Erga Omnes _4ª edição

Page 1

ISNN: 1984 - 5618 | Ano 1 | nº 4 | Agosto 2009 | Bahia

Mozart Valadares, presidente da AMB, aborda sobre a gestão democrática do Poder Judiciário.

Homenagem ao Dia do Magistrado: porque você faz a diferença. Ubiratã Pizzani fala sobre a luta da AMAB na conquista de melhorias.

1


Escola de Magistrados da Bahia Ano I | Nº 4 | Agosto 2009 | Salvador | BA www.emab.com.br/ergaomnes

Escola dos Magistrados (EMAB)

Diretor: Rosalvo Augusto Vieira da Silva Coordenadores:

Ícaro Almeida Matos

Márcio Reinaldo Miranda Braga Graça Marina Vieira da Silva

Ficha Técnica

Associação dos Magistrados da Bahia Gestão – 2008/2009

Textos: Ana Rosa Passos (DRT 3197) e Jan Penalva Revisão de Textos: Rita Canário

Presidente: Ubiratã Marinello Pizzani Revista Erga Omnes

Diretora Executiva: Graça Marina Vieira da Silva Articulistas convidados:

Abelardo Paulo da Matta Neto Antônio Pessoa Cardoso

Baltazar Miranda Saraiva Eduardo Caricchio

Elke Figueirêdo Schuster Érico Araújo Bastos Ivone Bessa Ramos

João Paulo Guimarães Neto Laura Scalldaferri Pessoa

Lizianni de Cerqueira Monteiro

Jornalista Responsável: Vânia Lima (DRT 2170) Fotos: Juscelino Pacheco, Mateus Pereira

acervo do Tribunal de Justiça e acervo da AMAB

Direção de Arte: Aline Cerqueira, Juliana Lima e Laís Vitória-Regis

Capa: Aline Cerqueira e Juliana Lima ISSN: 1984-5618

Projeto: Lima Comunicação

Pauta e Sugestões: Ana Rosa Passos

imprensa@emab.com.br / 71 3321-1541 Atendimento:

Lomanto Prazeres (71) 9118-1291

Lima Comunicação

(71) 3240-6344 / 3240-6366

Michelline Soares Bittencourt Trindade Luz

Esta revista é uma publicação educativa realizada pela

Rita de Cássia Ramos de Carvalho

Os artigos e reportagens assinados não expressam ne-

Pedro Rogério Casto Godinho Renato dos Humildes Conselho Editorial:

Aurelino Otacílio Pereira Neto Edson Pereira Filho

Graça Marina Vieira da Silva Walter Américo Caldas 2

Escola dos Magistrados da Bahia, com tiragem de 2.000 exemplares.

cessariamente a opinião da EMAB e são de responsabilidade de seus autores.

Rua Arquimedes Gonçalves, nº 212, Jardim Baiano, CEP.: 40.050-300 | Salvador – BA www.emab.com.br


Nesta edição

Coluna Olho Vivo | 5

Artigo: “Pensando o Final: Reflexões sobre o direito de morrer”

Juíza Laura Scalldaferri Pessoa | 6

Artigo: “Movimentos Sociais e Magistratura: para

Soraya Moradillo

além da lógica da criminalização” Juiz Érico Araújo Bastos | 16

Artigo: “Domicílio Eleitoral”

Ubiratã Mariniello Pizzani

Juíza Rita de Cássia Ramos de Carvalho | 26 Especial: “O Dia-a-dia de um juiz” | 32 Notícias | 34

Artigo: “O conceito de perigoso em direito

Juíza Elke Figuerêdo Schuster | 35

Juíza Lizianni de Cerqueira Monteiro | 58

Decisão: “Antecipação de tutela liminar” Artigo: “Hoje é o dia”

penal”

Justiça.com | 66

Juíz Renato dos Humildes | 41

Artigo: “ Ainda polêmica decadência do direito

“A Gestão democrática do poder judiciário”

especiais criminais”

Direto ao Ponto | 43

de representação no âmbito dos juizados

Juiz Mozart Valadares Pires

Juiz João Paulo Guimarães Neto | 67

desafios superados pela magistratura baiana | 44

das eleições”

Entrevista Ubiratã Pizzani fala sobre os

Artigo: “ A Nova magistratura Juiz Eduardo Caricchio | 49 Artigo: “A Era do DNA”

Juíza Michelline Soares Bittencourt Trindade Luz

Artigo: “O Domicílio Eleitoral e a legitimidade Juíza Ivone Bessa Ramos | 72

Sentença: “Vendas Fraudulentas”

Juiz Baltazar Miranda Saraiva | 78

Sentença: “Mandado de Segurança”

| 50

Juiz Pedro Rogério Castro Godinho | 81

irrelevância Penal do fato conjugado com o

Desembargador Antônio Pessoa

Sentença: “Inaplicabilidade do princípio da princípio da desnecessidade da pena. Roubo Consumado - Inversão de Posse”

Juiz Abelardo Paulo da Matta Neto | 54

Artigo: “ Um dia na vida do consumidor” Cardoso | 84 Cultura | 87

3


Editorial

A MAGISTRATURA PERSISTIRÁ O quarto número da ERGA OMNES acontece num momento em que festejamos nossa atividade que, apesar de espinhosa, é da maior importância para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e da Democracia: a Magistratura!

Aproveitando a celebração do exercício da atividade jurisdicional em todo o País, a Revista ERGA OMNES presta sua homenagem aos valorosos juízes do Brasil, em especial aos da nossa amada Bahia. Guerreiros que no seu dia-a-dia trabalham com afinco e competência, enfrentando as mais diversas dificuldades, mas seguindo em frente na luta árdua pelo aperfeiçoamento da democracia, pela garantia dos direitos fundamentais e pela implantação do exercício pleno da cidadania. Numa homenagem mais do que merecida, a Revista ERGA OMNES publica artigos e matérias envolvendo a temática em foco, obedecendo à trilha seguida nos números anteriores: fomentar a discussão positiva de assuntos da mais alta relevância jurídica, em voga no País.

Neste quarto número, que homenageia nossa gloriosa e destemida Magistratura, você vai encontrar uma entrevista com o presidente da AMAB, uma mensagem do presidente da AMB, uma matéria descrevendo como é o dia de um juiz, com Soraya Moradillo, além de artigos como o de Renato dos Humildes, sobre o juiz e a aposentadoria, e o de Erico Bastos, sobre o juiz e o associativismo. Esta edição da nossa Revista, certamente, irá contribuir para aumentar o debate salutar sobre a atividade judicante e para maior efetivação dos valores fundamentais de resgate da cidadania plena. Erga Omnes: vale a pena acreditar!

Rosalvo Augusto Vieira da Silva Diretor da EMAB

4


Coluna olho vivo Regras alteradas para danos causados em equipamentos por problemas de energia

Alteração no texto da lei sobre planos e seguros privados de assistência à saúde O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, alterou o art. 35-C da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. A nova redação do artigo diz que é obrigatória a cobertura do atendimento nos casos de emergência que impliquem risco imediato à vida ou lesões irreparáveis para o paciente, resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional e de planejamento familiar. Olho vivo!

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) reduziu de 90 para 45 dias o prazo para as concessionárias indenizarem os consumidores por danos em eletrodomésticos, causados por problemas na rede de distribuição. Agora, a inspeção tem que ser feita em 10 dias (no máximo), com exceção de geladeiras, cujo prazo para emissão de um laudo constatando a origem do defeito é de 24 horas. A contagem de dias do processo é feita a partir do pedido do consumidor, tendo a empresa quinze dias para responder e outros vinte para consertar o aparelho. Não sendo possível o reparo, a companhia precisa trocar o produto ou ressarcir o consumidor, em dinheiro ou crédito na conta de luz. O cliente que se sentir lesado pode optar pela vistoria do aparelho em casa ou em uma oficina credenciada pela concessionária de energia. As reclamações podem ser feitas por telefone, internet ou nos postos de atendimento. Abra o olho!

Justiça estadual pode julgar tarifa básica de telefonia O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que decisões favoráveis aos consumidores, em relação à cobrança de assinatura de telefonia fixa, nas esferas estaduais, terão de ser cumpridas pelas empresas. O STF entendeu que o assunto não é de caráter constitucional, pois envolve direito do consumidor e regras do setor de telecomunicação, também regido em normas infraconstitucionais, podendo os Juizados Especiais estaduais julgar esta cobrança. Fique de olho!

5


Artigo PENSANDO O FINAL: REFLEXÕES SOBRE O DIREITO DE MORRER “Toda noite, quando vou dormir, morro. E, na manhã seguinte, quando acordo, renasço.” Mahatma Gandhi Laura Scalldaferri Pessoa Juíza de Direito 18º Vara Cível da Capital

Mestranda em Relações Sociais e Novos Direitos (UFBA) e especialista em Direito Processual Civil.

A morte O morrer no passado. Aspectos socioculturais. Breves noções da morte voluntária Embora a morte dos seres humanos seja, em geral, uma morte natural, resultante do desgaste do corpo físico pela idade ou doenças, a opção pela morte voluntária tem sido, desde que há registros da história humana, uma forma de sub-rogar-se o poder divino. Vários povos eliminavam aqueles membros que consideravam um estorvo para a coletividade, demonstrando que o debate eutanásico é tão antigo quanto a humanidade. Os espartanos lançavam os recém-nascidos deformados do alto do monte Taigeto. Os celtas permitiam que os filhos matassem os pais quando estes não tivessem mais serventia e os esquimós matavam aqueles parentes doentes que não pudessem ter cura. Na Índia, os doentes incuráveis eram atirados ao rio Ganges para morrer¹. Podemos identificar dois períodos de transição no comportamento social relativo à morte voluntária. O primeiro momento de transição − de aprovação para reprovação − é definido pela passagem das culturas pagãs da Antiguidade para uma nova civilização ju-

daico-cristã, construída sobre um fundamento teórico romano. O segundo momento de transição − que se vive atualmente − caracteriza-se pela emergência de atitudes culturais mais tolerantes com a morte voluntária, motivadas por uma perda gradual do sentido de transcendência da existência humana. A prática da morte voluntária nas sociedades gregas e romanas era bastante difundida, podendo ser considerada, em determinadas circunstâncias, um ato razoável. Pôr fim à dor ou ao sofrimento causado por uma doença incurável, evitar humilhações e indignidades, pôr termo a uma vida que se tornara cansativa, ou triunfar sobre o destino pondo voluntariamente fim à própria vida em idade avançada, eram atitudes consideradas justificáveis, ou mesmo honrosas. Uma pessoa que se suicidasse sem justificação aparente podia ser mutilada e sepultada de forma vergonhosa, em campa rasa e sem lápide. A privação da sepultura era um castigo então reputado terrível, noticia Fustel de Coulanges². Com o advento do cristianismo, entrou em declínio a aceitação social da morte voluntária no mundo ocidental, em virtude da cultura cristã enfatizar o valor supremo da vida e da pessoa humana. Nesse sentido, é assente e indiscutível a posição de que “a vida hu-

1 - ROHE, Anderson. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 3-4. 2 - FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução J. Cretella Jr.e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 22. 3 - Pontifícia Academia Pro Vita. The dignity of the dying person: proceedings of the Fifth Assembly of the Pontifical Academy for Life apud PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 248. 6


mana é sagrada e inviolável em todas as suas fases dispensados em casa. Em contrapartida, o hospital e situações”³. Para os cristãos, não há dúvidas: Deus impõe ao paciente terminal uma agonia muitas vezes mais penosa que a vivida em casa, não os ajudando nos deu a vida e só a Ele cabe tirá-la. Com o declínio da autoridade moral da Igreja a morrer. A medicina moderna é pautada pelos paradigCatólica, culminando na reforma protestante do século XVI, à medida que Deus ia sendo expulso da órbi- mas tecnocientífico e comercial-empresarial. Doenças ta humana, os costumes sociais, os princípios legais, e ferimentos antigamente letais são hoje curáveis, proas instituições acadêmicas e políticas, bem como as duzindo um orgulho médico que pode mesmo chegar à práticas econômicas que refletiam o princípio da reve- arrogância, transformando a morte num inimigo a ser vencido ou numa presença incôrência pela vida humana individual moda a ser escondida. Por outro foram enfraquecendo lentamente, lado, o alto preço dos fármacos até chegar o momento em que intee dos sofisticados equipamentos lectuais, notadamente os britânicos, A sociedade ocidental tecnológicos propicia o surgimennos séculos XVIII e XIX, começato da empresa hospitalar, na qual ram a racionalizar a morte voluntácontemporânea ria, desenvolvendo projetos filosófibanalizou a morte e tudo é a capacidade do doente terminal pagar, e não o diagnóstico, que cos materialistas que se opunham a que ela está associada. determina sua admissão como padiretamente aos princípios básicos da antropologia cristã.4 Não satisfeita em privar o ciente e o tratamento subsequentemente empregado.5

O morrer na modernidade

indivíduo da consciência de sua própria morte, de marginalizar socialmente o moribundo, de esvaziar todo o conteúdo semântico dos ritos tanáticos

Durante séculos, a morte foi um evento doméstico, circundado por atos sacramentais e na presença dos parentes e amigos. O homem tinha consciência de seu fim próximo, seja porque o reconhecia espontaneamente, seja porque cabia aos outros adverti-lo. Nos últimos sessenta anos, ocorreu uma mudança de atitude do homem ocidental em relação à morte, cujo sentido original foi esvaziado. Mais da metade dos moribundos, nos grandes centros urbanos, passa a última etapa de suas vidas em um hospital. O deslocamento do lugar da morte se deve ao avanço técnico e à crescente especialização da medicina; ao desaparecimento da figura do médico de família; ao grande número de doentes, o que impede o deslocamento contínuo dos profissionais de saúde, e, ainda, à presença, nos hospitais, de pesados instrumentos de alta tecnologia, que permitem tratamentos mais eficazes que aqueles

A sociedade ocidental contemporânea banalizou a morte e tudo a que ela está associada. Não satisfeita em privar o indivíduo da consciência de sua própria morte, de marginalizar socialmente o moribundo, de esvaziar todo o conteúdo semântico dos ritos tanáticos, vai além, transformando-a num resíduo irreconhecível. “Ao negar a experiência da morte e do morrer, a sociedade realiza a coisificação do homem”. 6

Relação médico-paciente. Terminalidade A moderna medicina tecnicista prioriza a cura, tendo como foco as partes doentes do corpo físico, reduzindo a pessoa do paciente à sua patologia, contra a qual todos os recursos científicos devem ser utilizados. A concentração na cura desvia a atenção da pessoa inteira, reificando o enfermo. Há mesmo uma dinâmica alienante no sistema médico-hospitalar que pode pri-

4 - BUFILL, José A. Breve história da morte voluntária. Disponível em: http://www.aceprensa.pt/articulos/print/2008/jun/14/breve-historia-da-mortevoluntaria/. Acesso em 20 mai. 2009. 5 - PESSINI. Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 219. 6 - MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 19. 7 - KUBLER-ROSS, Elisabeth. A roda da vida: memórias do viver e do morrer. 7. ed. Tradução de Rio de Janeiro: Sextante, 1998, p. 141. 8 - PESSINI. Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 49. 7


Pensando o final: reflexões sobre o direito de morrer

var o paciente de sua dignidade no momento final. como um nobre dever médico, consistente em aliviar o Sobre esse aspecto, afirma Elisabeth Kubler- sofrimento nos cuidados terminais, podendo apressar 7 Ross , médica suíça pioneira na investigação da morte a morte. e do morrer, que os médicos precisam reconhecer os O conceito passou por uma mudança semântica sentimentos, medos e defesas corriqueiros que as pes- ao longo dos tempos e, inicialmente entendido como soas têm quando entram num hospital, aprendendo a auxílio do médico atencioso ao moribundo, adquiriu um tratar os pacientes como seus semelhantes. significado negativo a partir da Segunda Guerra MunNesse contexto, o paciente terminal não tem voz dial, sendo compreendido como abreviação direta e ine o médico se torna, no dizer de Pessini8, o tanato- tencional da vida humana. crata, senhor da máquina terapêutica, cuja atuação é O termo ainda hoje é utilizado de forma impreci9 criticada por Ziegler : sa e, por vezes, confundido com ações que configuram [...] É um sistema que aliena a quem morre, pri- homicídio ou mesmo suicídio assistido, sendo imperiovando-o de toda idéia de sua morte so buscar um significado consentâe mesmo de qualquer idéia de neneo com a realidade biotecnológica gação da morte. Chega ao ponto e sob um viés que não seja excluImperioso de impedir o homem de se recusar sivamente jurídico, já que a quesbuscar um significado a morrer. Não lhe diz que morre. tão da eutanásia necessariamente consentâneo com a reaDecide sem ele a sua morte ou soreclama uma abordagem interdiscibrevida. plinar, com enfoque médico, filosólidade biotecnológica e É o universo da medicalizasob um viés que não seja fico e religioso. ção excessiva da doença e da dePara Pessini, em sua obra exclusivamente jurídico, sumanização da medicina. referência sobre o tema11, a eutaná-

já que a questão da eutanásia necessariamente A morte e seu tempo. Ações de abreviação e pro- reclama uma abordagem longamento da vida. Cominterdisciplinar, com preendendo a terminologia enfoque médico, filosófico e religioso As ações e omissões que implicam renúncia à vida ou morte antes do tempo são comumente confundidas, pelo que os variados conceitos relativos à intervenção humana no momento da morte devem ser esclarecidos.

Eutanásia. A morte antes do tempo Procedente de dois vocábulos gregos: eu (boa) e thanatos (morte), a expressão boa morte foi usada pela primeira vez por Francis Bacon10, para referir-se à prática como única providência cabível diante de doenças incuráveis. A eutanásia é apresentada por Bacon

sia é o “ato médico que tem como finalidade eliminar a dor e a indignidade na doença crônica e no morrer, eliminando o portador da dor”. Da análise dessa definição, várias questões devem ser postas à reflexão: I) o resultado produzido pela eutanásia é um obstáculo ético à sua aceitação, já que elimina a dor por meio da eliminação do portador da dor. Assim, surge o desafio de defender o valor positivo da eutanásia (morte suave, sem dor) sem cair no extremo de matar a pessoa; II) a intenção de beneficiar o doente e a motivação por compaixão é fundamental na caracterização da eutanásia; III) a questão de saber se a eutanásia seria exclusivamente um ato médico; IV) a possibilidade da prática eutanásica no paciente não terminal, isto é, naquele que está sofrendo física e/ou psiquicamente, mas cuja condição não é tal que ameace a vida. O Código de Ética Médica atual (1988), em seu

9 - ZIEGLER apud Pessini, ob. cit., p. 49. 10 - MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 179. 11 - PESSINI. Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 201. 12 - Código de Ética Médica. Disponível em: < http://www.portalmedico.org.br/novoportal/index5.asp> Acesso em: 28 mai. 2009. 13 - Juramento de Hipócrates. Disponível em: <http://www.cremesp.com.br/?siteAcao=Historia&esc=3> Acesso em: 28 mai. 2009. 8


art. 66, veda ao médico “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal” 12 , reproduzindo, assim, a antiga lição hipocrática aos profissionais da medicina13: [...] A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. (Grifo nosso) O princípio da autonomia é o principal fundamento do argumento moral para os que defendem o direito de morrer. Tal argumento é rechaçado pelos que entendem que o limite da autonomia é a hierarquia de valores em que a vida é o direito primeiro, irrenunciável e inalienável. Na outra ponta do raciocínio encontram-se aqueles que veem na aprovação da prática eutanásica um afrouxamento da lei que conduzirá, inevitavelmente, ao homicídio sem consentimento, no modelo slippery slope14. Assim, a descriminalização do ato poderia evoluir para o homicídio, no momento em que a qualidade de vida de uma pessoa passasse a ser julgada pelos médicos. Em paralelo ao controle da natalidade, haveria um controle da mortalidade. Como consequência, aqueles que não satisfizessem determinados padrões poderiam ser removidos – a história recente mostra que tal é possível, se lembrarmos da solução final proposta pelo nazismo. Se a autonomia é um dos requisitos éticos fundamentais para a legitimidade da eutanásia voluntária, como proceder quando a pessoa não expressou sua vontade, como nos casos de inconsciência, demência ou qualquer outra forma de incapacidade? Em que medida a família pode assumir a responsabilidade decisória e ser considerada agente legítimo para manter ou interromper tratamentos e deixar a morte seguir seu curso? Se é certo que a indisponibilidade da vida precisa ceder à autonomia do paciente que se encontra em fase terminal, em meio a profunda agonia, não há como escapar da perquirição sobre a vontade real do paciente, algo questionável diante do estado gravíssimo e na iminência da morte. Nessas condições, alguém poderia autodeterminar-se racionalmente para

autorizar a própria morte? E se a decisão coubesse aos familiares, como conciliar se houver interesses que possam fluir contra o paciente? Outra razão posta pelos que se opõe especificamente à eutanásia voluntária é o fato de que a medicina é exercida por seres humanos passíveis de erros de avaliação e diagnóstico. Logo, a decisão de quem pode viver ou deve morrer ultrapassa a capacidade normal de julgamento do médico, que pode estar tomando decisões equivocadas e sem possibilidade de reparação. Também a opinião médica poderia estar sujeita a pressões, inclusive financeiras, para atender a interesses escusos de familiares, como na hipótese de um paciente não terminal ser erroneamente classificado como tal para atender a conveniência da família que quer se ver livre de um encargo pesado como o de um paciente crônico. Permitir ou mesmo facilitar a morte de um paciente não transforma o profissional médico num homicida. Se age guiado pela solidariedade ao sofrimento e pratica a eutanásia em respeito à vontade individual ou, ainda, se recusa a praticar a distanásia, pauta-se na certeza de que a livre deliberação sobre o momento de morrer é um direito inalienável do enfermo e que deve ser assegurado em nome da manutenção de sua dignidade.

Distanásia. A morte depois do tempo O investimento terapêutico exagerado da atual prática médica, não permitindo ao paciente morrer com dignidade, porquanto há que se tentar tudo, ainda quando não há cura, na introjeção acrítica do dogma “enquanto houver vida, há esperança”, formatou o conceito de distanásia. Etimologicamente, distanásia significa prolongamento exagerado da agonia, do sofrimento e da morte de um paciente. O termo também pode ser empregado como sinônimo de tratamento inútil e fútil, que tem como consequência uma morte medicamente lenta e prolongada, acompanhada de sofrimento.15 No debate sobre a vida sustentada por aparelhos e recursos farmacológicos, surgem dúvidas sobre quais medidas seriam obrigatórias, opcionais ou inde-

14 - O termo slippery slope foi proposto por Schauer, em 1985. Ocorre quando um ato particular, aparentemente inocente, tomado de forma isolada, pode levar a um conjunto futuro de eventos de crescente malefício. Pode ser traduzido para o português como um plano inclinado escorregadio, sendo um conceito fundamental na Bioética, que justifica não fazer pequenas concessões, aparentemente sem maiores consequências, em temas controversos. 15 - PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2007, p.30. 9


Pensando o final: reflexões sobre o direito de morrer

vidas.

1.480/97, em exposição de motivos, destaca o “ônus psicológico e material causado pelo prolongamento do uso de recursos extraordinários para o suporte de funções vegetativas em pacientes com parada total e irreversível da atividade encefálica”. 17

O conceito de futilidade envolve a ideia de que alguns tratamentos não atingem os objetivos da medicina e os médicos não são obrigados a prescrevê-los. O ponto mais difícil está em determinar concretamente o que se entende por ordinário (ou proporcionado) e extraordinário (ou desproporcionado), até porque Ortotanásia. A morte no tempo certo os termos ordinário e extraordinário não têm o mesmo Nesse emaranhado de expressões polissêmisignificado no plano ético e no plano médico. 16 Esclarece Andorno que, em medicina, ordinário cas, de um lado temos a eutanásia (= abreviação da é sinônimo de habitual ou rotineiro. Para a ética, no vida), do outro a distanásia (= adiamento da morte). entanto, um tratamento é ordinário quando não implica Entre esses dois extremos, a atitude que honra a dignidade humana e preserva a vida uma carga especialmente gravosa é a que muitos bioeticistas denopara o paciente, tendo em conta minam ortotanásia, para designar suas circunstâncias particulares. a morte digna, sem abreviações Assim, por exemplo, para alguém A obstinação em desnecessárias e sem sofrimentos que sofre de insuficiência renal, a prolongar o funcionaadicionais, ou seja, “morte em seu hemodiálise será normalmente um meio ordinário, do ponto de vista mento de organismos de tempo certo”. 18 Sensível à necessidade de médico e ético. Porém, se a insupacientes terminais não humanização da morte, com alívio ficiência é definitiva e o paciente deve mais encontrar das dores sem incorrer em prolontem idade avançada, tal tratamento gamentos abusivos com aplicapode converter-se em um meio exguarida no Estado de ção de meios desproporcionados, traordinário. Direito porquanto tal o Conselho Federal de Medicina Nessa linha de entendimenobstinação redunda em emitiu a Resolução nº 1.805/2006, to, não se deve considerar o termo vida, na Carta Magna, apenas sofrimento gratuito para estabelecendo que, na fase terminal de enfermidades graves e incuno sentido biológico, já que o ser o enfermo e para ráveis é permitido ao médico limihumano tem outras dimensões. os que o amam tar ou suspender procedimentos e Decorre disso, não se poder privitratamentos que prolonguem a vida legiar apenas a dimensão biológica do doente, garantindo-lhe os cuidada vida humana, negligenciando a dos necessários para aliviar os sinqualidade de vida do indivíduo em prol da quantidade de vida. A obstinação em prolongar tomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma o funcionamento de organismos de pacientes terminais assistência integral, respeitada a vontade do paciente não deve mais encontrar guarida no Estado de Direito ou de seu representante legal19. porquanto tal obstinação redunda em sofrimento gratuito para o enfermo e para os que o amam. Aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não apenas da vida, mas também da pessoa. Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina, ao estabelecer os critérios e protocolos para definição da morte encefálica, por meio da Resolução nº

Tal resolução demonstra, no Brasil, um avanço na discussão do tema sobre o direito de morrer com dignidade. Todavia, quanto à sua vigência, salientese que decisão prolatada na Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3, pelo Juízo da 14ª Vara Federal – DF, suspendeu liminarmente seus efeitos, tendo sido interposto recurso pelo Conselho Federal de Medicina

16 - ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Tecnos, 1998, p. 154. 17 - Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.480/97, de 8 de agosto de 1997. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/ cfm/1997/1480_1997.htm. Acesso em: 28 mai. 2009. 18 - PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2007, p.31. 19 - Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1805/2006. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm (1 de 7)30/11/2006 12:57:12> Acesso em: 28 mai. 2009. 10


perante o Tribunal Regional Federal – 1ª Região.

Liberdade de escolha. O poder de decidir o próprio final Seja qual for o posicionamento adotado na discussão sobre o direito de morrer, há que se ter em vista que o debate fica empobrecido se a controvérsia ética for reduzida à simples questão da autonomia e do direito da pessoa em decidir se quer ou não continuar a viver. Assim, sugere-se ampliar o olhar para um pluralismo ético, onde o diálogo perpasse outros princípios bioéticos além da autonomia. Segundo Bellino20 , o princípio da autonomia estabelece o respeito pela liberdade do outro e das decisões do paciente, legitimando a obrigatoriedade do consenso livre e informado, para evitar que o enfermo se torne um objeto. Para exercício da autonomia, mister a existência de consentimento informado, que deve ser livre, expresso e esclarecido. Nesse particular, a fim de consentir ou dissentir acerca de determinado procedimento, é preciso que o paciente saiba exatamente com o que está anuindo ou discordando. Praticamente todos os códigos médicos estabelecem que os profissionais devem obter o consentimento informado dos pacientes, antes de qualquer intervenção importante. Afirmam Beauchamp e Childress21 que um indivíduo dá um consentimento informado se for capaz de agir, receber uma exposição completa, entender a exposição, agir voluntariamente e consentir na intervenção. Ainda no âmbito do respeito à autodeterminação da pessoa, diante do aumento do número de pacientes terminais incapacitados de manifestar seus valores e preferências, vai se tornando comum, em muitos países, propostas de legislação para que pessoas hospitalizadas, ou mesmo em gozo de saúde, expressem sua vontade em relação à fase final da vida, transmitin-

do-as antecipadamente por meio de documento escrito denominado “testamento de vida” (living will) ou “testamento vital”. Questão espinhosa é a de conciliar a autonomia do paciente terminal em recusar ou interromper tratamento com o dever médico de manter a vida. Nos termos do art. 61, § 1º, do Código de Ética Médica brasileiro, se o médico não concordar com a opção do paciente em recusar ou interromper um tratamento, poderá renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente a este paciente ou um responsável. 22 Logo, é preocupante um comportamento paternalista ou autoritário por parte de quem detém o conhecimento técnico-médico, como se a partir deste conhecimento técnico se pudesse deduzir, de forma unívoca, o rumo terapêutico a ser tomado em uma situação de terminalidade da vida. Nestas situações, devem falar mais alto os valores e as convicções pessoais do paciente, sendo protegido o seu direito ao exercício da autonomia.

Mudança de paradigma: integrar a morte na vida. Fundamentação constitucional do direito de morrer Em 1948, foi promulgada pela Organização das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direitos do Homem, documento de cunho internacional que reconhece certos direitos como essenciais a todos os seres humanos, proclamando no seu art. 3º que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. 23 O Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana dos Direitos Humanos, ao qual aderiu a República Federativa do Brasil, consigna, em seu Capítulo II, art. 4º, I, o respeito incondicional à vida. 24 Outra não é a posição da Igreja Católica, quando declara o respeito incondicional do direito à vida de toda pessoa inocente − desde a sua concepção até a

20 BELLINO, Francesco. Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Tradução Nelson Souza Canabarro. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1997, p. 198. 21 - BEAUCHAMP, Tom. L; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 165. 22 - Código de Ética Médica. É vedado ao médico: Art. 61: abandonar o paciente sob seus cuidados. Parágrafo Primeiro: Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou seu responsável legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder. 23 - Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948. 24 - Pacto de São José da Costa Rica. Artigo 4º - Direito à vida. I) Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. 11


Pensando o final: reflexões sobre o direito de morrer

morte natural − como um dos pilares sobre o qual assenta toda a sociedade. 25

Assim, em razão do fato de ser a personalidade uma estrutura dinâmica, estando o homem sempre em desenvolvimento, buscando exercer potencialidades que são ilimitadas, é forçoso admitir que os bens dela decorrentes não podem estar restritos a uma lista taxativa, “a um inventário que previamente exaure todas as necessidades da personalidade”. 29

Individualmente consideradas, as tutelas da vida e da liberdade estão previstas no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988. 26 A Carta Magna, ainda, em seu art. 1º, inciso III, reconhece expressamente a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos O legislador tem preferido se 27 da República. Dentro desse conexpressar por meio de cláusulas texto, o princípio da dignidade da gerais e conceitos jurídicos indePretende-se aqui, pessoa humana representa o valor terminados que veiculam princípios portanto, afirmar que imprime coerência e unidade e diretrizes do sistema, dentre os a existência ao conjunto de direitos fundamenquais se sobressai o respeito à digtais. Funciona como uma cláusula nidade da pessoa humana. Esse do direito de morrer, aberta, respaldando o surgimento formato vernacular, embora expripara além dos já de novos direitos não expressos no ma valor de grande relevância soreconhecidos direitos texto constitucional. Tal abertura cial, reclama vetores mínimos para material dos direitos fundamentais verificação de qual seja seu efetivo fundamentais na ordem constitucional brasileira, conteúdo jurídico. positivados, quer a partir do § 2º do art. 5º da ConsIngo Wolfgang Sarlet 30 enno texto constitucional, tende por dignidade da pessoa hutituição Federal28, sugere que o rol de direitos fundamentais não é mana: quer em tratados exaustivo, restando aberta a posa qualidade intrínseca e disinternacionais sibilidade de identificar e construir tintiva reconhecida em cada ser recepcionados outras posições jurídicas que não humano que o faz merecedor do as positivadas, através da apontamesmo respeito e consideração pelo Brasil da cláusula aberta. por parte do Estado e da comuniPretende-se aqui, portanto, dade, implicando, neste sentido, afirmar a existência do direito de morrer, para além um complexo de direitos e deveres fundamentais que dos já reconhecidos direitos fundamentais positivados, assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato quer no texto constitucional, quer em tratados interna- de cunho degradante e desumano, como venham a lhe cionais recepcionados pelo Brasil. garantir as condições existenciais mínimas para uma Para tanto, invoca-se o entendimento de que os vida saudável, além de propiciar e promover sua partidireitos da personalidade possuem tipicidade aberta, cipação ativa e co-responsável nos destinos da própria vale dizer, não são apenas aqueles explicitamente con- existência e da vida em comunhão com os demais sesagrados na Constituição Federal e na legislação civil, res humanos. mas também os tipos socialmente reconhecidos e harImportante notar que o conceito de dignidade monizados com o princípio fundamental da dignidade humana, aplicado ao tema deste estudo, tanto serve humana. para defender a inviolabilidade e a preservação da vida 25 - Cfr. JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Evangelium Vitae sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana, de 25 de março de 1995, nº 101. Disponível em: <http://www.cleofas.com.br/virtual/texto.php?doc=PAPA&id=pap0332 > Acesso em: 28 mai. 2009. 26 - MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 162. 27 - Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; 28 - § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados 29 - NETO, Francisco Vieira Lima. O direito de não sofrer discriminação genética: uma nova expressão dos direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 81. 30 - SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 63. 12


como pode servir para justificar sua abreviação. Afinal, embora proposta como um ideal comum a todos os povos, a dignidade tem sido invocada para legitimar posições contraditórias. Deste modo, o conceito de dignidade humana necessita ter seu significado e alcance revistos, para também abarcar a dignidade de morrer por escolha. Nesse sentido, Beauchamp e Childress referem-se expressamente ao “privilégio de morrer com dignidade, sem dor e sofrimento”. 31 Em contrário, sustentam os opositores do direito de morrer que a vida, qualquer que seja a sua condição, é o principal valor e o direito mais fundamental, sem o qual não se podem embasar quaisquer outros.32 E afirmam que, se há uma hierarquia nos direitos fundamentais, os mais primordiais se sobrepõem aos menos essenciais. Nesse diapasão, o direito à vida, como base e condição de todos os demais direitos humanos fundamentais, deve prevalecer num eventual conflito com o direito à liberdade. Contudo, o que aqui se entende é a limitação no exame apenas do direito à vida. É preciso ir além, até o direito à vida digna. Afinal, há situações em que a vida deixa de exibir todos os atributos que a integram, levando-nos a indagar se valeria a pena mantê-la a qualquer custo por meio da biotecnologia ou se tal atitude não se constituiria na própria negação da essência da vida. Segundo Pedro Montano:33 No se puede tratar a la vida humana como a la vida animal o vegetal. La vida humana es superior, porque es manifestación de una vitalidad que […] es de riqueza incomparable. La capacidad de querer y de entender le otorgan una nobleza exclusiva. Por lo tanto, habrá de ser tratada acorde a su dignidad. Que dignidade pode haver na vida de um paciente terminal, submetido a um processo de coisificação numa unidade de tratamento intensivo, manipulado por estranhos, afastado do convívio daqueles que ama, apenas à espera de um final inevitável?

