cartago. Não podemos dizer que nossos irmãos do passado tenham acertado tudo. Algumas dúvidas ficaram por ser solucionadas. Vejamos alguns exemplos: 1. Na epístola de Judas encontramos uma citação ao apócrifo de Enoque (Enoque etíope) onde este livro é chamado de profecia: E Enoque, o sétimo depois de Adão, também profetizou sobre estes, dizendo: Eis que o Senhor veio, com dezenas de milhares de seus santos; para fazer julgamento contra todos, e reprovar a todos os perversos entre eles, por todas as suas obras de perversão, que perversamente cometeram, e por todas as duras palavras que os perversos pecadores falaram contra ele11.

Se um livro canônico declara que um apócrifo (não canônico) é profecia autêntica então algo está

11 Judas 14,15


17 errado. 2. No evangelho de João encontramos o trecho que descreve Jesus Cristo julgando uma mulher pega em flagrante de adultério 12 . Este trecho de composição tardia foi incorporado ao quarto evangelho e canonizado juntamente com ele embora não fosse autêntico. 3. O término longo do evangelho de Marcos: “E estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome expulsarão aos demônios; falarão novas línguas; Tirarão serpentes com as mãos; e se beberem coisa alguma mortífera, não lhes fará nenhum dano; sobre os enfermos porão as mãos e sararão. O Senhor, pois, depois de ter lhes falado, foi recebido acima no céu, e sentou-se à direita de Deus. E eles, saindo, pregaram por todas as partes, o Senhor operando com eles, e confirmando a palavra com os sinais que se seguiam. Amém” 13.

Trata-se de uma inserção tardia que não aparece nos melhores textos (os mais antigos).

A Crítica Bíblica do Novo Testamento Dispomos hoje de uma série de ferramentas para analisar os textos da bíblia e, a partir desta análise, atingir o sentido mais exato de seu conteúdo.

12 João 8.3-12. 13 Marcos 16.17-20


18 Entendemos por sentido mais exato aquele que foi entendido pelos leitores aos quais o texto foi originalmente dirigido. O conjunto destas metodologias de trabalho constitui o que chamamos de crítica bíblica. A crítica bíblica pode ser feita em vários níveis: 1. Crítica textual- Possuímos hoje vários textos do Novo Testamento que apresentam diferenças de redação em muitas passagens. Nosso propósito ao fazer a crítica textual é determinar qual destes textos é uma cópia mais fiel dos originais. Uma vez que não possuímos nenhum dos originais (autógrafos) temos a necessidade de fazer um estudo comparativo dos textos que dispomos. Este estudo admite que os erros não intencionais de cópia ocorrem com uma frequência regular e, que assim sendo, os textos que foram copiados um menor número de vezes – os mais antigos – são os mais fiéis aos originais. Esse pressuposto faz com que a datação dos textos seja uma tarefa muito importante na crítica bíblica. 2. Crítica das fontes – Muitos dos livros da Bíblia, especialmente os evangelhos sinópticos, apresentam passagens paralelas que concordam na maior parte de seus conteúdos. Esse fato torna improvável que os textos destes evangelhos tenham sido compostos de forma totalmente independente sem que o autor de um


19 deles tivesse conhecimento do que os demais fizeram. A crítica das fontes analisa uma questão muito significativa para o entendimento dos escritos bíblicos, a questão da precedência. Quando temos em dois livros, dois textos paralelos devemos nos perguntar qual dos dois é o mais antigo (fonte) e qual deles é o mais recente (cópia). 3. Crítica da forma ou história da forma- Os fatos narrados nos livros do Novo Testamento, especialmente nos evangelhos, foram veiculados muitos anos (pelo menos uns 40 anos) por tradição oral antes de terem sido transcritos no papel. Durante este tempo estes textos foram adaptados às condições de vida de seus ouvintes para que pudessem ser entendidos. A crítica da forma tem por tarefa elucidar os mecanismos que presidiram a transformação dos textos na fase de transmissão oral. Um dos fatos mais conhecidos que pode ser elucidado por esta metodologia é o relato da cura de 2 cegos em Jericó encontrado no evangelho de Mateus: “E Jesus, ao sair dali dois cegos o seguiram, clamando e dizendo: Tem compaixão de nós, Filho de Davi! ”14. O evangelho de Marcos, por seu lado, relata acura de apenas um cego: “E vieram a Jericó. E saindo ele, e seus discípulos,

14 Mateus 9.27


20 e uma grande multidão de Jericó, estava Bartimeu o cego, filho de Timeu, sentado junto ao caminho, mendigando. E ouvindo que era Jesus o nazareno, começou a clamar, e a dizer: Jesus, Filho de Davi! Tem misericórdia de mim! ”15. Admite-se hoje que Marcos, autor do escrito mais antigo, relatou o fato simplesmente como ele aconteceu. Mateus, escrevendo em um ambiente tipicamente judeu, dobrou o número de cegos para que ele se conformasse com o princípio legal de que o testemunho de um só não tem valor, mas o testemunho de dois é verdadeiro. 4. Crítica da redação- Observamos que, apesar das semelhanças entre os evangelhos, alguns textos aparecem em apenas um deles. O quarto evangelho (João) é rico em passagens exclusivas: A entrevista de Jesus com Nicodemos (cap. 3), A conversão de uma vila de samaritanos (cap. 4), a cura de um cego de nascimento (cap. 9), a ressurreição de Lázaro (cap. 11). A crítica da redação trabalha com estes textos exclusivos e, a partir deles, procura elucidar o objetivo teológico do autor, isto é, procura descobrir os motivos porque o autor escreveu o livro. O princípio envolvido nesta análise é de que se um texto foi inserido no livro

15 Marcos 10.46-47.


21 é porque sua leitura era importante para comprovar a tese do autor. No caso do evangelho de João, as palavras e os milagres de Jesus, servem como argumentos para demonstrar sua procedência divina. 5. Crítica histórica e social- Nenhum livro do Novo Testamento foi escrito como um exercício de deleite intelectual ou espiritual. Todos eles foram motivados por situações que aconteciam na vida dos leitores na época em que foram compostos. Dessa forma, o conhecimento das situações que ocorriam no primeiro século do cristianismo (perseguições, heresias) é essencial à compreensão destes escritos. O melhor exemplo deste fato está na literatura apocalíptica (Apocalipse de João) que só poder ser entendida quando se considera que os cristãos para os quais ela foi escrita sofriam perseguição por parte do império romano por se recusarem a prestar culto ao imperador.

A árvore genealógica dos evangelhos Com base nos estudos da crítica bíblica, especialmente da crítica das fontes, somos hoje capazes de reconstituir a história da composição dos evangelhos sinópticos que pode ser colocada em alguns princípios simples: 1. Existe um auto grau de interdependência entre os textos de Mateus, Marcos e Lucas que deixa


22 evidente que estes evangelistas compartilharam material proveniente de fonte (s) comum (comuns). 2. Quando um texto aparece nos três evangelhos invariavelmente o texto de Marcos é a fonte, os textos de Mateus e de Lucas são variantes mais novas. Fica assim determinada a prioridade de Marcos, que é o evangelho mais antigo. 3. Os textos comuns a Mateus e Lucas que não ocorrem em Marcos derivam de uma segunda fonte que foi denominada fonte Q.

Conclusão Temos hoje quatro evangelhos no nosso Novo Testamento. Eles desfrutam desta posição porque foram canonizados pela igreja cristã dos primeiros 4 séculos que analisou seus conteúdos atendendo a critérios rigorosos, especialmente os de ortodoxia e apostolicidade. Outros evangelhos, escritos na mesma época foram rejeitados com base nos mesmos critérios. Os três primeiros evangelhos são chamados sinóticos porque apresentam os ensinamentos e ações de Jesus Cristo de um mesmo ponto de vista. O Livro de Atos dos apóstolos é a segunda parte do evangelho de Lucas e apresenta a história da igreja cristã no período dos apóstolos. Não sabemos com segurança o nome de nenhum dos autores destes livros. O que temos são tradições aceitas pelos cristãos com base nos


23 testemunhos escritos dos pais da igreja, isto é, dos teólogos e historiadores cristãos que viveram dos séculos II ao IV.


