FALSOS RECIBOS VERDES - VIDAS A PRAZO

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FALSOS RECIBOS VERDES: VIDAS A PRAZO? Artigo desenvolvido por Dora Fonseca, doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, no programa Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo.

Resumo As transformações na sociedade contemporânea, decorrentes do processo de globalização económica, impõem-nos o reconhecimento da emergência de novos desafios que se colocam à classe trabalhadora. A configuração de novas realidades laborais, como os falsos recibos verdes e o trabalho precário, remetem-nos para a construção de trajectórias profissionais atípicas que influem negativamente nas trajectórias e individuais das/os trabalhadoras/es. Além disso, evidenciam o desfasamento entre os mecanismos de representação e defesa das/os trabalhadors/es e as dificuldades reais vividas pelos profissionais das mais diversas áreas. As/Os animador/ases socioculturais, pela natureza da sua actividade e enquanto inseridas/os num

cenário mais

vasto de precariedade

laboral, defrontam-se com os mesmos

constrangimentos e desafios que se colocam à classe trabalhadora no seu geral. As transformações de que o mundo do trabalho tem vindo a ser palco serão percorridas de forma a evidenciar os constrangimentos que se colocam à edificação de uma acção legítima em torno da luta pelos direitos laborais. No campo específico da realidade dos falsos recibos verdes, abordaremos a acção desenvolvida pelo FERVE e de que forma esta tem contribuído para a construção de identidades profissionais e para a elaboração de estratégias de combate às situações de manifesta injustiça e ilegalidade no campo laboral.

Palavras-chave: Animação Sociocultural, Falsos Recibos Verdes, Precariedade, Trajectórias.

1. As Transformações no Mundo do Trabalho

A partir da segunda metade do século XX, na sequência da introdução das novas tecnologias no processo produtivo, a organização deste último transformou-se em larga medida, assistindo-se a uma acentuada perda de peso do trabalho industrial nas sociedades avançadas e crescimento do sector de serviços, ao mesmo tempo que se expande o papel que a ciência, a tecnologia e a informação desempenham na produção. Perante a manifesta incapacidade do Fordismo em acomodar as contradições inerentes à expansão do capitalismo configura-se a emergência de um novo paradigma produtivo denominado acumulação flexível (Harvey, 1992), que caminha de par com um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora de carácter contraditório e multiforme (Antunes, 1995).


Paralelamente à redução quantitativa do operariado industrial tradicional e à crescente intelectualização do trabalhador manual e deslocamento da especialização para o multifuncionalismo, dá-se uma alteração qualitativa da forma de ser do trabalho, que impulsiona tanto para uma maior qualificação do trabalho, como para uma maior desqualificação. São concomitantes os fenómenos de desproletarização do trabalho industrial, fabril, nos países de capitalismo avançado, e subproletarização intensificada, com a expansão do trabalho assalariado, nomeadamente no sector de serviços, e a emergência de novas formas de trabalho (a tempo parcial, precário, informal). O segmento estável contrai-se, emergem com intensidade novas formas contratuais, aumenta o número de trabalhadoras/es improdutivas/os e desempregadas/os que se situam à margem da esfera laboral, expandindose de forma quase irreversível o desemprego estrutural, sendo este último reforçado pela adopção de medidas de racionalização, reestruturação e de intensificação do controle do trabalho face à intensificação da competição promovida por um quadro de crescimento económico (idem). As novas estratégias das empresas, a partir dos anos '80, direccionaram-se para a flexibilidade, em que às transformações na organização do trabalho (flexibilidade interna) se somaram estratégias de flexibilidade externa (organização do trabalho em rede, força de trabalho maleável, busca de recursos externos à empresa), o que veio transferir o fardo da incerteza para as/os assalariadas/os e para outras/os provedoras/es de serviços (Boltanski e Chiapello, 1999). Abre-se o caminho para a formação de largos contingentes de “dispensáveis”, com as correspondentes consequências sociais, associadas a uma retracção do Estado-Providência (Beck, 2000), ao que se soma o esmorecimento da importância dos mercados nacionais que, suplantados pelos mercados internacional e global, estimulam o desenvolvimento de um grau de interdependência crescente no funcionamento dos espaços económicos (Castells, 1992). Nas últimas décadas, os sectores do trabalho flexível e do trabalho precário são os que apresentam um índice de crescimento mais elevado, caracterizando-se as novas formas de emprego pela informalização e pela individualização (que pode oscilar desde a atribuição de maior autonomia ao/à trabalhador/a até à precarização do vínculo laboral). Configura-se a erosão do compromisso económico-político do/a “cidadão/ã trabalhador/a” (oriundo do consenso fordista), concomitantemente com a regulação do risco que se exprime na emergência de um sistema de subemprego desestandardizado, fragmentado e plural, com formas de trabalho retribuído altamente flexíveis, descentralizadas temporal e espacialmente, e desregulamentadas (Beck, 2000).

