O homem-mar

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Rua das Pedras Búzios (RJ) por Flávio Pimentel


O homem-mar . PROJETO GRÁFICO

Carolina König

CENTRO UNIVERSITÁRIO SENAC


Homem-peixe, pescador de si. A continuação do mar, na areia; do céu, nas mãos. Caa, do balanço das folhas verdes, dos pés fincados no chão; içara, das pedras no caminho de quem veste a vida com o cheiro do próprio suor. Nos olhos, simplicidade. O anzol, traidor dos peixes, do próprio homem-peixe. Um contar de histórias que não deixa morrer o que já foi vida outrora. O que ainda é vida. Agora.

Maíra Fortes e Carolina König


José Carlos Barretta Sou de São Paulo, nascido em 1973. Comecei na fotografia quando fiz uma viagem à Itália, em 2000. Tinha vontade de fazer algo melhor que as fotos de turistas, por isso estudei brevemente os mecanismos da câmera e os fundamentos da linguagem fotográfica. Naquela época ainda levei uma câmera analógica e só revelei as imagens quando voltei ao Brasil. Acho que foi a própria decepção com os resultados dessa primeira viagem como fotógrafo que me motivou a buscar um aprimoramento. Mas no meio de tantas fotos ruins, algumas ficaram boas e isso também me incentivou. Meu contato com as comunidades de pescadores começou em 2003, quando fiz uma viagem de dois meses pelo litoral brasileiro. Depois que voltei da Itália percebi o quanto não conhecia o Brasil e resolvi fazer essa viagem. Foi muito marcante para mim. Parti de Belém, no Pará, e fui percorrendo pelo litoral até Vitória, no Espírito Santo. Foram dois meses e cinco mil quilômetros. Tive a oportunidade de conhecer várias comunidades em paisagens de tirar o fôlego e me encantei com a simplicidade que eles vivem e com a riqueza cultural e natural do nosso país. É fascinante o contato com pessoas tão simples e tão adaptadas à vida no mar. A fotografia aconteceu de forma bastante espontânea e natural. Geralmente

os pescadores aceitam ser fotografados e gostam de contar histórias. Em alguns casos o contato foi superficial, uma foto apenas. Em outros, mais próximo, quando pude ouvir histórias – de pescador, literalmente – freqüentar as casas e até ir para alto mar com eles. Aí vemos o quanto esses homens estão adaptados à vida no mar, o profundo conhecimento que eles têm da região e do clima, das correntezas marítimas e fases da lua. Uma ligação íntima e profunda com a natureza, que muitas vezes esquecemos ou negamos completamente. São tímidos alguns, não falam muito, mas é comum encontrar aquele que gosta de conversar, de contar suas histórias, seus feitos, os dias passados no mar pescando, quilos de peixe que trouxe etc. Falam da sua vida no mar. Gostam do mar. Dependem economicamente do que retiram do mar. É uma relação muito próxima com os peixes e animais marinhos, mas às vezes também colaboram para a agressão à natureza, retirando do mar animais que servem apenas de “souvenir” para turistas que acham que podem comprar tudo, fazendo pesca predatória em larga escala e colocando espécies em risco pela ganância dos visitantes. Mas é fantástico o contato com as comunidades de pescadores, perceber o quanto eles carregam consigo, tradições e técnicas que são passadas de geração em geração, o quanto se adaptaram à vida no mar e o quanto é próxima sua relação com a natureza.











Massimiliana Beserra Nasci em 14 de julho de 1975, no hospital de um avô, em Maranguape, perto de Fortaleza. Assim que pude, retornamos à Bahia. Antes de um mês de idade eu já voava! Comecei a levar a sério a fotografia em 2006, quando comprei minha primeira digital compacta e passei a postar fotos no fotolog. Recebia um retorno bem positivo de amigos já fotógrafos, então comecei a fazer alguns ensaios para amigas e a fotografia foi tomando corpo. Decidi deixar a Psicologia, que já não me apaixonava mais e passei a trabalhar só com a fotografia. Gosto muito de fotografar grávidas. A empatia que estabelecemos com quem está sendo fotografado é essencial. Se não tiver isso, não consigo o resultado que quero de determinados momentos e expressões, além da liberdade da pessoa se mostrar para mim. Isso, acredito, tem grande influência da Psicologia, mas não é o determinante para se conseguir uma boa fotografia. A sorte também ajuda muito! Sempre que vou fotografar, procuro captar a essência do lugar, das pessoas, de seu modo de viver. Cada lugarejo, mesmo aquelas praias distantes três quilômetros uma da outra, como Mundaú e Flexeiras, têm características bem distintas. Uma é poluída, a outra é limpa. Uma é quase limpa de moradores nativos, a outra quase limpa de turistas. Uma merece fotografias de suas belezas naturais, a outra de seus pescadores e nativos. Através da preferência pelo que será fotografado, mostro também um pouco do que encontrei no local. Acho uma delícia fotografar gente simples. Como paisagens também. Para fotografar pessoas, sejam