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O texto do Novo Testamento Nossas Bíblias Temos hoje várias versões do Novo Testamento em Língua portuguesa. Nosso estudo nos coloca, inicialmente, diante da necessidade de escolher uma versão de referência. Isso é consequência do processo de tradução da Bíblia das línguas originais para as modernas. Atualmente distinguimos dois grandes grupos de Bíblias em nossa língua: as bíblias católicas e as bíblias protestantes. Elas podem ser identificadas pelo conjunto de livros que apresentam. As Bíblias protestantes contem sessenta e seis livros, sendo trinta e nove no Antigo Testamento e vinte e sete no Novo. As Bíblias católicas nos apresentem ainda um conjunto de livros, em geral colocados entre os dois testamentos, que são chamados de apócrifos (escondidos) pelos protestantes ou de “deuterocanônicos” pelos católicos. As Bíblias protestantes mais antigas são derivadas da primeira tradução feita por João Ferreira de Almeida16 a partir dos textos hebraico e aramaico para o Antigo Testamento e do texto grego para o Novo. Derivados de seu trabalho, temos hoje as versões revista e corrigida

16 João Ferreira Annes de Almeida (1628-1691), católico e convertido ao protestantismo e tornou-se ministro da Igreja Reformada Holandesa. Completou a tradução da Bíblia para a língua portuguesa em 1654.


25 (ARC) e revista e atualizada (ARA). Dispomos hoje ainda da Nova Versão Internacional (NVI) feita sob os auspícios da Sociedade Bíblica Internacional. A primeira parte completada foi o Novo Testamento (1994). O volume completo foi impresso Em 2001. As Bíblias católicas mais tradicionais são derivadas da versão do padre Matos Soares17 a partir do texto latino de Jerônimo 18 , conhecido como “vulgata” 19 . Após o Concílio Vaticano II (1962–1965) foram lançadas versões católicas a partir dos textos originais hebraicos e gregos. Destaca-se, entre elas, a “Bíblia de Jerusalém” (1981,2002). Nos povos de língua inglesa é muito popular a Bíblia do Rei Tiago20 (KJV) ou Jaime I. (BKJ) Publicada no século XVII (1611) sob os auspícios da Igreja Anglicana. Atualmente já possuímos uma tradução desta importante versão para a língua portuguesa. Encontramos ainda versões preparadas por grupos religiosos para seu uso particular. É o caso da “Tradução Novo Mundo das Escrituras Sagradas” do grupo denominado “Testemunhas de Jeová” feita a partir de um texto em Inglês de 1961. Essa versão não usa os nomes “Antigo Testamento” e “Novo Testamento”. Em

17 18 19 20

Lisboa, 1932. Eusebius Sophronios Hieronim us (347 - 420) Tradução concluída em 400 DC. Sugerimos a leitura de: NORTON, D. A Bíblia King James, uma breve história de Tyndale até hoje, BVBOOKS, Rio de Janeiro, 2013.


26 seu lugar utiliza “Escrituras Hebraico-Aramaicas” e “Escrituras Gregas Cristãs”. Uma peculiaridade desta versão está em encontrarmos o nome “Jeová” no Novo Testamento, o que não acontece nas demais21.

História do texto do Novo Testamento22 As traduções do Novo Testamento das Bíblias em Português foram feitas a partir de duas fontes: O “texto recebido” de Erasmo de Rotterdam 23 e o Texto Crítico preparado por uma equipe de eruditos dentre os quais sobressai o nome de Constantino von Tischendorff24. Erasmo de Rotterdam publicou em 1516 a primeira edição do novo testamento grego, feita a partir de manuscritos antigos com falhas complementadas por uma retroversão da vulgata latina. Duas novas edições foram feitas em 1519 e em 1522. A primeira delas apresenta, pela primeira vez, o título “Novum Testamentum”. A segunda causou certa celeuma 21 Pois, o que diz a escritura? “Abraão exerceu fé em Jeová, e isso lhe foi contado como justiça”. Romanos 4.3 22 Para maiores informações, sugerimos a leitura da obra: Origem e transmissão do texto do Novo Testamento de Wilson PAROSCHI, Barueri, Sociedade Bíblica do Brasil, 2012. 23 Erasmo de Roterdã ou Desidério Erasmo (nascido Roterdã, Holanda, 1466, morto em Basiléia, Suíça, 1536) 24 Konstantin von Tischendorf (1815-1874) descobriu o “Codex Sinaiticus” em 1859 no mosteiro de Santa Catarina, no sopé do monte Sinai. Era um hábil linguista. Decifrou e publicou em 1845 o Códice de “Ephraemi Syri rescriptus”, que contém partes de todos os livros das Escrituras Gregas Cristãs (Novo Testamento), exceto 2 Tessalonicenses e 2 João. o Códice contém ainda partes das Escrituras Hebraicas (Velho Testamento) traduzidas para o grego.


27 porque Erasmo, de posse de dados mais substanciais, resolveu excluir do texto a passagem conhecida como “o comma joaninino”. Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: O espírito, a água e o sangue, três concordam, n’um. (I João 5.7-8).

Ameaçado de excomunhão, sob a acusação de Arianismo, Erasmo reintroduziu o texto suprimido na versão seguinte, editada em 1514. Hoje, de posse de manuscritos mais fiéis, os textos modernos apresentam hoje a forma minimizada que não menciona o testemunho celeste: E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade. Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o sangue; e estes três concordam. (I João 5.7-8).

A quinta e última edição da obra de Erasmo foi lançada em 1535 e é até hoje a base para a tradução do Novo Testamento para línguas modernas. O século XIX assistiu ao nascimento do “Texto Crítico”, este baseado no “Codex Sinaiticus” e no “Codex Ephraemi Syri Rescriptus” que vieram à luz como resultado dos trabalhos de um grupo de eruditos dentre os quais se destaca Tischendorff. Oito textos do Novo Testamento foram lançados entre 1841 e 1873, sendo a


28 última denominada “Editio Octava Critica Maior”. Por esta razão este texto ficou conhecido como “texto crítico”. As versões mais modernas do Novo Testamento em Português (ARA, NVI) foram preparadas a partir deste texto.

Divergências nos textos A apreciação de algumas passagens pode ajudar a entender as diferenças. Comecemos com Romanos 5.1. 1 δικαιωθεντες

ουν εκ πιστεως ειρηνην εχομεν προς τον θεον δια του κυριου ημων ιησου χριστου. Texto Crítico: 1 Δικαιωθέντες οὖν ἐκ πίστεως εἰρήνην ἔχωμεν πρὸς τὸν θεὸν διὰ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ,

Texto Recebido:

A diferença essencial dos dois textos está no tempo do verbo. No texto recebido o verbo “εχομεν” se encontra no presente do indicativo como se verifica pela presença da vogal breve omicron. No texto crítico o mesmo verbo aparece no presente do subjuntivo “ἔχωμεν” indicado pela presença da vogal longa omega. Essa variação pode ser explicada pelo fato que as cópias do Novo Testamento eram feita por ditado oral. Na leitura é fácil confundir sons breves com longos. Um bom exemplo da língua inglesa é a possibilidade de confundir “fit”, ajuste, com som breve com “feet”, pés, onde o som é longo. Traduzindo a partir do texto recebido teremos: “Justificados, pois, pela fé, temos paz com Deus por meio do senhor nosso Jesus Cristo”. A tradução a partir


29 do texto crítico, por outro lado, fornece: “Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus por meio do senhor nosso Jesus Cristo”. Outro texto que merece ser examinado é Romanos 8.1: NVI

Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus.

ARC

Portanto agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito.

ARA

Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.

TR

ουδεν αρα νυν κατακριμα τοις εν χριστω ιησου μη κατα σαρκα περιπατουσιν αλλα κατα πνευμα.

TC

Οὐδὲν ἄρα νῦν κατάκριμα τοῖς ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ.

Uma comparação muito fácil de ser vista mostra que as versões mais modernas, revisadas, segundo os melhores manuscritos gregos e hebraicos (ARA, NVI) seguem o texto crítico. A versão mais antiga (ARC) segue o texto recebido. A diferença aí pode ser explicada porque o texto recebido foi preparado a partir de manuscritos no qual a segunda parte do versículo foi adicionada (um erro intencional de cópia). Provavelmente tratava-se de uma anotação feita à margem por um copista que foi posteriormente incorporada ao texto. As versões mais modernas (ARA, NVI) seguem o texto do códex sinaítico que não recebeu


30 essa adição.


31

O Evangelho segundo Marcos Propósito O evangelho cuja autoria é atribuída à João Marcos pela tradição é o menor dos quatro fixados no Novo Testamento. Ele omite todos os fatos referentes à genealogia e à infância de Jesus Cristo. Ele também não é explícito a respeito do que ocorreu depois do calvário. Não faz qualquer referência a ditos importantes do mestre como é o caso do sermão do monte. Por outro lado, ele enfatiza os milagres, especialmente as curas e os exorcismos. Nas páginas seguintes pretendemos discutir tópicos tais como: Quem foi o autor deste livro? Onde e quando escreveu? Para quem escreveu? Quais foram as suas fontes de informação? Qual foi a sua motivação para a escrita? Ou seja, qual foi o seu objetivo teológico?