O que significa morrer com dignidade? Diferentes respostas podem ser dadas a esta pergunta, o que dependerá da cultura ou dos valores individuais de cada um. Importa o modo como morremos. Muitos de nós gostaríamos que este momento final guardasse uma coerência com o modo como vivemos durante toda a nossa vida: com valores e convicções que cultivamos, que nos são caros. Assim, a mudança de paradigma é uma via a ser considerada quando se trata de legitimar o direito ao próprio processo de morrer. Nesse sentido, leciona com maestria Mônica Aguiar 34, tendo por norte o pensamento de Thomas Kuhn: Exige-se realizar, destarte, um esforço doutrinário que possibilite o desligamento do jurista das amarras que o ligam ao passado; como forma, inclusive, de permitir o estabelecimento de um outro paradigma, no sentido de idéia mestra ou conjunto de idéias mestras que vigoram em uma sociedade em determinado tempo – consoante engendrado por Thomas Kuhn – sem que essa evolução represente a adoção de parâmetros impostos pela pós-modernidade, como: os do egoísmo, da moral individual, da verdade pessoal como moral [...]. Sobre esse aspecto, sustenta Dworkin ser errado pensar que os que adotam uma atitude mais liberal com respeito à eutanásia são sempre indiferentes ao valor da vida. Antes, eles têm outras idéias acerca do que significa respeitar esse valor. Pensam que a morte digna é um sinal maior do respeito que o moribundo tem pela sua própria vida – ou seja, se encaixa melhor em sua ideia do que há de realmente importante na existência humana – do que uma morte envolvida por uma longa agonia ou uma inconsciente sedação. 35 O respeito pela pessoa implica necessariamente a manutenção desse respeito na proximidade da morte. Logo, a dignidade está diretamente ligada à capacidade de decidir e de agir por si mesmo – autodeterminação – e também à qualidade da imagem que se oferece de si mesmo ao outro. A perda dessa capacidade e des-

31 - BEAUCHAMP, Tom. L; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 346. 32 - Nesse sentido, Ives Gandra da Silva Martins Filho. O Direito à vida. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin/Centro de Extensão Universitária, 2005, p. 177. 33 - MONTANO, Pedro. In Dubio Pro Vita. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin/Centro de Extensão Universitária, 2005, p. 261. 34 - AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42. 35 - DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 234. 13


Pensando o final: reflexões sobre o direito de morrer

Em 11 de abril de 2001, com a aprovação de lei que passou a viger em 2002, a Holanda tornou-se o primeiro país do mundo a legalizar a prática eutanalidade e a irreversibilidade se constituem numa dura násica38, sob rigorosas regras, admitida apenas em prova que pode provocar a perda da dignidade. Perda relação a doente mentalmente capaz, com doença incurável e sofrimento insuportável. Exige-se, ainda, que uma morte voluntária antecipada poderia evitar. pedido expresso, voluntário e persistente pelo término Notícias de direito. Eclesiástico. Estranintencional da vida. Exsurge, pois, não ser admitida a geiro. Nacional. denominada eutanásia passiva, involuntária, não consentida, como, A Igreja Católica, por meio por exemplo, a que decorreria da da forte influência que representa hipótese de coma irreversível. o Vaticano, afirmou sua posição A Bélgica legalizou a eutanádesfavorável ao tema, em 1980, sia em 16 de maio de 2002, por meio Em março de 2009, por meio da Sagrada Congregação de diploma legal mais restritivo que Washington tornou-se para a Doutrina da Fé, na Declarao holandês39. Dentre as legislações o segundo estado ção sobre a Eutanásia, em que ralatino-americanas, o Código Penal tifica o caráter sacro da vida humaUruguaio foi um dos primeiros a norte-americano a na, definindo a eutanásia como: propor a retirada da sanção em repermitir o suicídio Per eutanasia s’intende lação ao que denominou homicídio medicamente assistido, un’azione o un’omissione che di piedoso, prevendo o perdão judicial natura sua, o nelle intenzioni, procom a entrada em vigor para aqueles que, tendo bons antecura la morte, allo scopo di eliminacedentes − antecedentes honorade uma lei sobre a re ogni dolore. L’eutanasia si situa, bles 40 −, agissem mobilizados pela ‘morte com dignidade’ dunque, al livello delle intenzioni e piedade e atendendo a reiteradas 36 dei metodi usati. súplicas da vítima, mantida, contuTodavia, os documentos ecledo, a ilicitude da conduta. siais mais recentes demonstram o Dentro de um contexto nacuidado em distinguir a discussão cional, a eutanásia é proibida nos da eutanásia daquela da distanáEUA, embora a justiça americana possibilite algumas sia, de modo que o mesmo documento supramencio- outras situações que envolvem o final de vida, como nado afirma que: a interrupção de tratamento que apenas prolongue o ante a iminência de uma morte inevitável, apesar processo de morrer e o suicídio assistido, variando a dos meios empregados, é lícito em consciência tomar a legislação de estado para estado. 41 decisão de renunciar a alguns tratamentos que procuEm março de 2009, Washington tornou-se o serariam unicamente um prolongamento precário e peno- gundo estado norte-americano a permitir o suicídio meso da existência. Por isto, o médico não tem motivo de dicamente assistido, com a entrada em vigor de uma lei angústia, como se não houvesse prestado assistência sobre a “morte com dignidade”. Aprovada por referena uma pessoa em perigo. 37 do em novembro de 2008, a nova legislação permite sa imagem pode conduzir à supressão da autoestima, especialmente naqueles doentes terminais ou crônicos que têm plena consciência desses atributos. A termi-

36 - Por eutanásia entende-se uma ação ou omissão que, por sua natureza ou intenções, provoca a morte a fim de eliminar toda a dor. A eutanásia situa-se, portanto, no nível das intenções e dos métodos empregados. Sacra Congregazione per la Dottrina della Fede, Dichiarazione sull’eutanasia. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19800505_eutanasia_it.html Acesso em: 28 mai. 2009. 37 - MARANHÃO, ob. cit., p. 60. 38 - ROHE, Anderson. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 10 39 - GOLDIM, José Roberto. Eutanásia – Bélgica. Disponível em: <http://www.bioetica.ufrgs.br/eutabel.htm> Acesso em: 29 mai. 2009. 40 - Código Penal Uruguay. Lei 9.414, de 29 de junio de 1934. Disponível em: <http://www.bioetica.ufrgs.br/penaluru.htm> Acesso em: 29 mai. 2009. 41 - VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final da vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 158. 14


que os médicos possam prescrever a administração de doses fatais de medicamentos a pacientes para os quais se vaticinem menos de seis meses de vida42 . Até o momento, este procedimento apenas era autorizado no Estado do Oregon, por meio da Lei da Morte Digna (Oregon Death with Dignity Act, 1994), cujo texto favorece a confusão no debate sobre o tema, ao estabelecer espressamente que as ações tomadas em concordância com ela “não constituirão por nenhum motivo suicídio, suicídio assistido, morte piedosa ou homicídio”. 43 A dificuldade em definir o momento em que seja legítimo optar pela suspensão de procedimentos médicos nos pacientes em estado terminal ou com doença incurável é um dos entraves para a elaboração de leis brasileiras referentes ao direito de morrer. Apesar de, nos últimos anos, terem sido apresentados projetos, tanto para excluir quanto para majorar as penalidades sobre executores do procedimento, nenhum chegou à votação final. Tramita atualmente na Câmara dos Deputados, com o objetivo de classificar a eutanásia, hoje equiparada ao crime de homicídio, como crime hediondo, o PL 3207/08. A proposta, no entanto, está parada na Comissão de Seguridade Social e Família, tramitando junto a projeto que pretende incluir o aborto na lista dos crimes hediondos. 44 A ideia da ortotanásia tem mais aceitação no Congresso brasileiro. Ela é definida no Projeto de Lei nº 3002/2008, que também se encontra na CSSF aguardando parecer, como o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural.45 No Senado, há apenas uma proposta − PLS nº 116/2000 − pretendendo excluir de ilicitude a ortotanásia, alterando o Código Penal. 46

Conclusão Consciente de que nem todas as vozes da sociedade fazem parte do coro favorável ao direito de morrer, este trabalho não pretende – e nem poderia

fazê-lo – alcançar uma exaustividade que se considera inalcançável. Nossa intenção foi expressar pontos de vista complementares aos que habitualmente são apresentados quando se debate sobre o direito de morrer, acentuando nosso posicionamento sobre a prevalência da autonomia dos pacientes em relação aos avanços da tecnomedicina que permitem o prolongamento artificial da vida diante de situações de terminalidade ou de irreversibilidade. E isto porque, com o aumento da longevidade, graças ao maior controle da natalidade, ao avanço da medicina preventiva e curativa e à elevação do padrão de vida em geral, aumenta também o número de pacientes terminais em idade avançada. Por conseguinte, as demandas de uma morte assistida tornam-se mais frequentes, favorecendo direta e indiretamente a maior incidência da eutanásia, do suicídio medicamente assistido e da ortotanásia. O meio científico tem estabelecido diretrizes para a normatização das condutas mediante consenso, de modo a permitir uma abordagem lúcida e racional dos problemas gerados pelo formidável avanço da ciência moderna. Infelizmente, não tem ocorrido a contrapartida da legislação brasileira, cautelosa e tímida na disciplina do espinhoso tema. O vazio legislativo acerca da temática deste trabalho, aliado à resistência de segmentos da sociedade com uma visão limitada por dogmas religiosos, impedem o avanço do Direito na proteção deste que consideramos um legítimo direito fundamental humano – o direito de morrer. Para suprir tal vazio, o debate público bem-informado é fundamental, e para que isto seja possível é preciso educação de qualidade, meios de comunicação sérios, comprometidos com a precisão das informações, e um amplo espaço de manifestação e deliberação coletiva. Enfim, temos pela frente um longo, mas indispensável, caminho a ser trilhado.

42 - Disponível em: http://tv1.rtp.pt/noticias/index.php?t=Estado-de-Washington-tem-a-sua-primeira-morte-ao-abrigo-da-nova-lei.rtp&article=221626& layout=10&visual=3&tm=7. Acesso em 31 mai. 2009. 43 - PESSINI. Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 126. 44 -Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/proposicoes/loadFrame.html?link=http://www.camara.gov.br/internet/sileg/ prop_lista.asp?fMode=1&btnPesquisar=OK&Ano=2008&Numero=3207&sigla=PL. Acesso em 31 mai. 2009 45 - Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/proposicoes. Acesso em 31 mai. 2009 46 - SENADO FEDERAL. Disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=43807. Acesso em 31 mai. 2009 15


Artigo MOVIMENTOS SOCIAIS E MAGISTRATURA: PARA ALÉM DA LÓGICA DA CRIMINALIZAÇÃO

Érico Araújo Bastos Juiz de Direito do Estado da Bahia

Mestrando em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio).

A

o analisarmos a atual ordem sociopolítica do Brasil, creio que chegaremos, ao menos, a um ponto de convergência: o reconhecimento de uma histórica desigualdade social, associada a uma ordem política altamente refratária à participação da sociedade na tomada de decisões que influem no destino do País. Impõe-se questionar sobre o que nos conduz a continuarmos atados e reféns desta ordem. Para além: o que nos leva a reagir ferozmente a qualquer tentativa de alterá-la, ainda que minimamente? Medo¹, servidão voluntária², comodismo? Não saberia dar repostas definitivas ao que motiva nossa profunda resistência a uma outra ordem possível. Não devemos descuidar de que, por traz do discurso democrático, podem camuflar-se interesses conservadores a defender, em nome da ordem, a existência de um único caminho legítimo a promover mudanças. Como um corolário deste entendimento, temos a defesa de que o Parlamento se constitui o lugar próprio da política, fora do qual qualquer exercício desta natureza torna-se ilegítimo. O processo de criminalização dos movimentos sociais, promovido por diversos setores da sociedade, e não raro incorporado pelo Poder Judiciário, se inscreve nesta tentativa de convencer o povo a voltar para casa – quando a tem − e aguardar pela

decisão dos mais sábios, dos intelectuais mais aptos para governar. Mediante o presente artigo, pretendo questionar a lógica desta ordem apresentada como natural, mas que representa um ideal político herdeiro do pensamento liberal clássico. Se a ordem não é natural, ela pode ser reconstruída de outra forma, fundada em valores diversos e práticas mais democráticas e igualitárias. Não se trata de tentar alterar a realidade apenas através de reformas legislativas³. A representação legislativa padece dos vícios inerentes a qualquer forma de representação da soberania popular: jamais ser exatamente fiel aos interesses dos representados. Assim, entendo salutar a organização popular em movimentos que expressem e lutem pela alteração da ordem injusta e desigual na qual estamos inseridos. Desde já, impõe-se ressaltar que não comungo com o ideal de uma magistratura heroica, que deve tomar a dianteira das transformações sociais do País e atuar como paladino da justiça, atropelando a Constituição, a justificar os meios pelo fim. Entendo, em sentido oposto, que o Poder Judiciário não deve coagir, neutralizar, nem se prestar ao papel de ser mais uma engrenagem da máquina de criminalização do poder popular4, este, sim, legitimado a conduzir processos di-

1 - No imaginário plasmado pela ideia de revolução, não se deve desprezar o valor simbólico das cabeças de magistrados decepadas pela Revolução Francesa. 2 - Sobre a servidão voluntária como forma de explicar o motivo pelo qual uma ordem tirânica é mantida, ainda que reconhecidos seus efeitos nocivos, vide “O discurso da servidão voluntária”, Etienne de La Boétie. 3 - A advertência, nascida da sabedoria de Carlos Drummond de Andrade, já nos ensinara: “As leis não bastam, os lírios não nascem das leis”. O desprezo a este ensinamento só explicita o caminho que decidimos trilhar: reconhecer somente a sapiência dos bacharéis e técnicos, relegando as diversas formas de saber – entre eles o dos poetas − a um segundo plano. Para identificar os efeitos concretos dessas distintas visões de mundo, vide os votos dos ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio de Mello no processo que teve por objeto a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, bem como o debate em plenário, a respeito do romantismo e da ingenuidade poética que o Min. Marco Aurélio de Mello atribuiu ao voto do Min. Carlos Ayres Britto. 16


versos de mudança democrática da ordem social. Se cípio da igualdade, reivindicadas pelos diversos atores ao juiz não cabe arrogar-se à condição de decifrador políticos, dentre os quais, os movimentos sociais. da vontade popular, muito menos lhe serve a indumenMovimentos sociais e subjetivação polítitária de capataz. Entendo que o magistrado, em sua labuta diária ca: a luta pelo direito de ser ouvido como de melhor interpretar e aplicar a Constituição, deva es- igual A ideia do dissenso como ontológico à política tar alerta para a atualização do princípio propulsor da 5 democracia: o princípio da igualdade. Não cabe a ele, e o reconhecimento do princípio da igualdade como por um lado, salvar o mundo da injustiça ou, em outro propulsora da democracia encontram-se presentes na teoria de Jacques Rancière, resgaextremo, impedir que se aprofunde tando o pensamento de Maquiavel a democracia ao prejulgar deprepor associar o conflito ao desenvolciativamente a atuação dos moviSe ao juiz não cabe vimento de uma comunidade polítimentos populares que aglutinam arrogar-se à condição ca livre e igual 6. Rancière denuncia cidadãos integrantes da comunidade política nacional. de decifrador da vonta- a tentativa de restringir-se a política às assembleias, como únicos Necessário, portanto, iniciar de popular, muito menos lugares adequados à deliberação a discussão procurando compreenlhe serve a indumentária e decisão, ressaltando que justader como a atuação dos movimenmente nos parlamentos é que se tos sociais se insere no cenário de capataz. (...) em sua propaga a ideia de que há pouco a político do País. A que se presta, labuta diária de melhor se deliberar, de que cabe à política qual sua contribuição para a demointerpretar e aplicar a apenas a incumbência de adaptar cracia e de que forma o Poder Judiciário deve se deixar permear pelas Constituição, deva estar os destinos da comunidade às exigências do mercado mundial. 7Em suas demandas. São questões que alerta para a atualização posição diametralmente oposta, o pretendo enfrentar valendo-me da do princípio propulsor da autor defende que a política pode teoria de Jacques Rancière como fio condutor. Em seguida, pretendo democracia: o princípio emergir dos mais diversos espaços e se expressa no litígio que desexpor como o direito de resistência da igualdade nuda a desigualdade. Na luta dase encontra vinculado à luta dos queles que nunca foram contados movimentos sociais por igualdade. Por fim, será analisado o papel do magistrado ante a como participantes da vida política da comunidade, no Constituição de 1988, enfatizando a contribuição do intuito de serem escutados como iguais possuidores 8 Poder Judiciário para o fortalecimento da democracia do dom da palavra . A política marca, assim, a distinção entre os seao se apresentar como mais um espaço público em que se debatem as demandas por atualização do prin- res que possuem o logos – a palavra – e aqueles que

4 - Poder popular, bem como “povo”, não pode ser entendido como ente abstrato, em nome do qual o legislador – muito menos o juiz – tem o direito de exercer arbitrariamente o poder de decidir. O poder popular é exercido por pessoas que têm nome, necessidades e interesses. 5 - Impõe-se aqui registrar que a igualdade não aparece na doutrina de Rancière como mero enunciado normativo a travestir de democrático determinado texto constitucional. Trata-se da pressuposição de uma igualdade material que engatilha a luta pelo estabelecimento de uma nova ordem mais democrática. Igualdade que, se encontra apoio na declaração de direitos fundamentais, materializa-se apenas por meio da práxis política tributária do dissenso. 6 -Em sua obra “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, Maquiavel demonstra como o dissenso – e não o consenso – assegurou a grandiosidade de Roma. O conflito a que Maquiavel se refere em nada se assemelha à guerra de todos contra todos que legitima a soberania do Estado Leviatã de Thomas Hobbes. Para Maquiavel, a comunidade política deve se dar instituições que garantam sua liberdade e controle sobre o seu destino. Assim, o conflito elogiado por Maquiavel pode ser transportado para o âmbito das referidas instituições a evitar a guerra civil. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007; pp. 37-40. 7 - RANCIÈRE, Jacques; O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p.10. 8 - Rancière expõe que, na Grécia, a plebe possuía apenas o direito à liberdade. Os patrícios, além da liberdade, detinham títulos e propriedades, o que os distinguiam como possuidores do logos – da palavra, no sentido de que somente estes tinham condição de influir nas decisões da polis. Assim, na contagem das parcelas dos que integravam a comunidade política, a plebe, em verdade, compunha a parcela dos sem-parcela, os não contados por não possuírem títulos que lhes permitissem influenciar igualmente nas decisões políticas. 17


Movimentos sociais e magistratura: para além da lógica da criminalização

apenas possuem voz9 e emitem ruídos não compreen- comum, pela própria divisão.13 ” síveis, não sendo, portanto, sequer levados em conta Para depois concluir, criticando o ideal de razão 10 como emissores racionais . Rancière explicita que “há política em Aristóteles e em Hobbes: política porque o logos nunca é apenas a palavra, por“A política não é em primeiro lugar a maneira que ele é sempre indissoluvelmente a contagem que é como indivíduos e grupos em geral combinam seus infeita dessa palavra: a contagem pela qual uma emissão teresses e seus sentimentos. É antes um modo de ser sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um enquanto uma outra é apenas percebida como barulho recorte no mundo sensível que se opõe a outro recorte que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta11”. do mundo sensível.14” O escravo participa da comunidade Eis por que Rancière aponda linguagem apenas sob a forma ta o dissenso como constitutivo O que marca a diferença 12 da compreensão e não da posse da política. A política só existe por da palavra, de sorte que suas reisão as formas inconciliá- conta desta contraposição entre vindicações são entendidas como o mundo sensível dos contados – veis como cada um meros gemidos ou reclamações aqueles que possuem uma parcela entende o que foi que não articulam ideias lógicas. do somatório de direitos da comuExiste uma ordem de dominação nidade – e outro mundo, daqueles enunciado. Quando que separa dominantes e dominão-contados, aos quais não é gadominante e dominado nados. O desentendimento, nesta rantido o direito da palavra. Como expressam o termo “igualconcepção, não se traduz no fato explicita Rancière: de que ambos os lados expressem “Há política quando existe dade”, por exemplo, quevocábulos diferentes. O que marca uma parcela dos sem-parcela, uma rem expressar realidades a diferença são as formas inconciliparte ou um partido dos pobres. diversas de como apreenáveis como cada um entende o que Não há política simplesmente porfoi enunciado. Quando dominante dem este signo a partir de que os pobres se opõem aos ricos. e dominado expressam o termo seus peculiares modos de Melhor dizendo, é a política – ou “igualdade”, por exemplo, querem seja, a interrupção dos simples enxergar o mundo expressar realidades diversas de efeitos da dominação dos ricos como apreendem este signo a par– que faz os pobres existirem entir de seus peculiares modos de enquanto entidade. A pretensão exorxergar o mundo. Assim expõe o autor: bitante do demos a ser o todo da comunidade não faz “O dissenso não é a diferença dos sentimentos mais que realizar à sua maneira – a de um partido – a ou das maneiras de sentir que a política deveria respei- condição de política. A política existe quando a ordem tar. É a divisão no núcleo mesmo do mundo sensível natural da dominação é interrompida pela instituição de que institui a política e sua racionalidade própria. Mi- uma parcela sem-parcela.15” Rancière adverte, no entanto, que o problema nha hipótese é, portanto, a seguinte: a racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado não se resume apenas à luta que opõe pobres e ri-

9 - RANCIÈRE, Jacques; op. cit.; p.17. 10 - Esta ideia se liga ao discurso da menoridade política do povo que, há muito, integra o imaginário político brasileiro. Este discurso presta-se a legitimar a concentração do poder nas mãos de poucos e ainda encontra ampla aceitação na sociedade brasileira. Nessa linha de pensamento, caberia apenas à elite política, intelectual e econômica decidir os destinos do país, excluindo o povo de qualquer processo de tomada de decisão. A plebe necessita de tutor por não ter discernimento para decidir; tal qual uma criança, não tem condições de saber o que é melhor para si, de forma que suas reivindicações não podem ser admitidas como discurso racional. O povo deveria, assim, ser protegido de sua própria idiotia, salvo de si mesmo. Aquilo que o povo “pensa saber que sabe” é sempre fruto de sua ignorância e tolice, tal qual o capricho de uma criança que não tem maturidade para expressar sua vontade. 11 - RANCIÈRE, Jacques. Op. cit.; p.36. 12 - RANCIÈRE, Jacques. Op. cit.; p.32. 13 - RANCIÈRE, Jacques. O dissenso in: A crise da razão. Organizador: Adauto Novaes; Companhia das Letras; p.368. 14 - Idem, ibidem. 15 - RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p.26.

18


cos. A guerra dos pobres e dos ricos é a guerra sobre antagonismos, divergências e dissensos, ganham visia própria existência da política. Isto porque, enquanto bilidade e inteligibilidade na cena pública.” 20 o partido dos pobres encarna a própria política como E nos traz um exemplo brasileiro a elucidar a teuma instituição, como um processo de subjetivação oria exposta: decorrente do litígio deflagrado pela exposição da “Quando os trabalhadores sem-terra fazem as desigualdade, o partido dos ricos nega a política ao ocupações de terra, instauram um conflito que é mais afirmar que não existe parcela dos sem-parcela16. O do que o confronto de interesses, pois abrem a polêesforço do partido dos ricos reside mica − e o dissenso − sobre os 17 em manter a ordem vigente , nemodos como se entende ou pode cessitando, para isso, neutralizar se entender o princípio da proprieA guerra dos pobres a política, negá-la como instituinte dade privada e seus critérios de lee dos ricos é a guerra da luta por igualdade: “o litígio em gitimidade, sobre o modo como se torno da contagem do pobres como entende ou pode se entender a disobre a própria povo, e do povo como comunidade, mensão ética envolvida na questão existência da política. é o litígio em torno da existência da social e sua pertinência na delibeIsto porque, enquanto o política, devido ao qual há política.” ração sobre políticas que afetam 18 19 suas vidas, sobre o modo como partido dos pobres enComo bem expõe a socióloga carna a própria política se entende ou pode se entender a Vera da Silva Telles, corroborando questão da reforma agrária, suas como uma o exposto por Rancière: relações com uma longa história “(...) os direitos estruturam de iniqüidades e o que significa ou instituição, (...) o uma linguagem pela qual esses supara o futuro deste partido dos ricos nega a pode significar jeitos elaboram politicamente suas país.” 21 política ao afirmar que A política, assim entendida, diferenças e ampliam o “mundo tem a característica própria de percomum” da política ao inscrever na não existe parcela turbar a ordem vigente naturalizacena pública suas formas de exisdos sem-parcela da como a única legítima22 – a que tência, com tudo o que elas carreRancière denomina de ordem poligam em termos de cultura e valores, 23 esperanças e aspirações, como questões que interpe- cial − buscando-se estabelecer uma ordem nova, na lam o julgamento ético e a deliberação política. (...) Se qual aqueles que recusamos a contar como integrantes é certo que a reivindicação por direitos faz referência da comunidade política se pretendem iguais possuidoaos princípios universais da igualdade e da justiça, es- res do logos. Esta luta por igualdade manifesta-se pelo ses princípios não existem como referências de con- dissenso e tem por fundamento o ideal democrático senso e convergência de opiniões. Ao contrário disso é de ruptura com toda lógica da dominação24. Assim, a o que define o terreno do conflito no qual as disputas e democracia possibilita a atuação da plebe contra a do16 - RANCIÈRE, Jacques. Idem; p.29. 17 - Rancière identifica no discurso dos liberais do século XIX uma franqueza quanto à desnecessidade da política, ao afirmarem que há apenas “chefes e subordinados, pessoas de bem e pessoas de nada, elites e multidões, peritos e ignorantes. Nos eufemismos contemporâneos, a proposta enuncia-se de maneira diferente: há apenas partes da sociedade: maiorias e minorias sociais, categorias sócio-profissionais, grupos de interesses, comunidades etc.”. Assim, explicita o autor, o que se pretende é passar a ideia de que não há parcela dos sem-parcela, não há não contados. “Só há as parcelas das partes. Em outras palavras: não há política ou não deveria haver”. Idem, ibidem. 18 - Idem, ibidem. 19 - Nesta mesma linha, Marilena Chauí entende que a democracia opera necessariamente como a legitimidade do conflito, tendo os movimentos sociais, sindicatos e associações função de contrapoder social. CHAUÍ, Marilena. A sociedade democrática; p. 336; apud LACERDA, Marina Basso. O direito de resistência e a resistência do Direito: problematizando conflitos entre as ocupações de terra e os espaços jurídicos no Brasil contemporâneo. Monografia de conclusão do curso de graduação em Direito pela UFPR, 2007, 104p. 20 - ELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Revista da USP, São Paulo: v. 37, p. 34-45, 1998. 21- Idem. Diversos outros exemplos serviriam para aclarar o tema ora em debate. A luta por direitos promovida pelos movimentos negro, das mulheres ou pelo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), são apenas exemplos mais visíveis de movimentos populares em luta pela atualização do princípio da igualdade. São exemplos de não contados, cujas vozes nunca foram ouvidas da mesma forma que as demais parcelas e que se fazem ouvir por instaurar o conflito com a ordem vigente. Mediante este ato político buscam ser reconhecidos como sujeitos iguais, com iguais direitos, inclusive o de ocupar espaço na esfera pública e exercer o dom da palavra. 19


Movimentos sociais e magistratura: para além da lógica da criminalização

minação dos governantes. O demos, em Atenas, era da igualdade. É certo, no entanto, que esta relação se constituído dos pobres não como categoria econômica, apresenta de forma mais complexa a exigir maiores e, sim, categoria simbólica, um modo de ser no mundo considerações. em que não são inseridos na contagem da comunidade O Poder Judiciário inscreve-se dentre as instituipolítica. Não possuem, portanto, nenhum título de valor ções que compõem e preservam a ordem policial 27 (orpara governar. A democracia se impõe como profunda dem sensível vigente e entendida como natural), contra ruptura naquela ordem vigente que entende necessá- a qual se confronta a lógica da igualdade. É preciso rio um título para legitimar-se como enfrentar, portanto, a intrincada governante. A democracia subverte questão, se pretendemos nos valer e desafia esta ordem ao reclamar da lógica da igualdade como parâA política como igualdade no sentido de que govermetro para analisar a legitimidade processo que perturba nam os que não possuem títulos. O da atuação democrática do Poder a configuração de uma poder não pertence ao nascimento, Judiciário. Os estudos de Rancière 25 à riqueza ou à sabedoria . ordem tida por natural nos oferecem pistas nesta busca. Política, democracia e igualA atividade política, no encarrega consigo uma dade encontram-se, desta forma, tender de Rancière, rompe a conpressuposição de igualdanecessariamente imbricados. A pofiguração que define uma ordem lítica como processo que perturba a de de que os não contados na qual já se encontram predeterconfiguração de uma ordem tida por também são homens de minados – e naturalizados − os lunatural carrega consigo uma presgares, o tempo e os sujeitos que fala, que têm algo a discusuposição de igualdade de que os compõem o processo de tomada não contados também são homens tir com as parcelas que já de decisões de uma comunidade. de fala, que têm algo a discutir com integravam a contagem E o faz movido por uma pressupoas parcelas que já integravam a sição de igualdade que resulta na daquela sociedade contagem daquela sociedade. A subjetivação política daqueles que democracia, por sua vez, é o modo não eram contados como falantes de subjetivação da política que condaquela comunidade política. Asfronta a lógica da igualdade com a sim, a existência da política depen26 lógica da ordem policial . de do encontro desses dois processos heterogêneos: o Tais categorias apresentam-se fundamentais processo policial e o processo da igualdade28. Apesar para compreender a atuação dos movimentos sociais da heterogeneidade destas duas lógicas, a política está e a importância do Poder Judiciário como espaço pú- sempre amarrada à polícia, como expõe Rancière: blico permeado pela luta por atualização do princípio “A política não tem objetos ou questões que lhe

22 - Conforme expressa Rancière: “a atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era visto como barulho.” 23 - RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p. 42. 24 - RANCIÈRE, Jacques. RANCIÈRE, Jacques. O dissenso in: A crise da razão. Organizador: Adauto Novaes; Companhia das Letras; p. 372. 25 - RANCIÈRE, Jacques. Idem; p. 370. 25 - RANCIÈRE, Jacques. Idem, ibidem; p. 370. 26 - RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p. 104. Em referência a estas duas lógicas – da igualdade e da polícia – necessárias para a existência da política, Rancière esclarece: “Há, portanto, de um lado, essa lógica que conta as parcelas unicamente das partes, que distribui os corpos no espaço de sua visibilidade e invisibilidade e põe em concordância os modos do ser, os modos do fazer e os modos do dizer que convêm a cada um. E há a outra lógica, aquela que suspende essa harmonia pelo simples fato de atualizar a contingência da igualdade, nem aritmética, nem geométrica, dos seres falantes”. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p. 40-41. 27 - Convém ressaltar que Rancière atribui a denominação de polícia ao que normalmente se denomina de política, qual seja, “o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a administração dos lugares e funções e os sistemas de legitimação desta distribuição.” RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p. 41. 28 - RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p. 43. Em relação ao processo policial o autor esclarece que este não deve ser necessariamente tido por nocivo ou repressivo. Ressalta que existem ordens policias melhores que outras e que a polícia pode ser “doce e amável”. Idem, p. 43-44. A idéia de ordem policial aqui não deve ser entendida como necessariamente repressora e sim, como ordem vigente. 29 - RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2003; p.45. 30 - Idem, ibidem. 20


sejam próprios. Seu único princípio, a igualdade, não e se a política encontra em toda a parte a polícia, enlhe é próprio e não tem nada de político em si mes- trelaçando as heterogêneas lógicas igualitária e polimo. Tudo o que ela faz é dar-lhe uma atualidade sob cial, parece-nos claro que uma instituição do Estado − a forma de caso, inscrever, sob a forma de litígio, a como tipicamente o é o Poder Judiciário – sofre influxo averiguação da igualdade no seio da ordem policial. O e participa desta averiguação do processo igualitário que constitui o caráter político de uma ação não é seu reclamado pelos movimentos populares. objeto ou o lugar onde é exercida, Movimentos sociais e dimas unicamente sua forma, a que reito de resistência inscreve a averiguação da igualdade na instituição de um litígio, de Se a política encontra A atuação dos movimentos uma comunidade política que existe sociais pode ser inscrita, ainda, apenas pela divisão. A política enem toda a parte a 29 como forma de direito de resistêncontra em toda a parte a polícia.” polícia, entrelaçando as cia. As teorias contratualistas, nas E continua: quais se baseiam os ordenamentos “Um mesmo conceito – a heterogêneas lógicas jurídicos do mundo ocidental, noropinião ou o direito, por exemplo malmente entendem o direito de – pode designar uma estrutura do igualitária e policial, resistência como direito negativo, agir político ou uma estrutura de parece-nos claro que uma pelo qual o indivíduo resiste a uma ordem policial [...] Mas é preciso ordem ou lei francamente injusta e acrescentar que essas palavras instituição do Estado − arbitrária, atuando em movimentambém podem designar, e desigto de reação. O problema nesta como tipicamente o é o nam na maioria das vezes, o próprio concepção reside no fato de que a entrelaçamento das lógicas [policial Poder Judiciário legitimidade para resistir encontrae igualitária]. A política age sobre a se sempre em sentido negativo, em polícia. Ela age em lugares e com que se torna necessária a prática palavras que lhe são comuns, se tirânica para fazer emergir o direito for preciso reconfigurando esses 32 lugares e mudando o estatuto dessas palavras. O que a resistir . Entendo, em sentido mais amplo, que o direito habitualmente é colocado como o lugar do político, ou seja, o conjunto das instituições do Estado, justamente de resistência abrange um modo positivo, um atuar que não é um lugar homogêneo. Sua configuração é de- sequer permita a instauração de uma ordem tirânica. terminada por um estado das relações entre a lógica E mais: um atuar na linha do que Maquiavel propõe ao afirmar que cada comunidade política deve dar-se inspolítica e a lógica policial.” 30 33 Eis porque creio que a abordagem realizada tituições capazes de garantir liberdade e igualdade . por Rancière a respeito do dissenso e do princípio da Assim pensado, o direito de resistência torna-se uma igualdade se apresenta extremamente útil ao debate a constante nas relações de poder existentes, agindo 34 respeito da relação entre movimentos sociais e magis- para transformá-las . Em ambos os aspectos – positivo e negativo – o tratura31. Se a atividade política, própria dos movimentos sociais, faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir direito de resistência se traduz na forma de atuação como discurso o que se entendia apenas por barulho, dos movimentos sociais, no desnudar a desigualdade 31 - A edição da Lei Maria da Penha, o debate sobre o Estatuto da Igualdade Racial e mesmo o entendimento jurisprudencial que equiparou as relações homoafetivas às heteroafetivas para efeitos previdenciários nos informam como a lógica política e a lógica policial se encontram e como esta recebe os influxos daquela. 32 - GUIMARAENS, Francisco de. Direito de resistência e a receptividade de doutrinas jurídicas. Direito, Estado e Sociedade, n° 30, janeiro-junho 2007; Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica – Departamento de Direito, 2007; p. 167. 33 - Esta é a lógica que leva Maquiavel a aconselhar que a defesa da Cidade – entendida como comunidade política − não pode ser delegada a uma pessoa apenas, e sim realizada pelo povo em armas. Como explicita Francisco de Guimarães, as armas atualmente devem ser de outra natureza, mas devem, ainda, permanecer nas mãos do povo. Idem, pp. 172 e 174. 34 - Idem, p. 172. 35 - Idem, p. 175. 21


Movimentos sociais e magistratura: para além da lógica da criminalização

e democrática37. Com o crime se passa justamente o oposto. Não que o crime não possa ser eventualmente praticado perante o público, mas não há de se negar que a ideia de ocultação – de atos e motivos – encontra-se implícita em seu conceito. Como explicita brilhantemente Hannah Arendt, ao opor-se à ideia de muitos juristas no sentido de que o desobediente civil pratica ilícito: “Há um abismo de diferença entre o criminoso que evita os olhos do público e o contestador civil que toma as leis em suas próprias mãos em aberto desafio.” 38 Dworking, por sua vez, exNão que o crime não põe os motivos pelos quais entende possa ser eventualmente que não se podem punir cidadãos que desobedecem leis por motivo praticado perante o de consciência. Em primeiro plapúblico, mas não há no, explicita que os motivos que os de se negar que a movem são melhores do que os daqueles que apenas subvertem leis ideia de ocultação – de pelo desejo de subverter o governo. atos e motivos – Ademais, expõe, em tais práticas encontra-se implícita existe propósito subjacente que se constitui no processo de evolução em seu conceito pondo à prova o direito, mediante a experimentação dos cidadãos e o processo do contraditório39.

onde ela não era vista ou relegada a uma ordem natural, na luta por uma igualdade de ser ouvido e contado como igual. Se entendermos que a ordem vigente opera uma espécie de tirania por ser intoleravelmente injusta e desigual, a luta dos movimentos sociais por uma ordem mais igual pode, sim, ser legitimada pelo direito de resistência negativo. No entanto, toda luta por igualdade pressupõe a constituição de novos direitos ou a releitura de outros, no intento de atualizar o que

se compreende por igualdade. Este processo envolve uma conquista, pois, como afirma Francisco de Guimaraens, os direitos não estão prontos, sendo preciso estabelecêlos; e esta conquista pressupõe um evidente dissenso, o confronto com uma ordem vigente produzida por forças previamente configuradas, com o intuito de reconstituição de uma ordem social e jurídica igualitária35. O debate sobre o direito de resistência aparece inevitavelmente acoplado à discussão sobre a criminalização dos atos daqueles que assim atuam. Em verdade, parece tratar-se de uma mesma disputa. Os que atuam com pretensão de igualdade e os que tentam negar esta luta, desqualificá-la, deslocá-la para o campo de decisão em que aqueles não contados sequer participam. Isso porque, os que pretendem a manutenção desta ordem desigual a utilizam – ela própria que está sendo questionada − como meio de criminalizar os atos dos cidadãos que resistem à desigualdade e injustiça. Existe um fator distintivo entre crime e o ato praticado com fundamento no direito de resistência. Este tem a publicidade como essência; o desnudar dos seus motivos e reivindicações por igualdade36 lhes são constitutivos, sendo, em última instância, ato que se procede em prol de uma comunidade mais igual, justa

Esta questão apresenta-se tormentosa para o magistrado, que deve estar atento às nuances dos diversos casos. Tais fatos não são raros e não são poucos os exemplos em que o Poder Judiciário tem sido utilizado como – e se presta ao papel de – criminalizador de movimentos sociais e de seus integrantes, contribuindo para a cristalização de uma ordem injusta e marcada pela profunda desigualdade. A lição de Juarez Cirino dos Santos, no sentido de entender a desobediência civil como excludente de culpabilidade, parece-me oportuna nesta seara: “A situação de exculpação definida como desobediência civil tem por objeto ações ou demonstrações

36 - GARCIA, José Carlos. O MST entre a desobediência e a democracia. STROZAKE, Juvelino José (org.). A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: RT, 2000. p. 148-150. apud LACERDA, Marina Basso, op. cit. 37 - ARENDT, Hannah. Op. cit., 69. 38 - ARENDT, Hannah. Idem. 39 - DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Traducción Marta Gustavino. 5 reimp. Barcelona: Ariel, 2002 p. 319 apud LACERDA, Marina Basso; op. cit. 22


públicas, como bloqueios, ocupações etc., realizadas nais, objetivos fundamentais da República Federativa em defesa do bem comum, ou de questões vitais da do Brasil (CF, art. 3º, III). população, ou mesmo em lutas coletivas como direitos Os movimentos sociais nascem como meio de humanos fundamentais, como greves de trabalhado- mobilização popular para combater esta desigualdade, res, protestos de presos e, no Brasil, Movimento dos não cabendo ao Judiciário prejulgar seus integrantes Sem-Terra, desde que não constituam ações ou ma- como criminosos. O perturbador de uma ordem injusta nifestações violentas ou de resistência ativa contra a corre o sério risco de agir em consonância com o espíordem vigente – exceto obstruções e danos limitados rito constitucional. no tempo – e apresentem relação Alguns julgados do STJ pareconhecível com os destinatários recem caminhar no sentido aqui respectivos. defendido: Autores de fatos qualificados “(...) Reivindicar, por reivindicomo desobediência civil são poscar, insista-se, é direito. O Estado Os movimentos suidores de dirigibilidade normativa não pode impedi-lo. O modus fasociais nascem como e, portanto, capazes de agir conciendi, sem dúvida, também é remeio de mobilização forme o direito, mas a exculpação levante. Urge, contudo, não olvidar se baseia na existência subjetiva o ‘princípio da proporcionalidade’, popular de motivação pública ou coletiva tão ao gosto dos doutrinadores alepara combater esta relevante, ou, alternativamente, na mães.” desigualdade, não desnecessidade de punição, por“A postulação da reforma que os autores não são criminosos agrária, manifestei em habeas cabendo ao Judiciário – portanto, a pena não pode ser corpus anterior, não pode ser conprejulgar seus retributiva e, além disso, a solução fundida, identificada, com esbulho integrantes como de conflitos sociais não pode ser possessório ou alteração de limiobtida pelas funções de prevenção tes. Não se volta para insurpar a criminosos especial e geral atribuídas à pena propriedade alheia. A finalidade é 40 criminal.” outra. Ajusta-se ao direito. Sabido,

Movimentos Sociais e Magistratura Ressalte-se, mais uma vez, que não se está a pregar o heroísmo e voluntarismo do magistrado. As demandas por igualdade encontram fundamento na própria Constituição de 1988, que não apenas explicitou o princípio da igualdade de forma geral (art. 5°, caput), como especificou, ao longo do texto, os maiores focos de desigualdades a serem debelados (a racial, de gênero e de propriedade). De tão caro ao Constituinte de 1987 o problema da desigualdade que fez da erradicação da pobreza e da marginalização, bem como da redução das desigualdades sociais e regio-

dispensa à prova, por notório, o Estado, há anos, vem remetendo a implantação da reforma agrária.” “Os conflitos resultantes, evidente, precisam ser dimensionados na devida expressão. Insista-se. Não se está diante de crimes contra o Patrimônio. Indispensável a sensibilidade do Magistrado para não colocar, no mesmo diapasão, situações jurídicas distintas.” 41 “Não vislumbro, substancialmente (...), no caso concreto, formação de quadrilha ou bando, ou seja, infração penal em que se reúnem três ou mais pessoas com a finalidade de cometer crimes. Pode haver, do ponto de vista formal, diante do direito posto, insubordinação: materialmente, entretanto, a ideologia da conduta não se dirige a de perturbar, por perturbar, a

40 - CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Moderna Teoria do Fato Punível. 3 ed. Curitiba: Editora Fórum, 2004. p. 262-263. Sublinhei. Itálico no original. 41 - STJ. 6ª Turma. rel. desig. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro. HC 5.574/SP. DJU 18.08.1997. RT 747. Fragmento do voto (vencedor) do relator; p. 611-612. A ementa deste julgamento resume o que aqui foi dito: “Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático”.