2. A Precariedade Laboral

Em 1995, Robert Castel previu que a diversidade e a descontinuidade das formas de emprego estariam a caminho de suplantar o paradigma do emprego homogéneo e estável. Quase uma década e meia mais tarde não nos resta senão concordar com a hipótese


formulada. A evolução do mercado de trabalho consagrou o enfraquecimento do papel integrador do contrato de trabalho estável, contribuindo dessa forma para uma nova metamorfose da questão social. Cada vez mais, um grande número de trabalhadoras/es tornam-se precárias/os ou instáveis do ponto de vista profissional, enquanto outras/os não chegam sequer a atingir uma outra condição que não esta. A “explosão” da precariedade nas sociedades capitalistas modernas foi facilitada nomeadamente pelo novo enquadramento legal dos contratos de trabalho que vem permitir uma maior facilidade dos despedimentos, sem que a entidade empregadora tenha de dar início a um processo legal moroso e de custos elevados. Em nome da ampla reconfiguração do processo produtivo e do consumo, as estratégias das empresas são orientadas, como já vimos anteriormente, para uma maior flexibilidade que, apesar de nela podermos identificar o retrocesso rumo a formas antigas de trabalho, é associada à ideia de progresso. A criação em massa de empregos precários vem, então, responder a duas questões: à necessidade de flexibilização para dar resposta ao novo tipo de demanda em termos de produção e consumo, e como estratégia das empresas para combater o desemprego. As estratégias voltadas para a flexibilidade servem, então, de justificativa para o surgimento de formas atípicas de emprego (Paugam, 2000). No entanto, a responsabilidade pela sua emergência não pode ser unicamente atribuída às empresas, devendo ser tido em consideração o importante papel que as políticas públicas de emprego têm vindo a desempenhar em favor da emergência e legitimação desta atipicidade. Através destas observa-se uma diminuição e estabilização dos números do desemprego, ao mesmo tempo que contribuem directamente para a criação de numerosos “estatutos precários” cujo princípio, uma vez institucionalizado, tem tendência em prolongar-se no tempo (idem). A precariedade torna-se não numa fase transitória da carreira profissional das/os trabalhadoras/es, como seria de supor, mas tem vindo a perpetuar-se como um modo de vida, afectando mais incisivamente determinadas franjas da população, como as mulheres, as/os jovens e as/os trabalhadoras/es que se vêem afectadas/os pelo desemprego depois de terem ultrapassado a faixa etária dos quarenta. A experiência do desemprego aumenta o risco de os empregos

disponíveis

serem

de

cariz

precário,

arrastando

sucessivamente

as/os

trabalhadoras/es para as zonas periféricas do mercado de trabalho compostas por empregos precários e pouco qualificados, afastando-as/os de um centro estável e valorizado, ao que corresponde uma forte polarização do mercado de trabalho. Constitui-se desta forma um ciclo fechado do qual dificilmente conseguem escapar, perpetuando a condição precária que vivenciam e a trajectória de desqualificação que se lhe encontra associada. Apesar da forte generalização destas trajectórias a sua vivência é diferencial consoante determinados factores, podendo ser maior ou menor a dificuldade em escapar a este ciclo vicioso consoante as qualificações do/a trabalhador/a, pelo que trabalhadoras/es mais desfavorecidas/os nestes termos têm mais probabilidades de se manterem nesta situação de forma durável. O caso dos estágios de iniciação à vida profissional é paradigmático neste sentido, pois partem do objectivo de proporcionar às/aos jovens licenciadas/os a oportunidade de uma inserção