Introdução Acredita-se hoje que o evangelho cuja autoria é atribuída a Marcos é o mais antigo de todos os que foram escritos. Sua datação mais provável é a época da guerra judaico-romana (64-68 DC) quando Nero era o imperador em Roma. Sendo o primeiro, ele forneceu um modelo para os demais evangelhos o sucederam. O autor, que era judeu, viu em Jesus Cristo um profeta e compôs o evangelho no estilo dos livros proféticos do velho testamento. Em seu texto encontramos, portanto,


32 oráculos (ditos proféticos) e ensinamentos de Jesus; A eles foram acrescentados relatos de curas, milagres e exorcismos que comprovam a autenticidade da chamada divina do profeta e alguns dados de sua vida que permitem localizar, de maneira ainda que pouco precisa, histórica e geograficamente a sua atuação.

O problema da autoria Nenhum dos autores dos evangelhos se identifica no texto que escreveu. A autoria é presumida com base nos testemunhos dos pais da igreja e da dados que são recolhidos no texto. No primeiro caso temos as evidências externas e no segundo as evidências internas. Com relação a este evangelho, a autoria de Marcos é atestada por testemunhos antigos tais como o de Papias (Bispo de Hierápoles, ca. 140 DC) registradas por Eusébio de Cesareia na sua História Eclesiástica. Além dele, Irineu, bispo de Lyon e Clemente de Alexandria também declararam a autoria de Marcos. As evidências internas são pequenas e fracas. Alguns querem ver no relato do fato de um jovem ter acompanhado o cortejo que prendeu Jesus envolto em um lençol 25 uma referência autobiográfica porque dificilmente tal fato teria algum interesse para outra pessoa que não fosse o próprio autor. João Marcos,

25 Marcos 14.51-52


33 sobrinho (ou talvez primo) de Barnabé, que acompanhou seu tio e Paulo na primeira viagem missionária descrita nos Atos dos Apóstolos era jovem no tempo em que estes fatos aconteceram. Sua desistência em persistir na empreitada missionária causou uma dissenção entre os dois apóstolos e determinou sua separação na segunda viagem26. Mais tarde, Paulo pede que Marcos lhe seja levado por causa de sua utilidade 27 . No encerramento de sua primeira epístola, Pedro envia saudações da igreja que está em Babilônia (Roma) e de um Marcos, a quem chama de filho28 e que, presumivelmente é o próprio João Marcos, parente próximo de Barnabé. Por causa desta referência acredita-se que Marcos conviveu com Pedro alguns anos em Roma e que, sob a orientação dele, redigiu o evangelho. Portanto, a fonte dos fatos narrados neste evangelho teria sido o relato pessoal de Pedro que foi testemunha ocular dos mesmos.

Data, local de composição e primeiros

26 Atos 15. 36- 38: E depois de alguns dias, Paulo disse a Barnabé: Voltemos a visitar a nossos irmãos em cada cidade onde tenhamos anunciado a palavra do Senhor, para ver como estão. E Barnabé aconselhou para que tomassem consigo a João, chamado Marcos. Mas Paulo achou adequado que não tomassem consigo a aquele que desde a Panfília tinha se separado deles, e não tinha ido com eles para aquela obra. 27 Somente Lucas está comigo. Toma juntamente a Marcos, e o traz contigo; porque ele é muito útil para o trabalho deste serviço. 28 Saúda-vos a igreja eleita que está na Babilônia, e também Marcos, meu filho.


34

leitores. Acredita-se hoje que Marcos escreveu o evangelho quando esteve com Pedro em Roma. Como a tradição ensina que Pedro e Paulo forma martirizados em Roma na fase final da guerra judaico-romana, entre os anos 64 e 68 DC, acredita-se ainda que a data mais provável da composição deste livro tenha sido no período de 64-68 e que o local de composição tenha sido a própria cidade de Roma. Este evangelho foi escrito para um público não judeu. Algumas evidências internas permitem perceber este fato: 1. Marcos relata que quando Jesus se encontrava no templo, no recinto onde os judeus faziam suas ofertas, uma viúva pobre lançou ali tudo quanto tinha29. Ele informa que a viúva lançou ali duas pequenas moedas (lepton, lepta no plural). No texto original do versículo 42 lê-se: “και ελθουσα μια χηρα πτωχη εβαλεν λεπτα δυο ο εστιν κοδραντης”. Marcos informa que as duas pequenas moedas ( λεπτα δυο) valiam tanto quanto um quadrante (ο εστιν κοδραντης). Se ele achou necessário informar o valor das moedas é porque seus leitores não a conheciam e, portanto,

29 E vindo uma pobre viúva, lançou dois leptos, que são duas pequenas moedas. E Jesus, chamando a si seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta pobre viúva lançou mais que todos os que lançaram na arca do tesouro; (Marcos 12.42-43).


35 não eram judeus. 2. Em algumas ocasiões, Marcos se preocupa em esclarecer seus leitores a respeito de costumes que eram por demais conhecidos dos judeus. No primeiro capítulo, após descrever a maneira como Jesus havia curado um leproso, Marcos relata o que a lei exigia que se fizesse naquela situação: “E disse-lhe: Olha que não digas nada a ninguém; mas vai, mostra-te ao Sacerdote, e oferece por tua limpeza o que Moisés mandou, para que lhes haja testemunho”30. Acredita-se então que Marcos teria escrito para cristãos não judeus, isto é, gentios provavelmente que habitavam na cidade de Roma e que necessitavam de algumas informações para entenderem como Jesus Cristo exerceu seu ministério profético na Palestina.

Objetivo e mensagem central Podemos simplificar a questão admitindo que o objetivo de um evangelho é apresentar a vida e a obra de Jesus Cristo a seus leitores. Marcos fez isto muito bem. Entretanto, quando o personagem focalizado é alguém sobre cuja pessoa pairam interpretações divergentes, por vezes o autor precisa enfatizar uma delas. Entendese que, no curso de uma rebelião contra Roma, os judeus não cristãos pretendessem ter o apoio dos

30 Marcos 1.44.


36 cristãos na guerra. Que melhor argumento poderia ser usado que não o do convencimento de que os romanos foram os responsáveis pela morte de Jesus Cristo? A análise do Evangelho de Marcos permite concluir que o autor abraçou a tese contrária. Os responsáveis pela morte de Jesus na Cruz não foram os romanos e sim os próprios judeus. Marcos declara claramente que morte de Jesus Cristo foi premeditada e resultou de uma conspiração dos fariseus com os herodianos (judeus) 31 . Mais tarde marcos informa que os fariseus preparavam armadilhas para Jesus 32 . Informa que os mesmos fariseus frequentemente questionavam Jesus em assuntos da lei para apanhá-lo em algum erro e o condenarem33. Ao final da narrativa (capítulo 15), Marcos informa que Pilatos, o representante oficial de Roma, tentou usar de vários artifícios para livrar Jesus da morte e que só o entregou porque os judeus exigiram. Desta forma, a responsabilidade pela morte de Jesus Cristo não cabe aos romanos e sim aos líderes da comunidade judaica (fariseus e herodianos).

A estrutura do livro

31 E saindo os fariseus, tiveram logo conselho juntamente com os herodianos contra ele, sobre como o matariam. Marcos 3.6. 32 E saíram os Fariseus, e começaram a disputar com ele, pedindo-lhe sinal do céu, tentando-o. Marcos 8.11 33 Marcos 10.2, 12.13.


37 O Evangelho de Marcos é organizado em sete seções que descrevem a vida e o ministério de Jesus Cristo. 1. A primeira parte (1.1-13) começa com uma citação do profeta Isaías, o e mostra João Batista predizendo a vinda do Messias. Descreve também o batismo e a tentação de Jesus. 2. A segunda parte do livro descreve quando Jesus, na Galileia, para onde foi depois da prisão de João Batista, chama Simão Pedro e seu irmão André para segui-lo para o ministério junto com os outros dez discípulos (1:14-20). Jesus começa a fazer milagres durante esta seção do livro (1.21) conhecido como o seu Ministério Galileu até o versículo 6:29. 3. A seção três descreve a retirada da Galileia por Jesus e seus discípulos e o milagre de alimentar cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes (6.37-44). Este capítulo também descreve o milagre de Jesus caminhando sobre as águas (6.49), a confissão de Pedro que Jesus é o Messias (8.29), e da transfiguração (9:2-5). Na última parte desta seção, Jesus prediz sua morte e ressurreição (9.32). 4. A seção quatro, começando com o


38 versículo 9.33, abrange o período quando Jesus vai a Cafarnaum e prega aos seus discípulos sobre quem é o maior (Marcos 9:36) e outros assuntos. 5. Na seção 5, que começa no capítulo 10 Jesus volta para a Judeia . Lá, ele ensina sobre vários assuntos, faz o milagre de restituir a visão a um cego que mostra a fé (10.52) e novamente prediz a sua morte e ressurreição aos Seus discípulos (Marcos 10.33, 34). A seguir, descreve m a entrada triunfal em Jerusalém no lombo de um jumento (11.1-11.11). Em Jerusalém, Jesus ensina muitas lições ao responder perguntas, contando parábolas e dá avisos para as pessoas. 6. Na seção 6, frequentemente chamada de paixão, a Ceia do Senhor é contada (14.17-26). Depois Jesus é preso, julgado e crucificado. 7. Na última seção ressurreição.