23


Movimentos sociais e magistratura: para além da lógica da criminalização

propriedade. Há sentido, finalidade diferente. Revela dade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual quadra constitucional que se volta para a efetivação seja a implantação da reforma agrária.” 42 de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral “Pergunto, à medida que os fatos se desenrola- de minorias que só têm experimento, historicamente e ram, se não seria – o Ministro Luiz Vicente Cherniccia- por ignominioso preconceito − quando não pelo mais ro enfocou bem – uma ‘reforma agrária de baixo para reprovável impulso coletivo de crueldade −, desvantacima’, uma pressão social, já que o governo está ‘tran- gens comparativas com outros segmentos sociais. Por qüilo’ a não sei quanto anos quando todas as nossas isso que se trata de uma era constitucional compenCartas e as nossas Constituições satória de tais desvantagens hisestão apregoando reforma agrária? toricamente acumuladas, a se via(...) Seria o uso do direito de resisbilizar por mecanismos oficiais de Não temos na tência? Não temos na Constituição ações afirmativas (afirmativas da Constituição brasileira, encarecida igualdade civil-moral). brasileira, como em alguns estatu45 tos políticos estrangeiros, expres(Grifo nosso) como em alguns samente, o direito de resistência. Em sentido análogo, no voto estatutos políticos Têm os súditos o direito de se reberelativo ao ProUni: estrangeiros, lar contra o soberano que não está Ora bem, que é o desfavore43 44 agindo a favor do povo?” expressamente, o direito cido senão o desigual por baixo? E Recentes votos da lavra do quando esse tipo de desigualdade de resistência. Têm os ministro Carlos Ayres Brito parecem se generaliza e perdura o suficiente súditos o direito de se indicar que o princípio da igualdade para se fazer de traço cultural de vem sendo entendido de forma dium povo, é dizer, quando a desirebelar contra o nâmica, a indicar a necessidade de gualdade se torna uma caracteríssoberano que não sua constante atualização. Refirotica das relações sociais de base, está agindo a favor me ao voto no processo em que se uma verdadeira práxis, aí os segdiscutiu a validade da demarcação mentos humanos tidos por infedo povo? da reserva indígena Raposa Serra riores passam a experimentar um do Sol e do voto no processo em perturbador sentimento de baixa que se debateu a constitucionalidaauto-estima. Com seus deletérios de do estabelecimento do ProUni. Nestes casos, em efeitos na concretização dos valores humanistas que que atuou como relator, o Min. Ayres Britto reconheceu a Magna Lei brasileira bem sintetizou no objetivo funa condição de profunda desigualdade social para fun- damental de “construir uma sociedade justa, livre e sodamentar seu entendimento, alargando o princípio da lidária” (inciso I do art. 3º). Pois como negar o fato de igualdade em consonância com o espírito da Consti- que o desigual por baixo, assim macrodimensionado e tuição de 1988. Lê-se no voto relativo ao caso Raposa renitente, se configure como um fator de grave deseSerra do Sol: quilíbrio social? A condenar inteiros setores populacioTambém aqui é preciso antecipar que ambos os nais a uma tão injusta quanto humilhante exclusão dos arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finali- benefícios da própria vida humana em comum?

42 - STJ. 6ª Turma. rel. Min. William Patterson. HC 4.399/SP. DJU 08.04.1996. Revista do STJ, 87. Fragmento do voto do Min. Luiz Vicente Cernicchiaro. p. 371-372. 43 - STJ. 6ª Turma. rel. Min. William Patterson. HC 4.399/SP. DJU 08.04.1996. Revista do STJ, 87. Fragmento do voto do Min. Vicente Leal. p. 374375. 44 - Valido extrair a consideração feita por Garcia a respeito do tema: “Nestes termos [com referência ao HC 5.574/SP], a ocupação de uma agência bancária como forma de protesto contra a ausência de políticas oficiais mais ousadas para o financiamento à pequena propriedade rural e aos assentamentos não pode jamais ser identificada com a conduta de assaltantes de banco, como já disse o Presidente [Fernando Henrique Cardoso] em certa ocasião (ver Jornal do Brasil, 28 de maio de 1998, capa e p. 2), especialmente quando se tem ciência do ‘perdão ao calote’ por parte do Banco do Brasil em benefício dos grandes latifundiários protegidos pela poderosa bancada ruralista na Câmara dos Deputados, como amplamente divulgado pela imprensa nacional em passado nada distante”. GARCIA, J. C. Obra citada. p. 168; apud Marina Basso Lacerda; op.cit. 45 - STF. Plenário. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Pet/3388. Publicada no DJ n° 168 do dia 08/09/2008. 24


sentido de cotejá-las com o espírito da Constituição. Os movimentos sociais apresentam-se, por sua vez, como fundamentais para o processo de subjetivação política de seres antes sequer ouvidos. Ali onde sempre passou despercebida uma desigualdade, ou quando esta sempre foi enxergada como natural ou restrita à ordem privada, eis o campo de atuação daqueles movimentos que são responsáveis por ativar o princípio da igualdade em prol da democracia. JustaConsiderações finais mente por expor esta fratura é que tais movimentos operam com o Após a ditadura, deflagradissenso, com o conflito que expõe da pelo golpe civil-militar de 1964, a desigualdade da ordem vigente. (...) instituições, emerge uma nova era política no Neste ponto suas reivindicações País. A redemocratização é coroapodem ser classificadas como decriadas pelo poder da com a promulgação da Constituisordem, no sentido de que abalam constituinte e que se ção Federal de 1988, cujo procesnossas certezas de igualdade de legitima na medida em uma ordem preestabelecida. Assim so constituinte contou com grande participação popular e nos legou se constrói, de baixo para cima, que se comporta como um texto efetivamente democrático. uma ordem social e econômica mais um espaço público A democracia em sua ampla dimenmais igualitária, menos elitista e em que o dissenso são; aquela que extrai legitimidade concentradora de direitos. da igualdade material e na qual o Daí porque o magistrado oportuniza a atualização povo político erige instituições para não pode se afastar da sociedade. do princípio da igualdade, Não pode estigmatizar e tratar com garantir, para si, liberdade e justiça. aprofundando O Poder Judiciário, portanto, deve menoscabo a luta por igualdade de se enxergar como uma dessas inscidadãos que, conforme expressa a democracia tituições, criadas pelo poder constiRancière, sequer são contados tuinte e que se legitima na medida como membros da comunidade, em que se comporta como mais um que sequer podem se expressar e espaço público em que o dissenso ser ouvidos como iguais. Eis porque o Poder Judiciário oportuniza a atualização do princípio da igualdade, não pode pretender-se tutor do Estado e do povo, se aprofundando a democracia. quiser atuar em conformidade com o princípio demoDesta forma de compreender o Poder Judiciário crático veiculado na Constituição de 1988. O magise a atuação do magistrado decorrem efeitos concre- trado não faz política, mas trabalha a todo o momento tos. Rompe-se com a ideia de que a cidadania deve com questões políticas que lhe são trazidas pelos diser imposta de cima para baixo, que o Poder Judiciário versos sujeitos, inclusive movimentos sociais e seus detém um eventual dever pedagógico de ensinar a li- representantes. Impõe-se, assim, que esteja liberto de ção democrática ao povo ignorante e analfabeto. Nada preconceitos para apreender – e aprender – o procesmais arrogante, prepotente e antidemocrático. O mito so de atualização da igualdade, sendo um colaborador da menoridade política do povo tem se prestado, desde e não um obstáculo à democracia. Creio ser este um os tempos do Império, a justificar a concentração da dos mais importantes papéis que cabe ao magistrado tomada de decisões políticas nas mãos de muito pou- diante do texto constitucional vigente, que se preocucos. O Poder Judiciário deve, sim, permanecer atento pou em sinalizar para a resolução do drama da desia todas as formas de reivindicação popular e atuar no gualdade social no Brasil. Acontece que a imperiosa luta contra as relações desigualitárias muito raro se dá pela via do descenso ou do rebaixamento puro e simples dos sujeitos favorecidos (personifiquemos as coisas, doravante). Geralmente se verifica é pela ascensão das pessoas até então sob a hegemonia de outras. Que para tal viagem de verticalidade são compensadas com esse ou aquele fator de supremacia formal.46

46 - STF. Plenário. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. ADI/3330. Publicada no DJ n° 63 do dia 09/04/2008. 25


Artigo DOMICÍLIO ELEITORAL

Rita de Cássia Ramos de Carvalho Juíza de Direito Vara Cível de Itaparica-BA.

O

Especialista em Direito Eleitoral, Direito Civil e Direito Público Municipal pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia.

instituto do domicílio eleitoral sempre esteve atrelado ao conceito de residência; desde as primeiras leis eleitorais brasileiras até as atuais houve muito pouca evolução nessa seara, constatando-se, por vezes, modificações apenas de cunho terminológico. A noção de domicílio eleitoral remonta aos tempos do Brasil Colônia, época em que nosso país era uma província de Portugal, sendo as Ordenações do Reino responsáveis por regulamentar o processo eleitoral da época, de forma que somente podiam votar aqueles cidadãos residentes na vila ou cidade, desde que tal condição fosse confirmada pelo pároco local. Desta forma, a noção de residência da época traduzia-se no local onde a pessoa e sua família habitavam com ânimo definitivo, o que nos tempos atuais denota o conceito de domicílio civil. Ao adentrar o século XX, os cidadãos se depararam com uma norma que dava ampla liberdade ao eleitor de estabelecer qual seria o seu domicílio eleitoral, sob o amparo do Código Eleitoral vigente em 1932, que rompeu com qualquer tipo de critério, tendo gerado inúmeros transtornos, e que mais tarde foram sanados através da Lei nº 48/1935. A referida lei, responsável pela modificação no Código Eleitoral de 1932, estabeleceu que o domicílio eleitoral devesse coincidir com o domicílio civil; tendo o cidadão mais de um domicílio civil, poderia escolher qualquer um deles. Tal conceito sofreu alteração pelo Decreto-Lei no 7.750, de 1945, ao estabelecer que, em se tratando de inscrição original, houvesse a liberdade de escolha do domicílio, independentemente do local de residência. Contudo, tratando-se de transferência, seria exigida residência com ânimo definitivo. 26

A edição do Decreto-Lei nº 9.258, de 1946, estabeleceu a redação sobre domicílio eleitoral, que posteriormente foi adotada pelos Códigos Eleitorais de 1950 e 1965, este último vigente na atualidade. O legislador de 1965 buscou definir o domicílio, entretanto, não abarcou no artigo o seu conceito, como fez o legislador de 1935, ao equiparar domicílio eleitoral e domicílio civil. Deste modo, a ausência de conceituação tem gerado muitas controvérsias, o que torna imperioso verificar os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema domicílio eleitoral.

Conceito de domicílio e suas espécies Mister se faz mencionar, acerca do conceito de domicílio abarcado pelo Novo Código Civil Brasileiro, que em nada alterou a redação do artigo definidor do domicílio no Código de 1916, bem como das espécies de domicílio abrangidas pelo ordenamento jurídico pátrio. O art. 70 do Novo Código Civil estabelece o domicílio da pessoa natural como sendo aquele onde ela estabelece a residência com ânimo definitivo, fazendo no artigo seguinte referência à pluralidade de residências, hipótese em que será considerado domicílio qualquer uma delas. Diante do conceito trazido extraem-se dois elementos: um de cunho objetivo, consistente na residência como morada, habitação; outro de cunho subjetivo ou psicológico, referente ao ânimo definitivo¹. Ademais, o Novo Código Civil considera domicílio da pessoa natural o lugar onde a profissão é exercida, e caso a profissão possa ser exercitada em vários lugares, considerar-se-á domicílio cada um deles para as relações


que lhe corresponderem, conforme o caput do art. 72 e Nesse diapasão, a preocupação do legislador seu parágrafo único. em fixar o domicílio da pessoa física decorre principalDe acordo com Washington de Barros Monteiro, mente da necessidade de o Estado exercer o seu papel domicílio “é a sede jurídica da pessoa, onde ela se pre- fiscalizador de tal forma que o indivíduo não possa se sume presente para efeitos de direito e onde exerce ou eximir de suas obrigações legais, tendo papel fundapratica, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos mental tal fixação nos diversos ramos do direito (v.g. ²”. no direito processual civil o foro de domicílio do réu O entendimento do mestre Orlando Gomes é é a regra para fixação da competência territorial, nas no sentido de considerar: “Domicílio é o lugar onde a ações fundadas em direito pessoal e em direito real pessoa estabelece a sede principal sobre bens móveis). de seus negócios (constitutio rerum Diferença entre domicílio et fortunarum), o ponto central das e residência ocupações habituais³“. No que tange à pessoa natuVale ressaltar a diferença ral não ter residência habitual, o arA diferença entre os tigo 73 do NCC preceitua que será conceitos de domicílio e entre os conceitos de domicílio e residência, por serem comumente tido como domicílio o lugar onde a residência, por confundidos − e que, por vezes, mesma for encontrada, e caso tenha podem mesmo coincidir −, não domicílio e queira mudar, basta que serem comumente transfira a residência com a intenconfundidos − e que, por devendo com isso se concluir que domicílio e residência queiram ção manifesta de mudá-lo (art.74, vezes, podem mesmo significar a mesma coisa. NCC), sendo que o parágrafo úniCésar Fiúza buscou difeco do art.74 menciona: “A prova da coincidir renciar residência e domicílio, disintenção resultará do que declarar pondo o seguinte: “Residência é a pessoa às municipalidades dos o lugar em que a pessoa se fixa, lugares que deixa e para onde vai, ainda que temporariamente. Doou, se tais declarações não fizer, da micílio é o lugar em que a pessoa própria mudança, com as circunsse fixa com vontade de aí permatâncias que a acompanharem”. necer em definitivo4”. O ordenamento jurídico brasiVislumbre-se os ensinamentos de Adriano Soaleiro admite três espécies de domicílio da pessoa física: o domicílio natural ou voluntário, decorrente da fixa- res da Costa, pertinente ao conceito de residência: Residência é o lugar onde se mora, onde há perção da residência em dado local, com ânimo definitivo; o domicílio legal, ou seja, determinado por imposição manência do indivíduo por algum tempo. Se há prode lei, como ocorre com o incapaz, o preso, o militar, o priedade de uma casa de campo, e nela passam-se marítimo e o servidor público, que possuem domicílio temporadas, há residência; assim também se possui necessário, podendo ainda citar como exemplo de do- casa de veraneio ou casa de praia. Portanto, pode-se micílio legal o domicílio eleitoral, por estar determinado ter mais de uma residência. Basta a configuração da no Código Eleitoral; e, por fim, o domicílio contratual, residência e estadia mais prolongada, costumeira, dia aquele designado pelas partes quando do firmamento e noite. A habitualidade da moradia é nuclear no conde um contrato, com o fito de fixar a sede jurídica onde ceito de residência5. Seguindo essa linha de raciocínio, domicílio e serão dirimidos quaisquer conflitos.

1 - CERELLO, Anselmo. Domicílio eleitoral. Disponível em: http://www.tre-sc.gov.br/site/fileadmin/arquivos/biblioteca/doutrinas/anselmo1.htm. Acesso em: 20/01/2008. 2 - Domicílio. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/resumos/x/22/00/220/. Acesso em: 25/02/2008. 3 - IDEM. 4 - FIÚZA, César. Curso Completo de Direito Civil. 10ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 166. 5 - COSTA, Adriano Soares. Instituições de Direito Eleitoral. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.139. 27


Domicílio Eleitoral

residência podem coincidir, entretanto, a residência é considerada como sendo o lar do indivíduo, onde ele mora; já o domicílio é o lugar de residência permanente da pessoa, onde ela irá exercer seus direitos e cumprir suas obrigações, onde também receberá correspondências oficiais; assim, é necessário o ânimo definitivo (animus manendi), e é nesse aspecto, aliás, que se encontra a diferença entre entes institutos.

reconhecido no Acórdão nº 23.721, de 4.11.2004, cujo relator foi o Min. Humberto Gomes de Barros: Domicílio eleitoral. Transferência. Residência. Antecedência (CE, art. 55). Vínculos patrimoniais e empresariais. Para o Código Eleitoral, domicílio é o lugar em que a pessoa mantém vínculos políticos, sociais e afetivos. A residência é a materialização desses atributos. Em tal circunstância, constatada a antiguidade desses vínculos, quebra-se a rigidez da exigência Conceito de domicílio eleitoral contida no art. 55, II7. Em se tratando de vínculo afetivo, como o maApós análise do conceito de domicílio repetido gistrado deve aferir tal liame, se não lhe é apresentado pelo Novo Código Civil, bem como nenhum documento que o valha, das suas espécies, tendo buscado capaz de comprovar tal assertiva? ainda estabelecer a diferença entre Prepondera o livre convencimento O magistrado deve domicílio e residência, será feito do juiz, observando-se as provas ponderar a situação um estudo acerca do domicílio eleitrazidas pelo eleitor que alega víntoral, tema do presente trabalho, e de fato e decidir de culo de ordem afetiva com a localique se enquadra como visto na esdade para onde deseja transferir o modo a reconhecer pécie de domicílio legal. domicílio, aliado à regra contida no o domicílio eleitoral, Vaticina o art. 42, parágrafo artigo 42 do Código Eleitoral. único, da Lei nº 4.737/1965, denoAdemais, o magistrado deve eleito com minado Código Eleitoral, no que ponderar a situação de fato e decidir liberdade pelo eleitor, tange ao domicílio eleitoral: “Para de modo a reconhecer o domicílio o efeito da inscrição, é domicílio como sendo aquele eleitoral, eleito com liberdade pelo eleitoral o lugar de residência ou coincidente com o local eleitor, como sendo aquele coinmoradia do requerente, e, verificidente com o local onde o eleitor cado ter o alistando mais de uma, onde o eleitor exerce seus exerce seus direitos políticos, sua considerar-se-á domicílio qualquer cidadania, e que pode não coincidireitos políticos, sua uma delas” (grifo nosso). Observedir com o “lugar de residência ou cidadania se que o regramento legal refere-se moradia do requerente”, conforme à residência ou moradia; para o diestabelecido no Código Eleitoral8. reito eleitoral significa o local onde Outrossim, a simples declaração se vive com habitualidade, ainda que somente para do eleitor e afirmação de duas testemunhas assegura a fins laborais e sem fixar lugar de morar, não servindo veracidade da afirmação, capaz de por si só comprovar a simples estadia para efeito de domiciliação eleitoral, a legalidade do requerimento e possível deferimento, porquanto tem de haver algum liame que vincule o indi- seja da inscrição ou transferência do eleitor, valendo víduo à zona eleitoral 6. ressaltar que, nesta última, há a exigência de no míniDeste modo, o eleitor poderá indicar seu domicí- mo o eleitor já morar no local há 03 (três) meses (Art. lio para exercer seu direito democrático. Destacam-se 55, § 1º, inciso III, do CE, e art. 18, inciso III, da Resoaqueles que possuem interesse e vínculo patrimonial, lução TSE n.º 21.538, de 14.10.2003 - TSE). econômico, político, profissional, comunitário, cultural, Note-se o comentário feito por Adriano Soares social, histórico e afetivo com a localidade, consoante da Costa, consistente no Tribunal Superior Eleitoral ad-

6 - COSTA. Op.cit. p.140. 7 - BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Domicílio Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral no 23.721.Recorrente: Luiz Lindbergh Farias Filho. Relator: Min. Humberto Gomes de Barros. 4 de novembro de 2004. In: Diário da Justiça da União, Brasília, 18 mar. 2005. 8 - FILHO, Olavo Rigon. Domicílio Político. Disponível em: http://www.tre-sc.gov.br/site/fileadmin/arquivos/biblioteca/doutrinas/rigon2.htm. Acesso em: 17/01/2008. 28


mitir o domicílio eleitoral por vínculo afetivo: É bem verdade que o Tribunal Superior Eleitoral tornou ainda mais flácido o conceito de domicílio eleitoral ao admitir o chamado domicílio eleitoral por vínculo afetivo, em que o eleitor interessado não precisa demonstrar que possui residência ou moradia, apenas necessitando provar que possui pela localidade algum vínculo de ordem afetiva. Trata-se de um conceito amplíssimo e fluido, como uma caixa de sapatos, na qual cabe qualquer modelo, de qualquer número9. A propósito, veja-se a outra decisão do Tribunal Superior Eleitoral dispondo sobre o domicílio eleitoral por vínculo afetivo: Direito eleitoral. Contraditório. Devido processo legal. Inobservância. Domicílio eleitoral. Conceituação e enquadramento. Matéria de direito. Má-fé não caracterizada. Recurso conhecido e provido. I - O conceito de domicílio eleitoral não se confunde com o de domicílio do direito comum, regido pelo Direito Civil. Mais flexível e elástico, identifica-se com a residência e o lugar onde o interessado tem vínculos políticos e sociais. II - Não se podem negar tais vínculos políticos, sociais e afetivos do candidato com o município no qual, nas eleições imediatamente anteriores, teve ele mais da metade dos votos para o posto pelo qual disputava. III - O conceito de domicílio eleitoral, quando incontroversos os fatos, importa em matéria de direito, não de fato (...)10. Outrossim, o Tribunal Superior Eleitoral, em mais uma decisão, cujo relator foi o Min. Diniz de Andrada, demonstra o entendimento de que o conceito de domicílio eleitoral deve ser flexível, in verbis: DOMICÍLIO ELEITORAL. NOÇÃO. A Definição de domicílio eleitoral há que ser implementada com flexibilidade. Constatado que o endereço fornecido corresponde à residência do declarante, impossível é concluir pelo tipo do art. 350 do Código Penal. O ânimo definitivo não a compõe11. Em que pese o conceito de domicílio eleitoral ser mais flexível do que o de domicílio civil, não deve com este ser confundido, sobretudo porque o primeiro não admite a pluralidade de domicílio, havendo somente

que se falar em um domicílio eleitoral, aquele documentado no título eleitoral. Caminha nesse sentido, entretanto com posicionamento mais radical, Marcos Ramayana, ao tecer o seguinte comentário acerca do domicílio eleitoral e do civil: Não existe coincidência entre o domicílio do Código Civil, que é o correto em sua conceituação por exigir o animus, e o domicílio eleitoral totalmente atípico, porque se trata de um domicílio sem intenção de morar ou habitar, violando-se as regras básicas de hermenêutica sobre o conceito estrutural do próprio instituto do domicílio. Assim, basta que o eleitor escolha o local, demonstrando e provando o lugar de moradia ou residência12. Destarte, embora o Código Eleitoral tenha fixado o conceito de domicílio eleitoral levando em conta um critério objetivo, qual seja a residência ou moradia do eleitor, decisões do Tribunal Superior Eleitoral demonstram que este conceito é mais amplo do que aquele trazido pelo Novo Código Civil, no que tange ao domicílio da pessoa natural, abrangendo assim vínculos patrimoniais, afetivos, profissionais, comerciais e funcionais.

Domicílio eleitoral na Circunscrição e suas aplicações O domicílio eleitoral na circunscrição, além de requisito para o alistamento e transferência, é uma das condições de elegibilidade, conforme reza o § 3º do artigo 14 da Carta Magna, valendo salientar que, no caso de candidatura do eleitor a cargo eletivo, há a exigência de um tempo de domicílio, prazo imposto no artigo 9º da Lei n.º 9.504, de 30 de setembro de 1997, hoje 01 (um) ano antes da eleição. Impende destacar a seguinte decisão do Tribunal Superior Eleitoral, cujo relator foi o Min.Torquato Jardim, pertinente ao domicílio eleitoral como condição de elegibilidade: (...) A norma sobre domicílio eleitoral como condição de elegibilidade (CF, art. 14, § 3º, IV), posta na

9 - COSTA. Op.cit.p. 141. 10 - BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Domicílio Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral no 16.397. Relator: Min. Garcia Vieira. 29 de agosto de 2000. In: Diário da Justiça da União, Brasília, 09 mar. 2001. 11 - BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleitor: do alistamento ao voto. Brasília: SGI/COJUR, 2007.p.76. 12 - RAMAYANA. Marcos. Direito eleitoral. 7ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.p. 104.

29


Domicílio Eleitoral

Lei Eleitoral do ano, não se confunde com a regra geral das condições para transferência de título do eleitor (CE, art. 55, § 1º, I). Recurso a que se nega provimento. “NE”: (...) Não se confunde, portanto, no trato do domicílio eleitoral, a lei constitucionalmente prevista para estabelecer condição de elegibilidade (domicílio eleitoral de candidato) com a norma geral do Código Eleitoral que versa sobre condições de transferência do título eleitoral do eleitor. (...). Veja os arts. 9º e 91 da Lei nº 9.504/9713 . O alistamento eleitoral, nas lições de Adriano Soares da Costa, pode ser entendido como “o ato jurídico pelo qual a Justiça Eleitoral qualifica e inscreve o nacional no corpo de eleitores”. Há, assim, o pedido de inscrição eleitoral, no qual devem estar presentes os requisitos legais, e cabe à Justiça Eleitoral se pronunciar sobre tal pedido; uma vez tendo sido deferido, haverá a qualificação e inscrição do eleitor para efeito de alistamento14. Em se tratando de transferência eleitoral, deve o eleitor encaminhar-se ao cartório eleitoral para justificar a sua mudança de endereço. Vale dizer que a matéria vem sendo regulada pela Lei nº 6.996/82, prescrevendo no art. 8º as exigências a serem satisfeitas para que o eleitor proceda à transferência, in verbis: Art. 8º A transferência do eleitor só será admitida se satisfeitas as seguintes exigências: I - entrada do requerimento no Cartório Eleitoral do novo domicílio até 100 (cem) dias antes da data da eleição; II - transcurso de, pelo menos, 1 (um) ano da inscrição anterior; III - residência mínima de 3 (três) meses no novo domicílio, declarada, sob as penas da lei, pelo próprio eleitor. Parágrafo único. O disposto nos incisos II e III deste artigo não se aplica à transferência de título eleitoral de servidor público civil, militar, autárquico ou de membro de sua família, por motivo de remoção ou transferência. Mister destacar que o prazo constante no inciso I (cem dias) sofreu alteração pelo art.91, caput, da Lei das Eleições, aumentando este prazo para cento e cinquenta dias anteriores à data da eleição. No que diz respeito ao prazo estipulado para candidatar-se a mandato eletivo, há de se aludir que

a comprovação deste prazo se faz no momento de requerer o registro da candidatura, apresentando, assim, “cópia do título eleitoral ou certidão, fornecida pelo cartório eleitoral, de que o candidato é eleitor na circunscrição ou requereu sua inscrição ou transferência de domicílio previsto no art. 9º”, de acordo com o preceito do art.11, inciso V, da Lei nº 9.504/97. Vale registrar que, em algumas localidades, mesmo podendo exercer o seu direito de cidadania, grande parte dos eleitores prefere não participar das decisões importantes do local onde também mantém residência, ocasionando, desta forma, uma exclusão e omissão na escolha de seus dirigentes, ou seja, o eleitor não vota no município em que possui seu domicílio civil, mantém uma de suas residências e a maioria de suas atividades, tampouco vota naquele outro, que poderia ser seu domicílio eleitoral – visto ser residência secundária – e pelo qual nutre, de igual forma, interesse político, econômico e social. É a renúncia do direito de ser cidadão. Cite-se, para exemplificar, as residências de veraneio, de estância hidromineral, de praia, balneários, de campo, de apoio profissional etc., a saber, “in casu” localidades ou municípios na Região Metropolitana da Bahia. Destaca-se como exemplo principal a Ilha de Itaparica, situada na Baía de Todos-os-Santos: em dia de eleição, constata-se um aumento populacional considerável, seja pela presença de turistas, seja, sobretudo, pelo comparecimento dos proprietários de residências de praia ou tidas como de veraneio, que podem ser consideradas também de “fins de semana”, “de feriados prolongados” ou não, pessoas que participam constantemente do dia-a-dia da cidade, na comunidade, através de atividades sociais, patrimoniais, históricas, obrigações tributárias e que por certo poderiam ou deveriam participar das decisões políticopartidárias naquela circunscrição. No caso especifico da Ilha, nas últimas eleições de 2000 a 2006, o índice de Justificativa Eleitoral (ausência do voto na seção originária) oscilou entre 10% e 24% dos votantes, segundo o Cartório Eleitoral, denotando que se tais eleitores tivessem votado no local em que são inscritos ou previamente transferido o domicílio, certamente a democracia iria imperar no seu

13 - BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleitor: do alistamento ao voto. Brasília: SGI/COJUR, 2007.p.76. 14 - COSTA. Op.cit.p.133.

30


exercício pleno, externado pelo direito de votar e ser votado. Porém, apesar dessa lição democrática, a prudência e o cuidado devem estar presentes sempre na Justiça Eleitoral, com o fito de evitar e coibir as transferências ilegais, especialmente em municípios limítrofes, capazes de interferir no resultado e destino político do município. Nesse diapasão, cabe aos cidadãos pensar, refletir e, sobretudo, decidir participar do processo democrático de direito, exercendo seus direitos, livres, independentes, pois somente desta forma a vontade popular será respeitada.

Considerações finais O domicílio eleitoral, como já mencionado, se inclui na categoria de domicílio legal, diante do tratamento que lhe é dispensado no art. 42 e seguintes do Código Eleitoral, apresentando um conceito legal mais objetivo do que o domicílio civil, que por sua vez encontra disciplina no art. 70 e seguintes do Novo Código Civil. Ocorre que, embora esta pareça ter sido a intenção do legislador do Código Eleitoral, qual seja dar tratamento de cunho mais objetivo do que o dispensado pelo domicílio civil que abarca um elemento subjetivo, consistente no ânimo definitivo em permanecer no local, a posição majoritária do Tribunal Superior Eleitoral segue o entendimento de flexibilizar o máximo possível este conceito, com o fito de assegurar o direito de votar e ser votado. Nesse sentido, tem-se admitido como critério para aferição do domicílio eleitoral vínculos patrimoniais, afetivos, profissionais, comerciais e funcionais, privilegiando, desta forma, o vínculo de caráter subjetivo em detrimento do que está disciplinado no Código Eleitoral, dando margem sobremaneira à ocorrência de fraudes no alistamento. Não há de se negar que o eleitor deve possuir um vínculo político com seu domicílio eleitoral; o que se torna difícil de aceitar é que a ampla interpretação dada pelo Tribunal Superior Eleitoral acerca do domicílio eleitoral acarrete insegurança jurídica de tal maneira que abra precedentes para o acontecimento de todo tipo de oportunismo eleitoral, tanto no que diz respeito ao alistamento, quanto no registro de candidatos. Destarte, a Justiça Eleitoral deve zelar para que os cidadãos possam exercer plenamente seus direitos políticos, bem como pelo correto andamento do meca-

nismo eleitoral, primando, assim, pela garantia da democracia e buscando uma postura firme no sentido de coibir as fraudes no seu sistema.

Referências Bibliográficas BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Domicílio Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral no 16.397. Relator: Min. Garcia Vieira. 29 de agosto de 2000. In: Diário da Justiça da União, Brasília, 09 mar. 2001. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Domicílio Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral no 23.721. Recorrente: Luiz Lindbergh Farias Filho. Relator: Min. Humberto Gomes de Barros. 4 de novembro de 2004. In: Diário da Justiça da União, Brasília, 18 mar. 2005. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleitor: do alistamento ao voto. Brasília: SGI/COJUR, 2007.p.76. CÂNDIDO, Joel J. Direito eleitoral brasileiro. 12ª ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: EDIPRO, 2006. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _. Inelegibilidade no direito brasileiro. São Paulo: EDIPRO, 1999. CERELLO, Anselmo. Domicílio eleitoral. Disponível em: http://www.tresc.gov.br/site/fileadmin/arquivos/biblioteca/ doutrinas/anselmo1.htm. Acesso em: 20/01/2008. COSTA, Adriano Soares. Instituições de Direito Eleitoral. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. DECOMAIN, Pedro Roberto. Elegibilidade e Inelegibilidade. Florianópolis: Livraria e editora obra jurídica Ltda., 2000. Domicílio. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/ resumos/x/22/00/220/. Acesso em: 25/02/2008. FILHO, Olavo Rigon. Domicílio Político. Disponível em: http:// www.tresc.gov.br/site/fileadmin/arquivos/biblioteca/doutrinas/rigon2.htm. Acesso em: 17/01/2008. FIÚZA, César. Curso Completo de Direito Civil. 10ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. MATRONE, Leonardo. A interpretação do conceito de domicílio eleitoral. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 443, 23 set. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=5703>. Acesso em: 08/02/2008. RAMAYANA. Marcos. Direito eleitoral. 7ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.p. 104. RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. RODRIGUES, Marcelo Guimarães; SILVA, Clarice Bourguignon Dias da. Inteligência do conceito de domicílio eleitoral. Disponível em: http://www.tre-mg.gov.br/sj/publicacoes/revistas/revista10/doutrina/doutrina_drmarceloguimaraes.htm. Acesso em: 08/02/2008. SEREJO, Lourival. Programa de direito eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

31


Especial Dia-a-dia de um juiz: “desistir, nunca; esmorecer, jamais!”

“Se eu trabalhar apenas no Fórum, muitos processos irão atrasar. Levar trabalho pra casa é normal na rotina de um juiz”

Ambiente formal, pressão e a responsabilidade de decidir o futuro da vida de um ser humano. Tudo isto faz parte da rotina de um juiz. Mas engana-se quem pensa que a vida de um magistrado se resume a isso. “Sou juíza, mas também sou mulher, esposa, mãe. Não dá para focar apenas no trabalho, você tem de se desdobrar pra aproveitar tudo que a vida tem a oferecer”, explica a titular da 4ª Vara Crime, Soraya Moradillo. Mas a magistrada alerta: “isso tem um preço. É impossível dar conta de tudo em horários pré-determinados. Se eu trabalhar apenas no Fórum, muitos processos irão atrasar. Levar trabalho pra casa é normal na rotina de um juiz”. Se a magistratura é um trabalho tão árduo, qual o segredo para dar conta de tudo? É o que Soraya Moradillo mostra à ERGA OMNES durante uma semana. De segunda a sexta, a rotina é igual. A juíza acorda às 5h para uma leitura que ela considera “leve”: estudar os livros de psicologia, curso que faz na Faculdade Ruy 32

Barbosa. “A pessoa que comete um crime tem uma história de vida que a levou àquilo. A psicologia me ajuda a entender a mente dessas pessoas”, conta. Antes de sair para a Faculdade, aonde chega, pontualmente, às 6h40, Soraya toma um rápido café-da-manhã e, claro, passa maquiagem (cuidadosamente harmonizada com os tons de pele e formato de olhos e boca) e escolhe roupas e sapatos que combinem. “Entrei na magistratura há 23 anos, mas sou mulher há bem mais tempo que isto”, brinca, entre risos. Toda a manhã é dedicada à faculdade, o que não significa que a mente de Soraya tenha esquecido o que acontece na 4a Vara Crime. Entre os intervalos das aulas, enquanto os colegas aproveitam para pôr o papo em dia, é possível ver a juíza nos espaços mais silenciosos da instituição, estudando os processos sob sua responsabilidade e realizando ajustes no trabalho feito pelos estagiários do seu gabinete. As aulas terminam às 12h30. “Isto

significa que tenho exatamente 50 minutos para ir do Rio Vermelho até Nazaré. Ah, sem esquecer de almoçar”. Às 13h20 Soraya já está se preparando para as audiências, que começam às 14h. “Já cheguei a fazer oito audiências em uma tarde, mas agora instituímos que são somente duas por turno. No intervalo entre elas, eu atendo advogados e sentencio processos como interceptação telefônica ou decreto de prisão preventiva”. A última audiência termina por volta das 18h30, e um observador menos atento pode pensar que a família foi esquecida durante todo o dia. Mas basta olhar a estante do escritório para perceber que o local é uma espécie de segunda casa. Dezenas de fotos dos filhos, marido, amigos e até de uma ex-nora dominam o ambiente. Soraya permanece no Fórum até as 19h30, adiantando os trabalhos do dia seguinte. “Só saio se a mesa estiver vazia. Nada de deixar trabalho pra o dia seguinte”. Então essa é a


hora de, finalmente, ir para casa? “Não. É hora de ir para o curso de italiano. Só chego em casa às 21h, momento que aproveito para fazer meu dever de casa, ou seja, sentenciar os processos que não consegui analisar antes”.