profissional verdadeira - no sentido de adquirirem maiores qualificações e experiência - que, em princípio, abririam as portas para um emprego estável e gratificante, pelo que à sua criação subjaz uma estratégia do Estado orientada para a redução dos números do desemprego. Contudo, o seu resultado é diametralmente antagónico pois contribui de sobremaneira para dilatar ainda mais a zona intermediária entre emprego estável e desemprego, reforçando a flexibilidade do mercado de trabalho. Estas/es licenciadas/os vêem-se enredadas/os numa sucessão infindável de estágios profissionais, no âmbito dos quais não usufruem dos direitos sociais previstos por lei para um posto de trabalho efectivo, tornando-se em mão-de-obra barata e submissa nas mãos dos empregadores. Tal como Mészáros (2008:160) coloca, a concepção da flexibilidade como algo de bom é uma ideia errónea, tratando-se de “uma camuflagem cínica da deterioração das condições de trabalho”. As/Os trabalhadoras/es em situação precária são, de uma forma geral, os que manifestam menos, ou mesmo nenhuma, satisfação pessoal relativamente ao emprego, dadas as más condições de trabalho, as relações tensas que mantêm com colegas e superiores e a ausência de perspectiva de serem recompensadas/os - quer através do salário auferido, quer através de perspectivas de progressão na carreira - pelas condições a que se encontram sujeitas/os. Assim, o trabalho desenvolvido perde para eles qualquer interesse e torna-se uma fonte de sofrimento, passando a representar apenas um meio para atingir um fim e não o fim em si mesmo. O trabalho precário, tal como é aqui retratado, constitui um factor de alienação, sendo esta entendida como um duplo desapossamento - do produto de trabalho e de si -, que em vez de desaparecer como consequência da libertação do Homem do trabalho pelo aumento do tempo livre parece constituir-se como uma tendência ainda mais profunda ou irredutível (Paugam, 2000). A precariedade laboral estende-se não raras vezes à esfera privada das/os trabalhadoras/es, potenciando a degradação das condições de vida e reflectindo-se no seu estado de saúde, principalmente através de doenças ligadas ao stress. Vivem imersas/os num clima de insegurança crescente no emprego, submetendo-se a ritmos intensos de trabalho acoplados de salários pouco adequados e à ausência de benefícios sociais, pelo que o seu estatuto se diferencia grandemente daquele que é detido pelas/os trabalhadoras/es que se inserem no cada vez mais reduzido “núcleo duro” das/os trabalhadoras/es estáveis. As/Os trabalhadoras/es precárias/os distanciam-se cada vez mais do homo faber, vendo no trabalho apenas um meio instrumental suprir as suas necessidades – emerge em definitivo o homo oeconomicus.

3. A nova configuração das relações laborais e a defesa dos direitos das/os trabalhadoras/es

As transformações no mundo laboral, ao longo da década de 1980 e até meados da seguinte, revelaram as fragilidades das instituições capazes de representarem a sociedade


