AS CRIANÇAS COMERAM TODA PÓLVORA, MEU BEM
jairo macedo
esses são textos escritos, em sua maioria, entre agosto de 2018 e janeiro de 2019. alguns deles foram publicados anteriormente em Segue o Baile (segueobailee.wordpress.com) e Maldita Cafeína (malditacafeina.tumblr.com), blogs já extintos. eles rondam, ainda que frouxamente, temas semelhantes. tratam de memória, infância, rebeldia, pânico, amor e coisas explodindo. principalmente coisas explodindo. revolta adolescente após os 30 ao som de Patti Smith uma jovem e Leonard Cohen um velho.
jairo macedo instagram.com/malcafeina malcafeina@gmail.com
retira seus brinquedos do parque, baby, é agora! estamos em dia 2 de janeiro. termino um livro no estacionamento do supermercado enquanto meu amor vai às compras. sempre à caça da melhor bebida pelo preço e o vendedor mais justos. ela cuida das garrafas, eu cuido de corrermos o mais rápido possível dali. vivemos bem assim. com os vinhos e o livros debaixo do braço "não deixa eles caírem!", ela me grita e eu faço o meu possível. quando os publicitários se tornam os donos do bar, meu bem, é hora de beber em outro boteco. quando todas as boas bandeiras tremulam e fazem de tudo um som um alarido é hora de retirar do pau nossos panos velhos e colocá-los à mesa e chamar os amigos. eles lá fora podem estar certos, afinal. vai saber. e ter razão
de todo modo nunca foi exatamente a maior de nossas paixĂľes.
guerrilha dos gatos lembro bem daquele dia março de 2007 aproximadamente lembro porque era uma festa e era uma festa porque todos eram cruéis. todos eram cruéis em agosto de 2009 também nos vimos ali em abril de 2012, nos reencontramos e depois outra vez e mais uma neste ano, é certo haverá novas celebrações sobre como o mundo segue fodidamente ruim mas à essa altura, meu amigo já estamos velhos demais e alguma vantagem deve haver nisso como, por exemplo, prever a hora certa de botar as mãos
nos piores ombros só pra dizer nos ouvidos: "eu não sou como você ainda" como, por exemplo, prever o momento e o local exatos dos fogos explodirem e estar longe o suficiente para recebê-los nos olhos e nunca mais diretamente no fígado
filme bonito contra a parede é bruto o que é. deixemos de ser um pouco. larga quieto. vamo ver o que fazemos. sabote essa ideia, pense na próxima. quando seremos felizes não sei. quando seremos os mesmos amanhã. - esqueça os ausentes traz uma cerveja, cujo rótulo diz poema bom é poema morto. enche pra mim. vamo construir e dinamitar uma ilha. pode ser a de manhattan. dividir a bomba com o inimigo. acreditar em Elvis morto ou vivo. as crianças comeram toda a pólvora, meu bem. - os ausentes têm estranho modo de ser vamo comer um rabo esta noite. pode ser o seu, pode ser o do papa. deus não faz distinção de rabos e hoje quando bater 23h49 ou antes encerraremos essa dança cansada com um amarelo novo nos dentes e um gole num bar sem tv ligada.
patti smith toca i wanna be your dog e dá tiros ao alto numa manhã com as crianças não é verdade que não me movo. me movo sempre muito lentamente. portanto, pode ligar à qualquer hora ou simplesmente aparecer à porta. o tempo nos encheu os bolsos de merda e não fui, não fomos, não ligamos deixamos adultos comerem todos os cacos, meu bem. pense bem mas venha proponho um abraço e um baseado. não direi nada não tenho novidades o oco me raspa o cérebro. mas venha com sua camiseta – como a de Patti - escrito fuck the clock venha que hoje 11 de outubro, quarta-feira o mundo usa a marcha como poder
e o poder como marcha e amanhã será exatamente igual FUCK THE CLOCK venha que depois do silêncio, haverá alguma coisa que ainda não sei. e depois do que não sei, não haverá nada. é quando as coisas começam a acontecer.