Madrugada produtiva Meia-noite. Faltam apenas 5h para a juíza acordar e começar tudo de novo. Mas nada de ir para a cama! “O início da madrugada é quando estudo para o doutorado que faço na Argentina. Felizmente, tenho uma família que entende o que faço”. Soraya Moradillo só descansa mesmo nos fins de semana. Para quem quer fazer concurso para juiz, ela assegura que a rotina é árdua, mas recompensadora. O segredo para tanta determinação? “Ser apaixonada pelo que faço. Isto aqui não é um trabalho, um emprego. Isto é um sonho realizado, e que faço acontecer todos os dias. As palavras-chave para quem quer seguir esta carreira são: persistência, resistência, esperança, força de vontade e ambição. Desistir, nunca; esmorecer, jamais!”

“Isto aqui não é um trabalho, um emprego. Isto é um sonho realizado, e que faço acontecer todos os dias”

33


Notícias Seminário debate mudanças no Código de Processo Penal

Rosalvo Vieria e Cristiane Barreto prestigiam seminário em Cícero Dantas

Citação, adiamento da audiência, suspensão do processo, instrução processual, convicção judicial e prova ilícita são apenas alguns dos procedimentos do Código de Processo Penal que foram alterados pela Lei 11.719/2008. Para debater a nova legislação e atualizar os juízes sobre as mudanças, a Escola de Magistrados da Bahia (EMAB), em parceria com a comarca judiciária de Cícero Dantas,

organizou um seminário sobre reforma do CPP. Para o diretor da EMAB, Rosalvo Augusto Vieira da Silva, a capacitação é um marco da Escola. “Este é o nosso papel. Estamos sempre estabelecendo parcerias que proporcionem aos magistrados conhecimentos extras que possam contribuir para a execução das suas atividades judicantes”, conclui.

O evento aconteceu no dia 8 de junho, em Cícero Dantas, e contou com a participação de 200 operadores do direito que apreciaram as palestras de João Paulo Santos Schoucair, Fábio Roque, Ricardo Menezes Souza, Rodrigo Ramos Cavalcante Reis, Eduvirgens Tavares, Cristiane Menezes Santos Barreto e Zandra Anunciação Alvarez Parada.

Aproximadamente 45 magistrados da capital e do interior participaram do curso de Capacitação em Poder Judiciário realizado pela Escola de Magistrados da Bahia (EMAB), em parceria com o Tribunal de Justiça da Bahia e a Fundação Getúlio Vargas, dia 18 de maio, no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. O curso teve o intuito de capacitar juízes para que possam interagir na comunidade onde estão trabalhando, tornando a justiça mais célere e acessível a toda a sociedade. De acordo com o professor Luiz de Mello Serra, da Fundação Getúlio Vargas, o curso segue o mesmo modelo adotado há dois anos pela Escola Nacional de Magistratura (ENM). “Estamos multiplicando o curso, que obteve bastante êxito, pois todo treinamento é uma maravilhosa oportunidade

para se trocar ideias sobre boas prá- estamos reconstruindo um novo juiz e, consequentemente, reconstruindo ticas.” Para o diretor da EMAB, Rosalvo Au- um novo judiciário”, conclui. gusto Vieira da Silva, as parcerias que estão sendo estabelecidas oferecem um amplo conhecimento ao magistrado. “Ao realizar parcerias Juízes se capacitam para tornar a justiça mais célere para oferecer cursos de capacitação,

Escola promove curso de Capacitação em Poder Judiciário

34


Decisão ANTECIPAÇÃO DE TUTELA LIMINAR

Elke Figueirêdo Schuster Juíza de Direito Comarca de Aporá − Bahia

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, por meio de advogado constituído, ajuizou demanda de obrigação de fazer com pedido de antecipação de tutela contra xxxxxxxxxxxxxx, aduzindo, em suma, o que segue: Primeiramente, informou que mantém relação de consumo com a ré, a qual seria prestadora de serviços de saúde para a requerente, sendo que foi detectado na mesma retrusão maxilar e retrusão mandibular, que determinam a discrepância esquelética facial e que para a correção de tal deformidade imprescindível se faz intervenção cirúrgica urgente, haja vista a condição degenerativa da doença. Ressalta, ainda, que desde 28 de julho do ano em curso a requerente postula, desesperadamente, junto à seguradora, o adimplemento contratual no sentido de ser liberada a cirurgia nos termos estabelecidos no contrato e nos laudos médicos, e que a seguradora, por reiteradas vezes, negou resposta à requerente quanto à liberação do procedimento médico cirúrgico e, ao contrário, teria se mantido inerte, ocasionando a procrastinação da cirurgia, e que, após inúmeras provocações da autora, contrariando laudo médico, a requerida exige, para continuidade do procedimento administrativo de liberação da cirurgia, a realização de mais um exame, qual seja, polissonografia, para comprovação de quadro de apnéia do sono. Segundo a requerente, tal exame seria desnecessário em face da manifestação da cirurgiã, vez que a apnéia seria apenas mais uma conseqüência da doença da autora, sendo que, no seu entender, a deformidade óssea apresentada ocasiona outros sintomas, dentre os quais dores enormes, que causam grande sofrimento à autora e que, por si só, são bastantes para a liberação da cirurgia.

Afirma, também, que o procedimento cirúrgico ao qual deve ser submetida causa extremo desconforto no paciente e que somente em razão do enorme sofrimento que vem experimentado com as dores é que pretende se submeter à intervenção cirúrgica. Assim, requer, com base no CDC e CPC, a antecipação da tutela e o deferimento de liminar inaudita altera pars, para que seja determinado à requerida o custeio de todas as despesas relativas à cirurgia bucomaxilo-facial, indicada no laudo médico, a ser realizada no Hospital xxxxxxxxxxxx, em Salvador, bem como a inclusão das despesas com taxas de sala de cirurgia, material, internação, anestesia geral, fisioterapia, bem como demais despesas conexas com o procedimento a ser realizado. Junta documentos acerca da qualidade de segurada, comprovante de pagamento de mensalidade, laudos médicos, contrato de prestação de serviços, comprovante de residência e cheque-caução no valor de R$ 10.0000,00.

Relatados. Decido. Da aplicação do cdc Primeiramente, entendo que a relação de consumo resta comprovada através do contrato de adesão juntado aos autos e dos documentos de fls.25 e 33, sendo que este último revela a adimplência da autora junto à demandada e, nesse sentido, recaem sobre a ré todos os institutos do sistema de defesa do consumidor, inclusive seus princípios gerais, incluindo-se aí a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, VII, já que patente a hipossuficiência da autora, espe-

35


Antecipação de tutela liminar

cialmente econômica, em relação à ré, e, conforme se Objeto do Seguro verá a seguir, irrefutável, também, a verossimilhança da alegação posta em juízo. “1.1 O seguro tem por objetivo garantir ao SeguAssim sendo, de início, entendo pela flagrante rado, observados os limites de cobertura estabelecidos inobservância, por parte da ré, do art. 4º, do CDC, no na apólice, para cada evento, o pagamento ou reemque pertine ao respeito à dignidade e saúde da con- bolso das despesas médicas e/ou hospitalares necessumidora, pois esta é submetida, através de ação e sárias, efetuadas com o seu tratamento ou de seus Deomissão da ré, sem motivos razoáveis, a um enorme pendentes incluídos na apólice, decorrentes de doença sofrimento e angústia além daqueles causados pela ou acidente.” própria expectativa cirúrgica e pelas dores por si ex7 Regime de Prestação de Serviços perimentadas e comprovadas pelos laudos inseridos, “7.1 Caberá ao Segurado a livre escolha de méem razão da doença, pois, num primeiro momento, não dicos, hospitais, clínicas, laboratórios etc., desde que se manifesta quanto ao pleito legal legalmente habilitados. A Segurada consumidora e, quando o faz, dora efetuará o devido reembolso após uma enorme e comprovada Flagrante inobservância ao Segurado, mediante a apreseninsistência da mesma, solicita um (...) do art. 4º do CDC, no tação dos comprovantes das desexame desnecessário, conforme se pesas e relatórios do médico asque pertine ao observa através do documento de sistente, observados os limites da fls. 45, através do qual se afere a respeito à (...) consumido- cobertura do plano c ontratado.” tentativa de procrastinação da con8 Despesas Cobertas ra, pois esta é submetida, cessão de direito da associada, já “Respeitados os limites de através de ação e que a própria cirurgiã informa que a cobertura do plano contratado, polissonografia para comprovação estabelecidos nestas condições omissão da ré, (...) a de quadro de apnéia do sono é disgerais, as despesas cobertas por um enorme pensável ante o quadro sintomático este Seguro são: sofrimento e angústia da requerente. a) diárias de internação (aposenEntendo também que ao se além daqueles causados to ou unidade de terapia intensiva esquivar de responder às provocapela própria expectativa – UTI) do paciente (Segurado ou ções da autora e em vez de se maDependente) até o máximo de 180 cirúrgica (...) nifestar positiva ou negativamente (cento e oitenta) diárias, consecuacerca da postulação, a ré atua netivas ou não, para cada ano de vigando informações, ferindo, dessa gência da apólice; forma, o art. 6º, III, do CDC, e com (...) falta de transparência, pois claramente tenta ganhar b) serviços complementares de diagnose e/ou de teratempo e não realizar a cirurgia, ou, conforme aduzido pia necessários ao controle da evolução do tratamenpela autora, “vencer pelo cansaço”, de modo que pri- to; meiro a ré se cala e exaure indefinidamente os prazos c) medicamentos e material cirúrgico utilizados por si estabelecidos e, em seguida, manifesta-se pela durante o período de internação hospitalar; realização de exame não imprescindível, de modo que d) taxas de sala de cirurgia (de acordo com o entendo pelo comprometimento da boa-fé contratual e porte cirúrgico), sala de parto e sala de gesso.” incidência de prática abusiva (art.39, II, do CDC), pois, Nesse sentido, observo que em nenhuma das no caso, primeiro houve a omissão e em seguida, a cláusulas contratuais analisadas existem restrições ao postergação desmotivada. procedimento cirúrgico requerido pela autora, de modo Analisando o contrato de adesão firmado entre que, analisando o art. 47 do CDC, tenho que, numa as partes, observo que suas cláusulas sucessivas ‘1.1’, interpretação favorável à consumidora, o procedimento ‘7’e ‘8’ dispõem sobre o objeto do instrumento, regime cirúrgico ao qual pretende a autora se submeter está de prestação de serviços, despesas cobertas, senão assegurado contratualmente e não há que se discutir vejamos: acerca de seu direito.

36


Da necessidade de realização da polissonografia

minou a realização da intervenção cirúrgica, acerca da solicitação da ré, que se manifesta uma única vez sobre a solicitação nos seguintes termos: “Enviar lauAo analisar o laudo médico de fls. 36, lavrado do de polissonografia para comprovação de quadro por cirurgiã e traumatologista buco-maxilo-facial e por de apnéia do sono. Segurada apresenta solicitação médica para tratamento cirúrgico através de correção clínico médico, tem-se que: “paciente xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, de 29 ortognática frente ao prejuízo respiratório, fonatório e anos, que apresenta alteração óssea com etiologia ad- deglutição. Após envio da documentação médica poquirida (destaquei). Essa deformidade está gerando al- deremos dar continuidade à analise da solicitação”, a teração respiratória, caracterizada pela dificuldade em mesma entende despicienda a realização do exame, e fechar a boca, levando a obstrução das vias áreas na refutando que: “Paciente com deformidade esquelética mandiregião de orofaringe, dispnéia grave, sintomas de perbular, diagnosticada pelo exame da respiratória, agravando o quadro clínico que é soberano aos outros no período noturno. A presença da exames e pelas análises cefaloapnéia obstrutiva produz insônia, A cognição bastante métricas da paciente. A paciente hipóxia cerebral, podendo levar a apresenta deformidade da classe às demandas que hipertensão e arritmia cardíaca ao II, com disfunção mastigatória imlongo do tempo. A deformidade ósversam em seu objeto portante e necessita de cirurgia sea mandibular, causadora primáantecipação de tutela, corretiva de caráter funcional, para ria dos problemas respiratórios, foi correção do problema ósseo. ante a diagnosticada há 5 meses, quando Não há necessidade de poa paciente apresentou graves dores reversibilidade, é a lissonografia, pois o diagnóstico já articulares. As dores são decorrensumária, na qual o juiz está comprovado clinicamente e tes da ausência da função maspelos laudos já enviados da telerbaseado em juízo de tigatória e deglutição. A paciente radiografia. (destaquei). apresenta uma hipoplastia de cresprobabilidade, ou seja, Solicito urgência para autocimento mandibular verticalmente e de quase certeza (...) rização do procedimento, visto o lateralmente, gerando assimetria e quadro de dor facial que a paciente defere a medida agravando a hipofunção mastigatóapresentou” (destaquei). ria. Apresenta sintomas de doença de caráter satisfativo Destarte, de acordo com os articular caracterizada pelas dores, laudos que não foram contestados cefaléias, estalidos e essas dores pela ré, vez que em relação à “deestão associadas ao micrognatismo formidade esquelética mandibular, e assimetria facial. Esclareço aqui diagnosticada pelo exame clínico”, com a conseqüente que a deformidade da paciente é grave, e que a mesma apresenta dores e ausência de função mastigatória, e incidência de retrusão mandibular, retrusão maxilar e discrepância esquelética facial, as quais, por sua vez, que estão se agravando (destaquei). Está indicado para essa paciente um tratamento desencadeiam dores articulares, cefaléiase, estalidos, cirúrgico como único procedimento eficaz para resta- não há qualquer questionamento, entendo que a polisbelecer as proporções ósseas e devolver espaço aéreo sonografia não é condição de realização da cirurgia, adequado para uma devida respiração nasal, solucio- senão mais um desdobramento da deformidade esquenando doença obstrutiva, assim como função de masti- lética constatada e, por si só, bastante à realização da gação, deglutição e fonação. O procedimento cirúrgico interferência cirúrgica corretiva, já que, pelo que posproporcionará melhor funcionamento das estruturas so aferir dos laudos, independentemente do diagnósósseas, musculares e articulares do sistema estoma- tico da polissonografia, a autora tem de se submeter ao procedimento cirúrgico, vez que existem todas as tomagnático. (destaquei) (...)” Ainda, ao analisar a manifestação da pro- outras complicações clínicas constatadas através dos fissional signatária do laudo acima transcrito, exames juntados aos autos, bastantes à realização do xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, a mesma que deter- procedimento cirúrgico. 37


Antecipação de tutela liminar

Nesse sentido, entendo que a ré estabelece, situações em que não se pode esperar o tempo neunilateralmente e sem demonstrar a necessidade da cessário à formação do juízo de certeza exigido para a medida, submissão da parte a exame, indo de encon- prolação da sentença no processo cognitivo, havendo tro a laudos firmados por profissionais especializados a necessidade, para se tutelar adequadamente o direto e de conhecimento técnico comprovado (fls.36), com o material, de se prestar uma tutela jurisdicional satisfaintuito somente de postergar direito da autora, sobre- tiva mais rápida (...).”Surge, então, a tutela antecipapujando, acima de tudo, o direito à saúde e a dignidade da, forma de tutela sumária, em que o juiz presta uma da pessoa humana, com base em questões de caráter tutela jurisdicional satisfativa, no bojo do processo de econômico, disfarçados em exigências incoerentes, fe- conhecimento, com base em juízo de probabilidade”. Ao dispor sobre os requisitos da concessão de rindo assim o princípio fundamental insculpido no art. 1º da CF, qual seja, a dignidade da pessoa humana, vez antecipação de tutela, o mesmo autor afirma que: “Não que, comprovadamente, a autora vem padecendo em basta estar presente a probabilidade de existência do direito alegado, fazendo-se necesrazão de moléstia e a ré, repita-se, sário que haja uma situação capaz como sói acontecer, por questões de interesse econômico, esqueceTenho como fatos postos de gerar fundado receio de dano se de tal fato e piora a situação da a indiscutível relação de grave, de difícil ou impossível reparação ou que tenha ocorrido autora, causando-lhe o sofrimento consumo (...), e o abuso abuso do direto de defesa por parprimeiro do silêncio e segundo da exigência desmotivada. da ré, não só na inércia, te do demandado”. Assim sendo, embora satisfativa a tutela anteAssim, entendo, com supedâcomo na determinação cipada não garante o máximo de neo nos exames juntados aos autos unilateral de exame não atendimento à pretensão manifescujo diagnóstico não é questionado pela ré, que a autora comprova a determinante, de modo tada pelo autor, razão pela qual o alteração óssea maxilo-mandibular, que tenho tais fatos por processo de conhecimento deverá prosseguir até final julgamento, alteração funcional mastigatória, de bastantes para que se para que se possa formar o juízo deglutição e disfunção articular, de de certeza necessário à declaramaneira que tais deformações, por configure a verossimisi só, conforme asseverado na malhança suficiente à con- ção da existência do direito material cuja tutela se pretende.”(...) A nifestação de fls. 45, são bastantes cessão da antecipação da cognição sumária exigida nas meà realização da cirurgia, sendo que didas antecipatórias é uma técnica a nova exigência apresentada pela ttutela destinada a assegurar três escoré tem o intuito de procrastinar a pos principais: economia procesconcessão de direito à segurada. sual, evitar abuso de direito e busca de efetividade de Da antecipação de tutela tutela quando esta seria comprometida pelo tempo”. Nesse sentido é que a cognição bastante às deO Código de Defesa do Consumidor, em seu mandas que versam em seu objeto antecipação de tuart. 84, estabelece a tutela específica, e o art. 273, do tela, ante a reversibilidade, é a sumária, na qual o juiz CPC, dispõe acerca da antecipação de tutela, de modo baseado em juízo de probabilidade, ou seja, de quase que, para fins de concessão da medida, necessário se certeza, convencido da provável existência do direito, faz uma análise acerca de seus requisitos. tomando-se por base a maioria dos fatores postos sob Iniciando-se pela análise do art. 273, do CPC, exame, defere a medida de caráter satisfativo. ao comentar o instituto da tutela antecipada, Alexandre Assim sendo, tenho como fatos postos a indiscuCâmara, em Lições de Direito Processual Civil, Vol.I, tível relação de consumo acima reconhecida, as cláu9ª edição, Ed. Lúmen Júris, afirma que “a tutela an- sulas contratuais que não restringem o direito da autotecipada é uma forma de tutela jurisdicional satisfati- ra, a comprovada deformidade apta a ensejar a cirurgia va (e, portanto, não cautelar), prestada com base em pleiteada e o abuso da ré, não só na inércia, como na juízo de probabilidade. Trata-se de fenômeno próprio determinação unilateral de exame não determinante, do processo de conhecimento” (...). “Há, porém, muitas de modo que tenho tais fatos por bastantes para que se 38


configure a verossimilhança suficiente à concessão da antecipação da tutela, pois, conforme asseverado nos laudos já analisados e não contestado no único pronunciamento da requerida, imprescindível a realização da cirurgia, “visto o quadro de dor facial que a paciente apresentou”.

que tal perícia, de acordo com os autos, em nada modificará o procedimento cirúrgico, vez que com a cirurgia serão solucionados, dentre outros problemas físicos já atestados, a possível apneia. Portanto, entendo por cabalmente comprovados os requisitos ensejadores da concessão da liminar inaudita altera pars, uma vez que, de acordo com as Da aplicação do art. 84 Do cdc e da limiassertivas acima lançadas, entendo os fatos trazidos nar inaudita altera pars aos autos bastantes para a concessão da medida, pois, conforme se firma a jurisprudência, isso acarreAo dispor sobre a tutela específica nas relações taria demora e o pleito da autora é urgente, conforme de consumo, o CDC estabelece que em demandas asseverado pelo laudo médico. cujo conteúdo seja obrigação de fazer caberá ao juiz Nesse sentido, tem-se: determinar, por meio de tutela esTRF2-080640) Agravo de pecífica, o cumprimento da obrigainstrumento. Processual civil. Anção e determinar providências que tecipação de tutela. Militar. Traassegurem o resultado, incidindo, tamento médico-hospitalar. Deinclusive, os § 3º e º4 do art. 84, no Em demandas cujo conte- sobrigação de audiência da parte que pertine à liminar inaudita altera údo seja obrigação de contrária. Inexistência de violação pars e fixação de multa como forma ao artigo 475 do cpc. Poder geral fazer caberá ao juiz de coação. de cautela do juiz. determinar, por meio Nesse sentido, para conces1. A concessão da antecipasão da medida liminar, “a prudência de tutela específica, ção da tutela não exige a audiência orienta o juiz a evitar a concessão da parte contrária como entende a o cumprimento da de tal medida sem ouvir a parte agravante, até porque esse proceobrigação e determinar dimento, muitas vezes, acaba por contrária (...), de modo que, somente se apresentando a extrema neprovidências que contribuir, enquanto o autor espera cessidade, quando presentes, sem pela apreciação de seu pleito, para assegurem o dúvida, os pressupostos do ‘fumus a consumação do dano que se resultado boni juris’ e ‘periculum in mora’, quer evitar, mormente quando se será lícita a concessão da medida necessita de atendimento médico. liminar sem ouvir a parte contrária” 2. Estando o Juízo a quo, (RT 787/329) − destaquei; consoante apreciação da exordial e Por isso, tenho que se encondos documentos que a instruíram, tram presentes os requisitos para concessão de liminar convencido da presença dos requisitos do artigo 273 nos termos retro, pois o periculum in mora resta irrefu- do Digesto Processual, possível se mostra a antecipatável pelo quadro de dor, documentalmente comprova- ção da tutela, ainda que em face da União Federal. do pela autora e que se agrava em razão da doença e (...) seus sintomas se tornarem mais incidentes e degene4. Comungo do entendimento reiteradamente rativos com o passar do tempo. adotado por esta egrégia Corte, de que o deferimento Quanto ao fumus boni júris, esse se comprova da medida pleiteada se insere no poder geral de cauteatravés da relação de consumo certamente existente, la do juiz que, à vista dos elementos constantes do propor comprovação de contraprestação do serviço pela cesso, pode melhor avaliar a presença dos requisitos autora e, especialmente pela inércia inicial da ré e pro- necessários à concessão e, conseqüentemente, que crastinação posterior, requisitando exames desneces- em casos como o ora em exame só é acolhível quando sários, de acordo com o laudo lavrado pela cirurgiã que o juiz dá à lei uma interpretação teratológica, fora da examinou a autora pessoalmente e possui condições razoabilidade jurídica, ou quando o ato se apresenta técnicas bastantes para aferir acerca da dispensa da manifestamente abusivo, o que inocorre, na hipótese, polissonografia e, ainda, em razão da comprovação de eis que presentes os requisitos para a concessão da 39


Antecipação de tutela liminar

tutela, especialmente o fundado receio de dano irre- (contradição dos princípios), sempre em busca do verparável ou de difícil reparação, por tratar-se de atendi- dadeiro significado da norma e da harmonia do texto mento médico-hospitalar. constitucional, com sua finalidade precípua”. 5. Agravo de instrumento conhecido, porém desPosto isso, valendo-me da ponderação de inteprovido. resses e de razoabilidade, entendo pela prevalência do (Agravo de Instrumento nº 83930/RJ direito à saúde, o respeito ao consumidor, art. 170, V, (2001.02.01.033934-6), 8ª Turma Especial do TRF da da CF, a dignidade da pessoa humana (art. 5º, III, da 2ª Região, Rel. Poul Erik Dyrlund. j. 14.03.2006, unâni- CF), sobre o livre exercício de atividade econômica (lime, DJU 21.03.2006). vre iniciativa art. 5º, IV, art. 170 e art.199, da CF). Por fim, não se pode alegar a irreversibilidade da Em face disso, defiro, liminarmente, a antecipamedida tendende a causar prejuízos à requerida, no ção de tutela, para determinar à xxxxxxxxxxxxxxxxxx caso de reversibilidade da medida, o imediato adimplemento contratuvez que, com a inicial a autora caual, a fim de custear as despesas cionou o Juízo, inexistindo qualquer relativas à cirurgia buco-maxilorisco no que pertine ao aspecto facial, indicada nos laudos médiRessalte-se que se está econômico da demanda. cos, fornecendo todos os serviços Ainda ressalte-se que se está constantes no item ‘8’, que se fidiante de um valor diante de um valor supremo, qual zerem necessários, do instrumensupremo, qual seja a seja a saúde, que encontra respalto de contrato apresentado às fls. saúde, que encontra do constitucional e traz implicações 26/32, bem como no sentido de diretas nos princípios fundamenrespaldo constitucional cumprir com o item ‘7’, do mestais, especialmente na dignidade da mo instrumento, no que concerne e traz implicações pessoa humana, conforme já acima à realização da cirurgia no Hosdiretas nos princípios discutido, de modo que deve prevapital xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, em lecer, sem sombra de dúvidas, o diSalvador, incluindo-se, também, fundamentais, reto à saúde, sobre as implicações despesas com taxas de sala de ciespecialmente na econômicas, especialmente se conrurgia, material, internação, anesdignidade da pessoa siderado, repita-se, a caução do Jutesia geral, fisioterapia, bem como ízo, espontaneamente prestada. despesas conexas com o procedihumana Dessa mesma forma, manimento cirúrgico ora determinado. festa-se Alexandre de Morais em Ainda, em conformidade Direito Constitucional, 17ª Ed., p. com o art. 84, §4º, do CDC, fixo 26: multa diária pelo descumprimento de quaisquer das de“Os direitos e garantias fundamentais consagra- terminações antecipatórias judiciais e considerando as dos pela Constituição Federal, portanto, não são ilimi- condições econômicas da ré, no valor de R$ 15.000,00 tados, uma vez que encontram seus limites nos demais (quinze mil reais). direitos igualmente consagrados pela Carta Magna Por fim, determino a citação da ré, via Correios (princípio da relatividade ou conveniência das liberda- com AR, para fins de contestação, fazendo-se constar des públicas)”. no mandado as conseqüências da ausência de respos“Desta forma, quando houver conflito entre dois ta; do mesmo modo determino, por questões de ceou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérpre- leridade processual, no que pertine à intimação da ré te deve utilizar-se do princípio da concordância prática acerca da liminar concedida. ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total P.R.I.C. de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual Aporá, 06 de agosto de 2008.

40


Artigo HOJE É O DIA

Renato dos Humildes Juiz de Direito Aposentado

L

á no início, com o trabalho, é dada a largada no jogo da vida, anunciando silenciosamente que o termo final cada vez mais se aproxima. O “depois” se aproxima sorrateiramente; quando se percebe, é o fim da carreira, sem se fazer acompanhar de medidas concretas para conter o impacto que a brusca parada impõe. Hoje é o dia. Amanhã não haverá mais trabalho, nem tensões; nenhum prazo, despacho ou audiência. É possível dormir e acordar sem compromisso, o que não se confunde com o ócio, pois, quem nele se acomoda é tomado de assalto pelo tédio que desaguará em alheamento, passo largo à depressão, ao grande vazio. A realidade nova é fato consumado. O tempo livre oportuniza atividades jamais esperadas. A sensação de liberdade, a quebra de amarras e a liberação de compromissos soam euforicamente; esmaecidas, entretanto, o espaço aberto pela quebra da rotina e a ausência de atividade regular atuam no vazio que se encortina em irritação ou em distanciamento. Brigando consigo próprio, por vezes retorna ao antigo local de trabalho na tentativa inconsciente de recriar o ambiente perdido. Ali é recebido por colega em atividade, enquanto ele, aposentado, é visitante. Não percebe que o colega, o servidor, o advogado ou promotor estão todos trabalhando. O atendimento não lhe parece acolhedor e sinaliza desdém, pouca importância. Está carente de atenção e, por isso, não percebe que a acolhida foi afetuosa. A sensação que transmito foi confidenciada por alguns magistrados em conversa informal. Um sentia que provocava certa inquietação quando se aproximava, enquanto o outro dizia “não desencarnou”, tal a

constância do aposentado no local de trabalho. As duas situações mostram a aposentadoria como alguma coisa não resolvida. Em princípio, ainda que de fato olhares furtivos surjam, é pouco provável, salvo manifesta divergência anterior, que se dê tratamento menos cortês ao aposentado. O segundo comentário prova que no início há certa necessidade de retorno ao lugar do trabalho. Logo, quem se aposenta deve adquirir consciência crítica do futuro, examinando as várias alternativas ocupacionais − sobretudo os serviços comunitários ou os clubes de serviços restabelecem a autoconfiança. A nova quadra propicia viagens culturais (sempre postergadas), esportes menos impactantes (golfe) ou até o aprendizado de uma segunda língua; dedicarse à culinária gera prazer, enquanto a leitura, os filmes e o teatro comporão o plano de fundo. O novo momento exige aceitação do cenário. O palco é novo e os atores, bem diferentes, pois, mesmo em casa, há certa inquietude. De alguma forma me preparei para a despedida. Logrei ajustar o tempo velho ao novo momento. Trabalho na profissão originária, porém, salvo urgente medida, não vou ao escritório às sextas-feiras; nesse dia aceno liberdade absoluta. Leio, vou ao cinema, teatro, viajo, cozinho e trabalho. É assim que vivo. É importante dizer àquele que, como eu, se propuser caminhar na planície, que considere que a advocacia de hoje não guarda nenhuma relação com a dos anos 70. Este ano, por razões visíveis de tempo, nos permite contemplar a realidade vivida antes, comparála com a atual. Apenas para rememorar aos mais novos, aqueles que não vivenciaram os anos 60, a Salvador no primeiro período era cidade muito provinciana. 41


Hoje é o dia A Pituba, por exemplo, estava sendo descoberta, enquanto que a Avenida Paulo VI não passava do Colégio Militar. O Comércio era o centro nervoso da cidade e a Rua Chile, o prestigiado ponto elegante, restando à Av. Sete um aprazível lugar de compras. Rememoro, por mero saudosismo, que a primeira metade dos anos 60 foi marcada pela inocência, ainda sob forte influência dos anos 50. Era o idealismo. Na segunda metade o comportamento se modificou com o feminismo, a Guerra do Vietnã, a Guerra Fria, os hippies, Fidel, Brasília e Juscelino. A advocacia, portanto, nos anos 70, era concentrada em poucos escritórios. A Justiça do Trabalho funcionava na Praça da Sé, com sete Juntas, salvo engano; a Justiça Federal, na Av. Joana Angélica, com duas Varas, enquanto a Justiça Comum dispunha de sete Varas Cíveis, duas da Fazenda Pública, uma de acidente de veículo, algumas poucas Varas Criminais, uma de menor. Este era o diminuto campo em que se inseriam os jovens advogados. Os 80 abriram o cenário. Como é possivel esquecer a campanha em prol das “diretas já”, que reivindicava eleições diretas para presidente no Brasil. Perdemos. Não conseguimos, mas a semente gerou o presidente Tancredo Neves. Como se viu, não falei da ditadura. Fiquei confortavelmente no ambiente dos festivais, da Bossa Nova, dos Novos Baianos, do Tropicalismo, da consciência política que se formou ao longo das três décadas. Com a Constituinte novos ventos aprumaram o barco. Os movimentos desencadeados anunciavam boa-nova. O acesso à justiça é facilitado com os juizados, com a ação civil pública, a nova dimensão do Ministério Público, sem falar da nova competência alargada da Justiça do Trabalho. A presença do advogado como peça necessária ao arcabouço constitucional, a Defensoria Pública, o Estatuto do Consumidor e a disciplina regulando a vida dos adolescentes e dos idosos completaram as mudanças. “Está dito em comum o que basta: agora, para maior distinção e clareza, desçamos ao particular.” (Vieira, Padre Antônio. Sermões, V. III, p. 282, Lisboa.) A nova realidade fez eclodir centenas de faculdades. Os novos advogados acirram a concorrência. O mundo vive a globalização, gerando desenvolvimento e renda. A procura por bens e serviços foi responsável pelo agigantamento dos escritórios que absorvem

42

grandes demandas, especialmente as de consumo. As sociedades de advogados compreendem a complexidade subcontratando outros escritórios para atuação em área delimitada. Surgem os advogados “pautistas”. O agrupamento de advogados sob a tutela de uma firma, sejam eles sócios, empregados ou conveniados, fez surgir um novo mercado, com insignificante remuneração por processo, mas avantajado rendimento em face da quantidade de feitos. A subcontratação de advogado conveniado é ponto crucial, pelo risco que envolve sabido que as grandes corporações se dedicam à exploração de serviços concedidos. Suas diretorias são alternadas ao sabor do comando acionário. A nova direção, não raro, revê contratos, rescindindo alguns; por isso, os escritórios minimizam o custo interno, precavendo-se contra essa possibilidade, pois deverão também despedir pessoas, com elevado custo. A formação de grandes e médios escritórios é uma realidade, o que não descarta a existência de pequenas bancas dedicadas a setores específicos; mas quem é egresso das “carreiras de estado”, desejando ingressar nesta seara nova, deve medir o tamanho do seu custo mensal, que não mais se resume ao pagamento de aluguel e secretária, dado a incidência de impostos, pagamento aos estagiários, inclusive com direito a plano de saúde, férias e uma gama de outros custos. Realidade nova é também a existência de advogado ou de escritório parceiro. Objetiva-se manter o cliente, sem perder a cooperação do parceiro na busca do resultado final. Urge, ainda, conviver com a outra realidade. É saudável reaprender hábitos, como solicitar audiência pessoal. Isso faz parte do trato elegante que deve presidir os atos da vida, afinal, educação não ganha processo, mas, certamente, deixa o ambiente de trabalho mais solto, mais propício, mais leve, o que resultará, no mínimo, em um trabalho menos tenso. Finalmente, é possível afirmar que a aposentadoria não encerra a possibilidade de trabalho, nem termina o ciclo da vida em termos de relacionamento. Pelo contrário, tudo é questão de dimensão, de intensidade, embora também não se conceba o propósito de trabalho novo sem dedicação. O primeiro ponto, portanto, é aceitar a nova realidade com o término de uma atividade, uma etapa que se findou. Depois, aprumar a cabeça para nova dimensão.


Direto ao ponto A GESTÃO DEMOCRÁTICA DO PODER JUDICIÁRIO Ao longo dos anos, a magistratura brasileira tem sofrido com a falta de planejamento do Judiciário nacional. Com o objetivo de repensar essa realidade, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) promove, de 29 a 31 de outubro, em São Paulo, o XX Congresso Brasileiro de Magistrados, cujo tema é a Gestão Democrática do Poder Judiciário. Segundo pesquisa realizada pela AMB em fevereiro de 2009, a quase totalidade dos magistrados desconhece o percentual do orçamento dos Tribunais que é destinado às suas unidades judiciais. Como resultado, muitas comarcas e varas judiciais sofrem com a deficiência de material, equipamentos e pessoal. Essa falta de conhecimento e de planejamento reflete na qualidade dos serviços prestados e aumenta a morosidade na prestação jurisdicional. A pesquisa também apontou que o número de juízes no BraMozart Valadares Pires sil é insuficiente para a quantidade de processos: 85% das varas judiciais têm mais de mil processos em andamento. Além do número insuficiente de magistrados, a pesquisa revela que a quantidade de pessoal técnico é praticamente a metade do que seria necessário para atender à demanda do Judiciário. Contudo, mesmo se a atual estrutura da Justiça não consegue suprir a demanda da sociedade, a solução para esse problema não reside no aumento do número de varas e servidores públicos. Em primeiro lugar, o orçamento do Judiciário não suportaria por muito tempo o aumento constante de sua estrutura e quadro de funcionários. Além disso, essa estrutura do Judiciário já foi ampliada nos últimos anos e, mesmo assim, não houve avanços significativos no atendimento à população em razão dessa medida. A Associação dos Magistrados Brasileiros acredita que para mudar esse quadro é preciso pensar numa gestão democrática do Poder Judiciário. E imprescindível que o gestor público apresente relatórios periódicos de prestações de conta, municiando o cidadão com informações essenciais, bem como é necessária a avaliação do desempenho do administrador, para que se possa referendar ou retificar os rumos da administração. O acompanhamento dessas etapas contribuiria para a definição de prioridades, levando em conta, prioritariamente, as intenções e os compromissos do gestor, ou seja, a alocação dos recursos públicos para atividades de relevância para a sociedade. Na avaliação de desempenho, o cidadão deve aferir se o gestor público fez tudo o que lhe competia; se fez o melhor que podia; se fez com menor custo; se alcançou o melhor resultado para a sociedade; se observou a lei; se elegeu prioridades compatíveis com a natureza e a missão institucional; e se cumpriu a finalidade do ente público que administra. Essa mudança envolve, além dos cidadãos, todos os magistrados, inclusive os juízes de primeiro grau e os primeiros administradores das unidades de trabalho, na reflexão sobre o conjunto de necessidades da organização, com vista ao cumprimento de sua missão. Transparência e Democracia: esse é o compromisso que os representantes do Judiciário devem assumir ensejando benefícios para toda a sociedade. A Diretoria da AMB está aguardando você, magistrado(a), para * Mozart Valadares Pires participar do debate sobre um tema que poderá mudar ainda Presidente da Associação dos mais a face do Judiciário brasileiro.