comunidades ou fotografias individuais, preciso estabelecer empatia e, nesse processo, conheço um pouco mais das pessoas, seus hábitos, seus valores e suas belezas também. Amo conversar com as pessoas e cresço muito nessas interações, como pessoa, como cidadã e como fotógrafa. A aproximação é um processo natural. Quando eles vêem a câmera já ficam curiosos e se aproximam, daí a começarmos a conversar é um pulo. Algumas vezes almoço ou janto com eles, o que é ainda mais interessante. E a comida sempre muito gostosa! Algumas pessoas são tímidas a princípio, mesmo que curiosas. Mostrar o que fotografei no LCD da câmera ajuda bastante, porque elas normalmente gostam de se ver retratadas. Usualmente, enquanto fotografo, converso também. As pessoas mais velhas não gostam de ser fotografadas, mas adoram contar histórias, desde causos passados até lendas da região, histórias de vida e de trabalho, de como suas famílias chegaram naquela região e como formaram seu estilo de vida. Com as crianças a história se inverte. Mulheres adultas dificilmente se sentem à vontade. Os homens, principalmente pescadores, comportam-se como se nada estivesse acontecendo. Esse contato me enriquece, me instrui, me abre para o novo, para o antigo e para o que acontece longe daquilo que vejo todos os dias. Me faz ter um parâmetro diferente ao perceber as diferenças de olhares. Ao admirar as culturas. Ao admirar os homens. Ao admirar e agradecer a Deus pela riqueza de detalhes das pessoas e da natureza. Faz sentir-me grata.








Elisângela Leite Paraibana da cidade de Patos, moradora da Maré desde 1999, é estudante de pedagodia da UERJ e cursou a turma de 2007 da Escola de Fotógrafos Populares, desenvolvendo um projeto fotográfico na Colônia de Pescadores do Parque da União – uma das 17 comunidades da Maré, no Rio de Janeiro. “O meu objetivo foi mostrar o cotidiano dos pescadores na colônia. Nessa busca, percebi que mesmo com todas as dificuldades diárias, eles eram unidos, amigos e afetuosos. Esta relação fraterna me deixou muito a vontade para fotografá-los, recebendo sempre o apoio de todos. Enquanto eles travam sua luta diária contra o avanço da poluição da Baía de Guanabara, ficam a espera de qualquer apoio por parte dos governantes para que a cultura da pescaria artesanal não se acabe. Com minha fotografia espero contribuir com essa luta.” Desde a formação da Maré, em outubro de 2002, os moradores tentaram manter uma relação de troca com a Baía de Guanabara, que foi se perdendo para a poluição das águas e a falta de subsídio do governo. Até hoje, o único grupo de pescadores que ainda vive essa dependência são os moradores da Colônia Parque da União. Fotografar estes últimos moradores remanescentes desta atividade pesqueira é um grande desafio que se faz necessário a fim de registrar parte desta história de resistência. Elisângela pretendeu mostrar como eles fazem para manter viva essa tradição ameaçada por falta de infra-estrutura e apoio da própria comunidade e dos governantes que prometem apoio, mas nunca cumprem. Convivendo com eles por alguns meses descobriu que hoje em dia quase não existe mais pescador que viva só da pesca. A maioria trabalha fora e nos fins de semana fazem passeios turísticos. “Espero com esse trabalho mostrar o meu olhar somado aos olhares dos pescadores. Seus rostos, um pouco de suas vidas marcadas de sonhos e desilusões. Suas embarcações, redes, suas realidades, realidades essas que mostram que apesar