civil, o que atingiu as estruturas sindicais (Boltanski e Chiapello, 1999), tendo, mais concretamente, a reestruturação e intensificação da desregulamentação das relações laborais conduzido a formas de flexibilização que lhes subtraem poder negocial e os debilitam estrategicamente (Antunes, 1995; Beck, 2000). A expansão do sector de serviços e retracção do sector industrial, fomentadas pelos avanços tecnológicos, acarretaram uma redução do número dos postos de trabalho significativa e generalizada, afectando especialmente o sector industrial, tradicionalmente de forte sindicalização (Visser, 1994), o que vem colocar em cheque o sindicalismo de base fortemente militante. As novas técnicas de gestão traduziram-se em estratégias hostis ao sindicalismo e à prática da negociação colectiva (McIlroy, 1997 in Oliveira, 2002), na medida em que a precarização do trabalho, o medo do desemprego, a reestruturação produtiva (outsourcing, deslocação das unidades produtivas, criação de estruturas subsidiárias, nas quais, não raramente, não existe uma tradição sindicalista) e a mobilidade da força de trabalho contribuem para o esmorecimento da vontade das/os trabalhadoras/es em se organizarem (Boltanski e Chiapello, 1999; Rodrigues, 1999). A ascensão do individualismo nas relações laborais em detrimento do colectivo é promovida pelas novas formas de organização do trabalho, que fomentam a competitividade entre trabalhadoras/es e vão, cada vez mais, de encontro a uma certa valorização da sua subjectividade no sentido da fragmentação de identidades profissionais unitárias, às quais seriam transversais o sentimento de pertença e a existência de uma forte solidariedade entre os membros de uma determinada classe profissional. A emergência de formas mais ou menos atípicas de trabalho abrem as portas à utilização de formas de contrato temporário e a tempo parcial, o que, conjuntamente com os pontos anteriores, configura a uniteralidade e individuação na determinação das relações de trabalho (Oliveira, 2002), geradoras de instabilidade, o que constitui um forte obstáculo à integração desses segmentos de trabalhadores nas organizações sindicais, dado estas privilegiarem a dimensão da categoria profissional, o que espelha a redução da capacidade de representação dos sindicatos (Bihr, 1991; Hyman, 1994; Moody, 1997). A expansão destas novas formas de emprego, ao determinarem a diminuição dos empregos estáveis, promove a destabilização destes últimos, gerando desconfiança e animosidades no seio da classe trabalhadora,

o

que

tem

graves

consequências

ao

nível

da

solidariedade

entre

trabalhadoras/es. Ao mesmo tempo que se assiste à diminuição do contingente de trabalhadoras/es estáveis, os números de trabalhadoras/es submetidos a condições cada vez mais precárias são alvo de um crescimento surpreendente.

3.1 A realidade dos Falsos Recibos Verdes

Os recibos verdes nasceram da necessidade de enquadramento fiscal de profissionais liberais - como médicos advogados, arquitectos, - que são os seus próprios patrões, não se encontram sujeitos a uma hierarquia, têm o seu próprio horário e local de trabalho. Aqui surge


a discrepância: os falsos recibos verdes estão sujeitos a hierarquias, cumprem horários, não têm local de trabalho próprio e, no entanto, fiscalmente, são trabalhadoras/es por conta própria, embora não gozem de qualquer autonomia. A sua ampla disseminação no panorama laboral actual reflecte, sem margem para quaisquer dúvidas, um sentimento de impunidade crescente por parte das entidades que promovem tal situação através da deturpação da lei, permitindolhes legitimar uma extrapolação abusiva e indevida desta modalidade contratual. A crença generalizada na legitimidade dos recibos verdes abre as portas para a sua utilização abusiva, configurando, aos olhos das/os trabalhadoras/es a ela submetidas/os, uma situação perfeitamente normal. Esta é, sem dúvida, uma das piores formas de precariedade laboral e tem vindo a generalizar-se de forma incontrolável na nossa sociedade. Representam o limite máximo da exploração, e, sem qualquer pudor e de forma desonesta, são apresentados como um facto incontornável imposto pelo panorama generalizado de crise. Um olhar mais atento revela, no entanto, uma realidade bem distinta de contornos quase, senão mesmo, perversos. A maior parte das/os incluídas/os na categoria de trabalho independente são, na realidade, trabalhadoras/es por conta de outrem. São forçadas/os a trabalhar a recibo verde, porque as entidades empregadoras não querem celebrar um contrato de trabalho, na medida em que esse tipo de vínculo não serve os seus interesses. Assim, a entidade empregadora para além de se desresponsabilizar de um vínculo contratual, também não desconta para a segurança social - que é paga pelo/ próprio/a trabalhador/a – e está isenta do pagamento do subsídio de férias ou Natal. O cumprimento das obrigações fiscais recai sobre o/a trabalhador/a, e a estas encontram-se associados uma amálgama de procedimentos confusos e pouco publicitados pelas instâncias governamentais responsáveis, que não raras vezes induzem as/os contribuintes em erro (assim surgem as dívidas ao Estado, que podem atingir montantes elevados). As condições precárias podem ser impostas pela entidade empregadora, que joga com o medo do desemprego, não deixando qualquer margem de negociação ao/à trabalhador/a. A utilização abusiva dos “falsos recibos verdes” é legitimada pelo estigma do desemprego. Mas muito não há para dizer quando o próprio estado Português é permissivo nesta área, compactuando com este tipo de ilegalidades. O fenómeno da precariedade laboral, e em particular dos falsos recibos verdes, exprime-se em trajectórias individuais extremamente diversificadas, evidenciando uma franca expansão que atinge aleatoriamente os indivíduos e, simultaneamente, degrada as condições de vida e limita a capacidade de estes se projectarem no futuro. A precariedade vem desestabilizar as expectativas de mobilidade ascendente construídas por uma juventude que assimilou os padrões de vida dos seus pais e construiu expectativas que, no entanto, vê defraudadas. As trajectórias de vida precárias assumem cada vez mais um carácter permanente ao contrário da esperada transitoriedade que lhes era atribuída enquanto fase de entrada no mercado de trabalho. Cada vez mais, as experiências de precariedade são encaradas com naturalidade, como se fossem uma fase pela qual todas/os temos de passar, e a sua continuidade temporal é quase um facto consumado. Esta realidade encontra grande expressão em Portugal, onde milhares de jovens - incluindo aquelas/es que têm um curso