Magistrados Brasileiros

43


Entrevista

“Lutemos por um ideal comum!”

Presidente da AMAB fala sobre os grandes desafios superados pelos magistrados baianos nos últimos meses

A

pós um ano e meio de muitos elogios e algumas críticas, o presidente da Associação dos Magistrados da Bahia (AMAB), Ubiratã Pizzani, conversa novamente com a equipe da Erga Omnes, desta vez para falar sobre as principais conquistas da sua gestão, que será concluída no início de 2010. Claro e objetivo, como não poderia deixar de ser, Pizzani recebeu nossa equipe na sala da presidência, mas em nenhum momento deixou de atender os associados. Entre uma ligação e outra, saídas e entradas em seu gabinete, o presidente nos contou como tem sido gerir a AMAB. 44

Erga Omnes: Há um ano e meio, quando o senhor assumiu o comando da Associação, ela estava passando por um momento financeiro delicado, o que exigiu um pouco de rigor. Como foi administrar esse momento? Ubiratã Pizzani: Foi difícil. Precisava, urgentemente, enxugar gastos administrativos para viabilizar a gestão. Então, ante o que se nos apresentava, concentramos forças com o claro e inequívoco objetivo de sanear as finanças, cortando despesas e ajustando valores de contratos, a fim de equacionar as despesas e buscar gerir de maneira responsável e tranquila a nossa Associação. Desde aquele momento vislumbramos que muito do que poderíamos fazer em prol dos nossos associados não seria possível, mas, sem nos curvarmos àquela crítica situação, arrostamos as dificuldades com destemor e procuramos agir dentro das limitações apresentadas.


E hoje, como está a situação financeira da AMAB? Ubiratã Pizzani: Sob controle. Não há dívidas, salvo um empréstimo consignado, e limitado no tempo, sendo este o responsável por certo engessamento em nossa administração, sem dúvida. Como representantes dos magistrados, estamos focados na conquista de melhorias para os associados. Conseguimos, ressalte-se de grande significância, reativar a Escola de Magistrados da Bahia (EMAB), dando, por outro ângulo, continuidade à construção da nossa nova sede social, cuja conclusão dar-se-á ainda na nossa gestão. Por falar na EMAB, uma das suas metas foi promover cursos de capacitação para os magistrados. Isso aconteceu? Ubiratã Pizzani: Sim, demos um novo impulso à Escola de Magistrados. Firmamos parcerias com o Tribunal de Justiça, a Faculdade Baiana de Direito, a rede de ensino Luís Flávio Gomes e a Fundação Getúlio Vargas, para que fosse oferecida capacitação de qualidade aos associados. Oferecemos, ademais, cursos de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil; Direito Penal e Processo Penal e Direito do Estado, além da especialização (telepresencial) em Direito Processual Civil e Penal. Também foram ministrados, na EMAB, cursos de Mediação de Conflitos, Lei Maria da Penha, Capacitação em Poder Judiciário, Seminário de Atualização em Processo Penal, além de curso preparatório para a carreira da Magistratura, cumprindo, destarte, um compromisso assumido. Aliás, merece ser ressaltado que, se observadas forem as nossas propostas (total de 12) no decorrer da nossa

“Como representantes dos magistrados, estamos focados na conquista de melhorias para os associados” campanha eleitoral, esse foi o nosso primeiro compromisso. Porém, por absoluta falta de condições, motivada pela carência de recursos financeiros, deixamos de cumprir pouquíssimos itens, como a ampliação dos encontros de coordenadorias regionais, e, pelos mais variados motivos, a implantação de um plano de saúde calcado nos exemplos de sucesso existentes em associações como AMAPAR (PR) e AMEPE (PE). Quanto ao mais, tudo foi cumprido. Quais as conquistas que o Senhor destacaria ao longo desta gestão?

Ubiratã Pizzani: Ao longo desta gestão, obtivemos conquistas consideráveis, podendo, nesta ímpar oportunidade, pontuar várias, como a distribuição de notebooks para magistrados da ativa, propiciandolhes uma melhoria na prestação jurisdicional; o pagamento da ajuda de custo para moradia e a suspensão da cobrança pela utilização das residências oferecidas (anseio antigo dos magistrados do interior); o aumento do valor da diária e a mudança na forma de pagamento. Antes, o magistrado recebia a diária somente depois de meses, e era um valor aviltante. Não quero concordar com o que está sendo pago, porém precisamos reconhecer a melhoria, já que, no momento, o pagamento vem sendo feito antecipadamente ou, no máximo, 30 dias após o início do deslocamento. Outras conquistas a destacar: foi acatado o requerimento de pagamento de verba para o exercício do cargo de diretor de Fórum; pagamento da diferença de entrância; prorrogação da licença à gestante por mais 60 dias (direito reconhecido a todos os segmentos da sociedade e que não poderia ser subtraído das magistradas); publicação dos editais de promoção e remoção para cargos vagos nos juizados especiais do interior, das varas especializadas e para cargos vagos na entrância especial (a movimentação nas promoções ficou paralisada por vários meses, embora tenhamos lutado com veemência, nos deslocando, inclusive, por duas vezes, até Brasília, para agir junto ao Conselho Nacional de Justiça, com a finalidade de acelerar as decisões sobre os Pedidos de Providências que lá se encontravam e que, de certo modo, estavam criando obstáculos à publicação dos mencionados edi45


Entrevista | Ubiratã Pizzani tais); foi acolhido o requerimento no atinente ao reconhecimento e pagamento do Adicional por Tempo de Serviço (ATS) e, por fim, deu-se a recepção, pelo Tribunal de Justiça, de um projeto de lei (já encaminhado à Assembleia Legislativa e que estamos acompanhando) no sentido de vincular, nesta Unidade da Federação, o reajuste dos nossos subsídios aos dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Isto evita a ocorrência de perdas consideráveis – como já acontecido –, quando dos reajustes. Como é do conhecimento de todos, ficamos sempre à mercê da boa vontade dos demais Poderes para a aprovação daqueles, e quando isto vem a ocorrer – meses após −, não se reconhece o atrasado, gerando referidas e significativas perdas. Os magistrados que receberam as parcelas referentes à unidade real de valor (URV) estavam sendo notificados pela Receita Federal, cobrando-lhes o Imposto de Renda sobre as parcelas da verba indenizatória, as quais foram pagas em 36 vezes, sem juros e sem correção monetária. Qual foi a postura da AMAB para

apoiar os juizes autuados, tendo em vista que a cobrança é indevida? Ubiratã Pizzani: De início, foi esclarecido que mantivemos, juntamente com a presidente do Tribunal de Justiça, o procurador geral de Justiça e a então presidente da Associação do Ministério Público Estadual, uma audiência com o governador do Estado, a fim de buscarmos uma solução para a pendenga, uma vez que existia, e ainda existe, uma lei estadual que deu azo à vexatória situação, juntamente com o órgão responsável pelo pagamento, que considerou a verba como indenizatória e, inclusive, taxou-a como não tributável, obrigando-nos, por via de consequência legal, a assim proceder. E qual foi o resultado dessa audiência? Ubiratã Pizzani: Infelizmente, tornou-se infrutífera, desde quando não houve boa vontade daquela autoridade executiva, o que nos levou a adiantar-lhe, incontinente, que, assim sendo, iríamos buscar os nossos direitos, com a execução da decisão do Supremo Tribunal Federal, que determinou o paga-

mento, com os valores devidamente atualizados e corrigidos monetariamente. Recebemos 36 parcelas sem a cabível atualização monetária e os juros. Ajuizamos uma Execução contra o Estado da Bahia para o pagamento de tais parcelas, tomando-se como parâmetro o fato de que uma lei estadual não pode desconsiderar uma decisão da Corte Maior, que determinou o pagamento atualizado e com juros legais, dando-se um BASTA a tão flagrante inconstitucionalidade. Estamos acompanhando este processo. Qual a situação atual deste assunto? Ubiratã Pizzani: O processo encontra-se concluso ao eminente presidente daquele Sodalício, ressaltando que antes de entrarmos com a ação de execução colhemos, antecipadamente, um parecer favorável do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, reconhecendo a legalidade da postulação, bem como o pagamento através da via administrativa, a fim de evitar-se a via judicial, o que foi feito e, infelizmente, indeferido pelo Tribunal de Justiça.

“Nossos compromissos eram defender administrativa e judicialmente os magistrados, de modo a fazer respeitados os seus direitos e garantias” 46


A AMAB buscou alguma solução junto à Receita Federal? Ubiratã Pizzani: Tivemos uma reunião, em Brasília, com a secretária da Receita Federal e o procurador nacional da Fazenda, oportunidade em que ficou definida a realização de uma consulta formal. Os resultados − todos os colegas interessados têm conhecimento – foram de certo modo favoráveis, mas não a contento. A situação estava se tornando insustentável, em decorrência mesmo do açodamento revestido de “terrorismo” que vinha sendo praticado pelos agentes do Fisco, como se o magistrado fosse um sonegador, tratamento esse não dispensado aos magistrados da esfera Federal. Uma demonstração inequívoca do total desconhecimento da unidade da Magistratura, reconhecida constitucionalmente e, recentemente, através do Supremo Tribunal Federal, que a declarou Una e Nacional, não devendo o tratamento ser diferenciando, mas, sim, isonômico, fundamentalmente

quando se tratar de subsídios. Contratamos o escritório Nogueira Reis, de respeitabilidade e conhecimentos redobrados na esfera Tributária, para patrocinar a defesa administrativa de todos os colegas, arcando, evidentemente, com o ônus financeiro, o que agravou ainda mais a nossa situação. Mas, ressalte-se, sem comprometimentos maiores, em face da determinação da nossa administração. Durante a sua gestão a imprensa deu bastante publicidade a fatos que envolviam associados da Instituição. Qual foi a postura da AMAB em relação a esses fatos? Ubiratã Pizzani: Nossa obrigação não era com os fatos, mas, sim, com os associados, pois um dos nossos compromissos era defender administrativa e judicialmente os magistrados, de modo a fazer respeitados os seus direitos e garantias, e foi isso que fizemos. Participamos de atos de desagravo, emitimos notas de esclarecimento

à imprensa e sempre colocamos a nossa assessoria de comunicação à disposição para acompanhar as entrevistas e preparar releases. A Associação se posicionou o tempo todo ao lado do Poder Judiciário baiano, ético e atuante, em prol do cidadão, exigindo que fossem respeitados os princípios constitucionais da ampla defesa e devido processo legal, não admitindo a atribuição de culpabilidade antes do término das investigações. A AMAB continua realizando o programa Entenda Direito? Ubiratã Pizzani: Claro. O programa Entenda Direito é o canal que temos para apresentar temas e questionamentos sobre o universo jurídico em linguagem dinâmica e acessível. Sempre convidamos colegas associados para responder às perguntas dos telespectadores. O retorno dessa iniciativa veio no ano passado, quando o programa conquistou uma importante premiação, o Prêmio Aberje de Comuni47


Entrevista | Ubiratã Pizzani cação 2008. Vencemos a categoria “gestão de mídia – pequenas e médias empresas”, na regional Norte e Nordeste; em seguida, vencemos como melhor mídia do Brasil, na mesma categoria. Na ocasião, estávamos concorrendo com 450 projetos de comunicação de todo o País. Atualmente o programa é veiculado na TV Justiça, TV Educativa da Bahia e TV Itabuna. Como o senhor já disse, ao assumir a AMAB ela passava por dificuldades financeiras. Mesmo assim, foi possível atender diretamente os associados? Ubiratã Pizzani: Antes de responder a esta pergunta, gostaria de ressaltar que contei com diretores comprometidos, recebendo, por exemplo na área de eventos, o apoio da colega Graça Marina, nossa diretora. Mesmo com as dificuldades financeiras já assinaladas, conseguimos realizar vários eventos por meio de patrocínios dos mais variados segmentos da sociedade, impondo-nos, nesta oportunidade, deixar patenteado que desde a sua fundação, no longínquo ano de 1965, a Associação sempre promoveu eventos através de patrocinadores, o que não se constitui em nenhuma ilegalidade ou mesmo imoralidade, até porque se trata de uma instituição civil, sem fins lucrativos, havendo, para tanto, previsão legal no corpo estatutário. Durante todo esse período, realizamos almoço do Dia das Mães; I Congresso Baiano de Magistrados; Seminário sobre os 20 anos da Constituição; festa de confraternização de final de ano; almoço para os colegas inativos e o Forró dos Magistrados, no ano transato. Já sobre convênios, a nossa ideia sempre foi a de facilitar a vida dos 48

associados, proporcionando-lhes acesso a produtos e serviços com descontos, além de outras facilidades, como atendimento personalizado. Neste setor pudemos contar com uma diretora muito competente, nossa colega Laura Scalldaferri. O desempenho dela deve ser elogiado. Graças à sua atuação, hoje o associado pode contar com 86 convênios nas mais diversas áreas, como academia, corretora de seguros, imobiliária, educação, equipamentos de segurança automotiva, hotéis, livrarias, odontologia, restaurantes, turismo, telefonia celular, veículos, dentre outros. A Associação realizou diversas parcerias com um único objetivo: atender às necessidades da classe. No esporte, o combativo diretor Albênio Honório incentivou a participação da delegação baiana nas Olimpíadas Nacionais de Magistrados, no Rio de Janeiro, ficando a AMAB em 8º lugar; recentemente, participamos do Campeonato de Futebol da Região Nordeste. Neste último, ganhamos os troféus de melhor goleiro, melhor artilheiro (master e livre) e melhor jogador (livre e master). Com este resultado, a Associação foi classificada para o Campeonato Nacional de Futebol da Magistratura Brasileira, que será realizado pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), ainda este ano. Qual a mensagem que o senhor gostaria de deixar para os associados? Ubiratã Pizzani: Que tenhamos coragem, determinação, espírito democrático e, mais que tudo, independência, pois, somente esta poderá fortalecer a nossa Associação e valorizar o Magistrado. Não podemos, jamais, cultivar e explorar

uma aparente independência, sem que a tenhamos efetivamente, em detrimento da nossa classe, movidos por interesses escusos e projetos pessoais. Não devemos olvidar que nem tudo na vida passa, pois existem atos que ficam impregnados nos anais da história e sempre latentes nas mentes sadias, até porque, e como sempre, pregamos: “um dia após outro é mais forte que ferro e fogo”. A todos os colegas, colhendo a oportunidade, desejo que o dia destinado aos magistrados seja de reflexão e otimismo, lembrandolhes que o que mais precisamos é de união para a concretização do imprescindível fortalecimento. Volto a pedir, com veemência, para não nos dispersarmos; deixemos de lado os ideais isolados e lutemos por um ideal comum, respeitando cada qual com o seu desiderato, com a sua forma de pensar, de agir, de ser, mas que seja sempre em prol da Magistratura.

“Tenhamos coragem, determinação, espírito democrático e, mais que tudo, independência, pois, somente esta poderá fortalecer a nossa Associação e valorizar o Magistrado”


Artigo A NOVA MAGISTRATURA

Eduardo Caricchio Juiz de Direito da Capital 75ª Vara de Substituições

E

m uma época em que comemoramos quatro séculos de institucionalização judiciária em nosso país, é oportuno que fique registrada a importância da Magistratura no dia-a-dia. Em um passado recente, pode-se falar da Magistratura brasileira antes e após a Revolução de 1964. Se para este último marco critica-se por omissão a Magistratura nacional na grita pela redemocratização do País, não faltam elogios aos magistrados, no entanto, que destemidamente concederam habeas corpus e mandados de segurança contra atos arbitrários do executivo revolucionário. Nesse passo, a Magistratura, tanto quanto a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), são marcos da história mais recente que contribuíram para o restabelecimento da democracia com as eleições diretas, que elegeram Tancredo Neves para o Palácio do Planalto. Neste ano, a data da Magistratura, 11 de agosto, servirá para comemorarmos a sua grandeza, para lembrarmos que só por via da redemocratização, que surgiu com as “Diretas Já”, vem sendo possível, em todo o território nacional, uma mudança significativa não somente no corpo físico da Magistratura, mas, principalmente, no seu corpo institucional, e o CNJ é um exemplo a ser valorizado por todos. Claro que o ser humano ainda está a caminho da perfeição e não se pode sequer imaginar a criação de instituições totalmente perfeitas. Se de início o CNJ foi alvo de muitas críticas e até de forte oposição pelo que se diz correntemente no Brasil que, “quando não se quiser solucionar o problema crie-se uma comissão”, agora, com os frutos já sendo colhidos, deixam bem

É cedo para saber aonde toda essa atenção para com o Judiciário nacional vai parar, mas, por certo, a grande responsabilidade deste Poder é trazer para a iclusão social milhões de brasileiros

claro aos olhos de todos que realmente só haveria um caminho para que a Magistratura nacional conquistasse o seu topo diante dos demais Poderes, e esse caminho seria a criação de novas instituições que coadjuvassem a surrada estrutura federalista. Ainda é cedo para saber aonde toda essa atenção para com o Judiciário nacional vai parar, mas, por certo, a grande responsabilidade deste Poder é trazer para a inclusão social milhões de brasileiros que vivem à margem da Justiça. Não se diga claro que isso ocorra só por deficiência do Judiciário, porque outras instituições precisam também dedicar sua atenção ao problema.

49


Artigo A ERA DO DNA A PROVA PERICIAL DE DNA NAS AÇÕES FILIATÓRIAS

Michelline Soares Bittencourt Trindade Luz

Juíza de Direito 2ª Vara de Família da Comarca de Feira de Santana

A

partir dos novos matizes introduzidos pela Magna Carta de 1988, o tratamento filiatório passou a se sujeitar, basicamente, aos princípios constitucionais, dentre eles, a dignidade da pessoa humana, vértice de todo o sistema jurídico em vigor, exigindo-se nova postura e interpretação do sistema de presunções antes vigente. Com o advento do DNA, prova mestra nas ações filiatórias, embora não se constitua o único meio de prova a ser utilizado, impõe-se uma nova concepção acerca das ações desta espécie, já que a possibilidade de verificação da filiação biológica com alto grau de acerto (precisão quase absoluta) permitiu o entrelaçamento do processo com a realidade fenomenológica da vida. Assim, nada mais natural que as ações de investigativas de paternidade sejam submetidas a um sistema de coisa julgada diferenciado, peculiar, para atender às idiossincrasias que o direito material impõe, até porque o processo deve ser visto como instrumento para a concretização do direito substantivo correspondente (FARIAS, 2006). Nesse contexto, destaque para a prova pericial de DNA nas ações filiatórias, como forma de concretização do direito de perfilhação, pois nenhuma lei pode privar alguém da utilização de todos os recursos possíveis na busca de sua identidade biológica, e seus reflexos na ponderação de interesses, no sistema de presunções legal e judicial e frente ao instituto da coisa julgada, tendo como pano de fundo a Constituição Federal de 1988. O exame de DNA como meio de prova pericial do processo civil deve ser viabilizado, sempre que for possível, de forma a determinar precisamente a filiação 50

nas ações de investigação e de negação de paternidade. Hão de ser considerados, no entanto, ao tomá-lo como parâmetro para atribuir a paternidade, os princípios convergentes e a regras processuais postas, mesmo que para isso seja necessário verificar qual o direito determinante frente à colisão de interesses, mitigar a aplicação de presunções ante a recusa do suposto pai em se submeter à perícia genética, ou recorrer à relativização da coisa julgada, como forma de aproximar a decisão judicial em ações deste jaez, da verdade fática. A presente temática desperta calorosas discussões, provoca reformulações e contribui, em face da sua relevância, para o aparecimento de novas ponderações e teorias atreladas à perfilhação, uma das máximas da dignidade da pessoa humana, insculpida no art. 1o, inc. III da CF/88, como motor de propulsão da nova ordem jurídica, que impõe visão, postura e interpretação novas acerca desse direito. O progresso científico e suas aplicações tecnológicas deflagraram o surgimento de um conjunto de relações sociais e jurídicas que pode ser analisado, sob o ponto de vista ético, médico, dentre outros prismas, como o Biodireito, que, segundo as palavras de Barreto apud Catão (2004, p. 48), é entendido como “um conjunto de normas jurídicas destinadas a disciplinar essas relações, devendo encontrar justificativas racionais que o tornem legítimo”. Outrossim, é importante destacar que muitas questões do Biodireito vêm sendo desenvolvidas tomando emprestados princípios de Direitos Humanos e de Direitos da Personalidade. Como o Direito não pode se confrontar com o progresso da Ciência e sendo


possível hoje provar a paternidade através da utiliza- vas indiciárias. ção de métodos científicos avançados, não há como Nesse momento, surge um conflito legítimo entre prevalecer antiquadas presunções jurídicas diante de o interesse individual da parte que quer resguardar sua uma realidade nova e do direito fundamental da pessoa intimidade, sua vida privada, sua inviolabilidade corhumana. poral, também protegidos constitucionalmente³, além As ações de paternidade são de estado por ex- do seu direito de não produzir provas contra si, de um celência, pois se encontra o investigante numa situa- lado, e, de outro, o interesse da sociedade e da outra ção juridicamente indeterminada, no aguardo da pro- parte de ver descortinada a verdade a respeito da renúncia estatal declarando o seu efetivo status no seio lação de paternidade, sendo fato notório que a maioria familiar. Com a Constituição Federal das pessoas que se recusam a se de 1988¹, a investigação acerca da submeter à realização do exame paternidade foi renovada, tornando assim procede como mecanismo A demonstração da o direito do estado de filiação algo de esconder o fato que seria proascendência genética é independente do matrimônio. Penvado cientificamente, a partir da sou-se, então, ter estabelecido um concebida como direito realização do exame técnico. ponto final em matéria de filiação, Nas palavras de Szaniawski supremo da personalidaquando, na verdade, deu-se início a (2005, p. 491): de humana, e a busca pela uma nova era, a Era do DNA. [...] O direito atual se vale de A demonstração da ascenverdade biológica rompe exames médicos, laboratoriais, de dência genética é concebida como inspeções corporais, e dos mais um compromisso direito supremo da personalidade modernos meios técnicos para rearraigado pelo Código humana, e a busca pela verdade alizar os seus fins, causando, conbiológica rompe um compromisso seqüentemente, efeitos sobre os Civil brasileiro com arraigado pelo Código Civil brasibens jurídicos por ele tutelados, a verdade jurídica leiro com a verdade jurídica baseatravés de modernização do direibaseada na presunção ada na presunção de paternidade. to contratual, do direito de família, Nesse contexto, a impressão digital da responsabilidade civil e que de paternidade do DNA é a “mãe das provas” em acompanha o desenvolvimento de questões de filiação, constituindo nossa sociedade. Mas, ao lado do um meio de prova pericial usado progresso e do bem-estar do hoatualmente em grande escala, no bojo das ações in- mem, existem os perigos que a tecnização traz ao ser vestigativas de paternidade, alvo de muitas discussões humano, não só invadindo a sua privacidade, mas tamdoutrinárias e jurisprudenciais. bém atentando contra sua saúde e sua integridade psiO exame DNA nunca poderia ser descartado pe- cofísica. E essas violações do direito da personalidade los julgadores, dado o grau de indisponibilidade do di- ocorrem quando, para realização do próprio direito, se reito de filiação, não importando o interesse do pai em captam ou se constituem os meios de prova para sua fazê-lo ou não. O fato é que os Tribunais, de uma ma- produção em juízo, sem observar os limites do direito neira geral, entendem ser impossível a coerção do pai à prova dos litigantes, violando o direito à integridade a efetuar o teste de DNA nas ações de paternidade², psicofísica de, pelo menos, uma das partes. mesmo quando há condições de produzir essa prova A colisão de direitos fundamentais pode ser rede excelência, em busca da verdade real, obrigando, solvida com a aplicação dos princípios constitucionais assim, o magistrado a julgar o pedido por meio de pro- da proporcionalidade e razoabilidade, voltados à sal1 - Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda firma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 2 - Súmula 301 do STJ. Em ação investigatória de paternidade, a recusa do suposto pai a submeter-se a exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade. 3 - “Inciso X do Art. 5º da CF/88 – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. 51


A era do dna: a prova pericial de dna nas ações filiatórias

vaguarda do equilíbrio entre valores conflitantes. Es- julgada tenha operado seus efeitos, ostentando, então, tes princípios guardam, em sua essência, o critério de um caráter inquestionável, por se revestir do manto da valorização dos interesses envolvidos, cedendo espa- intangibilidade, argumentam que a rediscussão do julço, o menos sacrificado, ao que, na hipótese concreta, gado seria terrificante para a segurança jurídica, ainda mostre-se mais prioritário. que em detrimento do direito humano à filiação e à digNesse passo, dado à relevância do diálogo de nidade da pessoa humana. fontes, traduzido na análise das provas processuais e Nos comentários de Nascimento (2005, p. 120): científicas, visando ao alcance da verdade real, vem [...] Transparece dissonante, nessa linha, intomando corpo a ideia de se revisitar eventual julgado vocar-se a segurança jurídica para acolher a tese de que não tenha utilizado o critério científico para apurar que a coisa julgada faz preto no branco, ao se quea paternidade biológica, objetivando torná-lo cientifica- rer impingir-lhe o caráter de absolutividade de que não mente seguro (ALMEIDA, 2001). é revestida. Os princípios da moralidade, da justiça e Isto conduz a uma reflexão da equidade devem ser realçados acerca da autoridade da coisa julcomo apanágio de uma sociedade gada, nas ações de paternidade, civilizada, de modo a revelarem quando a sentença proferida transeu degrau de superioridade em (...) argumentam sitou em julgado, destituída do criconfronto com os demais que poque a rediscussão tério científico da verdade biológica voam o universo jurídico. dos fatos, tendo a produção da proPercebe-se, então, que emdo julgado seria va genética restado impossibilitabora o tema já tenha sido objeto de terrificante para a da, pois, à época do processo, não várias ponderações, é atual e dessegurança jurídica, havia sido revelada e nem difundiperta especial interesse, haja vista da a tipagem do DNA; ou porque o volume de ações de investigação ainda que em as partes litigantes não possuíam e negatória de paternidade que são detrimento do direito condições financeiras de arcar com ajuizadas hodiernamente e que rehumano à o custo do exame; ou, finalmente, metem a um constante enfrentaquando uma delas, notadamente o mento do problema. filiação e à dignidade investigado, recusou-se, num priImprescindível, portanto, da pessoa humana meiro momento, a se submeter ao verificar os meios que asseguexame, vindo o DNA a ser realizado rem a aplicação coexistente dos após o pronunciamento judicial, que princípios em conflito, sendo que, fez coisa julgada material quanto à restando infrutífera a tentativa de paternidade. harmonização, deve-se partir para Emana do texto constitucional a gênese do refe- a ponderação dos direitos em choque, sopesando os rido instituto, que assim dispõe no art. 5º, XXXVI: “a lei interesses jurídicos de modo a possibilitar a definição não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfei- de qual deve prevalecer, tendo como norte a busca da to e a coisa julgada”. A coisa julgada consubstancia-se verdade genética, que é o propósito das ações investina imutabilidade do julgamento, quando foram esgo- gativas de parentalidade. tados todos os recursos processuais possíveis para a Nesse sentido, questiona-se: o reconhecimento desconstituição da sentença. do amplo e irrestrito direito investigatório de paterniEm assim sendo, questiona-se a relativização da dade (assim como o negatório), ante a possibilidade coisa julgada nas ações de paternidade decididas sem de descoberta precisa da filiação pela perícia genétia realização do DNA, isto porque a sentença proferida ca, está a exigir mecanismos eficientes, no intuito de pode, ou não, coincidir com a verdade real (biológica), torná-lo eficaz e liberto de qualquer restrição ou limite, dado a sua estabilidade jurídica, como fruto da persu- como forma de atender determinação constitucional, asão íntima do julgador, e não uma convicção científi- ainda que isso importe no abrandamento do sistema ca. de presunções adotado pela ordem civil brasileira, no Para os que se posicionam contrários à possibili- tocante à matéria, e no desenho de um novo sistema dade de alteração de uma decisão sobre a qual a coisa de coisa julgada para regular as ações filiatórias? 52


Levanta-se a hipótese de que da colisão dos direitos da personalidade entre si, ou do seu choque com outros bens jurídicos tutelados pela Constituição, como é o caso da coisa julgada (material), encontra-se o direito à prova, que é um direito fundamental, tendo o conflito, pela preponderância de um determinado interesse entre direitos da personalidade contrapostos e/ ou entre estes e outro bem, despertado as mais apaixonantes polêmicas. A maioria dos processualistas pende para a ideia de predominância do direito à prova, a ser produzida à exaustão, notadamente nas ações de paternidade, ante o direito personalíssimo, indisponível e imprescritível do filho de ser reconhecido como tal, que encerra manifesto interesse público e essencial para qualquer ser humano, em detrimento dos direitos à privacidade / intimidade / intangibilidade corporal, argumentos invocados, por exemplo, para a não submissão do suposto pai ao exame de DNA. A possibilidade de se rever decisão sobre a qual já tenha se operado coisa julgada nasce da reflexão acerca dos interesses juridicamente relevantes, presentes nas demandas investigatórias (e negatórias) de paternidade, ainda mais nos casos em que não se produziu a perícia genética adequada. Diante da necessidade de se viabilizar meios para o exercício do direito material em questão, amparado constitucionalmente, a solução para conflitos

dessa natureza (entre normas de igual hierarquia) é a aplicação dos próprios princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade (ponderação de interesses), como forma de ajustar os interesses convergentes, no caso concreto, com destaque para os valores envolvidos na relação paterno-filial, fazendo prevalecer, por óbvio, a garantia ao reconhecimento da filiação, se este for o objetivo da ação em análise.

Referências ALMEIDA, Maria Christina de. Investigação de Paternidade e DNA: aspectos polêmicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 29a. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. CATÃO, Marconi do Ó. Biodireito: Transplante de órgãos humanos e direitos da personalidade. São Paulo: Madras, 2004. FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: Teoria Geral. Rio de Janeiro. 3a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. NASCIMENTO, Valder do Nascimento. Por uma teoria da coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

53


Sentença INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO CONJUGADO COM O PRINCÍPIO DA DESNECESSIDADE DA PENA. ROUBO CONSUMADO – INVERSÃO DA POSSE

Abelardo Paulo da Matta Neto Juiz de Direito 8ª Vara Crime da Comarca de Salvador − Bahia

Vistos etc. O Ministério Público, com supedâneo em Inquérito Policial, ofertou denúncia em desfavor de xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, devidamente qualificado como incurso nas penas do artigo 157, caput do Estatuto Repressivo Penal, por ter, no dia 27 de agosto do ano de 2005, aproximadamente às 21 horas, nas imediações do final de linha do bairro de Sussuarana, nesta jurisdição, subtraído, mediante grave ameaça, um aparelho celular e uma bolsa pertencentes à vítima xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. Assevera, ainda, que o indigitado acusado foi reconhecido e preso por populares, próximo ao local da ocorrência do delito. A e R, a prefacial foi devidamente recepcionada (fl. 38), designando-se audiência de qualificação e interrogatório do réu (fls. 54/55). A Defensoria Pública ofertou tempestivamente a Defesa Prévia do acusado (fl. 60). Promoveu-se audição das testemunhas elencadas no intróito ministerial (fl. 71), tendo o Ministério Público desistido da oitiva das demais testemunhas arroladas. Foi concedida liberdade provisória em favor do indigitado denunciado. As testemunhas de defesa foram efetivamente ouvidas às fls. 75 usque 76. O dominus litis e a Defensoria Pública, nos termos do art. 499 da Lei Adjetiva Penal, ficaram silentes

54

(fl. 78 – verso). O Representante do Ministério Público ofertou alegações finais em 04 laudas digitadas em computador (fls. 80 usque 83), opinando pela improcedência da denúncia, em conseqüência, absolvição do denunciado xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, com base no Princípio da Irrelevância Penal do Fato (art. 386, III, do CPP). A insigne Representante da Defensoria Pública (fls. 85/86), nos termos do artigo 500, da Lei Adjetiva Penal, reiterou, in totum, os termos das alegações finais do Órgão Ministerial.

É o relatório. Pronuncio-me. Preliminarmente, imperioso se faz tecer comentários acerca da tese absolutória concernente ao Princípio da Irrelevância Penal do Fato conjugado com o Princípio da Desnecessidade da Pena, sustentada pelo Parquet e reiterada pela Defensoria Pública. Tal Princípio em alusão tem sua base teórica extraída do art. 59, do Estatuto Repressivo Penal. O art. 59, do CPB, assim reza: “ (...) O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (...)”