Marcos

conta

a

Aspectos em destaque O término longo do evangelho Os últimos versículos do evangelho de Marcos (16. 9-20) são conhecidos como término longo. Ele discorre


39 sobre fatos que aconteceram nos quarenta dias entre a ressurreição e o arrebatamento de Jesus Cristo aos céus. No texto da ARC lemos: 9. E Jesus, tendo ressuscitado na manhã do primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, da qual tinha expulsado sete demônios34. 10. E partindo ela, anunciou-o àqueles que tinham estado com ele, os quais estavam tristes, e chorando. 11. E, ouvindo eles que vivia, e que tinha sido visto por ela, não o creram. 12. E depois, manifestou-se noutra forma a dois deles que iam de caminho para o campo. 13. E indo estes anunciaram-no aos outros, mas nem ainda estes creram. 14. Finalmente apareceu aos onze, estando eles assentados juntamente, e lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração por não haverem crido nos que o tinham visto já ressuscitado. 15. E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura. 16. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. 17. E estes sinais seguirão os que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas; 18. Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma

34

Lucas 8.2.


40 coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão. 19. Ora o Senhor, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-se à direita de Deus. 20. E eles, tendo partido, pregaram por todas as partes, cooperando com eles o Senhor, e confirmando a palavra com o s sinais que se seguiram.

Esse texto, muito prezado pelos grupos carismáticos, está hoje sob a suspeita da crítica bíblica uma vez que o estudo dos manuscritos mais antigos que chegaram ao nosso conhecimento permite concluir que temos aí uma adição posterior à conclusão do livro e que, portanto não fazia parte do original. Algumas características importantes podem ser vistas nele. Inicialmente, o versículo doze, declara que Jesus manifestou-se depois “noutra forma”. Essa é uma referência a uma crença gnóstica que ensina que o corpo de Jesus não era verdadeiro e sim, uma ilusão de ótica. Jesus podia, portanto, assumir quantas formas diferentes desejasse. Uma informação interessante vem de um manuscrito gnóstico que declara que foi o fato de Jesus poder mudar de forma para escapar à prisão que determinou a necessidade de Judas Iscariotes identificalo com um beijo 35 . Como o gnosticismo só se

35

SHANKS, H. Why did Judas identify Jesus with a kiss? Bible


41 popularizou a partir do século II essa inserção é seguramente posterior à composição do texto. Outro aspecto importante é a ênfase dada às manifestações carismáticas de poder: exorcismos, glossolalia, imunidade a agentes venenosos e curas. Baseado nesse textos grupos carismáticos tem desenvolvido práticas exóticas tais como a “dança com serpentes” feita por um grupo de cristãos americanos do norte de origem indígena36.

Os exorcismos de Jesus O livro de Marcos narra detalhadamente quatro milagres de exorcismo cujas autorias foram atribuídas a Jesus Cristo: 1. Um homem na sinagoga de Nazaré (1.23-27), 2. Um homem da terra dos gadarenos que habitava nas sepulturas (5.1- 20), 3. A filha de uma mulher siro-fenícia (7.25 -30). 4. Um garoto acometido de crises convulsivas (9.17-30).

Archaeology Review, Janury, February 2014. htttp//www.biblicalarchaeology.org./daily/peole-cultures-in-thebible/jesus-historica-jesus/why-did-judas-identify-jesus-with-a-kiss/ 36 http://noticias.r7.com/videos/exclusivo-pastor-evangelico-morreapos-ser-picado-por-serpente-em-culto-noseua/idmedia/4fd54a736b71322615522694.html


42 Faz referência ainda ao fato de que Jesus fez muitos outros exorcismos. Os demais sinóticos apenas copiam os exemplos de Marcos e o último dos evangelhos (João) não apresenta nenhum exorcismo. É interessante observar que todos os exorcismos foram coletados em um ambiente helenístico. Os judeus tinham duas explicações para os males que acometiam os homens. Alguns acreditavam que estes males eram consequência dos pecados do próprio homem acometido pelo mal (lei da semeadura e da colheita)37. Outros admitiam que o mal era consequência de pecados cometidos por seus antepassados (maldição hereditária). Os helênicos, por sua vez, criam que os males dependiam da interação maléfica de seres espirituais com a vida do homem. Isso os levava a explicar os problemas que acometiam a humanidade como sendo produtos de possessões por parte de espíritos imundos.

37 João 9.2


43

O evangelho segundo Mateus Propósito Da mesma forma que fizemos para o evangelho estudado anteriormente, pretendemos questionar aqui quem foi seu autor, quando escreveu, para quem escreveu e quais eram seus objetivos teológicos. Além disso, pretendemos também entender o tipo de relação que este livro guarda com o evangelho de Marcos.

Introdução A leitura do evangelho segundo Mateus impressiona qualquer leitor pela riqueza de referências ao Antigo Testamento, tanto à lei quanto aos profetas. Nele, mas que em qualquer outro livro do Novo Testamento, se percebe a ideia subjacente de que em Jesus Cristo se deu o pleno cumprimento das promessas messiânicas, feitas aos antigos. Ele é claramente dirigido a uma comunidade de cristãos de cultura e raízes judaicas. Salvo apenas pela epístola de Tiago, é o mais judaico de todos os livros do Novo Testamento.

O problema da autoria A autoria deste evangelho é tradicionalmente atribuída a Mateus, um dos doze apóstolos38. Uma vez que este

38 E, entrando, subiram ao cenáculo, onde permaneciam Pedro e João,


44 evangelho também não identifica seu autor, ficamos na dependência das citações dos pais da igreja (evidências externas) e das perícopes sugestivas do próprio texto (evidências internas) para chegar a alguma conclusão sobre sua autoria. Papias (138 DC) menciona Mateus como autor e informa que ele teria escrito originalmente em Aramaico. Seu livro teria sido posteriormente vertido para a língua Grega. As evidências internas apontam para um autor judeu convertido ao Cristianismo e que enfrentava dura oposição dos líderes da comunidade judaica. A referência ao escriba que se converte 39 tem sido interpretada como uma nota autobiográfica. O autor deste evangelho se mostra conhecedor profundo da lei, dos profetas e dos costumes judaicos. Na perícope contida no início do capítulo 12 o autor usa seus amplos conhecimentos da lei para discutir e justificar o comportamento de Jesus cristo: 1 Naquele tempo passou Jesus pelas searas num dia de sábado; e os seus discípulos, sentindo fome, começaram a colher espigas, e a comer. 2 os fariseus, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos estão fazendo o que não é lícito fazer no

Tiago e André, Felipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus; Tiago, filho de Alfeu, Simão o Zelote, e Judas, filho de Tiago. 39 E disse-lhes: Por isso, todo escriba que se fez discípulo do reino dos céus é semelhante a um homem, proprietário, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas. (Mateus 13.52)


45 sábado. 3 Ele, porém, lhes disse: Acaso não lestes o que fez Davi, quando teve fome, ele e seus companheiros? 4 Como entrou na casa de Deus, e como eles comeram os pães da proposição, que não lhe era lícito comer, nem a seus companheiros, mas somente aos sacerdotes? 5 ou não lestes na lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado, e ficam sem culpa?

Data, local de composição e primitivos leitores. Já vimos anteriormente que o evangelho de Mateus é posterior ao de Marcos uma vez que o seu autor utilizou aquele livro como roteiro para organizar a sua obra e como fonte de material para a reconstituição histórica do ministério de Jesus Cristo. Uma vez que o livro de Marcos foi escrito no período de 64 – 68 da era cristã, somos então levados a admitir data posterior para Mateus. Uma evidência interna auxilia nossa pesquisa. No evangelho de Mateus encontramos a narrativa da conhecida “Parábola das bodas” 40. No versículo sete desta parábola encontramos a declaração: Mas o rei encolerizou-se; e enviando os seus exércitos, destruiu aqueles homicidas, e incendiou a sua cidade.