da Baía estar poluída ainda existem muitos peixes, muita vida marinha. Meus personagens foram variando ao longo do tempo em que convivi com eles na colônia de pescadores.“ Carlinhos, diretor e mecânico dos barqueiros, tem 46 anos, é separado e tem dois filhos que vivem com sua excompanheira. Atualmente passa a semana na colônia na Maré e no fim de semana vai para sua casa no interior do estado. Espírita, filho de Ogun, se define como aquele que sabe mexer com ferramentas e por isso ele é mecânico de barco. Já passou pela aeronáutica, era pescador até se envolver em um esquema ilícito. Foi preso no Mato Grosso do Sul, onde cumpriu pena de três anos. Na colônia ele procura manter tudo organizado, mesmo sem ter apoio dos governantes para melhorar a infra-estrutura do local. Conta com a solidariedade dos outros pescadores que contribuem com uma pequena taxa com a qual ele construiu um banheiro e colocou uma caixa d’água. Entre outras coisas, ele procura ajudar os pescadores a tirar a licença que lhes permita exercer a profissão. Seu Dei é o único que continua dividindo a diretoria com o Carlinhos. É conhecido como o vovô na Colônia. Também casado, tem três filhos e um neto que ele cria e que é a sua razão de viver. Não tira seu sustento da pesca e, sim, do turismo, alugando seu barco nos fins de semana. Outro pescador, o Sr. Francisco, trabalha e mora em uma empresa na Rua Bitencour Sampaio. Viúvo teve dois filhos: um morreu e o outro vive com a tia na região dos lagos e vem ficar com o pai na época das férias. Hoje ele apenas pesca por lazer e faz turismo por sustento. O Hélio trabalha como garçom e pesca nas horas vagas; faz turismo e conserta as redes dele e dos outros pescadores. É uma das formas encontradas por ele para aumentar sua renda mensal. Seu Zé, um pescador de 76 anos, no passado pescou caranguejos e hoje tem uma barraquinha na feira da Teixeira Ribeiro, na comunidade de Nova Holanda. Vende plantas e caranguejos e apresentou o manguezal onde costumava pegá-los, em Barão do Iriri. Todos os anos os pescadores se reúnem e fazem uma grande confraternização entre eles arrecadando dinheiro de cada um para fazer um churrasco na Ilha Seca. As mulheres ficam encarregadas de fazer a comida enquanto os homens providenciam a bebida, que não pode faltar. Ao chegar à Ilha inicia-se uma rápida limpeza na pequena faixa de areia da praia com a retirada do lixo trazido pelas águas da Baía de Guanabara. Feita a limpeza, é só lazer.










Maíra Borgonha e Áthila Bertoncini Nascida em 1981, na cidade de Massaranduba, Santa Catarina, a oceanógrafa Maíra Borgonha desenvolveu o gosto pela fotografia ainda na infância, observando o trabalho de fotógrafos e pessoas comuns. Desenvolveu sua fotografia durante a graduação ao registrar os trabalhos com pescadores artesanais no litoral catarinense, o que culminou na recente composição da Etnografia Visual da pesca em Caponga, Ceará, realizada em parceria com seu marido e fotógrafo Áthila Bertoncini Andrade. Áthila tem formação em oceanografia e utiliza a fotografia em suas pesquisas voltadas à conservação dos ambientes costeiros retratando a beleza peculiar de sua flora e fauna. Nascido em 1977, na cidade de Criciúma, Santa Catarina, acompanhou os passos do pai, um arquiteto apaixonado pela fotografia, e dedicou-se à fotografia da natureza ainda no início da sua graduação (1996). Atua em diversos projetos de pesquisa e estudos ambientais na costa brasileira, com foco na conservação de peixes, áreas recifais e comunidades costeiras, onde a fotografia constitui ferramenta essencial de trabalho.

