Os Pescadores

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ilustrações: Mafalda Mota, 8079 texto: Raul Brandão (excertos)

ilustração faculdade de belas-artes universidade de lisboa 2015/16


Os Pescadores de Raul BrandĂŁo



Foz é para mim a Corguinha, o Castelo e o Monte com o rio da Vila a atravessá- lo, e a Rua da Cerca até ao Farol. O que está para lá não existe... Só me interessa a vila de pescadores e marítimos que cresceu naturalmente como um ser, adaptando-se pouco e pouco à vida do mar largo. E ainda essa Foz se reduz cada vez mais na minha alma a um cantinho – a meia dúzia de casas e de tipos que conheci em pequeno, e que retenho na memória com raízes cada vez mais fundas na saudade, e mais vivas à medida que me entranho na morte. O mundo que não existe é o meu verdadeiro mundo.


As redes têm estes nomes: peças as da sardinha, volantes as da pescada. Chama-se galricho a uma espécie de nassa com que se apanha a faneca; rastão ao camaroeiro patelo à rede que colhe o caranguejo ou mexoalho; e rasco à da lagosta. As redes da sardinha são do mestre, e as da pescada dos pescadores. Os quinhoes dividem-se conforme o peixe.



Pescam nas nossas águas os galeões espanhóis, os navios ingleses e franceses; e as criminosas traineiras, depois de exterminarem o peixe na costa da Galiza e na baía de Vigo, onde ele entrava em inesgotáveis cardumes, espalhando-se pelos braços da ria, matam-no a dinamite e a carboneto, de Peniche até Leixões e mais para o norte ainda.




Do fundo do mar continua a sair a sardinha, da onda cobalto a prata reluzente. Os homens gritam. É a gente morena de Peniche ou do Ferrel que acumula, e que, terminada a vindima, e recolhido o mosto nas cubas, vai, com as mãos ainda tintas do cacho, apanhar a sardinha, que salta ao lume de água, a sarda e a moreia, ou com o bicheiro fisgar os polvos, que se escondem nas pedras. – Ala! ala!


Uns homens têm na mão direita a ganchorra curta e afiada, presa ao pulso pela alça, e outros, armados de um bicheiro mais comprido, só esperam que o atum comece a saltar para o chegarem aos barcos. Agita-se a água... Vêem-se os grandes dorsos reluzentes e os rabos que chapinham. Noventa negralhões meios nus, de calças arregaçadas e camisolas azuis, estão prontos a matar.




Os homens foram por esse mundo rachar o lajedo e afeiçoar a pedra. À direita, encostado ao forte de Lippe, que forma o outro lado da bacia, com o portinho e o varadouro, ficam as casas dos pescadores. Mais um momento... A custo me arranco deste sonho verde, primeiro escuro nos montes, depois pacífico no vale, e que tão bem se liga com a humildade da terra e o azul do mar infinito... Falem mais baixo; em cada paisagem há sempre um deus escondido...


Sobem ao alto do areal, tornam ao fundo, descem ao mar, entram no mar... Um rapaz agita o barrete, e outro, ao longe, responde ao sinal regulando o andamento dos bois: – Arriba! Arriba!



Vejo-os nos seus sítios, ouço-os falar, aos vivos e aos mortos, no minuto em que se fixaram na minha memória como uma série de instantâneos, uns apagados, outros tão nítidos que lhes distingo a cor do pêlo. Acolá à porta do armazém da Pensão está sentado um velho a desfazer cabos para estopa com os dedos grossos e hesitantes. O Teca, que correu todos os mares da África e do Brasil, conserta a rede no varal. Ninguém como ele sabe onde dá peixe. Cheira-lhe. Na revessa do cabedelo apanha o pimpão e a faneca e com a chincha o peixe miúdo nos charcos da vazante.




Quase toco de um lado no velho castelo roído de salitre e do outro no bico do cabedelo, onde as gaivotas apanham o último sol, com os pés metidos na água. Vem a vaga e alastra-se, vai a vaga e a espuma referve na areia molhada, de um oca mais escuro.



Em certos dias iça-se o camaroeiro e a este sinal, esperado no interior das terras, começam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar, as pesadas juntas de bois levadas à soga pelas moças. O lavrador associa-se ao homem do mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a alar a grande rede que se usa para estas bandas e que as bateiras lançam à água. É um espectáculo extraordinário ...


A água diante de mim ondula como um véu diáfano, só frescura e transparência, só poeira verde que desmaia toda arrepiada... Fios delicados de algas bóiam ao sabor da onda e ao meu lado corre um veio mais escuro e profundo, quase negro, onde um bando de toninhas persegue, logo de manhã, a manta da sardinha. Os grandes dorsos azulados irrompem das águas, afundam-se e tornam a aparecer e a reluzir ao longe, todos molhados, num resto de névoa a dissolver-se...




As mulheres desenvolvem neste ambiente uma alma serena e respondem ao sorriso da luz com um sorriso de ternura. São como certas flores, criadas num momento feliz, que atingem a perfeição. O que aqui fica bem é o vestido escuro e a limpidez de sentimentos. Esta luz inteligente sabe muito bem que a arte é o encanto da vida e a mulher a suprema criação da arte.


Manhã de não sei quando, manhã que não existe e vou desenterrá-la tal qual, azul e névoa, névoa e mar... Alarido nos tanques: chegam os batéis da sardinha.




Só tendo a morte quase certa é que o poveiro não vai ao mar. Aqui o homem é acima de tudo pescador. Depende do mar e vive do mar: cria-se no barco e entranha-se de salitre. Desde que se mete à terra, o poveiro modifica-se: perde em agilidade e equilíbrio, hesita, balouça-se, não sabe onde há-de pôr os pés.



Quando os rolos de espuma rebramiam no Cabedelo, apertavam-se os corações no peito, e à luz da candeia rezavam horas esquecidas «pelos que andam sobre as águas do mar».


Solta-se a escota e a verga cai sobre os bancos. Os homens remam. Estamos à vista da caça, que no Verão se deixa ficar no mar de um dia para o outro. Prepara-se a polé e um grupo à proa tira as bóias e depois os cadoiros. – A ver a fortuna que Deus nos dá.






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