40 Mt. 22.1-14


46 Esta menção ao incêndio da cidade, inserida em uma parábola tipicamente anti-judaica tem sido interpretada como referência à destruição de Jerusalém pelas tropas romanas comandadas por Tito, que ocorreu no ano 70. Assim sendo, poderemos admitir 70 DC Como a data mais antiga para a escrita do evangelho. A data mais recente pode ser fixada inicialmente a partir da citação de Papias (138 DC). Podemos então admitir que o evangelho de Mateus foi, mais provavelmente, escrito no período entre 70 e 80 da nossa era, cerca de 50 anos depois da ocorrência dos fatos que narra e que, neste período, as informações não contidas em Marcos ou em qualquer outra fonte escrita (Q) foram veiculadas pela tradição oral. Os leitores originais eram judeus cristãos que estavam enfrentando a primeira crise de identidade do cristianismo: como ser cristão sem deixar de ser judeu? Em outra passagem do livro saem da boca de Jesus Cristo as seguintes palavras: “Não se deita vinho novo em odres velhos; do contrário se rebentam, derrama-se o vinho, e os odres se perdem; mas deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam”41

Esta declaração foi feita porque os discípulos de Jesus Cristo o questionaram pedindo instruções (sem dúvida

41 Mt. 9.17


47 para responder aos fariseus) sobre a razão porque eles, diferentemente dos fariseus e dos demais judeus não observavam a lei do Jejum. Jesus Cristo então lhes responde que sua doutrina era algo totalmente novo que não podia ser contido pela “armadura legal” do Judaísmo. Uma nova realidade entrava em cena e necessitava de uma liturgia totalmente nova. A contextualização histórica atual nos informa que os cristãos da Comunidade de Mateus, que preservaram os fatos particulares narrados neste livro eram originalmente judeus que se converteram ao cristianismo e, a partir desta conversão, começaram a ser perseguidos pela liderança dos judeus (escribas e fariseus) por admitirem a divindade de Jesus Cristo. Essa admissão contrariava o princípio básico do Judaísmo declarado no “Shemá”. Por causa das perseguições, surgidas especialmente após a morte de Estevão, a comunidade se deslocou para o norte e foi se fixar nas proximidades de Antioquia da Síria. Neste local o líder da comunidade, um escriba convertido, redigiu o evangelho.

Objetivo e mensagem central A determinação do objetivo teológico desta obra permite a admissão de, pelo menos, 3 hipóteses que não são mutuamente excludentes. 1. Uma obra litúrgica, para uso nos cultos – O estudo da estrutura deste livro permite ver que


48 ele foi organizado na forma de cinco partes nas quais cada uma delas apresenta um discurso de Jesus precedido de uma narrativa introdutória. Este formato o torna equivalente aos cinco livros da lei de Moisés que eram lidos regularmente na sinagoga. Assim sendo, acredita-se que ele foi feito para ser lido nas sinagogas dos cristãos, já que Jesus era “O Profeta” semelhante a Moisés. Em apoio a esta interpretação está o fato de que uma parte significativa do material peculiar contido neste livro (sermão do monte, parábola do joio e do trigo, anúncio do nascimento de Jesus a José) era usado pelos cristãos em sua liturgia. 2. Uma obra apologética – Cabe a Moule42 o mérito de haver enfatizado este aspecto. Dele tomamos emprestadas as seguintes declarações: “ De modo reiterado, Mateus tem sido definido como o evangelho para os judeus. Com mais propriedade, todavia, poderia chamar-se o evangelho contra os judeus, pois grande parte dele se apresenta como munição para os cristãos quando fossem atacados por cristãos não judeus que diziam : Vosso mestre não era o messias (resposta: sim ele era, por

42 MOULE, C.F.D. As origens do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1979, 2711 pp. Cap. V – A igreja toma posição (3) Os evangelhos e o livro de Atos dos Apóstolos.


49 descendência de Davi, harmonizando-se com o modelo da Profecia; Mt 1.1 e seguintes); ou: Vosso Mestre não era um verdadeiro rabino pois ele solapou a Lei. (resposta: pelo contrário, ele estabeleceu um ideal moral mais rígido que o dos rabinos: Mt 5.17-2000; ou ainda: A pretensão dos nazarenos de serem o verdadeiro Israel é falsa (resposta: não porque é sobre a confissão de Jesus Cristo que Israel está edificado; Mt 10.16 e seguintes.” A combatividade intrínseca do Evangelho de Mateus é notória. A expressão “escribas e fariseus” aparece inúmeras vezes.43 A ênfase em afirmar que Jesus Cristo tinha autoridade para reformar a lei de Moisés também é uma forma de atacar os líderes judeus que se sentiam seguros seguindo um sistema legalista rígido.

3. Uma obra pastoral – Brown 44 , que situa a composição deste evangelho no período pósapostólico, chama a atenção para o seu aspecto pastoral. Pare ele, em contraste com a posição de Moule (já mencionada) e de outros autores, o objetivo principal do autor não foi combater o

43 O fato de o evangelho não mencionar os saduceus e sacerdotes também é uma evidência favorável à sua composição depois do ano 70 porque nesta época o sacerdócio deixou de existir. 44 BROWN, R.E. As Igrejas dos Apóstolos – cap. 8 – A herança da cristandade judia/pagã em Mateus: Autoridade que não anula Jesus.


50 adversário judeu e sim, tentar conciliar as posições dos cristãos com as dos judeus, mostrando que a autoridade de Jesus Cristo não é incompatível com autoridade da lei de Moisés. Para ele este evangelho é uma obra essencialmente eclesiológica (é o único evangelho no qual aparece a palavra igreja) e fornece elementos inclusive para a aplicação de disciplina nas comunidades do final do primeiro século.

Conteúdo e plano O evangelho de Mateus está estruturado na forma de cinco discursos de jesus que são direcionados pelo tema “Reino de Deus” (ou reino dos céus). O fato de a estrutura do evangelho estar calcada na própria estrutura da Lei de Moisés reforça a tese de que o autor deste livro esteja caracterizando Jesus como o “novo Moisés” que foi prometido no livro do Deuteronômio.45 Transcrevemos aqui as divisões como são mencionadas na obra de Hale.46 Introdução: Genealogia e nascimento e preparação para o ministério de Jesus (1.1 – 4.11) Primeiro discurso – O reino, sua natureza e

45 Deuteronômio 18.15. 46 HALE, Broadus David. Introdução ao Estudo do Novo Testamento. 3ª ed. RJ: JUERP, 1989.


51 características (4.12 – 7.29) Narrativa introdutória: (4.12-25) Discurso: O sermão do monte (5.1 – 7.29) Segundo discurso – Apresentação e propagação do reino (8.1 – 11.1) Narrativa introdutória (8.1 9.34) Discurso: A missão dos apóstolos (9.35 – 11.1) Terceiro discurso – A inauguração do reino (11.2 – 12.35) Narrativa introdutória (11.2 – 12.50) Discurso: As parábolas do reino (13.1 – 13.52) Quarto discurso – A relação de Jesus com o reino (13.53 – 19.1) Narrativa introdutória (13.53 – 17.21) Discurso: Normas internas do reino (17.22 – 19.1) Quinto discurso – A última apresentação formal do reino à nação judaica (19.2 – 26.1) Narrativa introdutória (19.2 – 23.29) Discurso: Escatologia (24.1 – 26.1) Conclusão – Paixão, morte e ressurreição (26.1 – 28.20).

Destaques e peculiaridades 1. Conforme estava escrito – Como já vimos em estudo anterior, Marcos inicia seu evangelho citando o profeta Isaías. Isso demonstra que os


52 cristãos interpretaram a vida e a obra de Jesus Cristo como cumprimento das profecias messiânicas do Antigo Testamento. Mateus levou este tipo de argumentação ao extremo. Neste evangelho a palavra “escrito” como referência ao texto do Antigo Testamento aparece nada menos de 9 vezes: 2.5, 4.4, 4.6, 4.7, 4.10, 11.10, 21.13, 26.24 e 26.31. 2. O uso da palavra igreja - O evangelho de Mateus é o único dos evangelhos canônicos em que se encontra a palavra igreja (16.18, 18.17). Este é mais um argumento favorável à composição deste evangelho no último terço do primeiro século (depois do ano 70) porque antes deste período o nome igreja ainda não havia se popularizado entre os judeus cristãos e seu uso era praticamente restrito aos cristãos helenistas. 3. A fixação no número dois - O evangelho de Mateus tem uma fixação facilmente perceptível no número dois. Vemos que Mateus duplica os personagens de vários dos episódios que ele extraiu do evangelho de Marcos.

Mateus

Episódio

Marcos

Lucas

João

4.18

Jesus chama dois pescadores no mar da Galileia (Simão e André). Jesus chama dois

1.16

.....

.....

1.18

.....

.....

4.21


53

8.28

9.27-31 18.19

20.30 21.1-2

outros pescadores (Tiago e João) Jesus cura dois endemoninhados em Gadara. Jesus cura dois cegos Quando dois concordam Deus aprova Jesus cura dois cegos em Jericó Jesus manda dois discípulos buscarem dois animais

5.1

8.26,27

.....

.....

.....

.....

.....

.....

.....