superior - entram no mercado de trabalho em piores condições, tanto remuneratórias como de segurança no emprego, do que a geração anterior. No entanto, as/os jovens não são as/os únicas/os a serem afectadas/os. A precariedade laboral atinge também aquelas/es que se situam na faixa etária dos 35 aos 55 anos e têm menos qualificações, ou que, em dado momento, foram afastadas/os do seu emprego de longa data, e por isso vêem diminuir as probabilidades de encontrarem um emprego satisfatório. O clima de insatisfação e de contestação gerado por esta situação cresce de dia para dia e penetra outros estratos da população, levando ao questionamento da inevitabilidade das mudanças e à emergência de grupos que se propõem a refrear a propagação das ideologias neoliberais e a apontar caminhos alternativos. As/Os

profissionais

da

animação

sociocultural,

apesar

das

especificidades

naturalmente inerentes ao exercício da actividade, deparam-se com este panorama de desregulamentação e de disseminação da precariedade laboral nas suas mais variadas formas. Enfrentam problemas que são transversais a outros sectores profissionais e que culminam em trajectórias de desqualificação e, consequentemente, de mobilidade social descendente. A esta situação não é alheio o facto de as políticas governamentais, no que toca à área social, se encontrarem em franca retracção. O investimento público e bolo orçamental destinam-se, cada vez mais, a áreas potencialmente lucrativas, assegurando assim o retorno do investimento. As dimensões social e educativa são, não raras vezes, relegadas para segundo plano, muito embora os discursos oficiais continuem a classificá-las de prioritárias. Estas políticas espelham, no nosso entender, uma realidade muito mais complexa do que seria de pensar à partida: espelham, por um lado, o forte desinvestimento no indivíduo – tanto aquele que usufrui dos serviços, como quem exerce uma actividade profissional para os facultar -, e a submissão sem limites às estratégias impostas pela expansão do grande capital e dos interesses que lhe estão associados.

4. FERVE: em prol da justiça laboral e pelo fim do isolamento

A possibilidade de os movimentos sociais se constituírem enquanto actores políticos (McAdam, Tarrow & Tilly, 2001) aos quais é atribuído um papel central na transformação social, e tomando como ponto de partida o argumento de que a acção colectiva é alimentada pelas necessidades que têm origem no sistema social e que não encontram resposta no sistema político ou que são excluídas pelos seus filtros (Melucci, 1996), estabelece a ponte para a emergência de movimentos sociais de trabalhadoras/es precárias/os. Estes constituem-se mediante a constatação da necessidade de representação de trabalhadoras/es que não se encontram totalmente recobertos pela acção das estruturas legitimadas para o efeito, no sentido de sua participação e representação efectiva.