É justamente da análise conjunta da primeira sobreditos pressupostos do Princípio da Insignificânparte do art. 59, do CPB, ou seja, das circunstâncias cia e o desvalor da Culpabilidade (ou seja, todos as judiciais, com a segunda parte deste mesmo artigo, circunstâncias judiciais do art. 59, do CPB, favoráveis) que emerge toda a conclusão doutrinária atinente ao são, cumulativamente, os pressupostos para a incidênPrincípio da Irrelevância Penal do Fato conjugado com cia da Infração Bagatelar Imprópria. o Princípio da Desnecessidade da Pena. Na espécie, houve a configuração do delito de Luiz Flávio Gomes foi o primeiro autor a difundir, roubo. É cediço que este delito tem como objeto juríno Brasil, a Teoria da Desnecessidade da Pena con- dico não só o patrimônio, mas também a integridade jugada com o Princípio da Irrelevância Penal do Fato. física e a liberdade do indivíduo. Prima facie, é preciso deixar bem Ora, é inegável que, por claro que o Princípio da Irrelevânisso mesmo, o delito de roubo é cia Penal do Fato nada tem a ver alçado ao patamar dos crimes de com o Princípio da Insignificância, elevada gravidade. Sendo assim, isto, pois, este, é causa de atipicinão se pode ser complacente com dade (relaciona-se, portanto, com investidas desta jaez. Houve a configuração a Teoria do Delito) e aquele, causa Ademais, vale frisar que, o do delito de roubo. É de dispensa de pena (relaciona-se, art. 59 do CPB prevê que a pena cediço que este delito portanto, com a Teoria da Pena). deve ser aplicada conforme seja Segundo o aludido autor, é a necessário e suficiente para reprotem como objeto definição do que seja infração bagavação e prevenção do crime. jurídico não só o telar que irá diferenciar um princípio Quando se fala em prevenpatrimônio, mas do outro. Vejamos. ção, o artigo está se referindo ao Infração Bagatelar ou Delito gênero que possui as seguintes também a integridade de Bagatela, na definição do soespécies: Prevenção Geral (a qual física e a liberdade bredito autor, expressa o fato de se divide, ainda, em positiva, que do indivíduo ninharia ou, em outras palavras, é significa reorientar o comportaum ataque ao bem jurídico que não mento das pessoas em sociedade, requer a intervenção penal, porque e negativa, que significa intimidar está fora do âmbito do tipo penal. o comportamento das demais pesAinda segundo o rutilante jurista, a soas em sociedade) e Prevenção infração bagatelar deve ser compreendida em sua du- Especial (também se divide em positiva e negativa). pla dimensão: Infração Bagatelar Própria e Imprópria. A Prevenção Geral destina-se a toda a sociedaA Própria é a que já nasce sem nenhuma rele- de. A Especial dirige-se exclusivamente ao delinqüenvância penal. Aqui, sim, se assenta o Princípio da Insig- te. nificância, pois este tem, cumulativamente, os seguinDa análise perlustrada dos índices de crimites pressupostos: a mínima ofensividade da conduta nalidade em Salvador, verifica-se que, com base em do agente; ausência de periculosidade social da ação; dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Púreduzido grau de reprovabilidade do comportamento e blica do Estado da Bahia (http://noticias.uol.com.br/ inexpressividade da lesão jurídica causada. Assim, a ultnot/2008/02/19/ult23u1211.jhtm), o número de roucoexistência destes quatros pressupostos servirão de bos a transeuntes tem aumentado. parâmetros para balizar a incidência da Infração BagaEm vista disso, é preciso que o Poder Judiciário telar Própria (Princípio da Insignificância). dê um basta a esta crescente, pois é público e notóJá a Infração Bagatelar Imprópria, ainda nas li- rio que a sociedade soteropolitana tem sido refém do ções de Luiz Flávio Gomes, é aquela que não nasce ir- medo e da insegurança ocasionada por esta criminarelevante para o Direito Penal, mas, depois, verifica-se lidade. que a incidência de qualquer pena no caso apresentaDestarte, como dito alhures, ante comprovação se como totalmente desnecessária (Princípio da Irre- da acentuada nos índices de ocorrência dos delitos de levância Penal do Fato conjugado com o Princípio da roubo a transeuntes (delito de alta gravidade), não se Desnecessidade da Pena). Imperioso salientar que os pode dizer que a Prevenção Geral não estaria amea 55


Inaplicabilidade do princípio da irrelevância Penal do fato conjugado com o princípio da desnecessidade da pena. Roubo consumado – inversão da posse

çada. Assim, entendo que o delito praticado pelo para condenação do réu pela prática do crime de roudenunciado é de grande relevância penal, bem como bo, não pairando a menor dúvida. que a pena se mostra, portanto, necessária (Princípio As testemunhas foram uníssonas na afirmação da Necessidade da Pena). de que o denunciado foi o autor da prática delitiva. Aliás, a tese sufragada pelo ilustre promotor de Foi inquirido em juízo (fl. 71) um dos prepostos Justiça, de que não houve prejuízo concreto, não altera policiais que efetuaram a prisão do acusado, tendo raem nada a solução do feito. Isto, pois, caso contrário, tificado que o denunciado perpetrou o crime de roubo. toda tentativa de roubo, por igual razão (e absurdamenA respeito do testemunho prestado pelos polite, porquanto seria mais um fomento à criminalidade), ciais, entendo que, a princípio, não se deve desmerecer deveria ser considerada penalmente atípica em decor- o seu depoimento, visto que suas afirmações são válirência do Princípio da Irrelevância Penal do Fato. das até prova em contrário (presunção Juris tantum.), É preciso deixar bem claro que, não sou contra a ou seja, por conta de seus atos gozarem de presunção aplicação deste Princípio. Apenas legal de veracidade, eis que exerentendo que para o delito em aprecem seu munus na qualidade de ço o mesmo não merece guarida. Servidores Públicos, o testemunho Ex positis, não comungo dos Agentes de Segurança Pública Não se deve com a tese suscitada pelo Órgão tem elevado valor probante. desmerecer o seu Ministerial, ratificada in totum pela O STF assim tem entendido. Defensoria Pública, pois entendo Senão vejamos: depoimento, visto ser incabível, ao caso sub judice, a “ Não se pode afirmar em que as suas aplicação do Princípio da Irrelevântese a invalidade de depoimentos afirmações são cia Penal do Fato conjugado com de policiais, pelo simples fato de o o Princípio da Desnecessidade da serem, sem que outras razões jusválidas até prova Pena. tifiquem sua rejeição” ( STF 1ª Turem contrário, ou seja, Feito isso, passo agora a ma Rel. Min. Sydney Sanches DJU por conta de seus atos apreciar o meritum causae. A ma04.08.95) (grifo nosso) terialidade e a autoria do fato de“A ordem jurídica em vigor gozarem de lituoso encontram-se fartamente agasalha a possibilidade de polipresunção legal configuradas, pela confissão do cias que participaram de diligênde veracidade acusado na especializada e em jucias virem a prestar depoimento, ízo , como ainda pelas provas coarrolados pela acusação” ( STF 2ª ligidas no sumário, sendo evidenTurma Rel. Min Marco Aurélio DJU ciada, portanto, uma sintonia das 13.12.96) provas extrajudiciais e judiciais, não havendo qualquer As testemunhas de defesa, ouvidas em juízo às contradição a ser argüida. fls. 75/76, em nada contribuíram para inocentar o acuVejamos, ipsis litteris, a confissão do réu: sado. E nem podiam, até porque não presenciaram o “ (...) Alega o interrogado que os fatos narrados exato momento do cometimento do delito. Elas apenas na vestibular são verdadeiros (...)” teceram comentários acerca da conduta social do de“ (...) disse para a mesma que colocasse a bolsa nunciado, sendo conhecidas no meio forense, como no chão e logo em seguida subtraiu a bolsa da vítima “testemunhas de canonização”. (...)” (Depoimento do réu xxxxxxx, em juízo, fl. 55) Em vista disso, sem maiores digressões, não A respeito da confissão, tem-se: resta a menor dúvida acerca da configuração da mate“(...) a confissão, livre, espontânea e não posta rialidade e autoria no delito de roubo em apreço. em dúvida por qualquer elemento dos autos, é suficienVale registrar que o delito consumou-se, não se te para a condenação, máxime quando corroborada por discutindo sobre a possibilidade da aplicação da tenoutros elementos (...)”. (Mirabete, Julio Fabrini. Código tativa, visto que ocorreu a inversão da posse da res de Processo Penal Interpretado. 9ª ed. Atlas, p. 540). furtiva. As provas extrajudiciais aliadas às provas judiOs pretórios têm enquadrado que a consumação ciais levam a um convencimento seguro e escorreito do roubo ocorre no momento da subtração, com inver56


são da posse da res, independentemente, portanto, da posse pacífica e desvigiada da coisa pelo agente. A jurisprudência é iterativa ao dispor: “O crime de roubo se consuma com a mera posse do bem subtraído, ainda que por um breve período, não se exigindo para consumação do delito a posse tranqüila da res” (Resp 753.215?SP,Rel. Laurita Vaz, DJU 20.03.06 STJ) “Habeas Corpus. Penal. Processual Penal. Roubo. Consumação independentemente da posse mansa e pacífica da coisa. Precedentes. Alegação de que a pena pode ser fixada abaixo do mínimo cominado. Tese contrária à jurisprudência deste Supremo Tribunal. Precedentes. Habeas Corpus Indeferido.”(HC 94234-2 RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 20/05/2008- STF) Diante das razões supra-expendidas, julgo procedente a denúncia, in totum, para condenar o réu xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx às penas do artigo 157, caput, do Estatuto Repressivo Penal. Passo a Dosar a Pena: Em cotejo com as diretrizes preceituadas no artigo 59 do Estatuto Repressivo Penal, cinge-se que a culpabilidade do réu aludido é manifesta, através do dolo direto para prática criminosa, consciência da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, conforme se verifica às fls. 51 usque 62; trata-se de réu primário, possuidor, portanto, de bons antecedentes, sem mácula em sua vita anteacta. É réu possuidor de conduta social exemplar, conforme faz prova às fls. 75/76. Ante a carência de dados, não foi possível aquilatar a personalidade do acusado, mesmo porque entende o signatário que o julgador não possui formação técnica para aferir sobre a personalidade do agente, cabendo esse mister a um médico especialista. As circunstâncias e motivos são desfavoráveis. As conseqüências delitivas não foram

graves, eis que a res foi recuperada. A vítima não facilitou ou mesmo propiciou a ação do agente. Assim, fixo a pena base em 04 (quatro) anos de reclusão e multa de 10 dias-multa, cada dia-multa no valor de um trigésimo do salário mínimo à época do fato. Milita circunstância atenuante em favor do réu, ou seja, ter confessado o crime perante autoridade. Contudo, deixo de valorá-la, pois, a teor da Súmula 231 da Colenda Corte Superior, a pena base não pode ficar aquém do mínimo legal. Não milita circunstância agravante em desfavor do réu. Não milita causa especial de aumento de pena ou de diminuição.Portanto, torno a pena de 04 (quatro) anos de reclusão e multa de 10 dias-multa, cada dia multa no valor de um trigésimo do salário mínimo à época do fato, como definitiva. O réu deverá cumprir inicialmente a pena imposta em regime aberto, em consonância ao que preceitua o artigo 33, § 1º, alínea c, c/c com § 2º, alínea c, devendo ser encaminhado à casa de albergado. Por absoluta falta de amparo legal, deixo de aplicar o artigo 44 do Código Penal, pois o crime foi perpetrado com violência e grave ameaça. Concedo ao réu o direito de recorrer em liberdade. Lance-lhe o nome no rol dos culpados, após trânsito em julgado. Também, após transcurso recursal, expeça-se a devida Carta de Guia provisória ou definitiva à Vara de Execuções Penais, bem como oficie-se ao Tribunal Regional Eleitoral. Isento do pagamento de custas, em virtude de ser pessoa carente. P.R.I Salvador, 03 de novembro de 2008.

57


Artigo O CONCEITO DE PERIGO EM DIREITO PENAL Lizianni de Cerqueira Monteiro Juíza de Direito Vara Crime de Caman

Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia

V

isa o presente estudo a analisar o conceito de periculosidade, que fundamenta a aplicação da medida de segurança em relação ao inimputável. Historicamente, pena e medida de segurança coexistiam em relação a um mesmo sujeito que praticasse um ilícito penal. Na medida em que fosse constatada a periculosidade do infrator, aplicavase a medida de segurança, sem prejuízo da pena imposta pelo fato criminoso. Esse sistema não vige no ordenamento penal pátrio. Contudo, em relação aos inimputáveis, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, nos termos do artigo 26 do Código Penal, vigora o sistema da periculosidade como parâmetro para imposição da medida de segurança. Ressalte-se que o trabalho enfoca apenas os inimputáveis definidos no artigo 26 do Código Penal. Assim, a referência a inimputáveis deve ser entendida tomando-se em consideração essa classe de indivíduos tão-somente, excluindo-se, por conseguinte, as outras categorias, como os menores de 18 anos. Presume-se que o inimputável é perigoso e, portanto, deve se submeter a tratamento, a fim de que possa se readaptar ao convívio em sociedade sem oferecer risco, a si próprio e aos outros. Tem-se, pois, os pressupostos para a aplicação da medida de segurança ao inimputável (destinatários dessa espécie de sanção): prática de um ilícito penal e periculosidade¹.

O imputável é cercado de garantias, como não poderia deixar de ser, inclusive a de ser julgado pelo crime que cometeu, e não pela sua personalidade. Em relação ao inimputável, vigora o direito penal do autor, sem reservas e sem questionamentos acerca de sua legalidade. Questiona-se o conteúdo da periculosidade para demonstrar que, por sua imprecisão, não permite à pessoa contestá-lo efetivamente. O conceito que define o estado de perigo é visto sob a perspectiva da filosofia de Karl Popper. É posta em debate a suposta cientificidade que reveste o significado de perigo, para lhe conferir validade. Conclui-se pela impossibilidade do uso de critério de conteúdo pouco informativo para fundamentar a medida de segurança de internação.

Periculosidade A acepção corrente e mais comum de periculosidade é dada como a probabilidade de o sujeito voltar a cometer crimes². O delito é a exteriorização da perigosidade e evidencia a não adaptação do indivíduo à vida social. O fato de ter praticado um crime revela a personalidade criminosa da pessoa. Ressalte-se que há, doutrinariamente, a distinção entre a possibilidade de se cometer crimes e a probabilidade de delinquir. Somente o juízo de probabilidade está apto a respaldar a aplicação de medida

1 - O sistema penal brasileiro não acolhe a periculosidade pré-delitual, que, segundo Ferri, relaciona-se com a periculosidade social, em relação à qual não se ocupa a justiça penal, mas, antes, é questão de polícia de segurança (FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal. O Criminoso e o Crime). 2 - Em sentido diverso, ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral, p. 865. Para os autores, periculosidade é “o simples perigo para os outros ou para a própria pessoa, e não o conceito de periculosidade penal, limitado à probabilidade da prática de crimes.” 58


de segurança. Com a internação, e a consequente seSoma-se ao argumento de defesa social a ideia gregação do sujeito tido como perigoso, fica a socieda- de que a segregação do indivíduo almeja seu tratamende livre do risco de ele voltar a praticar outro crime. A to e proteção, por se tratar de doente mental, possibiliinternação é destinada àquele que representa perigo tando, assim, sua reintegração social. Vistas as coisas para a sociedade. A medida de segurança se qualifica dessa perspectiva, impõe-se a indagação: o sistema como instrumento de defesa social. penal cumpre esse papel de tratamento e de proteção Chama-se também essa probabilidade de o indi- do inimputável? E ainda: o papel deve ser destinado ao víduo cometer novamente um delito de periculosidade Judiciário? Compete à justiça penal ministrar a terareal – em contraposição à periculosidade social, que pêutica, fixar seus rumos, determinar a necessidade? não autoriza a intervenção do Poder Judiciário para Diz Aníbal Bruno que “fundamento das medidas internar o cidadão. Deve-se levar de segurança é o estado perigoso em consideração o fato típico e ilído indivíduo, aquele potencial de cito praticado pelo sujeito declaracriminalidade, que se define (...) do inimputável, além dessa suposta como probabilidade de delinquir”³. Deve-se levar em probabilidade de voltar a delinquir, Segundo o penalista citado, resa ser auferida por perícia médica. palda-se esse conceito jurídico de consideração o fato Fala-se também que o perigo perigosidade em uma acepção natípico e ilícito praticado que representa o inimputável está turalística, que consiste no desapelo sujeito declarado relacionado diretamente com o ilícijustamento do homem delinquente to praticado. Assim, pequenos deliinimputável, além dessa para viver em sociedade. O sentido tos não deveriam fundamentar a innaturalístico fundamenta a definisuposta probabilidade ternação do indivíduo. De qualquer ção jurídica, pois o não adaptado de voltar a delinquir, modo, o crime é a exteriorização do às normas da vida em sociedade perigo, contra o que a sociedade revela uma personalidade criminóa ser auferida por deve se precaver. O Poder Judicigena, ou seja, propensa à prática perícia médica ário é, em última análise, instância de ilícito penal. O crime, também de cura desse doente qualificado para esse autor, é a manifestação como inimputável. E como em toda da perigosidade, que preexiste à terapêutica, deve o remédio ser ininfração penal4. dividualizado ao paciente. Nelson Hungria5, por seu Observe-se que, embora se turno, afirma serem perigosos os admita que definir periculosidade sujeitos propensos à reincidência. seja uma tarefa árdua, não abandona a corrente ma- Em relação a estes, diz, não basta o castigo da pena; joritária da doutrina nacional a ideia de que a pericu- é necessário tratamento ressocializador, para tornálosidade deve ser aferida em relação ao inimputável, los adaptados à vida social. Deve-se, pois, investigar para que se determine a medida de segurança. Não a personalidade do sujeito, a fim de modificá-la, tarehá questionamento de como se chega a esse juízo de fa que admite não ser fácil. Trata-se, portanto, de um prognose, de quase adivinhação do futuro. Percebe- juízo de prognose: deve-se prever se o indivíduo vai se a mesma repetição: probabilidade de praticar novos voltar a praticar uma infração penal, hipótese que rescrimes, não se exigindo certeza, pois esta é impossível palda e justifica sua segregação. Essa tarefa é dada ao de ser alcançada. Afinal, não se pode dizer, com preci- psiquiatra forense. Com seus conhecimentos técnicos, são, se e quando alguém poderá praticar outro crime. deverá predizer qual indivíduo apresenta comportaMuito menos se pode precisar a natureza desse novo mento perigoso, ou seja, quem poderá voltar a cometer delito. crime. Note-se que não se exige um juízo de certeza:

3 - BRUNO, Aníbal. Medidas de Segurança, 1940, p. 27. 4 - Ibid., p. 30-32. 5 - HUNGRIA, Nelson. Métodos e critérios para avaliação da cessação de periculosidade. Conferência pronunciada no Salão Nobre da Faculdade de Direito de Curitiba, em 5 de maio de 1956, passim. 59


O conceito de perigo em direito penal

basta a probabilidade de o sujeito voltar a cometer um sociedade. Consequentemente, deve ser o sujeito tradelito que fica autorizada a imposição de medida de tado, a fim de que essa periculosidade cesse. A definisegurança. Admite o autor citado que, por se cuidar de ção de periculosidade não se alterou com o tempo – a prognóstico, além da impossibilidade da certeza, está diferença está somente em que a medida de segurança sujeito a enganos de avaliação. Não considera, contu- era aplicada concomitantemente com a pena, se averido, tal circunstância motivo para eliminar o critério que guava a periculosidade tanto dos imputáveis como dos inimputáveis. Atualmente, somente os inimputáveis estermina por segregar o indivíduo tido como perigoso. Ao contrário. Recomenda Hungria que os juízes tão sujeitos ao juízo da periculosidade. Repetem-se essas definidevem ter cuidado ao acatar laudo ções sem qualquer questionamenpsiquiátrico que conclua pela cesto crítico acerca do conteúdo da sação da periculosidade. Para o pepericulosidade. Continua a perinalista, a defesa social é elemento O crime é a culosidade sendo definida como a justificador da medida de segurança; deste modo, devem ser afastamanifestação do caráter probabilidade de o indivíduo voltar a cometer crimes, justificando-se dos da sociedade os indivíduos que perigoso do indivíduo e, a segregação, por meio da medida representem qualquer perigo. Assim até que se ajustem novamente por esta razão, apresenta de segurança da internação, como meio de defesa social: proteger a às normas de convívio social. Na a pessoa risco à sociedade do individuo perigoso. dúvida, deve-se concluir pela intersociedade. O crime é a exteriorização da pernação do sujeito, solução preferível Consequentemente, deve sonalidade perigosa de seu autor. à reinserção em sociedade da pessoa que ainda possa apresentar siser o sujeito tratado, a A personalidade perigosa nais de perigo. fim de que essa Não obstante se reconheça periculosidade cesse Constata-se, pois, uma inque tal juízo de prognose é difícil, cursão psicológica para desvenou até mesmo impossível, por se dar a personalidade do indivíduo tratar, em verdade, de previsão do e, assim, adequar-lhe o tratamencomportamento futuro de uma pesto, com a finalidade de impedir que soa, não se abandona a definição o sujeito externe novamente seu positiva da periculosidade, insistinpotencial ofensivo, ajustando-o às normas sociais. do na surrada fórmula probabilidade de se cometer noPretende-se, então, perquirir sobre os caractevos crimes. Disso resulta o conceito de periculosidade aceito res que definem a personalidade. Consoante Pagapela maioria da doutrina penal: uma vez praticado o nella Boschi7, a personalidade não é estática, ela se delito, revelou o indivíduo personalidade perigosa, que forma com a vida da pessoa, não se resumindo às radeve ser tratada, até que cesse essa periculosidade e ízes genéticas. Não significa somente a conduta soo sujeito possa voltar ao convívio social sem oferecer cial do indivíduo, seu comportamento, não se resume a expressões como desajustada, boa, má, agressiva, risco 6. Essa assertiva conduz a uma conclusão lógica: propensa ao crime. A personalidade não se resume ao temperamena pessoa sempre foi perigosa, mesmo antes de delinquir. O perigo lhe é inerente. A infração penal apenas to do indivíduo ou ao ajustamento ao que socialmente se convencionou ser adequado, é uma questão mais revela essa personalidade. O crime é a manifestação do caráter perigoso do complexa. A questão não se limita à impossibilidade indivíduo e, por esta razão, apresenta a pessoa risco à de se determinar a personalidade da pessoa, vai mais

6 - Neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral, p. 90. Para o autor, a periculosidade que autoriza a imposição de medida de segurança é “aquela perigosidade apenas se e quando revelada através da prática pelo agente de um fato ilícito típico.” 7 - BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e de seus critérios de aplicação, p. 205-212. 60


além: passa também pela impossibilidade de modificála. Mesmo que houvesse condições de se estabelecer um juízo sobre a personalidade do sujeito (não há), esse critério, ainda assim, seria ilegítimo para motivar a internação do inimputável, pois consiste em julgamento pelo que a pessoa é, quando o julgamento deveria se referir ao que a pessoa fez, ao fato cometido. Como adverte Salo de Carvalho8, “o problema que levantamos é que, mesmo se houvesse condições (de se estabelecer o juízo de periculosidade), esta avaliação seria ilegítima sob um prisma de um direito penal de garantias balizado pelo princípio da secularização.” Segundo Ferrajoli, disposições legais como a do parágrafo primeiro do artigo 97 do Código Penal constituem-se em modelos autoritários, em que o foco está na pessoa do delinquente, cuja personalidade distorcida e antissocial justificaria a segregação. Segundo o autor, o direito penal não se ocupa somente com o crime, “mas (com) o desvio criminal enquanto em si mesmo imoral ou anti-social e, para além dele (crime), a pessoa do delinqüente, de cuja maldade ou anti-sociabilidade, o delito é visto como uma manifestação contingente.9 ” Para tanto serve o laudo pericial, que termina por fazer uma análise da personalidade antissocial do inimputável, evidenciando que o fato ilícito é um desdobramento da personalidade do indivíduo. Ou, nas palavras de Foucault, “mostrar como o indivíduo já se parecia com seu crime antes de o ter cometido.10” Some-se a esses argumentos o fato de que o método utilizado para a aferição da periculosidade não é acessível à pessoa. Assim, não somente o conteúdo do conceito de periculosidade é incerto – também o é o método pelo qual se chega a ela. O mesmo acontece com a personalidade. Os critérios de que se valem os psiquiatras para tentar definila (e não apenas o conteúdo do que se chama de personalidade) são inacessíveis e desconhecidos os seus destinatários, em relação a quem o laudo pericial irá repercutir. A pessoa não pode questionar o que não conhece e não entende – não pode contestar a verda-

de exposta no laudo, tida como absoluta e aceita sem reservas pelo Poder Judiciário. Esse modelo não garante ao indivíduo a ampla defesa e o contraditório, na medida em que é incompatível com o princípio jurisdicional da refutabilidade das hipóteses11.

Desconstruindo o mito: não há método científico na investigação da periculosidade Quais os meios para constatar a periculosidde criminal? Trata-se de um juízo de prognose, em relação ao qual se deve inferir, com o maior grau de certeza possível, se é provável que o sujeito pratique outro crime novamente. Como se chega a esse juízo? Observe-se que não se exige a certeza do prognóstico, mas apenas a probabilidade, ou o fundado receio, pois um juízo dessa natureza é impossível de ser alcançado: como predizer comportamento futuro, sem que restem dúvidas a respeito da prognose? Não obstante essa singela observação, não se notam críticas sobre a verdade exposta nos laudos periciais que concluem pela persistência da perigosidade dos internados por força de medida de segurança. A perícia médica se dispõe ao mister de estabelecer a existência (ou não) de periculosidade do indivíduo. Deixa-se ao cuidado do psiquiatra forense a árdua missão de constatar a cessação da perigosidade do sujeito, para que possa o indivíduo se livrar da medida de segurança imposta. Na medida em que o ilícito criminal é praticado e seu autor é inimputável, a periculosidade se manifesta. Então, para que cesse a situação de perigo, é preciso que seja ao menos controlado o sujeito portador de alguma deficiência mental, para que não coloque em risco a sociedade para a qual deseja retornar12. E assim perpetuam-se as internações, sob o fundamento de que o indivíduo está sendo tratado, quando, em verdade, cuida-se somente de restrição da liberdade. Espera-se do médico psiquiatra a previsão de quem irá reincidir. Trata-se, como visto, de um juízo

8 - CARVALHO, Amilton Bueno de e CARVALHO, Salo. Aplicação da pena e garantismo, p. 59. 9 - FERRAJOLI. Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 45. 10 - FOUCAULT, Michel. Os anormais, p. 24. 11 - Expressão de Salo de Carvalho. CARVALHO, Amilton Bueno de e CARVALHO, Salo. Aplicação da pena e garantismo, p. 54. 12 - A expressão controlada e a expressão compensada, referindo-se à doença mental, também são usualmente vistas em laudos periciais. Observa-se a busca do controle da doença para se permitir o desinternamento. Supõe-se, por conseguinte, que a doença mental não controlada torna o indivíduo propenso à prática de crimes. Questiona-se, no entanto, se esse controle da doença mental é realmente competência da justiça penal. 61


O conceito de perigo em direito penal

de prognose: para a desinternação, o perito deve fazer uma prognose negativa, afirmar que tal indivíduo está ajustado às normas sociais e não oferece perigo à sociedade. Insta destacar que, aqui, a dúvida não favorece ao acusado, ao revés, tem-se em vista, somente, política de defesa social13. E resta a indagação: quando e como se pode prever um comportamento futuro que seja isento de dúvidas? Já foi exposto que o juízo de periculosidade encerra uma probabilidade, não se pretende certeza. Conclui-se que o inimputável submetido a uma medida de segurança é deixado ao arbítrio de médicos psiquiatras, internado em hospitais de custódia e tratamento, sob o argumento de que está sendo tratado para que possa retornar ao convívio social sem oferecer perigo. Juarez Cirino dos Santos adverte sobre a confiança cega que se deposita nos laudos psiquiátricos, como se o médico especialista pudesse prever comportamentos futuros e medir o grau de perigo inerente à pessoa14. Evidencia-se que essa regra é inconcebível em um sistema penal de garantias. A probabilidade de o sujeito cometer novos crimes é noção demais abstrata para servir como indicador de periculosidade do indivíduo e, consequentemente, para determinar sua restrição de liberdade. Conforme explicitado, o conceito de probabilidade de reincidência do inimputável implica predição incerta, que não traz conteúdo que possa ser constatado. A investigação da periculosidade demanda uma incursão na conduta social, vida pregressa, caracteres esses que comumente se atribuem à personalidade da pessoa, embora a personalidade não se resuma a essas características atinentes às qualidades morais do indivíduo. Assim, quando se fala de pesquisar a personalidade, busca-se no modo de vida da pessoa indicadores de como se porta na vida social, investiga-se o modo de ser do cidadão. Ora, a natureza intrínseca da pessoa não é demonstrável, é eminentemente subjetiva e não é passível de prova em sentido algum. Consoante Karl Popper, o progresso da ciência ocorre com teorias informativas, de alto conteúdo e, justamente por isso, altamente criticáveis, ou falseá-

veis, como afirma15 . Segundo o filósofo, não pode haver avanço científico se as teorias que se pretendem as melhores possuem baixo conteúdo informativo e, por esta razão, não se sujeitam a críticas. As melhores teorias, assevera, não são validadas por afirmativas que pretendam confirmá-las; ao contrário, as melhores teorias são aquelas que, pelo alto teor de informação que contêm, são falseáveis, mas resistem e sobrevivem aos testes. Não se pode pretender uma tese científica se, uma vez elaborado o enunciado, apenas se busque confirmá-la, sem nunca submetê-la a testes para aferir sua capacidade de resistência. A ciência progride com erros, uma teoria científica não nasce da indução, da mera observação desinteressada dos fatos naturais. Disso resulta que quanto maior a informação contida em uma teoria, mais facilmente será falseada e menor será o grau de probabilidade de verificação empírica. Deste modo, na medida em que a teoria se revela menos provável de verificação, maior será o teor informativo e mais contribuirá para o avanço científico. Não se pode contestar algo que seja vazio de conteúdo. Noções vagas e imprecisas são facilmente confirmadas empiricamente, justamente pela ausência de informação, mas não contribuem para a ciência. Ao revés, enunciados que possuem muita informação, que podem ser contestados empiricamente e, por esta razão, são refutáveis, são essenciais para o desenvolvimento científico. Disso decorre logicamente que não se pode aceitar como tese científica a conclusão dos laudos técnicos firmados por peritos psiquiatras que analisam a periculosidade do inimputável. O conceito de periculosidade é vago e carece de dados empíricos e objetivos que lhe permitam a refutabilidade. Trata-se de conceito que não pode ser demonstrado objetivamente e, por essa razão, torna-se incontestável. A despeito dessa constatação, a ideia de perícia médica remete a uma ideia – falsa, frise-se – de cientificidade, que legitima a subordinação da liberação do indivíduo ao laudo médico. Saliente-se que não existem dados precisos para se constatar se o sujeito é perigoso ou não. A avaliação do expert é baseada em valores pessoais e ideias

13 - HUNGRIA, Nelson. Métodos e critérios para avaliação da cessação de periculosidade. Conferência pronunciada no Salão Nobre da Faculdade de Direito de Curitiba, em 5 de maio de 1956, passim. 14 - SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC, Lúmen Júris, 2008, p. 655. 15 - POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. 62


preconcebidas, fáceis de se confirmar empiricamente Popper traz a ideia de que somente há progres(bastando manejar os dados de acordo com a conveni- so científico com a contradição: a superação de uma ência), mas dificílimo de refutar, justamente em função teoria não retira dela o caráter científico, ao contrário, do caráter incerto das definições. confirma esse caráter, e nisso reside o racionalismo Demonstra-se, assim, que a vinculação desin- crítico. Uma teoria científica não se afirma pela repetiternação do cidadão sujeito à medida de segurança à ção de hipóteses que a confirmem, mas pelas críticas constatação da cessação de periculosidade é arbitrá- que recebe e, ainda assim, sobrevive. Se não puder ria e contribui para que a sanção se torne eterna. Sem- ser criticada, não se trata de ciência. pre haverá argumentos subjetivos, vagos e imprecisos, O senso comum informa que para ser aceito fundados em condições pessoais, para perpetuar a se- como verdade o enunciado deve revestir-se da manta gregação, que terminam por rotular o indivíduo como da cientificidade. Segundo Popper16, contudo, deve-se propenso a delinquir ou como posdiscernir a origem do conhecimensuidor de tendência delituosa. to da verdade nele exposta. Vale Percebe-se, de plano, que dizer, as fontes do conhecimento Não há como refutar é impossível contradizer dados não se confundem com as queseminentemente subjetivos, como tões de validade. A verdade não se afirmativas como é a personalidade da pessoa. Não alcança indagando sobre as fontes personalidade propensa há como refutar afirmativas como do conhecimento, mas, ao revés, a cometer crimes, personalidade propensa a cometer a verdade se obtém “mediante um crimes, tendência delituosa, empreexame crítico do que foi afirmado, tendência delituosa, gadas quando se quer exprimir o ou seja, os fatos afirmados em si.” empregadas quando se perigo que a pessoa supostamenO enfoque em relação às quer exprimir o perigo te representa para a sociedade. O fontes como instrumento legitimainimputável carrega este estigma: dor do conhecimento invoca uma que a pessoa é presumidamente perigoso e soresposta autoritária: de onde parte supostamente representa mente cessada essa periculosidao conhecimento, de onde ele vem? para a sociedade. de pode ser novamente posto em Donde a resposta seria: de Deus. liberdade. Do próprio homem. Ou da ciênPara garantir ao cidadão a cia? Depende da época histórica possibilidade de defender-se plenaem que se situe o destinatário da mente, impõe-se a clara exposição dos critérios utiliza- pergunta. Para Popper, quando se almeja a verdade, dos para a determinação da probabilidade de cometer a pergunta não deveria se referir à origem do conhecrimes. cimento, pois esta não importa para que se lhe confira A impossibilidade dessa objetivação em relação validade, mas deveria se referir se a afirmação feita é à significação de periculosidade faz com que não seja verdadeira, ou seja, se concorda com os fatos. A valilegítimo utilizá-la como critério para a aplicação da dade do conhecimento se legitima pela crítica que se medida de segurança. A assertiva é válida, sobretudo faz, ou seja, a pergunta seria: “como podemos esperar quando se refere à internação, pois implica restrição conseguir detectar o erro?” 17 da liberdade individual e assemelha-se a sanção criPercebe-se atualmente que o foco não está mais minal. Ora, a natureza intrínseca da pessoa é algo não em Deus ou no homem, mas na ciência. Considera-se demonstrável, é algo eminentemente subjetivo e não legítimo todo conhecimento que se respalde cientificapassível de prova em sentido algum. Pode-se, sim, ma- mente. Nesse sentido já se manifestou Foucault 18: “(...) nipular ideologicamente esses dados para obter uma o relatório dos peritos – na medida em que o estatuconfirmação de uma conclusão que formou de ante- to de perito confere aos que pronunciam um valor de mão. cientificidade, ou antes, um estatuto de cientificidade 16 - POPPER, Karl. Conjecturas e refutações, p. 45. 17 - Ibid., p. 46.

63


O conceito de perigo em direito penal

– goza, com relação a qualquer outro elemento de de- da teoria. Essa a função do racionalismo crítico, nesse monstração judiciária, de certo privilégio.” particular: separar o que seja ideologia das questões A análise do médico psiquiatra sobre a persona- da verdade, e não eliminar as questões extracientíficas lidade da pessoa reveste-se de uma pseudoneutralida- da atividade científica. de científica, que não corresponde à realidade. Esse O que valida o conhecimento é a crítica. Seguncientificismo falso confere legitimidade aos laudos de do Popper 22, trata-se de equívoco a ideia de que o que periculosidade, sem que o Poder Judiciário se ocupe justifica conhecimento são razões positivas, ou seja, em analisar e questionar os métodos utilizados. as razões que visam a confirmá-lo. Uma tese científica Stephen Jay Gold, ao criticar o determinismo – não precisa ser confirmada positivamente, a verdade é em relação ao qual teve expressão um ideal, pode não ser alcançada. relevante a escola positiva de direiO que valida uma tese científica é A análise do médico to penal –, salienta que o mundo sua falseabilidade, ou seja, embora psiquiatra sobre a não se divide entre deterministas não possa ser confirmada, pode ser que utilizam a ciência para consopersonalidade da pessoa rejeitada. lidar preconceitos sociais e nãoInfere-se, por conseguinte, reveste-se de uma deterministas, que enxergam a lique não pode haver objetividade pseudoneutralidade gação estreita entre a ciência e o em um enunciado dito científico que poder e, desse modo, podem alnão seja refutável. A crítica do racientífica, que não cançar a verdade. Censura o autor cionalismo confere à atividade ciencorresponde à realidade. tífica a objetividade que almeja toda o mito segundo o qual a atividade Esse cientificismo falso ciência. Transplantando essa ideia científica deve ser neutra e o cientista deve “se libertar dos condiciopara a questão da análise da periconfere legitimidade namentos de sua cultura e ver o culosidade, observa-se que o conaos laudos de mundo como ele realmente é”19. teúdo do conceito de perigo e os periculosidade (...) métodos de investigação não perAinda segundo Popper, “o mitem essa contestabilidade. Como cientista natural é tão partidário dito, não é possível refutar considequanto as outras pessoas, e a não rações acerca da personalidade e ser que pertença aos poucos que estão, constantemente, produzindo novas idéias, ele modo de ser da pessoa, como também não é possível está, infelizmente, muito inclinado, em geral, a favore- contrapor argumentos contra juízo de prognose. cer suas idéias preferidas de um modo parcial e unilateral. 20” Não há objetividade absoluta na formação da teoria científica, pois não é possível extirpar os valores extracientíficos da formação da ciência – objetividade há na crítica que se faz dela. Não existe objetividade nas ciências, mas apenas no método crítico que usamos para refutá-la21. A objetividade da ciência não se deduz da objetividade e neutralidade do cientista, pois ele, o cientista, não é desprovido de humanidade e possui suas próprias crenças, valores pessoais, que são indissociáveis da sua pessoa. A objetividade está na refutabilidade

18 - FOUCAULT, Michel. Os anormais, p. 14. 19 - GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem, p. 5. 20 - POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais, p. 22. 21 - Ibid., p. 24-25. 22 - Id. Conjecturas e refutações, p. 51. 64

Conclusão Pertinente a lição de Foucault 23 , que, analisando o dispositivo do Código Penal francês de 1810 (artigo 64)24, que diz que não há crime nem delito se o indivíduo estiver em estado de demência no momento do delito, conclui: O exame deve permitir, em todo caso deveria permitir, estabelecer a demarcação: uma demarcação dicotômica entre doença e responsabilidade, entre causalidade patológica e liberdade do sujeito jurídico, entre terapêutica e punição, entre medicina e penalida-


de, entre hospital e prisão. É necessário optar, porque a loucura apaga o crime, a loucura não pode ser o lugar do crime e, inversamente, o crime não pode ser, em si, um ato que se arraiga na loucura. Princípio da porta giratória: quando o patológico entra em cena, a criminalidade, nos termos da lei, deve desaparecer. A instituição médica, em caso de loucura, deve tomar o lugar da instituição judiciária. A justiça não pode ter competência sobre o louco, ou melhor, a loucura [rectius: justiça] tem de se declarar incompetente quanto ao louco, a partir do momento em que o reconhecer como louco: princípio da soltura, no sentido jurídico do termo. Impõe-se a conclusão em razão dos argumentos vistos: não há critério seguro para se estabelecer a periculosidade do sujeito. A medida de segurança, sobretudo de internação – por representar restrição da liberdade individual do indivíduo –, não pode ter como pressuposto uma suposta perigosidade, cuja aferição é manifestamente duvidosa. O método pelo qual se obtém a quase certeza da perigosidade é fechado, ou seja, além de não permitir o conhecimento sobre os meios pelos quais se alcançou a conclusão – a periculosidade do sujeito –, não permite também que seja refutado e contraditado. Essa sistemática afronta qualquer sistema de garantias que pretenda assegurar ao cidadão proteção contra o arbítrio e o excesso estatais. A Justiça Penal, pois, não deve se ocupar do louco. Onde existe a loucura, não pode existir crime. Às pessoas que possuem qualquer distúrbio mental deve ser destinado o tratamento adequado, o que não é função da justiça. A justiça não trata. A justiça apenas julga quem tem capacidade para ser julgado. Uma vez diagnosticada a doença mental, o Poder Judiciário perde sua competência.

Referências

2004. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral - tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. FERRAJOLI. Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Tradução Luiz Lemos D’Oliveira. Campinas: Russell, 2003. FOUCAULT, Michel. Os anormais. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Tratado da inimputabilidade no Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2000. GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. Tradução: Valter Lellis Siqueira. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003. HUNGRIA, Nelson. Métodos e critérios para avaliação da cessação da periculosidade. Conferência pronunciada no Salão Nobre da Faculdade de Direito de Curitiba, em 5 de maio de 1956. LEVORIN. Marco Pólo. Princípio da legalidade na medida de segurança. Determinação do limite máximo de duração da internação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. MONTEIRO, Cristina Líbano. Perigosidade de inimputáveis e in “dubio pro reo”. Coimbra: Coimbra, 1997. POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. Trad. Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. _ _ _ _ _ _. Conjecturas e refutações. Tradução Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina, 2006. RAUTER, Cristina. Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003. SENRA, Ana Heloísa. Inimputabilidade. Consequências clínicas sobre o sujeito psicótico. São Paulo: Annablume; Belo

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus crité-

Horizonte: FUMEC; 2004.

rios de aplicação. 4ª. edição. Porto Alegre: Livraria do Advo-

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3ª.

gado, 2006.

edição. Curitiba: ICPC; Lúmen Júris, 2008.

BRUNO, Aníbal. Medidas de Segurança. Recife: (...), 1940.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique.