10.4652 11.1-11

18.3543 19.2840

..... 12.1219

Estes textos mostram que o número dois era de grande importância para o autor. Ele não apenas duplicou o número e personagens em algumas narrativas como também as agrupou em outros casos. Ainda inseriu material de cunho exclusivo onde se faz referência ao número 2. Segundo os preceitos da Lei (Deuteronômio) o testemunho de um só não tinha valor, mas o testemunho de dois era verdadeiro. Por esse motivo o autor tende a apresentar em duplas os personagens dos relatos que faz.


54

A obra lucana, parte I – o evangelho Propósito Continuando nossos estudos dos evangelhos canônicos encontramos aquele cuja autoria é atribuída a um homem chamado Lucas, o companheiro de viagens do apóstolo Paulo. Considerando que se pode identificar a mesma autoria para o livro de Atos dos Apóstolos, as duas questões serão estudadas em conjunto. Procuraremos ainda discutir quais foram as fontes de informação utilizadas pelo autor, quais foi a sua população alvo em termo de leitores e quais foram os seus objetivos teológicos.

Autoria – evidências externas Baseados em dados da tradição, aceitamos hoje a autoria lucana tanto para o terceiro evangelho quanto para o livro de atos dos apóstolos. Algumas referências nos são úteis neste sentido: 1. O documento denominado “fragmento muratoriano”, datado de 170 – 180 da era cristã atribui a Lucas, médico e companheiro de viagens do apóstolo Paulo, a autoria dos dois livros. 2. O “prólogo anti-marcionita”, datado de 160 – 180 da era cristã, identifica o autor do terceiro evangelho como sendo Lucas, siro, natural de


55 Antioquia e médico de profissão. 3. Irineu da Gália (185 era cristã) identificou o autor deste livro como sendo Lucas, seguidor do apóstolo Paulo e redator do evangelho ensinado por ele. O conjunto destas declarações nos permite então traçar o perfil do autor destes livros como sendo um estrangeiro (siro – o único autor não judeu do Novo Testamento), médico de profissão e companheiro de viagens missionárias do apóstolo Paulo. Baseado no fato de que em Colossenses 4.14 Lucas recebe o título de “O médico amado” podemos fechar um perfil que vai orientar nossas pesquisas pelas evidências internas.

Autoria – evidências internas 1. O primeiro argumento a ser discutido é a declaração de que o autor destes livros era médico. Embora não se possa chegar a uma conclusão definitiva encontramos alguns dados que favorecem esta posição. Um deles é a narrativa da cura da sogra de Pedro por Jesus. Este episódio é narrado nos três evangelhos sinóticos: (Mateus 8.14-15, Marcos 1.30-31 e Lucas 4.38-39). Enquanto Marcos e Mateus se restringem a declarar que a sogra de Pedro estava com febre, Lucas declara que ela foi acometida por uma febre muito alta. Esta declaração é interpretada como tendo sido feita


56 por alguém que estava acostumado a ver pessoas com febre e a avaliar sua intensidade, portanto um médico. 2. Quanto ao fato de Lucas ser estrangeiro é possível encontrar no texto de seu evangelho várias imprecisões a respeito da geografia da Palestina que permitem concluir que o autor nunca esteve naquele local e que não conhecia satisfatoriamente sua geografia. Na perícope contida nos versículos 11 a 19 do capítulo 17 encontramos a descrição da cura de 10 leprosos, efetuada por Jesus nos seguintes termos: 11 E aconteceu que, indo ele a Jerusalém, passava pela divisa entre a Samaria e a Galileia. 12 Ao entrar em certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos, os quais pararam de longe, 13 e levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem compaixão de nós! 14 Ele, logo que os viu, disse-lhes: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes. E aconteceu que, enquanto iam, ficaram limpos. 15 Um deles, vendo que fora curado, voltou glorificando a Deus em alta voz; 16 e prostrou-se com o rosto em terra aos pés de Jesus, dando-lhe graças; e este era samaritano. 17 Perguntou, pois, Jesus: Não foram limpos os dez? E os nove, onde estão? 18 Não se achou quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro? 19 E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.

Encontramos no texto as seguintes declarações: a. Jesus Cristo ia para Jerusalém. Se ele atravessava a divisa entre Samária e


57 Galiléia então ele vinha do norte para o sul e teria sido mais apropriado mencionar as localidades no sentido inverso: passava pela divisa entre a Galiléia e a Samária. b. A descrição do milagre menciona que Jesus determinou aos leprosos que cumprissem o mandamento legal de se mostrarem aos sacerdotes porque só estes poderiam confirmar sua cura e declara-los legalmente puros. A rapidez com que um deles voltou mostra que eles não poderiam ter ido muito longe. É difícil admitir este fato se eles estavam mesmo em Samária. c. O samaritano que voltou é chamado de estrangeiro. Coisa inadmissível se ele estava em sua terra natal, como o texto sugere. A única maneira de conciliar esta descrição com a geografia é admitir que o autor, por não conhecer a Palestina, imaginava que a Samaria ficava ao norte do país e que Judeia e Galileia se constituíam em um território contínuo ao sul. Essa interpretação é coerente com a descrição do movimento missionário apresentado nos atos dos apóstolos. 3. O fato de o autor do livro ter sido companheiro


58 de viagens do apóstolo Paulo é inferido a parir da narrativa dos atos dos apóstolos. A partir do versículo 6 do capítulo 16, encontramos seguinte narrativa: “ Atravessaram a região frígio-gálata, tendo sido impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia; e tendo chegado diante da Mísia, tentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não lho permitiu. Então, passando pela Mísia, desceram a Trôade. De noite apareceu a Paulo esta visão: estava ali em pé um homem da Macedônia, que lhe rogava: Passa à Macedônia e ajuda-nos. E quando ele teve esta visão, procurávamos logo partir para a Macedônia, concluindo que Deus nos havia chamado para lhes anunciarmos o evangelho. Navegando, pois, de Trôade, fomos em direitura a Samotrácia, e no dia seguinte a Neápolis;” Ocorre aqui uma mudança claramente perceptível. Antes da visão de Paulo, em Trôade, os verbos estão na terceira pessoa do plural sugerindo que o autor não se inclui nas ações descritas por eles. A partir da visão as ações passam a ser descritas por verbos colocados na primeira pessoa do plural sugerindo que o autor se incorporou à caravana missionária naquela cidade. Muito embora nenhum dos argumentos listados seja definitivo, a soma deles é bastante sugestiva.


59

Fontes e metodologia de trabalho do autor O autor do terceiro evangelho foi o único entre os escritores bíblicos a deixar sua metodologia de trabalho registrada com boa precisão. No prólogo do evangelho ele declara: Visto que muitos tem empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, segundo nô-lo transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra, também a mim, depois de haver investigado tudo desde o princípio, pareceu-me bem, ó excelente Teófilo, escrever-te uma narrativa em ordem, para que conheças plenamente a verdade das coisas em que fostes instruídos. Lc. 1.1-4. A leitura deste texto permite concluir inicialmente que o autor não foi testemunha ocular dos fatos narrados e que, portanto, precisou recuperá-los a partir do testemunho de terceiros tomando, evidentemente alguns cuidados para obter um resultado satisfatório. Isto permite identificá-lo como um historiador, no sentido moderno deste termo. Os cuidados foram os seguintes: 1. Seleção das testemunhas – O autor declara que só aceitou informações de testemunhas oculares. Além disso deveriam ser pessoas que tivessem


60 autoridade reconhecida pelas igrejas para testemunhar. Deveriam ser “ministros da palavra”, pessoas sobre cuja veracidade não pairasse qualquer sombra de dúvida. Estes dois cuidados permitiram ao autor minimizar o risco de inserir no seu relatório de pesquisa relatos de pessoas que, por falta de conhecimento ou por mal intenção distorcessem a verdade a respeito dos fados investigados. 2. Consultas bibliográficas – O autor informa ter conhecimento de que muitos outros, antes dele já haviam se dedicado ao mesmo tipo de trabalho. Seguramente ele leu os documentos que chegaram às suas mãos e selecionou aqueles que lhe pareciam mais fiéis. A crítica bíblica moderna é unânime em aceitar que Lucas teve acesso ao manuscrito do evangelho de Marcos e à fonte de ditos chamada Q. Do primeiro tirou o roteiro para sua obra. 3. Crítica e ordenação dos dados – O autor declara que não apenas investigou tudo dede o princípio, mas também que objetivou uma narração coordenada dos fatos. Estas duas declarações permitem assumir que ele criticou as informações recebidas e que provavelmente rejeitou muita coisa que não lhe pareceu coerente. Permite ainda entender que o autor teve um plano para organizar o material coletado em uma narrativa organizada. Por comparação


61 se vê com facilidade que esse plano foi extraído do evangelho de Marcos. 4. Um objetivo definido – O autor usou o verbo conhecer () para descrever o tipo de resultado que pretendia atingir. Seu objetivo imediato era instruir o leitor para que o mesmo adquirisse pleno conhecimento da verdade. Um objetivo coerente com a cultura helenística do autor.