Os jangadeiros cearenses há muito tempo faziam parte do idílio em descrever a pesca nordestina. No ano de 2006, tendo ingressado no mestrado, Maíra escolheu a comunidade de praia da Caponga, litoral leste do Ceará para pesquisar o conhecimento local dos jangadeiros sobre temas relevantes à pesca (Etnoecologia). O estudo procedeu durante dois anos, sendo 68 dias vividos junto à comunidade. Os registros fotográficos produzidos por Maíra e Áthila trouxeram a possibilidade de captar cenas do cotidiano e eventos que permeiam a vida da comunidade de Caponga. Desembarques, identificação de espécies, chegadas e partidas do mar, técnicas, atores envolvidos, pescarias, aprendizado e embarcações foram documentados explorando a importância da imagem como ferramenta de aquisição de dados e instrumento de análise, pela união de registros verbais e visuais. Muitos dos laços de amizade e confiança tiveram início com a fotografia e a imagem tornou-se um elo entre os pesquisadores e a comunidade pesqueira de Caponga. Posar para a câmera, ver-se através do retrato, trazia um misto de excitação e desconfiança. Impressa no papel estava a possibilidade de olhar para si e resgatar a sua identidade e a própria história.










O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa retina é como um vazio. Você sai todos os dias, pela mesma porta... Se alguém lhe perguntar o que vê no caminho, você não sabe. O hábito suja os olhos e baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver: gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Erma Freesman



JOSÉ CARLOS BARRETTA [ página 07 ]

direita: seu Manoel, pescador Cascavel (CE)

esquerda: vendedora de caranguejo Ilha de Marajó (PA) direita: descanso Caraíva (BA)

âncora e barco Jericoacoara (CE)

esquerda: pesca de arrasto Japaratinga (AL) direita: pescador Maceió (AL)


preparando o almoço Praia da Pipa (RN)

mergulho no rio Mosqueiros (PA)

brincadeira no barco Santa Cruz Cabrália (BA)

pescadores Ilha da Crôa (AL)

esquerda: pôr-do-sol Caraíva (BA) direita: barcos Jacumã (PB)

cachorros caiçaras Caraíva (BA)


MASSIMILIANA BESERRA [ página 27 ]

beira-mar Mucuripe (CE)

esquerda: juntos Praia das Fontes (CE) direita: pintores Mundaú (CE)

esquerda: Alan e a rede Lagoinha (CE) direita: Alan e o peixe Lagoinha (CE)

alongamento Ponte dos Ingleses - Praia de iracema (CE)


pescadores Mundaú (CE)

embarcação Mundaú (CE)

jangadas Prainha (CE)


ELISÂNGELA LEITE [ página 41 ]

esquerda: Francisco recuperando uma rede de pesca Baía de Guanabara (RJ) direita: detalhe da recuperação de uma rede de pesca Baía de Guanabara (RJ)

esquerda: resgate de um barco Baía de Guanabara (RJ) direita: retorno à colônia em mais um dia de pesca Baía de Guanabara (RJ)

barco de pesca Baía de Guanabara (RJ)


esquerda: pescador Baía de Guanabara (RJ) direita: pescador preparando equipamento para resgate de um barco a deriva Baía de Guanabara (RJ)

um dos faróis a caminho da Ilha Seca Baía de Guanabara (RJ)

caranguejos capturados no mangue Baía de Guanabara (RJ)

paisagem da lagoa Barão de Iriri Baía de Guanabara (RJ)

amanhecer na colônia Baía de Guanabara (RJ)


MAÍRA BORGONHA E ÁTHILA BERTONCINI [ página 59 ]

direita: vermelho Caponga (CE)

“conserto” Caponga (CE)

esquerda: peixe sobre jangada Caponga (CE)

esquerda: corrida de paquetes Caponga (CE)

direita: “conserto” Caponga (CE)

direita: infância e pesca Caponga (CE)


maestria Caponga (CE)

chegada Caponga (CE)

esquerda: partida Caponga (CE)

esquerda: fim de jornada Caponga (CE)

direita: fartura Caponga (CE)

direita: grandes homens do mar Caponga (CE)

esquerda: piĂşba IcapuĂ­ (CE) direita: descanso Caponga (CE)


König, Carolina. O homem-mar / Carolina König – São Paulo: SENAC, 2008. 100 f. : il. color. Orientador: Delfim Cesario Junior Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Centro Universitário Senac, Comunicação e Artes 1. Fotografia 2. Caiçara 3. Portfólio de fotógrafos I. Junior, Delfim Cesario II. Centro Universitário Senac, Comunicação e Artes III. Título


miolo em papel couché fosco 150g empastado com kraft 150g capa em madeira OSB fontes: Frutiger para textos Triplex e Flood para títulos impresso na Power Graphics - Unidade Berrini www.powergraphics.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei.


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