CARVALHO, Amilton Bueno de e CARVALHO, Salo de. Apli-

Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4ª edição. São

cação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

23 - FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002, P. 39-40. 24 - No Brasil, o dispositivo correspondente seria o artigo 26 do código penal. 65


Justiça.Com

www.cnj.jus.br | No portal do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) você pode encontrar legislação, fóruns, atos do Conselho, publicações, pesquisas judiciárias, consulta pública processual, licitações e contratos, contas públicas, links de tribunais, eventos, notícias, artigos, além de toda a parte institucional.

www.conjur.com.br | Esta revista eletrônica foi crida em 1997, com o objetivo de ser fonte de informação e pesquisa no trabalho, estudo e na compreensão do sistema judicial. Nela você encontra artigos, colunas, entrevistas, enquetes, notícias, links e um espaço de vendas de produtos judiciários.

www.amb.com.br | No site da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) você pode encontrar notícias sobre a instituição, entrevistas, artigos e informações pertinentes ao associado, como convênios, boletim, esporte, associações filiadas e enquetes. O internauta também pode consultar as pesquisas e campanhas realizadas pelas entidades e ter acesso ao link para a Escola Nacional de Magistratura.

http://jus2.uol.com.br | O Jus Navigandi é considerado o maior portal jurídico da America Latina. Seus principais canais são doutrinas e peças que contêm um grande acervo de textos jurídicos. Além disso, o site apresenta canais de fórum, especialistas, sites e blogs.

66


Artigo A AINDA POLÊMICA DECADÊNCIA DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO NO ÂMBITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

A

João Paulo Guimarães Neto Juiz de Direito do Poder Judiciário do Estado da Bahia Conselheiro da Associação Nacional dos Magistrados da Infância e Juventude – ABRAMINJ Vara Única de Caldeirão Grande

Representação do ofendido (vítima de fato delituoso) ou dos legitimados para representá-lo ou sucedê-lo é direito potestativo, exercitável mediante manifestação de vontade na punição do(s) envolvido(s) no fato objeto daquela, sem qualquer rigor formal e retratável. Ademais, tem natureza processual, pois se trata de condição específica, especial, ao regular exercício da Ação Penal Condenatória de Iniciativa Pública Condicionada. A previsão do art. 75 da Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995 (LJE), trouxe algumas indagações acerca do termo inicial da contagem do prazo decadencial do direito de Representação, quando se tratar de infrações penais de menor potencial ofensivo (crimes ou contravenções). Isto porque a LJE prevê que a oportunidade para a vítima exercer o seu direito de Representação (ou de queixa, quando se tratar de fato persequível por Ação Penal Condenatória de Iniciativa Privada) é na audiência preliminar. Entretanto, na maioria das vezes, não se consegue chegar à audiência preliminar no prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que o ofendido vier a saber quem é o autor do crime − prazo regra¹ da decadência do direito de Representação −, o que, na prática, imprime soluções variadas, porém, tecnicamente, as indagações persistem. A polêmica, portanto, decorre da realidade, pois, como hodiernamente realizar, a Autoridade Policial,

a lavratura do Termo Circunstanciado, encaminhar o Autor do Fato e a Vítima ao Juizado Especial Criminal (JECrim.) e, lá chegando, conseguir-se neste a realização da audiência preliminar, tudo no prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que o ofendido (vítima) vier a saber quem é o autor do crime? Ressalte-se que, esse prazo (6 meses) é o mesmo para o exercício do direito de Queixa, originária ou subsidiária da denúncia não ofertada no prazo de lei. Porém, quanto àquela, se o ofendido − titular da Ação Penal Condenatória de Iniciativa Privada − conhecer o(s) provável(eis) autor(es) do fato, deve exercer o seu direito de Queixa contra o(s) envolvido(s), pois, neste caso, para respeitáveis entendimentos, se, ao invés, for solicitada apuração, o prazo decadencial continuará o seu curso, já que o início da sua contagem é do dia em que o ofendido soube quem é o autor do fato. Muito bem, como fonte legislativa específica sobre o tema, observamos os arts. 38 do Código de Processo Penal e 75 da Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995. Código de Processo Penal Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art.

1 - Nos delitos de imprensa, persequíveis via Ação Penal Condenatória de Iniciativa Pública Condicionada à Representação, o prazo para apresentação desta será de 3 meses, contado da data da publicação ou da transmissão da notícia, podendo tal prazo, excepcionalmente, ser interrompido, nas hipóteses do art. 41, § 2º, ‘a’ e ‘b’, da Lei n.º 5.250/67 (Lei de Imprensa). Há quem classifique essa hipótese como sendo de suspensão, apesar da dicção legal, a qual, aliás, trata como sendo de prescrição esse prazo decadencial. 67


A ainda polêmica decadência do direito de representação no âmbito dos juizados especiais criminais

preliminar (oportunidade de exercer o direito de Representação na LJE) ultrapassar o prazo regra de 6 (seis) meses, estará ou não decaído o referido direito? 2) Se não, é possível interpretar o art. 75 da LJE como: a) uma hipótese de interrupção ou suspensão do prazo decadencial?; b) se afirmativo, a audiência preliminar seria o seu termo?; ou c) a referida audiência seria o momento para o exercício do direito de retratação? Eis a incompatibilidade do sistema, à qual tentarei lançar algumas opções viáveis à sua preRepresentação do servação.

29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia. Parágrafo único.Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31. (Grifei) Lei n.º 9.099/95 Art. 75. Não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade de exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo. Parágrafo único. O não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica de-

A ofendido (vítima de fato delituoso) ou dos legitimados para representá-lo ou sucedê-lo é (...) exercitável mediante manifestação de vontade na punição do(s) envolvido(s) no fato objeto daquela

cadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei. (Grifei) É de se observar que as normas supracitadas estariam em perfeita harmonia, acaso os Juizados Especiais conseguissem a agilidade pretendida pelo legislador². Por outro lado, a decadência se caracteriza como causa extintiva de punibilidade (107, IV, CP), atingindo o direito de punir do Estado, razão por que o seu prazo deve ser contado na forma do art. 10 do Código Penal, vale dizer, incluindo-se o dia do começo no cômputo do prazo (Dies a quo)3.

Portanto, surgem algumas questões a serem respondidas: 1) Se da data em que o ofendido vier a saber quem é o autor do fato até a realização da audiência

Aspectos do direito de Representação relevantes ao tema

O direito de Representação tem características marcantes, dentre as quais abordaremos rapidamente as que mais interessam ao tema. A primeira característica, e seguramente a mais marcante, é a informalidade do exercício, ou seja, a ausência de forma prescrita em lei para o exercício do direito de Representação, consoante pacífica jurisprudência pátria4, consagrando a tranquila interpretação do art. 39 do CPP: Art. 39. O direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial. §1o A representação feita oralmente ou por es-

2 - Desde a atividade perante a autoridade policial, se previu na LJE enorme celeridade, de dificílima efetividade atualmente: Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. 3 - “O prazo de decadência do direito de queixa, expresso em meses, conta-se na forma preconizada no art. 10, do estatuto punitivo, na linha do calendário comum, o que significa dizer que o prazo de um mês tem início em determinado dia e termina na véspera do mesmo dia do mês subseqüente” (STJ, REsp n.º 116.041/BA, Rel. Min. Vicente Leal, DJU, 20-10-1997, p. 53.144). 4 - “Em matéria de representação não se exige a observância de formalidades sacramentais, importando, apenas, que se caracterize nos autos a manifestação de vontade do ofendido, ou de seu representante legal, para o processamento criminal dos autores do delito” (STF, Rel. Min. Moreira Alves, RT, 574/456); “Copiosa jurisprudência entende que, para ter força de representação, basta o comparecimento da representante a uma unidade policial, ali pedindo providências contra o ofensor” (STJ, 6ª Turma, RHC n.º 6.808/MG, Rel. Min. Anselmo Santiago, DJU, 13-4-1998, p. 156). 68


crito, sem assinatura devidamente autenticada do ofen- anteriormente efetuado por vício formal, já reconhecida dido, de seu representante legal ou procurador, será por alguns tributaristas como causa evidente de interreduzida a termo, perante o juiz ou autoridade policial, rupção do direito da Seguridade Social apurar e conspresente o órgão do Ministério Público, quando a este tituir os seus créditos5 − prazo decadencial −, o Código houver sido dirigida. Civil vigente trouxe norma expressa nesse sentido: §2o A representação conterá todas as informações que possam servir à apuração do fato e da Código Civil autoria. Art. 207. Salvo disposição legal em contrário, §3o Oferecida ou reduzida a termo a representação, a autoridade policial procederá a inquérito, ou, não se aplicam à decadência as normas que impedem, não sendo competente, remetê-lo-á à autoridade que suspendem ou interrompem a prescrição. Art. 208. Aplica-se à decadência o disposto nos o for. arts. 195 e 198, inciso I. §4o A representação, Art. 198. Também não corre quando feita ao juiz ou perante este a prescrição: reduzida a termo, será remetida à I − contra os incapazes de autoridade policial para que esta A improrrogabilidade que trata o art. 3o; proceda a inquérito. do prazo decadencial é §5o O órgão do Ministério Hipóteses correntes e proPúblico dispensará o inquérito, se conceito que, até posta de compatibilização com a representação forem oferepouco tempo atrás, do sistema cidos elementos que o habilitem a tinha ‘fama’de absoluto, promover a ação penal, e, neste Fixadas essas premissas, caso, oferecerá a denúncia no pravale dizer, quem já passemos a verificar a possibilidazo de 15 (quinze) dias. não ouviu a máxima: de e a melhor forma de compatibiliQuanto ao endereçamenzar o sistema. Para tanto, é indica‘prazo decadencial to, o CPP disciplina que a Repredo que visualizemos a ocorrência sentação pode ser dirigida ao juiz, não suspende nem de uma infração de menor potencial ao órgão do Ministério Público ou interrompe ofensivo, de um fato aparentemente à autoridade policial. Cumpre redelitivo, persequível via Ação Penal gistrar que, frente aos postulados Condenatória de Iniciativa Pública consagrados como norteadores Condicionada à Representação (ledo “Sistema Acusatório”, quando a são corporal leve). Representação for dirigida ao juiz, Muito bem. Se o conhecimento do fato for levado deverá o mesmo encaminhar ao Ministério Público − e à autoridade policial pela vítima, parece-me que não não na forma do § 4º do art. 39 do CPP, que é requisihá muitas indagações, pois é evidente que, se o ofenção −, preservando a sua imparcialidade em ulterior e dido não desejasse a apuração e responsabilização do eventual processo de sua competência. autor do fato, não teria procurado a autoridade para A improrrogabilidade do prazo decadencial é comunicar-lhe o ocorrido. conceito que, até pouco tempo atrás, tinha “fama” de Tal atitude, entendo, é manifestação de vontade absoluto, vale dizer, quem já não ouviu a máxima: “prana responsabilização do(s) envolvido(s) − sair em dizo decadencial não suspende nem interrompe”? reção à autoridade policial para levar o conhecimento Pois bem, não bastasse a previsão do art. 348, de que foi agredido deve ser entendido como sendo a II, do Decreto n.º 3.048, de 06 de maio de 1999, sobre Representação da vítima, pois, do contrário, daria azo a decisão que houver anulado a constituição de crédito

5 - Decreto n. 3.048/99, art. 348. O direito da seguridade social de apurar e constituir seus créditos extingue-se após dez anos, contados: I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o crédito poderia ter sido constituído; ou II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, a constituição de crédito anteriormente efetuado.

69


A ainda polêmica decadência do direito de representação no âmbito dos juizados especiais criminais

a entender-se que se trataria de vingança privada, por amizade entre o ofendido e o agente público, ou que estariam a trocar “fofocas”, o que é inconcebível. Outra é a situação, quando o fato for levado ao conhecimento da autoridade policial por qualquer do povo, hipótese em que o contato entre o ofendido e o referido agente somente se dará por conta da lavratura do Termo Circunstanciado. Neste caso, não se pode atribuir à autoridade policial o dever de perquirir ao ofendido o seu desejo ou não de Representar o autor do fato, por ausência de previsão legal para tanto, mas é razoável que tal procedimento se verifique. Assim, se a vítima for questionada pela autoridade policial e manifestar sua vontade de ver processado o provável autor do fato, formalizada estará a Representação. Nestas hipóteses, verificamos a Representação se materializando, no primeiro caso, pela comunicação do ofendido à autoridade policial, no outro, pela sua manifestação no Termo Circunstanciado, após provocação da autoridade policial. Outra é a situação, se a autoridade policial não indagar o ofendido sobre o desejo ou não de exercer o seu direito de Representação, mas lavrar regularmente o Termo Circunstanciado. Nesta hipótese, ante a finalidade de harmonizar o sistema e, principalmente, de não permitir o avanço do sentimento de impunidade por parte do autor do fato, ao menos até a audiência preliminar, pode-se concluir que a presença do ofendido, de quem possa representá-lo ou sucedê-lo, perante a autoridade policial, assinando o Termo Circunstanciado, deve ser considerada como formalização da Representação, já que na audiência preliminar terá a oportunidade de retratarse, pois a oportunidade para oferecimento de denúncia é posterior a essa (77, LJE). Por outro lado, o que não é absurdo, mas menos compatível com o sistema, é o entendimento corrente de que, sendo a audiência preliminar o momento do exercício do direito de Representação (75, LJE), por consequência, seria este o marco inicial da contagem do prazo decadencial. Este entendimento se desenvolve, data vênia, sem maior raciocínio, ou mesmo com desprezo, acerca da única norma que disciplina o curso do prazo decadencial, e que expressamente estabelece que o mesmo deva ser contado do dia em que o ofendido soube quem é o autor do fato, na forma do art. 38 do CPP. Portanto, de aparente ilegalidade. 70

Isto porque o art. 75 da LJE não rege o termo inicial da contagem do prazo para o exercício do direito de Representação, para que este se dê na audiência preliminar, já que o seu parágrafo único dispõe que “o não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei”. Assim, importa a dicção dessa parte final, a qual remete o intérprete ao art. 38 do CPP (… dentro do prazo de 6 meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime). Ademais, não há qualquer indicação na LJE de que haveria suspensão do prazo decadencial − que se daria desde o conhecimento do ofendido sobre quem é o autor do fato até a audiência preliminar −, nos casos de infração penal de menor potencial ofensivo, e, se houvesse, se trataria de ofensa ao postulado da proporcionalidade, eis que a regra subsistiria estabelecendo prazo mais exíguo justamente para as infrações de maior potencial ofensivo. Igualmente, não há como se entender que existe interrupção do prazo decadencial, ademais do acima exposto, por inexistir qualquer referência sobre o momento de sua implementação. Desta forma, é possível se construir a interpretação acima, mas, reitero, não é tão compatível com o sistema, nem com os institutos jurídicos que envolvem a matéria.

Conclusões Portanto, em harmonia ao acima exposto, para o fim de compatibilização do sistema nos Juizados Especiais Criminais, é possível se concluir que, nas infrações penais de menor potencial ofensivo persequíveis via Ação Penal Condenatória de Iniciativa Pública Condicionada, a Representação do ofendido se formaliza: 1) por meio da comunicação do fato, pelo ofendido, à autoridade pública competente; 2) pelo exercício expresso da representação do ofendido no Termo Circunstanciado − quando o zeloso agente indagar à vítima sobre o exercício ou não de seu direito nesta oportunidade; 3) ou pela só assinatura do ofendido no Termo Circunstanciado, com a possibilidade de pensar e retratar-se até ao final da audiência preliminar, evitando o sentimento de impunidade do autor do fato, até então. Evidentemente, as hipóteses aqui previstas guardam legalidade, desde que tenham sido efetivadas


dentro do prazo decadencial, em regra, de 6 (seis) meses, contado do dia em que o ofendido souber quem é o autor do fato, não havendo, nessas hipóteses exemplificativas, por que se falar em decadência. Sendo assim, por exclusão lógica, a partir da formalização do Termo Circunstanciado, somente se verificará o transcurso do prazo prescricional. Não se olvida a possibilidade, in concreto, da retratação até o momento do oferecimento da denúncia , ou mesmo, admite-se, da “retratação da retratação”, enquanto não transcorrido o prazo decadencial, pois

6

se revela como um ato revocatório da anterior retratação, retirando o obstáculo à ação para prevalecer a Representação, possibilitando a Ação Penal. Por fim, no mesmo intuito, pode-se firmar que, em verdade, o disposto no art. 75 da Lei n.º 9.099/95 refere-se à oportunidade para o exercício do direito de retratação, eis que, não haverá audiência preliminar sem que o Termo Circunstanciado esteja devidamente formalizado e, consequentemente, a Representação que lhe é correlata.

Admite-se a retratação da Representação antes e até o oferecimento da denúncia, no mesmo dia inclusive, com fundamento nos arts. 102 do CP e 25 do CPP.

71


Artigo O DOMICÍLIO ELEITORAL E A LEGITIMIDADE DAS ELEIÇÕES Ivone Bessa Ramos

Juíza de Direito Primeira Vara Crime da Comarca de Salvador Bahia

P

Pós-graduanda pela Faculdade Baiana de Ciências e pela Faculdade Baiana de Direito.

ara melhor compreensão da investigação a ser desenvolvida, cabe detalhar o objeto de estudo, o domicílio eleitoral, confrontando-o com o domicílio civil, com vista a estabelecer as semelhanças e dessemelhanças entre os dois institutos. Utiliza-se a expressão domicílio eleitoral para designar o local em que o cidadão deve exercer o seu direito político de voto durante as eleições. O Código Eleitoral, em seu artigo 42, parágrafo único, definiu o domicílio eleitoral como sendo o local de residência ou moradia do requerente. Assim, o aludido diploma legal equiparou, para efeito de domicílio, a residência e a moradia. Vejamos: Art. 42. O alistamento se faz mediante a qualificação e inscrição do eleitor. Parágrafo único. Para o efeito da inscrição, é domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á domicílio qualquer uma delas. Há uma distinção entre os domicílios civil e eleitoral. O domicílio civil está descrito e regulado pelo Código Civil, enquanto o domicílio eleitoral encontra disciplina jurídica na Constituição e na Legislação Eleitoral. De acordo com o Código Civil, para que se caracterize o domicílio civil é preciso conjugar os elementos objetivo e subjetivo que compõem a descrição normativa. Deste modo, o artigo 70 do Diploma Civil Pátrio prenuncia: “O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo”. Percebe-se a intenção do legislador em unir o aspecto objetivo, que é a residência, a habitação pro72

priamente dita, com o aspecto subjetivo, marcado pelo ânimo de constituir moradia definitiva. Os artigos seguintes mostram que uma mesma pessoa pode dispor de mais de um local como domicílio civil. O mesmo não acontece com o domicílio eleitoral, que deve ser único, mas não definitivo, podendo ser modificado a pedido do cidadão. O domicílio eleitoral será então informado pelo domicílio civil, uma vez que o Código Eleitoral condiciona o cidadão a alistar-se no local onde fixou o domicílio civil. Com isso, o legislador buscou inserir o cidadão eleitor em seu meio político, pois caso se permita que o cidadão domiciliado em determinado município venha a se alistar como eleitor em localidade diversa, em se tratando da eleição de representantes municipais e estaduais, ele estará decidindo sobre um futuro político ao qual está alheio. De outro modo, deve também ser permitido ao cidadão candidatar-se em região diversa daquela em que possua o domicílio civil e com a qual conserva vínculos de qualquer natureza: política, histórica, familiar, empresarial e tantas outras. O Tribunal Superior Eleitoral vem firmando este entendimento com base no princípio constitucional que dá a qualquer cidadão a capacidade para se eleger e ser eleito. Outrossim, diz o TSE que não há qualquer óbice à candidatura de um cidadão em localidade diversa daquela onde mantém domicílio eleitoral. Em síntese, sabe-se que é preciso haver ao menos um vínculo de natureza política entre o eleitor e a localidade onde pretende inscrever-se.

O domicílio eleitoral e o domicílio civil


A título de esclarecimento, é importante elucidar ção do pleito pelo menos um ano antes da eleição. que o domicílio eleitoral é a expressão legal para definir Destaque-se que a circunscrição do pleito para o local em que o cidadão deve votar nas eleições. Para presidente da República é todo o Território Nacional; efeito de candidatura aos cargos eletivos, deve-se es- para governador, deputado e senador, todo o território tar inscrito no domicílio em que se queira concorrer há do respectivo Estado; e para prefeito e vereador, o respelo menos um ano antes do pleito, valendo a data do pectivo Município. requerimento para efeito dessa contagem. Com relação às pessoas que não possuam resiExistem duas teorias que tratam do domicílio: a dência fixa ou certa, será considerado domicílio o local Teoria da Realidade e a Teoria da Ficção. De acordo onde elas forem encontradas. É o caso do andarilho e com a primeira, o domicílio é a residência com ânimo do artista circense. definitivo; já para a segunda, domicílio é o lugar onde a O domicílio eleitoral distingue-se do domicípessoa exerce a profissão, diferentemente do conceito lio civil, uma vez que este último requer a existência de residência. Da análise do artigo do ânimo definitivo na fixação da 72 do Diploma Civil vigente, infereresidência, enquanto o primeiro se que ambas as teorias foram adoapenas exige a residência ou motadas pelo mesmo: radia. O domicílio eleitoral Art. 72. É também domicílio Em que pese o domicílio distingue-se do domicílio da pessoa natural, quanto às relaeleitoral ter conteúdo mais flexível ções concernentes à profissão, o que o domicílio civil, o eleitoral não civil, uma vez que este lugar onde ela é exercida. prescinde, com base na previsão último requer a Parágrafo único. Se a peslegal, de uma exigência básica existência do ânimo soa exercitar profissão em lugares que consiste em o eleitor possuir diversos, cada um deles constituirá residência ou moradia na localidefinitivo na fixação domicílio para as relações que lhe dade em que tem a sua inscrição da residência, correspondem. eleitoral, embora não necessariaenquanto o primeiro O local da profissão, conformente exclusiva. me visto, é mais restrito, uma vez Sobre o tema, vale destacar apenas exige a que só é domicílio para as relações as seguintes considerações: “Reresidência ou moradia profissionais. Assim, no que concersidência é um lugar onde se mora, ne às relações profissionais, domionde há permanência do indivíduo cílio é o lugar da residência ou da por algum tempo [...] Basta à conprofissão. Frise-se que isto é inovafiguração da residência a estadia ção do Código Civil. mais prolongada, costumeira, dia Para o Direito Eleitoral, enquanto Direito Público, e noite”. (COSTA, 2006, p.139) é suficiente a moradia que revele um liame de interesNesse sentido, pode-se inferir que a habitualise político na circunscrição, podendo o candidato que dade da moradia é nuclear no conceito de residência, possua mais de uma moradia escolher qualquer uma diferenciando-se da simples estadia, a qual se define delas. como o local onde alguém passa algum tempo, sem Entretanto, visando conferir maior legitimidade à permanecer indefinidamente. representação, a Lei exige tempo mínimo de moradia na Cumpre salientar acerca do assunto: “Havendo circunscrição, acrescentando-se ao domicílio eleitoral estadia de ocorrência esporádica, embora costumeira, do eleitor, válido a qualquer tempo após o alistamento sem outra razão que vincule o cidadão à comunidade, ou a transferência, a prerrogativa de ser votado. não há moradia”. (COSTA, 2006, p.140) A Carta Magna, em seu artigo 14, parágrafo 3º, Saliente-se que para o Direito Eleitoral necessáinciso IV, incluiu o domicílio eleitoral entre as condições ria se faz a estada habitual, sendo insuficiente a simde elegibilidade. Como já foi dito, a Lei nº 9.504/97, no ples estadia, ainda que de alguma ocorrência. seu artigo 9º, estabeleceu em um ano o prazo do domiDessa forma, para o Direito Eleitoral, residência cílio eleitoral. Assim, para participar do processo eleti- ou moradia é o lugar onde se vive habitualmente, ainda vo, o cidadão deve ter inscrição eleitoral na circunscri- que apenas para trabalhar, sem fixar local para mora73


O domicílio eleitoral e a legitimidade das eleições

do local, compartilhando suas carências e dificuldades, Neste raciocínio, vale destacar os seguintes co- o que certamente não se coaduna com a eventualidade de domicílio. mentários: Por outro lado, a legitimidade passiva deve conSe há local de ocupação habitual, de trabalho freqüente, há residência para efeito de domicílio elei- ter no seu arcabouço um real e preciso nível de conhetoral, como também para efeitos civis (arts. 71 e 72 cimento por parte do eleitor, não só relativamente aos do Código Civil). Se possui vínculo patrimonial com a problemas e carências do seu domicílio eleitoral, mas localidade, também. Ainda que lá não viva, possui inte- também a exata consciência do perfil, caráter e comresses, de modo que se admite sua domiciliação para prometimento daqueles que se propõem a resolvê-los. Esse requisito deve ter importância fundamental, fins eleitorais. (COSTA, 2006, p. 140). A respeito do assunto, cabe ainda ressaltar que mesmo porque, há que se levar em consideração que o Tribunal Superior Eleitoral aprovou a Resolução nº a falta desse conhecimento por parte do eleitor, aliada a uma interpretação mais flexível 20.132/98, a qual permanece em de domicilio eleitoral, pode ter para vigor, ampliando o conceito de docertos municípios, notadamente os micílio eleitoral: A legitimidade passiva Art. 64. A comprovação de deve conter no seu arca- que possuam pequenos colégios eleitorais, efeitos decisivos e prejudomicílio pode ser feita mediante bouço um real e preciso diciais, já que um contingente não um ou mais documentos dos quais se infira ser o eleitor residente, ter nível de conhecimento por muito grande de eleitores que se vínculo profissional, patrimonial ou parte do eleitor, não só desloque para esse município no dia das eleições pode influenciar comunitário no município, a abonar relativamente aos probledecisivamente no resultado do pleia residência exigida. to. Essas interpretações, bem mas e carências do seu Nesta mesma vertente descomo o conteúdo dos Diplomas domicílio eleitoral, mas taca-se o processo nº 12.488, ClasLegais referidos, impõem reflexões também a exata conscise 32, no qual o Tribunal Regional quanto aos efeitos da amplitude adotada na conceituação do domiência do perfil, caráter e Eleitoral do Ceará concluiu: 1. Domicílio eleitoral abrancílio eleitoral. Nesse exercício de comprometimento ge, inclusive, a existência de vínideias, devem-se sistematizar esdaqueles que se propõem culo pessoal com o município, ses efeitos como reflexos da Legiconstituindo-se local do exercício timidade Ativa, que diz respeito ao a resolvê-los de atividades políticas, de aspectos candidato, e da Legitimidade Passicomunitários ou meramente profisva, concernente ao eleitor. Dentre os demais requisitos legais que empres- sionais. A jurisprudência do TSE é pacífica no sentido tam legitimidade ao candidato, deve-se entender como de que a comprovação do domicílio eleitoral se dá com de suma importância a identidade, o estreito relaciona- a existência de vínculos, incluindo os de natureza ecomento deste com o local onde concorre a cargo eletivo. nômica, política, comunitária, além dos sentimentos Necessário é que haja um equilíbrio, uma perfeita pro- de amizade. 2. Pedido de transferência que se defere, porcionalidade entre a amplitude de atuação do cargo nos termos do art. 42, parágrafo único, do Código Eleiao qual o candidato concorre e o nível de preparo e toral (publicado na sessão do dia 24 de novembro de conhecimento pessoal em relação aos problemas que 2003). terá que enfrentar e as soluções que deverá apresenTransferência do domicílio eleitoral tar. Seja em nível federal, estadual ou municipal, Uma vez demonstrada a existência do domicíneste último mais notadamente, o candidato deve estar capacitado para atender aos anseios da parcela da lio eleitoral, deverá o eleitor comprová-lo, no Município população que venha a lhe confiar o voto, e isto so- ou no Estado, pelo tempo que a lei determinar, para mente se consegue a partir de uma convivência mais se candidatar às eleições locais ou às eleições gerais, permanente com a comunidade, vivenciando a rotina respectivamente. Sublinhe-se que, nos casos de transdia.

74


ferência, o prazo é contado a partir da data do reque- de convocação do eleitor para os serviços de mesário rimento do eleitor e não da data em que foi deferido o e escrutinador pela Justiça Eleitoral. (CÂNDIDO, 2006, pedido. p. 93) Acerca da vinculação do eleitor a uma das seAssim, se um eleitor muda de residência e não ções da Zona Eleitoral, é mister frisar que: comunica o fato à Justiça Eleitoral, inviabiliza sua conO eleitor, uma vez alistado, ficará vinculado a vocação e o problema tende a se agravar com o deuma das seções da Zona Eleitoral que jurisdiciona o curso do tempo. Ressalte-se que o processo de transterritório onde reside. Esta seção eleitoral, que corres- ferência implica não apenas mudança de endereço do ponde à mesa receptora de votos à qual o eleitor deve- eleitor, mas, também, mudança de Zona Eleitoral, ou rá comparecer no dia da eleição para votar, é definida de Município, circunstâncias que não são necessariapelo domicílio, pelo endereço do eleitor, sendo inclu- mente coincidentes. ído na seção mais próxima possível desse endereço. Acerca do tema, há que se observar também (CÂNDIDO, 2006, p.93) que: Em que pese o domicílio ser Em qualquer caso, deve o fixo, ele é mutável. A mudança voeleitor dirigir-se ao cartório eleiluntária do domicílio depende da toral mais próximo, referindo a ocorrência de dois requisitos, quais circunstância de sua mudança de Ainda que o indivíduo sejam: a transferência da residência endereço. Essa mudança poderá e a intenção definitiva de deixar a gerar apenas uma alteração em tenha deixado bens na residência anterior (ânimo definitiseus dados cadastrais (mudança localidade em que vo). Ressalte-se que quem muda de endereço), desde que não teresidia, opera-se a de residência com o intuito de voltar nha ele deixado de integrar nem mantém o domicílio anterior. troca de domicílio, caso sua zona de origem, nem municíAinda que o indivíduo tenha não tenha a intenção de pio dela constitutivo. Se, todavia, deixado bens na localidade em que a mudança de endereço implicar voltar Isto ocorre porque residia, opera-se a troca de domimudança de município, ou mesmo cílio, caso não tenha a intenção de de Zona Eleitoral, dentro do meso que importa, neste voltar. Isto ocorre porque o que immo município, estaremos diante de caso, é a troca de porta, neste caso, é a troca de reuma transferência propriamente residência e não a sidência e não a manutenção dos dita e não apenas de alteração do bens. dado cadastral “endereço”, embomanutenção dos bens Destarte, a mudança de enra, necessariamente, também desdereço do eleitor deveria ser semte. (CÂNDIDO, 2006, p. 94) pre comunicada à Justiça Eleitoral, A prova da mudança de dopois tal mudança poderá afastá-lo fisicamente de seu micílio pode ser feita por testemunhas, pela comunicalugar de votação. Saliente-se que agindo assim o elei- ção à Prefeitura, ou pelas circunstâncias. tor estaria assegurando o seu próprio interesse, uma Caso venha a residir em município diverso davez que ao reverso o eleitor estaria se privando de uma quele em que permaneceu inscrito, o eleitor, no dia do comodidade resultante de sua inclusão em outra seção pleito, isenta-se de qualquer penalidade comparecenmais próxima de seu endereço. do a uma agência dos Correios e ali postando o forAinda sobre o tema: mulário de justificação, o qual, uma vez devidamente Em princípio, diga-se de passagem, toda e qual- preenchido e assinado pelo eleitor, comprova sua auquer alteração nos dados declarados pelo eleitor no sência do domicílio eleitoral, o que se constitui numa alistamento deveria ser comunicada à Justiça Eleito- das circunstâncias que desobrigam o voto. ral, para atualização de dados estatísticos. No entanto, É mister frisar que tais formulários não se destimais que alterações no estado civil, no grau de ins- nam a isentar de penalidades eleitores que já estejam trução etc., a alteração de endereço repercute direta- residindo em municípios diversos daqueles em que se mente nos serviços eleitorais, na medida em que essa encontrem inscritos, mas aqueles eleitores que, evendesatualização dos cadastros gera a impossibilidade tualmente, se encontrem fora de seu domicílio eleito75


O domicílio eleitoral e a legitimidade das eleições

ral.

primento dos requisitos legais. Após parecer do órgão São condições para o deferimento do pedido de ministerial, o juiz eleitoral julgará pela sua procedência transferência: a entrada do requerimento no Cartório ou improcedência. Se procedente, fará publicar a lista Eleitoral do novo domicílio até cento e vinte dias antes dos alistados, tendo os interessados (partidos políticos da data da eleição; o transcurso de, pelo menos, um e eleitores) o prazo de três dias para impugnarem. Haano da inscrição anterior; e, residência mínima de três vendo indeferimento, o alistando tem o mesmo prazo meses no novo domicílio, declarada, sob as penas da para recorrer. O recurso é o inominado do Código Eleilei, pelo próprio eleitor. toral. (COSTA, 2006, p. 143) É de bom alvitre registrar que o comando do paAdemais, é importante salientar que a simples rágrafo único do art. 8º da Lei nº 6.996/1982 ressalta comodidade não autoriza a transferência de título de que as duas últimas condições acima transcritas não um município para outro, sem a ocorrência de mudanse aplicam à transferência de título eleitoral de servidor ça de domicílio eleitoral. público civil, militar, autárquico, ou de membro de sua A utilização de documento falso para instruir profamília, por motivo de remoção ou cesso de inscrição ou de transfetransferência. rência eleitoral não só tipifica o deliO artigo 56 do Código Eleito previsto no artigo 350 do Código toral dispõe acerca da transferênEleitoral, como também acarreta a É importante cia nos casos de perda ou extravio nulidade da inscrição ou transfedo título anterior. Saliente-se que o rência a ensejar a própria inelegisalientar que a título ali mencionado corresponde bilidade do infrator. Caso seja desimples comodidade ao modelo utilizado pela Justiça ferida a inscrição eivada de vício, não autoriza a Eleitoral antes do recadastramento sua desconstituição deve ocorrer de 1986. através do processo de exclusão. transferência de título Com a adoção do procesAcerca do tema, vale saliende um município para samento eletrônico de dados nos tar que: outro, sem a serviços eleitorais e a consequente O reconhecimento da inesimplificação do modelo de título legibilidade, em decorrência da ocorrência de eleitoral, este deixou de ter caráter utilização de documento falso na mudança de de documento probatório de identiinscrição, se dá através da ação de domicílio eleitoral dade civil. impugnação do registro da candiDentre as modificações imdatura. Afinal, não pode a Justiça plementadas, o título de eleitor Eleitoral, uma vez comprovada a passou a não ostentar foto do titufalsidade, chancelá-la através da lar, bem como a não incorporar os manutenção do infrator na disputa. comprovantes de votação, os quais passaram a ser Desta forma, em caso de irregularidades relatientregues em pequenos canhotos destacáveis da lis- vas ao domicílio eleitoral, poderá ser proposta ação de tagem de eleitores, ali impressos em formulário contí- impugnação de registro de candidato (AIRC) ou recurnuo. Desta forma, em caso de perda do título, o eleitor so contra diplomação (RCD), o que pode resultar na poderá, através dos respectivos comprovantes, fazer inelegibilidade do candidato a cargo eletivo. prova que efetuou a votação. Ressalte-se que em caso Uma vez perdida a condição de elegibilidade, de perda do título e dos canhotos, deve-se instaurar o perde-se o pressuposto para o direito de ser votado, processo previsto no artigo 56 do Diploma Eleitoral. com graves consequências para o nacional que pretenNo que concerne aos problemas gerados pela da concorrer eleitoralmente, sendo tal matéria constitransferência de domicílio eleitoral, cumpre destacar: tucional. Em que pese possa ser atacada através de A transferência de domicílio eleitoral pode gerar ação de exclusão de eleitor e cancelamento de alisinúmeros problemas, principalmente quanto à demons- tamento, nada impede que, independentemente desse tração do cumprimento das exigências legais. Afinal, o meio, possa ser vulnerada pelas outras ações apontaprocedimento de transferência se inicia com o pleito do das, pois o objetivo da AIRC e do RCD é a declaração interessado, no qual constará a demonstração do cum- de inelegibilidade do candidato, com as consequências 76


legais, enquanto a ação de exclusão do eleitor corta os direitos políticos do demandado.

Conclusão O presente trabalho objetivou abordar um aspecto que tem suma importância para o pleno exercício do sufrágio, qual seja o domicílio eleitoral e sua implicação para a legitimidade das eleições. Conforme demonstrado, o alistamento do cidadão, mais precisamente a sua inscrição nos registros eleitorais, é um dos procedimentos iniciais para a materialização de sua qualidade de eleitor. O domicílio eleitoral, por sua vez, é a expressão legal para definir o local no qual o eleitor deve votar nas eleições. É o seu lugar de residência ou moradia, e, caso se verifique ter ele mais de uma, considerar-se-á domicílio, para fins de inscrição, qualquer uma delas. Para efeito de candidatura a cargo eletivo, o indivíduo deve estar inscrito no domicílio onde pretende concorrer há, pelo menos, um ano antes do pleito, valendo a data do requerimento para efeito dessa contagem. O conceito de domicílio eleitoral distingue-se do conceito de domicílio civil, já que, como visto, este último exige o ânimo de constituir moradia definitiva, diferentemente daquele que requer apenas a residência ou moradia. Não se pode, no entanto, deixar de observar que a despeito dessa interpretação mais complacente e flexível do conceito de domicílio eleitoral, existem opiniões que apregoam a necessidade de uma tradução

mais restritiva do entendimento do mesmo, defendendo, inclusive, que o artigo 42 do Código Eleitoral encerra caráter eminentemente restritivo, não comportando qualquer tipo de flexibilização ou extensão no seu conteúdo que se resume em restringir a liberdade de escolha do domicílio eleitoral. Deve-se levar em conta que essa corrente favorável à interpretação restritiva para o domicílio eleitoral, da qual comungam figuras expressivas como Washington de Barros Monteiro e Orlando Gomes, norteia-se pela busca de princípios legítimos de moralidade, correção, equilíbrio e bem-estar da comunidade que se submete aos efeitos diretos deste processo que traduz uma das mais significativas expressões do direito de cidadania: o pleito eleitoral.