Data e local de composição e primeiros leitores O limite mais antigo para a composição deste evangelho é obtido da mesma forma que procedemos para o evangelho de Mateus. Admitida a precedência de Marcos podemos inferir que o evangelho de Lucas não foi escrito antes de 64 DC. O limite mais recente nos é fornecido pela data da escrita de Atos dos Apóstolos que lhes é posterior. Como livro de Atos descreve minunciosamente a carreira missionária de Paulo, mas omite sua morte é hábito admitir-se que ele teria sido escrito antes deste fato o qual é datado por volta de 68 DC. Assim sendo, o terceiro evangelho teria sido escrito durante o período da guerra judaico-romana (64 a 68).

Objetivo e mensagem central Lucas declara no prólogo de seu evangelho que o seu objetivo é instruir um homem que chama de Teófilo


62 (amigo de Deus) na plenitude dos fatos que já eram de seu conhecimento. Esse nome de origem helênica nos leva a admitir que o destinatário seria um judeu helenista ou então um gentio convertido ao Cristianismo. De qualquer forma, o autor se comporta como um professor que pesquisa os dados de seu interesse a fim de incluí-los em uma monografia magistral.

Divisões 1. Prefácio (1.1-4) 2. Narrativas do nascimento e da infância de Jesus (1.5 – 2.52)

a. Os Nascimentos de João e de Jesus (1.5 – 2.20) b. Os princípios da infância de Jesus (2.21-52) 3. Introdução ao ministério de Jesus (3.1 -4.13) a. O ministério de João (3.1-20) b. Preparação para o ministério de Jesus (3.21 – 4.13) 4. O ministério na Galileia e nas circunvizinhanças (4.14 – 9.50) a. Narrativa resumida da obra inicial de Jesus (4.14-15) b. Pregação em Nazaré (4.16-30) c. Jesus e as Multidões (4.31 – 5.16) d. Conflitos com os líderes religiosos (5.17 – 6.11) e. Escolha dos doze (6.12-16) f. Instruções aos discípulos (6.17-49) g. Natureza e missão de Jesus (7.1-50)


63 h. Viagem através da Galileia (8.1-56) i. Revelações aos doze (9.1-50) 5. Caminhada para Jerusalém – Parte I (9.51 – 13.30) a. Rejeição pelos Samaritanos (9.51-56) b. Testes do discipulado (9.57-62) c. A missão dos setenta (10.1-24) d. Ensinos acerca dos relacionamentos (10.2542) e. Instruções sobre a oração (11.1-13) f. Sinais e rejeição (11.14-54) g. O discipulado responsável (12.35 – 13.30) 6. Caminhada para Jerusalém – Parte II (13.31 – 19.27) a. Predição da Paixão (13.31-35) b. Instruções numa refeição (14.1-24) c. Os termos do discipulado (14.25-35) d. A alegria de Deus ao receber pecadores (15.1 -32) e. Ensinamentos adicionais sobre a riqueza (16.1-31) f. O caráter do discipulado (17.1-10) g. Purificação dos dez leprosos (17.11-19) h. Ensino acerca do Reino (17.20-37) i. Ensino acerca da Oração (18.1-14) j. Entrada no Reino (18.15-39) k. Aproximando-se de Jerusalém (18.31 – 19.27) 7. O ministério em Jerusalém (19.28 – 22.53) a. Aproximação e entrada do Messias (19.28-48) b. Exame da autoridade de Jesus (20.1 – 21.4) c. O discurso escatológico (21.5-38) d. Resumo dos últimos dias de ministério (21.3738)


64 e. Preparação para a páscoa (22.1-53) 8. A paixão (22.54 – 25.36) a. O julgamento de Jesus (22.54 – 23.25) b. A crucificação (23.26-28) 9. A ressurreição de Jesus (24.1-53)


65

A obra lucana II – Atos dos Apóstolos Propósito Uma vez que a autoria deste livro já foi discutida por ocasião do estudo do terceiro evangelho, procuraremos agora identificar as fontes do material usado em sua composição, data e local da escrita, ambiente histórico e geográfico que lhe serviu de cenário e o objetivo teológico do autor.

Introdução Como já foi amplamente discutido no capítulo anterior, aceita-se, com base no estudo comparativo dos prólogos, que este livro e o terceiro evangelho tiveram o mesmo autor. O nome mais credenciado pela tradição para a autoria de ambos é o de Lucas, aquele que o apóstolo Paulo chama de “o médico amado”.

Fontes e metodologia de trabalho do autor Hale 47 cita nada menos de três fontes que foram utilizadas na composição de Lucas/Atos: 1. Material coletado pelo próprio autor na qualidade de testemunha

47 HALE, B. D. Introdução ao estudo no Novo Testamento, Rio de Janeiro, JUERP, 1983. 271 pp. Capítulo 8 – Atos dos apóstolos.


66 ocular que foi de muitos dos fatos narrados no segundo livro. 2. Fontes escritas que ele teve oportunidade de examinar, no caso do primeiro livro (Evangelho de Marcos e fonte Q). 3. Informações recebidas do Apóstolo Paulo e de seus colaboradores. O conjunto Lucas/Atos é, praticamente, o único da Bíblia em que o autor descreve detalhadamente sua metodologia de trabalho. Essa declaração se encontra nos prólogos. O prólogo do terceiro evangelho já foi estudado. O prólogo de Atos, por sua vez, declara: “Fiz o primeiro tratado, ó excelentíssimo Teófilo, acerca de tudo quanto Jesus começou a fazer e a ensinar até o dia em que foi levado para cima, depois de haver dado mandamento pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera; aos quais também, depois de haver padecido, apresentou-se vivo, com muitas provas infalíveis, aparecendo-lhes por espaço de quarente dias, e lhes falando das coisas concernentes ao reino de Deus”.48

A apreciação do prólogo do terceiro evangelho nos permitiu reconstituir detalhadamente a metodologia usada pelo autor. Não temos nenhum motivo para crer que o autor tenha alterado esta metodologia quando da escrita do segundo livro. Dessa forma, salvo pelo fato de ele ter sido testemunha ocular de alguns doas eventos narrados, a metodologia permanece

48 At. 1.1-4.


67 essencialmente a mesma.

Data e local de composição A data mais provável de composição deste livro pode ser obtida a partir da consideração de dois argumentos: 1o – A data mais antiga que podemos admitir é obrigatoriamente posterior à data de composição do terceiro evangelho a qual, por sua vez é posterior à data de composição do evangelho de Marcos. 20 – A data mais recente é obtida a partir de uma evidência negativa (o argumento de ausência deve ser sempre tomado com muitas restrições). O livro de Atos não faz referência a mortes do apóstolo Paulo. Como o apóstolo é o principal protagonista em todo o roteiro da história podemos admitir que ele ainda estaria vivo quando a escrita do livro foi concluída porque o autor não teria motivo para omitir um fato desta magnitude. Considerando que o apóstolo foi martirizado no ano 68 ficamos com o intervalo 64 – 68 como o tempo mais provável de composição desta obra.

Propósito do autor e plano da obra Muito embora o autor de Atos declare que o seu objetivo era instruir um convertido chamado Teófilo a respeito de verdades das quais ele já era conhecedor, a determinação do objetivo teológicos do autor tem levado à formulação de várias hipóteses por parte dos


68 estudiosos desta matéria. Schreiner 49 nos apresenta Lucas como um teólogo da salvação guiada por Deus e, a partir da análise da estrutura dos dois livros, formula a hipótese de uma “Teologia do caminho” como princípio organizador do pensamento do autor. Segundo este autor Lucas enquadra tanto o ministério de Jesus Cristo quanto o movimento expansionista da igreja das origens no plano geral da História da Salvação, tal como é delineado no velho Testamento. Trata-se de um relato dos atos salvadores de Deus a favor do povo que ele escolheu. O princípio organizador do pensamento do autor na segunda parta da obra lucana pode ser encontrado no versículo 8 do capítulo 1 de Atos: Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e ser-me-eis testemunha não só em Jerusalém, mas em toda a Judéia, Samaria e até os confins da terra.

Neste versículo podemos ver alguns princípios que direcionaram o pensamento do autor: A perceptível presença do Espírito Santo que assume o comando de todo o processo chegando mesmo a ofuscar a pessoa de Jesus Cristo. A ordem para testemunhar vinha de Jesus, mas a habilitação para cumprir a ordem vinha do Espírito.

49 SCHREINER, J. & DAUTZENBERG,G. Formas e e estruturas do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1977. Cap 12. Lucas, teólogo da salvação guiada por Deus.