não alimente a indústria do tabaco exceto agora livro não vende, cigarro vende. pânico também dá um dinheirão. coisas explodindo vendem bem mas terceirizar o serviço de recolhimento dos corpos pode custar bem caro. pregar seus pés com fita crepe no céu não vende nada e ainda pode ser uma puta de uma metáfora ruim pra caralho. - e metáforas não dão dinheiro, de todo modo. tudo o que envolve papéis e/ou contém palavras não parece uma boa ideia no mercado - exceto, talvez, papeis higiênicos, rótulos de bebidas e caixas de papelão em empresas de mudanças. do ponto de vista financeiro sobretudo agora 3:30 da manhã
nada vale muita coisa mas devo admitir que encontrar uma loja e nela alguém que me venda um isqueiro com o qual acenderia este cigarro - que tenho na mão há cerca de uma hora e 43 minutos porra, esse sim seria um belíssimo investimento.
acaso é com bois que Deus se preocupa? dança uma balada de amor suspenso pra alguém. joga o baralho cigano ou outro desses sei lá qualquer carta pra alguém. com golpes ritmados, alivie os pulmões de alguém. mata o poema no peito chuta o rabo de um poeta ruim por alguém. é hora. hoje agora ser artista de engenho saber fazer sem perder de vista por que se faz. dedicar o trabalho diário ao Erro e à Graça retirar o corpo da mira da Máquina feito Ginsberg, encostar seu ombro delicado BICHA à roda.
e na roda manter os ombros Ă altura de outras bichas tambĂŠm.
calma e objetos pontiagudos I. sei pelo som das tesouras, que você chegou à porta. noto pelo pisar mais forte do pé esquerdo, que o direito não traz boas notícias. ouço o barulho do quarto queimando e os móveis começando a naufragar. II. lembro "atravessar muros é atravessar pedras", você me dizia. faz tempo. lembro "as pessoas não valem nada e as pedras que tacam são os muros que elas têm." III. penso em paz como que morrendo n'água.
IV. e canto para ouvir a minha voz. caso contrĂĄrio, ninguĂŠm.
de um tempo adiante pra sobrinha de sete anos júlia se sentava em cadeiras de borracha de pneu e me contava sobre novas tecnologias para abater frangos à beira da estrada. júlia sonhava. dizia que nos sonhos vandalizava um coletivo na Avenida 24 de Outubro e era o Lobão que tava ao volante. júlia olhava pela janela e sempre reconhecia um passante. de cada fresta, uma tia velha de quem nem eu me lembrava. júlia se rasgava. de gargalhar, quando me via usando a camisa verde-diarreia que pechinchei no bazar da Igreja do Verbo Divino. foram três reais bem investidos. era o que eu achava. júlia sabia. discretamente, nutria só o receio de que Belo Horizonte tivesse mesmo um bairro chamado Saudade. achava cafona e pedia pra eu nunca, jamais, em tempo algum
escrever um poema de lá, um lugar que desconheço. eu obedecia. júlia traduzia Beatles no idioma de Belchior. “compreende”, ela explicava, “rima com I wanna hold your hand”. e então ela ria. ria um vandalismo doce de pisar no freio. ria, mas sabendo, e coligava o riso ao conselho que ouvira no AM. a moça cuidava da casa e sofria ao passo que o locutor dizia: “chora, mas varre. vai chorando e vai varrendo”.
de outro tempo adiante pra sobrinha de sete anos clara se deitava na grama e, olhando pro céu, não se ocupava em projetar o filme do mundo. clara era só um minuto, volto logo e na volta trago uma verdade, olha que, fique aí que é já. e se demorava. o que não implica em dizer que, na volta, trazia mentiras.
leonard cohen radio a beleza das pessoas capazes de abandonar um prĂŠdio em chamas one night I burned ajeitando o cabelo molhado the house I loved depois do banho e antes de tudo desabar.
baby, prometa por mim tirar belas fotos quando a bomba cair. vai ser divertido. afinal, quem quer mesmo permanecer? a química e o clique que dá no corpo: VAI SER DIVERTIDO. eu mesmo se pudesse tiraria as minhas. ficariam ruins, mas conteriam em si sua própria missão: registrar a desordem de um instante. martírio branco de um corpo, ruído rosa de um prédio. olhar o som nos olhos e permanecer no desastre. só nele. VAI SER DIVERTIDO.