Referências CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. 4a. ed. rev. e atual. Bauru, SP: EDIPRO, 1994. CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. 12a. ed. ampl., rev. e atual. Bauru, SP: EDIPRO, 2006. COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 6a. ed. rev., ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. FERREIRA, Pinto. Código Eleitoral Comentado. 4a. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997. PACHECO, Marília. Compêndio de Legislação Eleitoral. 6a. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. PINTO, Djalma. Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal. 4a. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

77


Sentença VENDAS FRAUDULENTAS

Baltazar Miranda Saraiva Juiz de Direito 62ª Vara de Substituições

Recurso inominado. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. Venda fraudulenta. Danos materiais e morais configurados. Não prevalece, para efeito de fixação de competência, o foro contratual de eleição (de adesão), quando a demanda trata de reparação de danos provocados ao consumidor, que pode optar por ajuizar o pedido no seu domicílio, na forma dos arts. 4º, inc. Iii, da lei nº 9.099/95, E 101, inc. I, do cdc. O site de anúncios na internet apresenta legitimidade para responder por danos experimentados pelo consumidor que, em negociação com comprador qualificado, se vê vitimado por fraude. Preliminares rejeitadas. Responsabilidade civil objetiva. Contrato de compra e venda realizado através da internet. Utilização de serviços da empresa ré pelo sistema de internet para venda de produto. Intermediação e auxílio na realização do negócio jurídico entre consumidores. Falha no serviço prestado. Risco na atividade desenvolvida. Obrigação de indenizar. Confirma-se a sentença a quo, que compôs a lide com judiciosidade, pelos seus próprios fundamentos. Recurso conhecido e improvido, para manter a sentença por seus próprios fundamentos, inclusive no que concerne ao arbitramento da indenização por danos morais, por não desprestigiar as lições jurisprudenciais. Recurso conhecido e improvido, para manter a sentença por seus próprios fundamentos e condenar a recorrente em custas processuais e honorários advocatícios. Dispensado o relatório nos termos do artigo 46 da Lei n.º 9.099/951, homenageado pelo enunciado 92 do FONAJE2. Circunscrevendo a lide e a discussão recursal para efeito de registro, saliento que o Recorrente, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, pretende a reforma da sentença de fls. 160/163, da lavra do magistrado 78

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, que o condenou ao pagamento da importância de R$ 1.700,00 (mil e setecentos reais), a título de indenização por dano material, bem como ao pagamento do valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a título de indenização por danos morais, além de pagamento por repetição do indébito, pela cobrança da corretagem, no importe de R$ 135,66 (cento e trinta e cinco reais e sessenta e seis centavos). Os autos foram distribuídos para esta 3a Turma Recursal, cabendo-me, por sorteio, a função de relator. Após examiná-los, submeto aos demais membros desta E. Corte o meu VOTO Conheço do recurso, pois apresentado tempestivamente. Inicialmente, saliento a necessidade de o julgamento em segunda instância no sistema de juizados especiais atentar para os princípios da simplicidade e objetividade recomendados pelo dispositivo legal acima invocado. Por isso mesmo, reza o enunciado 46 do FONAJE que “a fundamentação da sentença ou do acórdão poderá ser feita oralmente, com gravação por qualquer meio, eletrônico ou digital, consignando-se apenas o dispositivo na ata”. Confirmando-se a sentença pelos seus próprios fundamentos, “a súmula do julgamento servirá de acórdão”. Nessa hipótese, somente quando a matéria comportar alguma polêmica jurídica ou o recurso suscitar assunto não decidido pelo juízo a quo, deve ter lugar uma fundamentação mais detalhada no julgamento do processo em segunda instância. No caso, a sentença recorrida, tendo analisado todos os aspectos debatidos, inclusive aqueles novamente trazidos à baila em sede recursal, merece con


firmação integral por seus próprios e jurídicos fundaA preliminar de ilegitimidade passiva ad causam mentos. não merece acolhimento. Na venda do produto, a reEm introito, incorporo os argumentos apresenta- lação de consumo principal operou-se entre o consudos pelo MM. Juiz a quo na sentença recorrida para midor e o site da recorrente, razão pela qual é consiefeito de afastar as preliminares suscitadas novamente derada parte legítima para integrar o polo passivo da pela Recorrente em suas razões do recurso, que pode- demanda. riam conduzir à extinção do processo sem julgamento Rejeita-se, portanto, a preliminar. do cerne. No mérito, conforme já ressaltado, a sentença Analisando-se as arguidas preliminares, consta- guerreada merece ser referendada integralmente, com ta-se que merecem ser rejeitadas. integração dos seus próprios e juVerifica-se que todas elas rídicos fundamentos. vêm sendo objeto de arguição nos A questão resolve-se atrainúmeros processos que tramitaram vés do disposto no caput do art. e tramitam nos Juizados Cíveis e 143 do CDC, eis que em matéria perante as Turmas Recursais, sende prestação de serviços a repaÉ facultado ao juiz a do os argumentos e fundamentos do ração pelos danos causados aos recusa de provas inacolhimento os mesmos – falta de consumidores, por defeitos relatidesnecessárias ou amparo legal. vos a essa prestação, decorre do É facultado ao juiz a recusa princípio da responsabilidade obimpertinentes quando de provas desnecessárias ou imjetiva do fornecedor. os elementos pertinentes quando os elementos O notebook de marca Dell, apresentados são apresentados são suficientes para o Latitude C640, Pentium 4, 1.8 seu convencimento. O principio da Ghz, 256 Mb, Windows XP professuficientes para o seu informalidade autoriza procedimensional e com CD-RW e DVD, foi convencimento tos não especificados em lei, como vendido através do Mercado Pago o adotado pelo juízo de 1º grau. Ineda empresa acionada ao comxistiu cerceamento de defesa, vez prador xxxxxxxxxxxxxxxxxxx, eque foram obedecidas as formalidamail xxxx@xxxxxxxxxx.xxx.xxx, des legais. e encaminhado para o endereço De igual modo, não vislumbro xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, na cidana causa complexidade factual e probatória de gran- de de Cuiabá – Mato Grosso, CEP xxxxxxxxxxxxxx, des proporções que possam impedir sua apreciação sendo o endereço fornecido pela empresa pelo sistema dos Juizados Especiais. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. Diga-se, sem maior aprofundamento, com enO Recorrido, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, tendimento na jurisprudência-pátria, que essa com- enviou o produto, não recebeu o valor da transação e plexidade tão evocada para afastar a competência do ainda foi cobrado pelo valor da intermediação, inclusive sistema dos Juizados Especiais Cíveis é equivocada- com ameaça de negativação de seu nome em órgãos mente interpretada, quando tem em foco a matéria em restritivos ao crédito. julgamento. Induvidosa a falha da Recorrente. Portanto, acolhendo as razões expendidas pelo O comprador, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, está cadouto julgador de instância primeira, ratifico o entendi- dastrado no site da acionada e, apesar de ter recebido mento já pacificado neste Colegiado, rejeitando-a mais o notebook de marca Dell, não efetuou o respectivo uma vez. pagamento. Não prevalece, para efeito de fixação de compeA empresa acionada alega fraude perpetrada tência, o foro contratual de eleição (de adesão), quan- por xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx (fl. 87), que teria endo a demanda trata de reparação de danos provocados viado ao Recorrido falso e-mail de fl 31 em nome da ao consumidor, que pode optar por ajuizar o pedido no xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, alegando a efetivaseu domicílio, na forma dos arts. 4º, inc. III, da Lei nº ção do pagamento. 9.099/95, e 101, inc. I, do CDC. Ocorre que o próprio xxxxxxxxxxxxxxxxxx ga79


Mandado de segurança

rante reembolso de transações inexitosas, reforçando a confiabilidade nas transações que intermedeia e sobre as quais recebe corretagem. Quanto ao dano moral, este decorre e justificase pelos fatos narrados, sendo inconcebível que o destinatário final tenha sua tranquilidade abalada por prestação de serviço deficiente. Embora verse a regra geral pela sua comprovação, entende a melhor doutrina que basta ao lesado comprovar os fatos ensejadores de sua ocorrência para fazer jus à compensação. Os fatos descritos, que inegavelmente trouxeram ao íntimo do Recorrido a pecha de inadimplente e refratário ao cumprimento de suas obrigações, oriunda da cobrança indevida, inclusive com ameaça de negativação, conforme documentos de fls. 40/45, causaram inequívoco prejuízo de natureza moral, passível, portanto, de ressarcimento. O dano simplesmente moral, sem repercussão patrimonial, não há como ser provado, nem se exige perquirir a respeito do animus do ofensor. Consistindo em lesão de bem personalíssimo, de caráter eminentemente subjetivo, satisfaz-se a ordem jurídica com a demonstração do fato que o ensejou. Ele existe tãosomente pela ofensa, e dela é presumido, sendo o suficiente para autorizar a reparação. Com isso, uma vez constatada a conduta lesiva e definida objetivamente pelo julgador, pela experiência comum, a repercussão negativa na esfera do lesado, surge a obrigação de reparar o dano moral, sendo prescindível a demonstração do prejuízo concreto. Na situação em análise, o Recorrido não precisava fazer prova da ocorrência efetiva dos danos morais informados. Os danos dessa natureza presumem-se pelos próprios fatos apurados, os quais, inegavelmente, vulneram sua intangibilidade pessoal, sujeitando-o ao constrangimento, aborrecimento, dissabor e incômodo de ser tido inadimplente e refratário, sem ostentar essa condição. Quanto ao valor da indenização, entendo que, não se distanciando muito das lições jurisprudenciais, deve ser prestigiado o arbitramento do juiz de primeiro grau, que, próximo dos fatos, pautado pelo bom senso e atentando para o binômio razoabilidade e proporcionalidade, respeita o caráter reparatório e inibitório-punitivo da indenização, que dever trazer compensação indireta ao sofrimento do ofendido e incutir temor no ofensor para que não dê mais causa a eventos semelhantes. 80

In casu, entendo que o MM. Julgador de primeiro grau respeitou as balizas assinaladas, tendo fixado indenização em valor que não caracteriza enriquecimento sem causa do Recorrido e não provoca abalo financeiro ao Recorrente, ante o seu potencial econômico. Assim, os argumentos trazidos no presente recurso, à míngua de consistência, não conseguiram abalar os fundamentos que consubstanciam o veredictum monocrático. Pelo exposto e tudo mais que dos autos consta, VOTO no sentido de REJEITAR AS PRELIMINARES ADUZIDAS e, no mérito, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO interposto, para se manter integralmente a sentença hostilizada, pelos seus próprios fundamentos. Face à sucumbência, condeno o Recorrente ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios que arbitro em 20% (vinte por cento) do valor da condenação pecuniária imposta a teor do que dispõe o art. 55, caput, da Lei 9.099/954, atentando, especialmente, para a natureza, a importância relativa da ação, o zelo e o bom trabalho do profissional que defendeu os interesses da parte recorrida. É como voto.

1 Art. 46. O julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão. 2 Enunciado nº 92: Nos termos do art. 46 da Lei nº 9099/95, é dispensável o relatório nos julgamentos proferidos pelas Turmas Recursais. 3 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. 4 Art. 55. A sentença de primeiro grau não condenará o vencido em custas e honorários de advogado, ressalvados os casos de litigância de má-fé. Em segundo grau, o recorrente, vencido, pagará custas e honorários de advogado, que serão fixados entre dez por cento e vinte por cento do valor de condenação ou, não havendo condenação, do valor corrigido da causa.


Sentença MANDADO DE SEGURANÇA

Pedro Rogério Castro Godinho Juiz Substituto Comarca de Santo Estevão

Visto etc. xxxxxxxxxxxx, xxxxxxxxxxxxxxxxxx e xxxxxxxxxxxxxxxxxxx, através de ilustre advogado, impetraram MANDADO DE SEGURANÇA, com pedido de liminar, contra ato do PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL, aduzindo que: 1) os Impetrantes tomaram conhecimento da existência de graves denúncias formuladas pelo cidadão Sr. Dílson Cordier de Souza Júnior, com relação a atos de improbidade administrativa perpetrados pelo prefeito municipal e alguns dos seus secretários; 2) de acordo com as prerrogativas da Carta Magna, Lei Orgânica Municipal e Regimento Interno da Câmara, solicitaram ao presidente da Câmara a instauração de CPI para apurar as referidas denúncias; 3) aduziram que o pedido foi indeferido em 13.09.2005, sob o argumento de que não houve objeto específico dos fatos a serem investigados e que haveria perda do objeto em face da apuração do Ministério Público; 4) afirmaram ter recebido novas denúncias que ensejaram um novo pedido de instalação de CPI e que novamente o seu pedido fora negado, sob alegação de que a investigação se destinava a apurar fatos pretéritos. Para embasar seu veto, aduziu ainda que o objeto já foi apreciado pela Câmara Municipal e está em apreciação pelo TCM; 5) diante desses fatos, os Impetrantes sustentam a ilegalidade do ato cometido pelo impetrado, haja vista o pedido de instalação de CPI estar em conformidade com que rezam a Constituição Federal e as Leis Municipais; 6) requereu a concessão de liminar, determinando a obrigação de instalar a CPI, as informações do impetrado e, por fim, requereu a procedência da ação; 7) Juntou documentos de fls. 25 a 119. Custas recolhidas às fls. 120. Decisão de fls. 122 reservou para analisar o mé-

rito da liminar em outro instante processual e determinou a notificação do Impetrado. Ofício expedido às fls. 123/124. Às fls. 126 a 134, informações do Impetrado, aduzindo que: 1) a preliminar de extinção pelo não fornecimento de todas as cópias dos documentos juntados aos autos dos documentos apresentados; 2) no mérito, que o objeto do requerimento são fatos pretéritos e a Comissão Parlamentar de Inquérito só pode ser instaurada para apurar denúncias que ocorreram na atual gestão; 3) asseverou ainda pela impossibilidade de instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito, pois a fiscalização das contas municipais será exercida pelo Tribunal de Contas e pela Câmara Municipal; 4) por fim, afirmou que o fato é objeto de denúncia pelo Ministério Público, o que, pelo art. 71 da CF, inviabiliza a instauração de CPI; 5) pugnou pela denegação da segurança; 6) juntou documentos de fls. 136 a 147. Parecer Ministerial às fls. 149 a 153, opinando pelo deferimento da segurança.

É o relatório Decido A preliminar do não preenchimento do pressuposto processual exigido no artigo 6º da lei 1.533/1951, suscitada pelo Impetrado, é de todo improcedente. Conforme bem salientado no parecer Ministerial, a decisão judicial de fls. 122 determinou a notificação do Impetrado com encaminhamento das peças processuais anexadas ao processo. Conforme determinado, o meirinho cumpriu seu ofício, como se observa na sua Certidão exarada às fls. 124 v. Quanto ao mérito, percebe-se que houve ato lesivo ao direito líquido e certo do Impetrante, senão 81


Mandado de segurança

vejamos cada tópico: 2) A tese de que os fatos a investigar são preté1) Em 13.09.2005, o presidente da Câmara de ritos também não deve vigorar. Em primeiro lugar, porSanto Estevão indeferiu o pedido de instalação de CPI que não é requisito legal a referida exigência, conforme com o argumento de que não foi encontrado o objeto se observa lendo atentamente o artigo 58, parágrafo específico sobre o qual a Comissão laboraria. De fato, 3º, da Carta Magna, transcrito abaixo, e a pacífica jué requisito Constitucional que o objeto da investigação risprudência da Suprema Corte Brasileira. Em segundo seja sobre um fato certo e determinado. Alexandre de lugar, porque mesmo que fosse uma exigência legal, Morais, no seu livro Direito Constitucional, citando ou- os supostos fatos irregulares a serem investigados pertro mestre, leciona que: duram presentes na atual administração do Município. Em relação à amplitude de seu campo de atuaArtigo 58. O Congresso Nacional e suas casas ção, inicialmente deve ser salientado que o poder do terão comissões parlamentares e temporárias, constiCongresso de realizar investigações não é ilimitado, tuídas na forma e com as atribuições previstas no resdevendo concentrar-se em fatos espectivo regimento ou no ato de que pecíficos, definidos e relacionados resultar sua criação. ao Poder Público, pois como sa(...) lientado por Francisco Campos, “o § 3º. As Comissões ParlaA CPI foi requerida poder de investigar não é genérico mentares de Inquérito, que terão ou indefinido, mas eminentemente poderes de investigação próprios para investigar específico, ou há de ter um conteúdas autoridades judiciais, além fatos certos e do concreto, suscetível de ser antede outros previstos nos regimendeterminados, quais cipadamente avaliado na sua extentos das respectivas casas, serão são, compreensão e alcance pelas criadas pela Câmara Federal e sejam: favorecimento pessoas convocadas a colaborar pelo Senado Federal, em conjunilícito, fraude com as comissões de inquérito”. to ou separadamente, mediante licitatória (MORAES, Alexandre de. Direquerimento de um terço de seus reito Constitucional. Editora Atlas, membros, para a apuração de fato e ato de improbidade 15ª edição, 2004. p. 383 – organizadeterminado e por prazo certo, administrativa ção dos poderes, tópico 2.6) sendo suas conclusões, se for o No caso em comento, percecaso, encaminhadas ao Ministério be-se que este requisito foi atendiPúblico, para que promova a resdo. A CPI foi requerida para invesponsabilidade civil ou criminal dos tigar fatos certos e determinados, infratores”. quais sejam: favorecimento ilícito, 3) O Impetrado levanta outra fraude licitatória e ato de improbidade administrativa tese ilógica para obstaculizar a criação da CPI. Segunnas empresas Central de Informática Ltda., Fisiotera- do suas argumentações, a CPI não pode ser instalada pia Santo Estevão, dentre outras citadas. Percebe-se porque seu objeto será fruto de análise quando houver que o fato está devidamente definido e caracterizado, a votação das contas da Prefeitura. Desta forma, como consoante preceituam a Constituição Federal e o art. foi explanada sua teoria, sempre haveria empecilho à 30, parágrafo 2º, da Lei Orgânica do Município. criação de Comissões Parlamentares de Inquérito para Ademais, nas informações prestadas no Man- investigar irregularidades no Poder Executivo, uma vez dado de Segurança, o Impetrado lista quais seriam os que todas as contas deste Poder são analisadas pela objetos a serem investigados, provando, assim, que o Câmara Municipal. Sua tese privilegia os detentores do objeto não é vago ou indeterminado, como foi afirma- poder, os fortes e dominantes, com maioria no Parlado anteriormente na sua defesa administrativa. Vale mento, que manipulam o poder da maneira que mais registrar, sobre este fato, a fragilidade e a incoerên- lhes convém. Esqueceu o Impetrado que as Comissões cia da tese principal das defesas sustentadas na via Parlamentares de Inquérito desempenham uma função administrativa e judicial, com o intuito de criar estorvo de grande valor ao legitimar a fiscalização e o controle e dificultar a instalação da Comissão Parlamentar de da Administração pelas minorias parlamentares, com Inquérito. apoio no direito de oposição, legítimo consectário do 82


princípio democrático. 4) Por fim, não procedem as alegações de que a CPI não poderia ser instalada porque as contas a serem investigadas já foram prestadas e estão pendentes de julgamento pelo Tribunal de Contas e de investigação pelo Ministério Público. Observando a importância deste conceito, J. J Gomes Canotilho, no seu livro Direito Constitucional e Teoria da Constituição, preleciona, com absoluta propriedade, em sua excelente obra, nos seguintes termos: “Independentemente da discussão em torno da fundamentação «empírica» e «categorial» (apriorística) da «divisão de poderes», impõe-se individualização dos momentos essenciais da directiva fundamental da organização do poder político: a separação das funções estaduais e a atribuição das mesmas a diferentes titulares (separação funcional, institucional e pessoal); a interdependência de funções através de interdependências e dependências recíprocas (de natureza funcional, orgânica ou pessoal); o balanço ou controlo das funções, a fim de impedir um «superpoder», com a conseqüente possibilidade de abusos e desvios”. Sintetizando essa visão, ensina o genial mestre em Direito Constitucional: “... Embora se defenda a inexistência de uma separação absoluta de funções, dizendo-se simplesmente que a uma função corresponde um titular principal, sempre se coloca o problema de saber se haverá um núcleo essencial caracterizador do princípio da separação e absolutamente protegido pela Constituição. Em geral, afirma-se que a nenhum órgão podem ser atribuídas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais especialmente atribuídas a outro. Quer dizer: o princípio da separação exige, a título principal, a correspondência entre órgão e função e só admite exceções quando não for sacrificado o seu núcleo essencial.” (grifei) (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7a ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 556-559.) A nossa Carta Política conferiu poderes investigativos às Comissões Parlamentares de Inquérito sem delimitações, vinculações ou dependências com as entidades supra-relacionadas. É verdade que muitas barreiras tentaram ser erguidas para criar óbice aos inquéritos parlamentares, entretanto, o Supremo Tribunal Federal deixou claro que, conforme interpretação

constitucional, os requisitos para a criação da CPI foram aqueles listados por ela no seu art. 58, parágrafo 3º. O objetivo é evitar a ingerência maléfica de um poder em relação a outro e ferir o princípio basilar da República defendido por Montesquieu: a independência harmônica entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Nessa esteira, obstar o trabalho investigativo da Câmara Municipal porque o objeto investigativo em questão é fruto de análise pelo Tribunal de Contas, Ministério Público é ferir a função fiscalizadora exercida pelo Poder Legislativo, mecanismo essencial do sistema de checks-and-counterchecks adotado pela Constituição Federal de 1988. Vejamos como entende nossa Suprema Corte: “O inquérito parlamentar, realizado por qualquer CPI, qualifica-se como procedimento jurídico-constitucional revestido de autonomia e dotado de finalidade própria, circunstância esta que permite à comissão legislativa — sempre respeitados os limites inerentes à competência material do Poder Legislativo e observados os fatos determinados que ditaram a sua constituição — promover a pertinente investigação, ainda que os atos investigatórios possam incidir, eventualmente, sobre aspectos referentes a acontecimentos sujeitos a inquéritos policiais ou a processos judiciais que guardem conexão com o evento principal objeto da apuração congressual.” (MS 23.652, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-11-00, DJ de 16-2-01) No mesmo sentido: MS 23.639, julgamento em 16-11-00, DJ de 16-2-01. Do exposto, e por tudo que dos autos consta, por ter sido violado direito líquido e certo dos Impetrantes, JULGO PROCEDENTE A AÇÃO MANDAMENTAL, para Conceder a Segurança e impor ao Impetrado a obrigação de instalar a CPI para apurar os fatos requeridos, conforme preceitua o Regimento Interno da Câmara, num prazo de 10 dias, sob pena de crime de desobediência e multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais). Transmita-se à autoridade coatora o inteiro teor desta sentença, por meio de ofício, consoante regra insculpida no artigo 11 da Lei 1.533/51. Por força do disposto no art. 12, parágrafo único da Lei 1.533/51, submeto esta decisão ao Egrégio Tribunal de Justiça, com a remessa dos autos, após o prazo recursal, com ou sem alegações das partes. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

83


Artigo UM DIA NA VIDA DO CONSUMIDOR

Antônio Pessoa Cardoso Desembargador Tribunal de Justiça

O

consumidor já acorda preocupado com os abusos que enfrentará no dia que se inicia! No ranking mundial, o Brasil se coloca em terceiro lugar entre os que pagam energia mais cara; vinte e cinco por cento (25%) do que ganha o assalariado são destinados ao pagamento do consumo de energia. Então, ao acender a luz de casa, se depara com o primeiro transtorno na vida orçamentária. Os preços da energia são controlados e os reajustes, autorizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), atendendo mais aos interesses políticos financeiros, ou de outra ordem menos ética, do que propriamente para cobrir eventuais custos da atividade desenvolvida pela concessionária. A Câmara dos Deputados instalou no mês de junho a CPI da Conta de Luz, com o fim de investigar os critérios usados pela ANEEL para fixar os valores das contas de consumo. É fato que nos últimos dez anos as tarifas quadruplicaram, pois em 1995 o megawatt-hora custava R$ 60,00, em média; no ano de 2006 subiu para R$ 230,00, o que importa no significativo e extorsivo aumento de quase 300%; a inflação, no período, variou em torno de 155%, o salário mínimo foi reajustado em menos de 15%. As concessionárias de energia, de telefonia, de água etc., as financeiras, os bancos, os planos de saúde e outros prestadores de serviços públicos fazem verdadeira lavagem cerebral para conquistar maior número de usuários dos produtos que oferecem. Na “caça” ao consumidor oferecem todo tipo de vantagem. As operadoras agraciam o cliente com aparelho, tarifas reduzidas, brindes, além de outros mimos. Vendem facilidades para posterior cobrança de dificuldades. A agressividade dessas empresas é tamanha 84

que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) proibiu o marketing direto ao consumidor, através de ligações de telemarketing e a propaganda nas contas telefônicas. A publicidade desenfreada para promoção dos produtos que jogam no mercado causa consumo além das possibilidades do consumidor, nascendo daí o superendividamento, tão ao gosto dos bancos. O consumidor, no correr do dia, vai ao banco para depositar, retirar seu dinheiro ou pagar conta; aí é extorquido pelo valor alto das tarifas, pelo apontamento do que não deve, pela oferta de produtos que não pode ter. O correntista não entende o fato de deixar seu dinheiro guardado com o banqueiro e ainda ter de pagar por prestação de serviços, além de outros lançamentos que nem sabe do que se tratam! Se o consumidor precisa do telefone, aborrecese com a realidade, pois nem tira o fone do gancho para fazer ligação e já lhe cobram valores, através da denominada taxa básica; no fim do mês aparece outra esperteza, consubstanciada no chamado pulsos além franquia, ou seja, paga sem ter a discriminação das ligações anotadas neste título. Outras contrariedades com a concessionária de telefone são originadas da enumeração de telefonemas não gerados nessa linha ou do péssimo atendimento dispensado. Ao se deslocar para o supermercado, compra frutas, ciente de que poderá ter problemas com a saúde, em virtude da contaminação dos produtos que adquire, pois o Brasil, em 2008, assumiu o posto de maior consumidor de agrotóxicos do mundo; a expansão de nossa fronteira agrícola, juntamente com o cultivo dos transgênicos, nos proporciona ingestão, em dose maior, dos agrotóxicos. Há um mínimo tolerável no uso


desse veneno: aceita-se 0,2 mg/kg, ou seja, em cada ença até que chegue a data prometida. O adiamento milhão de gramas do alimento, no máximo, 0,2 de gra- para a consulta é a melhor das hipóteses, pois pode ma de resíduo do ingrediente ativo do agrotóxico; o que simplesmente receber um não, sob a alegação de que ultrapassar este teto implica proibição de consumo do existem muitas pessoas para serem atendidas, ou poralimento, porque representa perigo para a saúde. que falta médico no plantão. Não tem outro destino que Mas quem vai controlar a fúria dos inescrupulo- não seja voltar para casa e esperar a morte chegar. sos, na busca de lucro fácil da atividade? Aliás, já se registrou ocorrência na qual um poE se o cidadão precisar de algum medicamento, bre coitado, atendido num hospital, teve de ser encaminão resta dúvida de que estará submetido, mais uma nhado para outro, mas morreu na própria ambulância vez, às condições truculentas do mercado; será obri- que já se encontrava estacionada na frente do hospital gado a pagar pelo produto que necessita e pelo que para onde foi deslocado; o motorista estacionou o carsobra, pois é forçado a adquirir caixa lacrada, sempre ro e como ninguém aparecesse para retirar o paciente, com dose superior à estampada na saiu, deixou a ambulância trancada receita médica. É situação semee quando retornou o paciente já eslhante à taxa básica ou à cobrança tava morto. O adiamento para a antecipada, e por tempo mínimo, O fato é verídico e já esbarconsulta é a melhor das rou nos tribunais! nos estacionamentos. Tudo isto em desrespeito ao Outro serviço precário preshipóteses, pois pode acesso gratuito ao medicamento, simplesmente receber um tado pelo Estado e reclamado pela por ser direito constitucional; o que sociedade é a segurança pública. não, sob a alegação se mostra inconstitucional é a lista O assalto, o tiroteio, a bala perdida, do Sistema Único de Saúde, enuas mortes já se tornaram comuns de que existem muitas merando os medicamentos que no dia-a-dia da população das cipessoas para serem deverão ser distribuídos gratuitadades brasileiras. atendidas, (..). mente. É que a saúde é dever do A prestação jurisdicional é Estado e, portanto, para se ter saúmorosa, falta-lhe estrutura, mateNão tem outro destino de, é necessário o medicamento que não seja voltar para rial humano e as demandas excesem restrição, salvo de ordem médem as possibilidades dos magiscasa e esperar dica. Mas a circunstância exposta trados e funcionários. Mas tudo é pior, pois além de ter de comprar isto não é justificável para negar o a morte chegar o produto, ainda assumirá o pagadireito violado e reclamado pelo cimento do excesso adquirido. dadão; as leis existem para serem Alguma enfermidade que recumpridas e não se justifica a conclama a busca de emergência hospitalar implica maior cessão legal de 75 dias de férias/recesso por ano ao constrangimento da vida do cidadão, pois não recebe- magistrado; não se entende a aposentadoria precoce rá autorização para internamento, salvo se submeter- do juiz e do funcionário público de uma maneira geral, se à exigência do hospital e depositar alto valor em mesmo diante do quadro falimentar da previdência socaução; descabida e impiedosa situação, apesar de a cial. Toda esta regalia é fruto de leis, contra as quais Constituição garantir que “a saúde é direito de todos e já se pronunciaram os juízes. A atividade jurisdicional dever do Estado”; mas, se não for urgência e o enfermo não pode sofrer interrupção, pois a justiça é o pão do buscar os serviços de saúde da rede pública, terá dian- povo, como já dizia Bertolt Brecht. te de si extrema complicação. O noticiário dos jornais, A situação é tão desesperadora que até mesmo com muita frequência, mostra o descaso dos postos de o sistema dos Juizados Especiais, justiça destinada saúde: anotam os óbitos em plena fila de usuários que aos pobres, marca audiências para um, dois anos após ali estavam para atendimento; a situação é tão caótica a reclamação. Não importa a simplicidade da queixa, que uma simples consulta médica poderá ser marcada um produto com defeito ou a recusa do plano de saúde para os próximos 30 dias; o contribuinte quer apenas para autorizar internamento, em qualquer circunstânfazer uma consulta, mas vai ter de conviver com a dor cia, terá de esperar a lentidão dos serviços judiciários. no estômago, com a gripe ou com qualquer outra doAté os espaços públicos, concedidos a empre85


Um dia na vida do consumidor

sários para administrar como estacionamentos nas grandes cidades, constituem atividade na qual o povo é explorado. Se o cidadão vai de carro a um show ou às compras, terá de estacionar seu automóvel e, em alguns casos, pagar antecipadamente; a exploração inicia-se por aí e prossegue com o próprio preço do serviço; a empresa permissionária não assume por eventuais danos ou furto de objetos no carro estacionado sob seus cuidados; o comprovante recebido presta-se somente para mostrar que o serviço foi pago, pois as empresas não assumem responsabilidade por nada, apesar de decisões judiciais em contrário. No Centro de Convenções de Salvador, por exemplo, paga-se antecipadamente pelo estacionamento; no aeroporto internacional de Salvador o pagamento mínimo é de R$ 4,00, independentemente do tempo de uso, desde que não ultrapasse quatro horas; passado este limite, desembolsa-se mais R$ 2,00 por cada hora. Semelhante é a exigência de consumo mínimo em certos ambientes ou a taxa básica de assinatura cobrada pela empresas telefônicas. Normalmente a pessoa vai ao aeroporto apanhar ou levar alguém e dificilmente permanece ali por mais de uma hora; todavia, com a aprovação dos governantes, as empresas exigem pagamento de um mínimo de quatro horas, como se deixasse o carro no estacionamento por este mínimo de tempo. O resultado é que as permissionárias se locupletam indevidamente. Divaguemos um pouco sobre os preços dos combustíveis, produto necessário para a movimentação do consumidor, principalmente nas grandes cidades. Em cada 800 ml de gasolina vendida pela Petrobras, que custa R$ 0,80, há 200 ml de álcool, ao custo de R$ 0,20; os impostos que incidem sobre o produto são CIDE – PIS/COFINS, no valor de R$ 0,44; ICMS, R$ 0,64; o lucro da distribuidora é de apenas R$ 0,08, do posto R$ 0,25 e o frete do combustível fica em R$ 0,02. Conclui-se que o litro custa R$ 1,35 sem impostos e sobe para R$ 2,43 com impostos, mas é vendida para o consumidor tolo por preço médio de R$ 2,70. Isto sem contar com a mistura de solvente, de óleo diesel, dentre outras, à gasolina. E o pior é que a Petrobras, transformada em cabide de emprego para o partido que governa o País, não acompanha os custos do preço do petróleo para fixar o valor da gasolina ou do óleo; o produto sobe ou desce e a gasolina, o óleo continuam com os mesmos preços; um ano atrás, o barril no mercado custava o 86

dobro do preço de hoje, mas nem por isso o valor do litro de gasolina diminuiu. E sabe-se que a Petrobras é uma das maiores empresas do mundo. Como se apontou acima, os grandes aborrecimentos ocorrem quando o cidadão necessita dos serviços públicos, em qualquer área, seja federal, estadual ou municipal, e em qualquer nível, no Executivo, Legislativo ou Judiciário. A burocracia enerva o cidadão, o despreparo e o mau tratamento dos funcionários o desesperam e a corrupção o deixa sem rumo. A coletividade visualiza o Estado como opressor, e isto se mostra incompatível com a democracia, mas real nos tempos presentes; é certo que todos têm o dever de pagar impostos, mas correta também é a afirmação de que os governantes só se legitimam no poder se garantirem o pacto social, aplicando os recursos arrecadados com eficiência e em benefício do povo. O que se vê é a cobrança de altos tributos e, em certos momentos indevidos, seguida de má aplicação do dinheiro, responsável pela precariedade de todos os serviços públicos. Na verdade, os tributos contribuem para o enriquecimento ilícito dos governantes, empobrecendo o contribuinte brasileiro; prestam-se mais para financiar as publicidades desenfreadas do governante de plantão, as farras palacianas, as viagens e o lazer dos homens públicos do que mesmo para aplicação nos serviços de saúde, educação, justiça, segurança, habitação etc. O brasileiro, como já se disse, trabalha quatro meses só para pagar impostos, o que corresponde a 38% do que ganha somente para financiar os prazeres dos governantes. O lamentável de tudo isto é que a indignação do brasileiro é limitada e a própria justiça é pouco acionada para regularizar tais situações, pois o Estado é quem mais utiliza os serviços judiciários. O atual presidente da república já proclamou que é melhor repassar o dinheiro para os pobres do que diminuir impostos. E o que fazemos? Se muito, um protesto isolado; o boicote, arma principal do consumidor, é pouco usado no Brasil, porque ficamos perplexos, sem ação, calejados e sem nos indignarmos mais com nada. Aceitamos a corrupção e assumimos a condição de bobos da Corte. Há evidente falta de escrúpulos no homem público, seguida de inexplicável aceitação por parte do cidadão. Os escândalos são contínuos e dificilmente há punição.


Cultura

Inteligência Definitiva

M

Millôr Fernandes é um desses brasileiros que nos enche de orgulho. Carioca da gema, escritor, cartunista, caricaturista, artista gráfico, pensador, poeta, dramaturgo, jornalista, pintor, etc., etc., etc., é um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos. Autor de diversos livros, como também

Tudo a ver

“Palavra (En)Cantada” é um documentário dirigido pela competente cineasta brasileira Helena Solberg e que foi exibido recente (e rapidamente) nos cinemas de arte da nossa capital, embora muito poucos o tenham assistido. Se quiser correr atrás do prejuízo, alugue-o numa videoteca e não haverá arrependimento, nem perda de tempo. O documen-

Edson Pereira Filho

de roteiros de filmes, de letras de música, ele é uma inteligência rara, sempre arguto nas suas análises sobre os acontecimentos do passado e do presente, seja do nosso país, seja do mundo. O seu livro “MILLÔR DEFINITIVO, A BÍBLIA DO CAOS”, da Editora L&PM, é uma coletânea de pensamentos que traz a sua marca registrada de irônico humor e de exercício profundo do pensar.

tário faz uma reflexão sobre o envolvimento da rica música popular brasileira com a poesia, a criação literária, o fazer poético, e sobre como surgem as obras dos nossos grandes compositores, cada um com sua forma particular de trabalhar o texto e a música, num entrelaçamento que é um diferencial notável do Brasil em relação a outros países.

Blogs Viaje por diversos blogs interessantes que mostram a riqueza, as novidades e a variedade da literatura, da música, da arte brasileira de modo geral. Tome nota:

http://cristiano-cartasdomeumoinho.blogspot.com/

http://www.antoniocicero. blogspot.com/

http://www.poesiaconcreta. com.br/

Textos curtos, com muita densidade poética, do escritor baiano, Cristiano Teixeira;

Filosofia e literatura de primeira qualidade.

Dos poetas mais do que concretos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, onde, além de poesia, você encontra música bem transada;

87


Jurídica, popular, indígena, baiana... a cultura tem várias vertentes. E a Erga Omnes abrirá espaço para algumas delas na próxima edição. Não perca.

88


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.