69 A vocação expansionista do Cristianismo cujos horizontes atingiam os confins da terra. A visão do autor é francamente proselitista e missionária. Alguns aqui falam de um movimento centrífugo. Partindo de Jerusalém (origem e centro de tudo) o evangelho prossegue pela Judéia (vizinhança mais próxima), Samaria (vizinhança mais distante) e só se detém quando os confins são atingidos. O livro de Atos dos apóstolos está estruturado em seções que descrevem o movimento expansionista do Cristianismo. A primeira relata a evangelização em Jerusalém e na Judéia e tem no apóstolo Pedro, seu personagem principal. A segunda mostra a evangelização em Samaria quando sobressai a figura do judeu helenista convertido Filipe. A última mostra a progressão do evangelho pelas províncias romanas e tem como personagem principal outro judeu helenista convertido: Paulo. Cada uma das seções é delineada por uma espécie de estribilho no qual o autor resume o progresso feito na seção anterior. A forma mais típica apresente a expressão: “E a Palavra de Deus crescia e se multiplicava...”. Podemos encontra-la cinco vezes no livro de Atos. Atos 6.7 – Após a crise que envolveu a igreja em Jerusalém. Atos 9.31 – Após a evangelização dos samaritanos. Atos 12.24 – Após o batismo dos gentios em Cesaréia.


70 Atos 16.5 – Após o concílio em Jerusalém. Atos 19.20 – Após o batismo dos discípulos de João, em Éfeso.

Estudo do conteúdo Prólogo (1.1-5) Faz a ligação deste livro com o primeiro tratado permitindo identificar o autor dos dois livros como sendo a mesma pessoa. Permite identificar também sua população alvo e seus objetivos teológicos.

Expansão do evangelho em Jerusalém e na Judéia (1.6 – 6.7) Inicia com a ascensão de Jesus Cristo, seguida da descida do Espírito Santo no dia de pentecostes, em Jerusalém. Relata, a seguir, o crescimento vertiginoso da comunidade cristã na Judeia, a institucionalização da igreja local e a reação dos líderes judeus a este crescimento. Encontramos ainda o relato do aparecimento do primeiro ministério estruturado (apóstolos e “diáconos”, como reação à problemática surgida na igreja.)

Expansão do evangelho em Samaria (6.8 – 9.31) Após o julgamento e martírio de Estevão, ocorreu uma perseguição que resultou na dispersão dos discípulos. Uma parte deles (judeus helenistas convertidos) foi para


71 a Samaria e promoveu uma vitoriosa campanha evangelística naquela região. Ocorre então o “Pentecoste samaritano” que foi comprovado pessoalmente pelos apóstolos sediados em Jerusalém. Alinha histórica é quebrada para apresentar duas conversões miraculosas: um africano, alto funcionário do reino da Etiópia, cujo nome não é declarado e Saul, judeu helenista da diáspora, perseguidor da cristandade, que mais tarde adota o pseudônimo de Paulo.

Início da evangelização dos gentios (9.32 – 12.24) Pedro visitava cristãos residentes nas cidades de Lida e Jope. Na segunda hospeda-se em casa de um curtidor chamado Simão. Nesta localidade tem uma visão desconcertante: um lençol desce do céu cheio com animais impuros. Simultaneamente uma voz ordena-lhe que os mate e coma. Ainda aturdido com a visão recebe a visita de emissários de Cornélio, centurião romano que morava em Cesareia marítima. Convidamno parq que vá a sua casa. Contrariando a tradição dos judeus, Pedro acompanha os emissários de Cornélio até sua casa e prega a mensagem do evangelho. É interrompido pela manifestação do Espírito Santo que vêm sobre os ouvintes em manifestação semelhante àquela que ocorreu em Jerusalém no dia de pentecostes.


72 Início da obra missionária no continente asiático (13.1 - 16.5) Seguindo o movimento centrífugo, o foco da narrativa se desloca para o norte. De Jerusalém para Antioquia da Síria. A igreja aqui tem ministério organizado segundo padrões helenistas: Predicadores (profetas) e Doutores (mestres filósofos). Neste ambiente o Espírito Santo se apresenta e convoca dois dos líderes da igreja para a obre missionária: Paulo e Silas. A primeira comitiva parte para o norte passando pela Cilícia, Panfília, Psídia e Licaônia. A história termina com o relato do concílio de Jerusalém que examinou o problema relativo à circuncisão dos gentios (cap. 15). Neste conflito quebrou-se a primeira barreira para a expansão do evangelho, a barreira racial, uma vez que ficou comprovado que o cristão não precisava ser obrigatoriamente um prosélito do Judaísmo.

Expansão inicial na Europa (16.6-19.20) Após o encerramento da segunda viagem missionária os pregadores, liderados por Paulo, são orientados pelo Espírito Santo a cruzar o mar e desembarcar no território europeu (Macedônia). Essa foi a segunda grande barreira que brada na expansão missionária, a barreira geográfica. Após haverem passado por Filipos, onde os apóstolos foram alvo de um livramento miraculoso que resultou na conversão do carcereiro e de sua família, os missionários tomam o rumo do sul, passando por Tessalônica e Beréia, e entram na


73 província da Acaia (Grécia) atingido as cidades de Atenas e Corinto. Da Acaia retornam por mar à Antioquia da Síria onde, depois de um pequeno intervalo, partem para a terceira viagem missionária que vai leválos à Éfeso, capital da província da Ásia. Nesta cidade ocorre a agregação ao Cristianismo do último contingente. Os discípulos de João Batista. Ocorre um novo Pentecostes.

Expansão final na Europa (19.21 – 28.31) Após o encerramento da segunda viagem Paulo vai a Jerusalém onde é preso. Levado à julgamento, inicialmente em Jerusalém, depois em Cesareia, apela para César usando seu direito e cidadania romana. É então levado para Roma onde fica detido aguardando o julgamento final.

Grandes temas do livro de Atos dos apóstolos 1. A heterogeneidade da comunidade cristã primitiva – Saltam à vista do leitor as diferenças existentes entre os diversos grupos formadores da comunidade cristã primitiva: Judeus hebraístas da Palestina, judeus helenistas da diáspora, samaritanos, ex-discípulos de João Batista e, finalmente, gentios. Os conflitos no meio destes grupos eram inevitáveis, a começar pela igreja em Jerusalém, dividida por causa do


74 racismo – judeus hebraístas contra judeus helenistas. O conflito entre judeus hebraístas e gentios se expressa no surgimento do movimento judaizante que exigia que os gentios convertidos se tornassem prosélitos do judaísmo pela submissão ao ritual da circuncisão e pela obediência à Lei de Moisés. 2. Fixação contra progresso – Jesus Cristo ordenou a seus apóstolos que permanecessem em Jerusalém até que recebessem o poder do céu trazido pelo Espírito Santo. Os discípulos se apegaram à tradição e desobedeceram á ordem do Mestre. Formaram uma comunidade local baseada no compartilhamento de dados com a pretensão de permanecer até a parusia. Os problemas não demoraram a aparecer: Conflitos étnicos, tentativas de fraude no sistema etc. 3. A doutrina do Espírito Santo - Juntamente com o terceiro evangelho, o livro de Atos fornece as bases para o estudo da Paracletologia. Jesus Cristo sempre agiu sob o controle do Espírito Santo, nunca fez nada de sua própria iniciativa. Os apóstolos e igrejas mencionados no livro de Atos também decidiam e agiam sob o controle do Espírito. Além disso, no livro de Atos encontramos quatro narrativas de manifestações públicas do Espírito Santo. A primeira se deu em Jerusalém, no dia de pentecostes (2.1-11) e envolveu a capacitação para entender línguas


75 desconhecidas (glossolalia). A segunda ocorreu em Samaria, após a conversão de uma aldeia de samaritanos (8.5-25). A terceira ocorreu em Cesareia, na casa de Cornélio (10.1-11.18). Neste caso chama a atenção o fato de o batismo no espírito haver precedido o batismo nas águas. A quarta e última ocorre em Éfeso (19.1-7). Aqui a população alvo está constituída de discípulos de João Batista que ainda não tinham ouvido falar do Espírito Santo. 4. A doutrina de missões – A metodologia do trabalho missionário está claramente exposta no livro de Atos. A observação de alguns pontos pode nos ajudar a entender a razão do sucesso dos pregadores primitivos. 1 – Concentravam sua atuação em grupamentos urbanos (cidade), 2 – Iniciavam a pregação com pessoas já atingidas pela cultura bíblica (judeus helenistas da diáspora), 3 – Instalavam-se em residências de simpatizantes quando as portas lhes eram abertas. A igreja doméstica foi de grande valor no trabalho dos apóstolos. 4 – Sempre que possível criavam igrejas urbanas. 5 – Voltavam posteriormente para confirmar e reforçar os cristãos na fé.


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