com a lembrança nos dentes quando criança, a professora preferida de Claudia Wonder era a que lecionava religião. o que significa a infância: uma pequena fabriqueta da memória, a trabalhar por demanda e esquecimento. e contradição e reinvenção. isso tudo que vamos construindo e que ao final é uma pena termina sempre na mão dos adultos.
coerência e tinta fresca quando pivete, sempre estive ao lado dos IMBECIS. dos que SUJAM o chão da escola com merda e têm muito ORGULHO de quem lhe berra. agora VOCÊ me acredita entre livros, mas na fila do mundo sempre aguardei ao lado dos imbecis. agora você me vê entre livros, mas eu SEMPRE estive do lado dos imbecis. agora você me guarda entre livros, mas EU eu sempre estive AO LADO dos imbecis.
olhei o relógio eram sete da amanhã preparava pra ela um drink (uma palavra diferente para revanche) inventado por mim no caminho de luziânia a bom jesus de goiás, (o glamouroso trajeto no qual os mares não se misturam) onde ela morava e para onde eu ia sempre que os destilados sobravam e os dentes os pés o amor o pânico me convidavam a andar.
uma memória armada como eu, o Velho sabe que alma é coisa pra quem tem. é brincadeira de quem tira moedinhas detrás da orelha dos netos, que sorriem. alma é coisa de ilha esquecida melhor abrigo, pior abrigo. retirar um avião detrás detrás dos olhos, diz o Velho. pra onde vai esse que voa, ele pergunta. em qual aeroporto aterrisa, qual prédio asfalto calçada qual serra mar selva ele cai quantas famílias distraídas atingirá na queda.
melhor não solidão se engravida de coisas aleatórias: pés, peixes carros desencavados do fundo do mar uma coçada no olho pequenos cortes de cozinha manhãs nos quintais caixinhas de rapé guardadas no fundo da gaveta uma ducha tomada às pressas um banho de sol encostado num Escort 87 à espera de você que sairá do médico atravessará a rua com uma notícia boa nem tão boa mas certamente muito mais real do que um ser humano comum 79 quilos estatura mediana histórico escolar não mais que suficiente alguns livros em casa dois cigarros no maço guardado no bolso direito poderia suportar
cuidar de si agora e ontem para Tatiane de Assis estou meio velho e muito rouco pra convencer alguém da veracidade de qualquer história. memória honesta não existe, meu bem, e esta que trago aqui não foi e não pode ser. acredito na não existência dela e sei que a trouxe de outro lugar. nela, estive uma criança melhor do que de fato fui mais atenta a passeios do que a sonhos nela, estive um adulto doente e me curei com três tiros no peito um remédio e uma taça de vinho pela manhã nela, me recomendou alguém um restaurante atrás da igreja, Avenida Inocentes, segunda à esquerda que nunca encontrei mas estive à procura ainda outro dia
nela, cortei o cabelo à máquina de frente pro mar sem espelho mas muita fé no corte. nela, só porque me cortava todo na nuca e atrás da orelha esquerda não significava que iria sangrar. e, mesmo que sangrasse, não havia garantia de dor. era uma lembrança e uma lembrança é um país - mais bonito que este, um território no qual não somos indelicados porque não somos ingênuos.
um herói sozinho no estúdio leonard cohen pediu um espelho de corpo inteiro para que pudesse registrar a voz em A Bunch of Lonesome Heroes sua única exigência e estaria então tranquilo pronto para ser visceral sincero violento denso golpe no estômago e todos os outros adjetivos usados por aí, quase sempre cedo demais o poeta observado pelo cantor veste roupas bem cortadas tem estatura razoável calças brancas sem chapéu no espelho, leonard é, ainda que um tanto ridículo se visto do ângulo errado, dono do espontâneo
mas também dono do artifício no mesmo espaço do corpo de um homem a festa do louco do anjo do monge da criança do rei
I sing this for the crickets, I sing this for the army, I sing this for your children And for all who do not need me. Leonard
And I know you got the feeling, You know, I feel it crawl across the floor And I know it got you reelin' And honey honey the call is for war And it's wild, wild, wild. Patti
para Anita, Clara e JĂşlia
BrasĂlia, 2019