O aparecimento dos movimentos de luta contra a precariedade laboral espelha o descontentamento face à rápida degradação das condições de trabalho imposta pela precariedade laboral e à forma como esta última se repercute nas experiências e projectos de vida dos indivíduos e os destitui da sua capacidade controlo; e a descrença perante as formas de acção tradicionais que demonstram não se adequar aos novos desafios que se colocam. À medida que a classe trabalhadora se vai tornando cada vez mais heterogénea é evidente a necessidade de inovar as formas de luta e de dar novos contornos à acção colectiva. Estes movimentos, ao procurarem articular-se com outros campos da sociedade civil e com o poder político, estabelecem a ponte entre a acção individual e a acção colectiva, permitindo dessa forma a superação do isolamento destas/es trabalhadoras/es e a redescoberta da acção colectiva por uma sociedade civil impregnada por um individualismo crescente. Nesse sentido, tem sido fundamental a construção de uma mobilização com base em factores culturais e identitários que ultrapassam as motivações políticas e económicas, e apelam a identificações estruturadas contra a globalização neoliberal e os seus efeitos desreguladores. A mobilização dos indivíduos está dependente da sua identificação com os objectivos e formas de acção, e no caso das/os trabalhadoras/es precárias/os, estas/es muito dificilmente conseguirão rever-se nas práticas sindicais de pendor tradicional que, no seu geral, são dirigidas a trabalhadoras/es abrangidas/os por um vínculo contratual estável e visam sobretudo a negociação em torno de questões salariais e da melhoria das condições de trabalho. Estes movimentos vêm preencher um vazio existente e constituem uma crítica à atitude complacente e permissiva do poder político face à progressiva retirada de direitos anteriormente conquistados. O FERVE (Fartos d’Estes Recibos Verdes) foi constituído em Março de 2007, na cidade do Porto. É um grupo de trabalho que tem como objectivo a acção em duas vertentes. A primeira, é a contribuição para a criação de um espaço de partilha e de denúncia de situações de trabalho que configurem a utilização indevida de recibos verdes e dessa forma acabar com o isolamento a que estes trabalhadores se encontram votados; a segunda, encontra-se voltada para a construção de um debate social alargado acerca desta vertente do trabalho precário de forma a retirá-la da invisibilidade, inserindo-a no discurso social, político e mediático. Em traços gerais, este movimento pretende chamar à atenção para e combater o carácter permanente dos falsos recibos verdes, bem como consciencializar as/os trabalhadoras/es de que se encontram submetidos a uma situação irregular e estão a ser alvo de “chantagem” com base na grave situação económica do país. Pretende unir as/os atingidas/os e outras entidades interessadas numa “plataforma de luta alargada e unida na defesa dos direitos laborais” contra a passividade e conivência do Estado com esta situação e a impunidade daqueles que subvertem as regras do sistema. O FERVE tem vindo a adquirir uma visibilidade que ultrapassa em larga medida as expectativas iniciais, actuando não só sobre a realidade dos falsos recibos verdes, mas também sobre as múltiplas faces da precariedade laboral que, em última instância, se traduz em precariedade da vida. Em diversos momentos, o movimento levou a cabo acções que se destacaram pelo impacto que tiveram na nossa sociedade, bem como pelas repercussões ao nível da actuação


