estes são registros de noites de sonho & meditações a respeito deles na insônia durante os primeiros meses da quarentena de 2020. sem viver, sonhamos. trata-se do primeiro de dois volumes. ou três, a depender da persistência do vírus, do isolamento & da estupidez presidencial.
haverá ribeiro
silêncio agora,
tem um flamingo grande & inchado demais desfilando nos trilhos do metrô. é meio-dia. a vida vai, o bicho leva. túnel adentro, o Elvis Gordo dos flamingos has left the building belo e colorido como um sonho mal resolvido.
dor é isto
somos dois homens e uma platéia nos estapeamos entre gargalhadas não parece uma luta séria. usamos punhos e pés e saltamos os movimentos são amplos e irreais quase alço voo em alguns momentos. pareço sentir verdadeiro afeto pelo cara que me esmurra os rins estou dividido entre rir e doer. vejo beleza e graça na parte do homem. na parte da guerra, gibi.
do sol à água ao sol
na beira do rio, Roberta e Jairo balançam bandeira vermelha & gritam algo à outra margem, onde estão Ju e Clarice. estes respondem com bandeira azul. não sei que tipo de comunicação é essa qual a mensagem e a urgência dela. de dentro d'água, nu, apenas olho pro céu & entro num relaxamento denso e profundo. como se fumasse o melhor dos baseados ou como se permanecesse dois minutos imerso e de repente emergisse. como cuspindo água e ar com toda a força, vindo do fundo. pequena morte, pequeno grande mergulho.
kães vadius
se fosse uma espécie de entidade um Vishna dormindo o mundo o sonho provavelmente não precisaria de você mas você, que não é bobo, seguiria atrás dele. mentalizaria flamingos após a meia-noite esticaria bem as pernas na rede cruzadas com as de seu companheiro & haveria flamingos na noite. pela manhã, te ocorreriam restos diurnos de unicórnio. meninos rockabilly de saia rodada & topetes armados. monstros da Pixar fora da cela. Hilda Hilst embriagada assistindo novela. cães vadios mijariam no cemitério de sapatos que virou a porta de entrada. e você a eles se juntaria. repare: fiapos de delírio te sonham ao dia & é melhor que haja sonho no sonho.
Slavoj Žižek por favor não me ligue mais pois é, o vírus. me prometeram depois dele o fim indecoroso do capitalismo em posições pouco ortodoxas & otário recebi no máximo o preço da gasolina mais baixo em São Paulo & mesmo assim não muito & de qualquer modo não tenho carro o chinês da esquina segue sorrindo igual com seus badulaques: cabo usb, doce de leite, escova pra pentear cachorro e os panos com que bordo minhas tentativas de arte os breves itens da vida continuam razoavelmente em conta & não preciso de muito dinheiro, eu canto,
graças a Deus. o que encareceu foi o luxo daquela linha delicada, feita à mão para eu errar, à mão.
& Pelé disse love, sex, love
me contrataram. agora tenho um lindo avental amarelo & a chave do bar. na cozinha pratico a masturbação enquanto exercício de criação, não memória. & no balcão sirvo o que chamo de amor. com cobertura espessa, branca, de sonho.
sono breve vida longa
rapaz pilota carrinho de supermercado, sobe nos eixos com o pé esquerdo, com o outro empurra. anda 50 metros pra cá, subida. 50 pra lá, respiro. às vezes deixa o carrinho descer só pra correr atrás do prejuízo amaldiçoando as rodas lubrificadas da indústria do varejo e do atacado. vira e mexe investe contra os carros. vê o susto dos motoristas, ouve buzinas devolve insultos. xinga a máquina, perdoa o homem. pragueja: sozinho tive que lavar os carros. o melhor preço era o meu 1 dólar o dia, 1 real a hora. sozinho levei meu pai bandido pro trono dos justos. 2002, governo Lula, fiz pra fazer o certo. sozinho trouxe os cavalos pro país não tinha cavalos não a gente não cavalgava. gasta assim uma manhã calma. parece domingo. parece do caralho morrer assim, como o assisto, dormindo. ele pelo visto, morrerá andando.
festa
como que um chá de bebê pra minha amiga Alessandra, grávida. a coisa é numa mansão, cujo preço ela jamais poderia pagar, nem quando o moleque completar 50 anos. foda-se, estou me divertindo, alegre porque bêbado, é um sonho e tem piscina. do terraço da casa, amigos nus pulam direto nela. me aproximo e percebo passa um córgo dentro da piscina & a atravessa. fonte natural mas com lama e quase nenhuma água. todos se esborracham felizes no fundo. peço mais um drink, penso na graça da palavra corgo, porque corruptela caipira de córrego e começo a gargalhar. Alê pergunta se está tudo bem.