de actores que detêm poder de decisão, nomeadamente os actores políticos. A abrangência da sua acção ultrapassa, como já foi referido, o estrito âmbito dos falsos recibos verdes, existindo causas que são transversais ao seu percurso. Neste sentido, o FERVE promoveu uma petição pela “Neutralização dos Falsos Recibos Verdes”, entregue na Assembleia da República em Janeiro de 2008 e debatida em plenário em Junho do mesmo ano. Esta petição permitiu não só uma grande mobilização de pessoas na recolha de assinaturas como instigou também, pela primeira vez, a Assembleia da República a discutir este tema. No final do ano de 2008, o FERVE denunciou a cobrança de multas às/aos trabalhadoras/es a recibos verdes, pela não entrega de uma declaração anual de IVA, recapitulativa das declarações já entregues trimestralmente. Esta denúncia, amplamente divulgada e agregadora, culminou com o recuo do Governo, que acabou por eliminar estas multas e, mais tarde, extinguiu mesmo a obrigatoriedade de entrega da declaração anual de IVA. O FERVE tem vindo a associar-se a outros movimentos e também a diversas causas concretas. Assim, veja-se que o caso das/os bolseiras/os de investigação é amplamente divulgado pelo movimento desde a altura da sua formação. São bolseiros das mais diversas áreas, a quem são atribuídas sucessivas bolsas de investigação de forma a efectuarem um trabalho contínuo, sem que, no entanto, se encontrem abrangidas/os por um vínculo laboral estável apesar de serem elementos necessários às entidades a que se encontram ligadas/os. Nesse âmbito, o FERVE solidariza-se com a ABIC (Associação dos Bolseiros de Investigação Científica) na acção contínua de divulgação e contestação da situação. A questão das/os recém-licenciadas/os e dos estágios de inserção profissional também tem vindo a ser alvo de divulgação pelo movimento. Estes estágios raramente oferecem perspectivas de carreira, constituindo, na maioria das vezes, uma forma da entidade que oferece o estágio reduzir o número de contratos de trabalho celebrados com licenciadas/os que, confrontadas/os pelo quadro de crise económica, encaram estes estágios como uma alternativa preferível ao desemprego. As/Os trabalhadoras/es de call-centres, as/os professoras/es das AEC’s (Actividades Extra Curriculares), entre muitos outras/os, são questões que impelem o movimento para a delineação de estratégias que obriguem o poder político a repensar o enquadramento legal destas realidades e a actuar no sentido da aplicação da lei. As acções levadas a cabo por este colectivo têm contribuído para a construção de um espírito de grupo entre aquelas/es que são afectadas/os pela realidade dos falsos recibos verdes. A partilha de testemunhos e experiências através do blogue e em momentos chave de mobilização produzem uma identificação baseada no vínculo contratual e não na experiência profissional per se, contribuindo para a consciencialização individual e colectiva acerca da realidade profissional em que se encontram inseridas/os. A identificação com o grupo contribui para a superação do sentimento de isolamento do/a trabalhador/a e tomada de consciência de que não constitui um caso isolado, fazendo parte de um cenário de ilegalidade e injustiça social generalizado. Esta capacidade de juntar pessoas que, por força de constrangimentos vários (particularmente, o clima de medo em que se encontram submersos), se encontram quase


invariavelmente votadas ao isolamento, reveste-se de uma enorme importância numa época em que o individualismo prolifera no seio da nossa sociedade e restringe a construção de verdadeiras solidariedades. De uma forma geral, o FERVE empenha-se em empreender acções orientadas para as reivindicações de todas/os as/os trabalhadoras/es e, em última instância, pretende que os recibos verdes deixem de ser um projecto de vida a longo prazo e se cinjam ao objectivo a que se destinam: serem utilizados por profissionais liberais que trabalham por conta própria. No entanto, o seu âmbito transcende a realidade particular dos falsos recibos verdes, empenhando-se em construir e consolidar estratégias de combate à realidade precária que Portugal vive actualmente.

5. Considerações Finais

A realidade dos falsos recibos verdes e da disseminação generalizada da precariedade laboral remete-nos para um panorama impregnado pelo medo e para as trajectórias de vida precárias. A desestruturação dos contextos laborais, a desagregação das identidades profissionais - simultaneamente causa e efeito da ascensão de um individualismo sem precedentes -, e a hegemonia da ideologia neoliberal que perpassa os contextos em que os indivíduos se movem, desde a esfera privada aos domínios públicos económico e social, acarretam sérias consequências para as vivências profissional e individual, comprometendo a sua plenitude de forma indiscutível. A franca expansão desta conjuntura, acima de tudo, desfavorável ao/à trabalhador/a, impele-nos para a necessidade de empreender uma reflexão séria sobre as suas causas e consequências, com vista ao delinear urgente de estratégias de mobilização e combate face ao recurso desmedido e imoral aos falsos recibos verdes.


Bibliografia

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Nota Biográfica: Dora Fonseca é Psicóloga, licenciada pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. É doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, no programa Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo. Desenvolve investigação nas áreas do Sindicalismo e dos Movimentos Sociais, estudando em particular a emergência dos Movimentos Sociais de Trabalhadores Precários. Contacto: dorajfonseca@gmail.com


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