vejo uma multidão que vai caminhando
estação 114 sul do metrô, entra senhora gritando no vagão. Jesus Cristo, sempre ele. faz o de praxe e termina o culto com gospel de pulmão cheio. Jesus Cristo à capella, 10 da noite. sempre no limite do qualquer nota entro numas de aplaudir e puxo: Jesus Cristo, eu estou aqui. ela não acompanha. vai ver é um canto católico e o menino Jesus Cristo, todos sabem, nasceu evangélico ou quem sabe não canto como Roberto & minha falta de ritmo atrapalha Jesus Cristo no fluxo. pra mim, Deus é sonho. e pra ela, permanente vigília. e cansado, Jesus Cristo nenhum vai me fazer acordar.
ruído dentro do aquário
a banda Metá Metá toca alto, muito alto. o palco é acanhado, minúsculo, quase de brinquedo. o espaço é em formato de V. de cada extremidade do triângulo, balançam lâmpadas. pequenos bichos sobrevoam o ambiente e caem. pisamos, público e banda, sobre mosquitos e flores. o saxofonista à direita sofre com os pedestais de microfone caindo sobre ele. amigos seguram os amplificadores e esbarram nos músicos. garçons passam drinks e substâncias outras sobre nossas cabeças. tudo tão pequeno e tudo tão tumulto. aqui imagens são barulho e o barulho, imagem.
rápido olho movimento
o amigo de Lynch se deixou convencer a alugar uma ampla casa como ateliê onde pagariam o aluguel mais barato da cidade & lá teriam um cão chamado Five & uma dádiva chamada Espaço & um quarto todo pintado de preto a que apelidaram de Tempo. ali David dormia 18 horas por dia mas nunca foi tão prolífico, acordado.
no caminho pra Ceres, Goiás
lá na igreja de Rialma fogo na praça e no sonho fogo o Rio das Almas assistiu a tudo lá debaixo da ponte calma na água e no sonho calma
um tipo comum de precipício
o ano é o 2020 de Nosso Senhor, a terra é plana & moça negra com brinco de pérola dirige a caminhonete com o volante do lado direito. calor, oito de umidade, névoa da pior poeira tamos em Santo Antônio do Descoberto, UK. de saída da cidade rumo à borda do mundo. mantenho os dois pés rentes ao parabrisa quando vem o primeiro acidente. saco caderninho & lápis por volta do segundo e depois do terceiro me ponho a desenhar o tal do brinco com moça. a estrada entra numa baixada cujo final não vemos & a retomada serra acima não antecipamos. pronto, estamos dentro do quarto acidente. uma ponte pela metade. plataforma de lançamento para carros desavisados. o mar imenso lá embaixo & nem dá pra rezar o santo rosário de Nossa Senhora das Caminhonetas Voadoras. caímos de janelas abertas, por onde escapo & me ponho a nadar. não me ocorre que tenha sumido a motorista nem que eu morra ou logo morra o sonho. apenas nado, nado, nado mais fundo. não em direção a lugar algum, mas à exaustão. o verdadeiro limite do mundo, é o cansaço absoluto de tudo.
casulo, casulo, galope
no centro do Centro-Oeste, queimávamos os cavalos às 20h. o gado, às 21h. entre 22h e 23h, os bichos menores & os humanos maiores. terminávamos o turno à meia-noite, com as árvores. daí pra frente era relaxar. nosso grupo de crianças sentava em meia-lua & via o dia amanhecer em chamas. noite após noite, o mesmo espetáculo. havia, há, haverá método infantil em todo fogo. o cerrado, parece, é capaz de queimar-se espontaneamente diante do raio. mas aqui entre nós, método.
Haverá Ribeiro nasceu em Rialma (GO). hoje vive entre São Paulo (SP) e o campus da Universidade de Brasília, seu país, onde um dia estudou e hoje apenas corre sem camisa debaixo do sol.
este é seu primeiro fanzine publicado pelo selo Maldita Cafeína (@malcafeina ou malcafeina@gmail.com).
edição e projeto gráfico por Jairo Macedo com leitura crítica de Tatiane de Assis.
dedicado àqueles aqueles que ficaram em casa.
edições urgentes com algum atraso