Lembranças correto

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iluminado minhas lembranças de infância

Manoel Carlos Ermida Conti


Revis達o Geral - Rosita Pontes de Araujo Setembro de 2015


“A todas as pessoas que me conhecem e passarão a me conhecer”


piso de cima

Esboรงo da casa da Rua Cravinhos piso de baixo


PREFÁCIO – JULHO DE 2011 (comecei a escrever) Desci do carro que dirigia, tranquei a porta e me virei. Ali estava a casa onde eu nasci. Rua Cravinhos 121 no Jardim Paulista, zona sul de São Paulo. Foi ali que tudo começou para mim. Ali comecei a formar minha personalidade, minhas primeiras amizades, meu convívio familiar e todos os afetos necessários para ser quem eu sou hoje. Vivo dignamente e nunca penso em fazer mal para ninguém. Rezo todas as noites para “meu deus” e os deuses de cada um, para que outras pessoas consigam ter ao menos uma parte da vida que tive e que tenho. Cheia de problemas sim, mas lutando e com saúde sempre para saná-los. Quando pequeno, naquele lugar, sempre comentava, eu e meus amigos, “terei 44 anos no ano 2000, será que o mundo estará mudado, será que encontraremos carros voadores, robôs nas casas, comida via televisão, tele transporte?”. Quase que acertamos. Hoje, no meio do ano de 2011 quando iniciei esse álbum, vejo que não estávamos tão enganados quanto ao futuro e hoje, aos 55 anos, já vejo robôs trabalhando, comida via televisão ou computador, carros que voam e que andam na água, tememos até que o tele transporte deva existir, mas ainda é tão sigilosa sua fórmula que não divulgaram tal fato. Segundo consta, nasci na Maternidade Pró-Mater e de lá vim para a casa da Rua Cravinhos. Tenho dois irmãos, Marcelo e Marino além de minha irmã Maria Luiza. Eu sou o terceiro dessa turma antes de mim a minha irmã, antes dela o Marcelo e o caçula é o Marino. Nossa mãe faleceu quando 4


eu tinha 2 anos de idade por complicações no parto de meu irmão menor e nosso pai nos deixou quando eu estava com 9 anos, vítima de úlcera crônica e outras consequências, acho que graças a preocupação e a saudades que dizem meu pai sempre ter tido de minha mãe. Um casal de funcionários que trabalhava em casa desde o nascimento do Marcelo estava conosco, a Daria e o Benedito da Silva, o Dito. Negros, trabalhadores, continuaram conosco e além deles mais minha vovó Maricota, mãe de minha mãe, minha tia Tita ( Maria José ) e seu marido Tio Rubens e também sua filha Maria Izilda que cresceu conosco como se fora uma irmã. Nasci com 4,1 kg e 53 cm. em 14 de maio de 1956 e fui registrado no Livro 230 folha 51. Segundo um pequeno livrinho que minha mãe preencheu, “papai e mamãe acataram pelo meu nome”, lá está escrito. Nesse livrinho, dentro de um envelope, foi guardado um cacho de cabelo loiro e minha mãe escreveu que foi cortado quando eu tinha 2 meses e meio de idade. Fui batizado em 18 de setembro de 1956 na Igreja Santo Antonio do Pary pelo Frei Epifânio e meus padrinhos foram Tio Emilio, irmão de meu pai e sua esposa Tia Ofélia. Meu primeiro dente surgiu em 17 de agosto de 1956 e o primeiro passeio foi na Igreja de São Judas Tadeu em 26 de junho do ano que nasci. Meu pai, segundo esse livrinho, dizia que eu iria ser Presidente da República e minha mãe, um grande Engenheiro. Hoje com 57 anos vejo que os dois se enganaram. Minha memória já não anda lá muito boa e não sei bem se vou me recordar de tudo aquilo que se passou de mais importante comigo durante esses anos todos, mesmo assim, procurarei me empenhar ao máximo para não colocar inverdades nos textos, quando não me lembrar de algo, escreverei apenas que não me lembro ao certo ou não me lembro de absolutamente nada do que aconteceu, quando o caso for mais complexo para minha atual já frágil memória. 5


Parte 1

Os tempos eram bastante difíceis e não existia a mínima condição de se expressar uma vez que os militares estavam no poder. Nosso maior medo era “ser observado” por uma das tantas “Radio Patrulha” cor de laranja e preto que faziam rondas pelas ruas em baixa velocidade. Além da Policia “oficial” ainda existiam os “camburões” que diziam ter “chapas frias”, ou seja, se encobriam no meio dos carros comuns para interceptarem aqueles que “se desviavam” das leis de uma ditadura militar que comandava o país. Muitas vezes eu ficava pensando, “será que eles acham que andando com esses carros ‘disfarçados’ eles enganam alguém (?)... os ‘camburões eram mais explícitos do que os carros laranja e preto escrito Policia” em letras garrafais nas portas e no capô. Os meninos já estavam no Clubinho, um barraco construído com uma mistura de restos de obras onde nos reuníamos para registrar fatos, contar prosas e planejar novas brincadeiras e atuações. --- Ei, me disseram que a turma da Vergueiro vem pra cá no sábado e isso vai dar briga feia --- disse o Renan enquanto amarrava seus sapatos velhos. Alphonse era uma espécie de líder da turma. Ele era o mais velho e o mais forte e já tinha pelos pelo corpo e falava mais grosso assim, todos o respeitavam. Uma vez, um garoto da Rua de cima quis enfrenta-lo. Não se sabe ao certo onde ele 6


está hoje, mas pelo que disseram, ele saiu bastante machucado de uma briga com o Renan que não durou mais que 5 minutos. Na época, disseram que o pai desse menino foi conversar com o pai do Alphonse e acabou apanhando dele como o filho. Nunca mais, pai e filho, foram vistos pela rua. --- Quem estará aqui no sábado? – Perguntou ele. --- Eu estarei – disse --- Eu também e poderemos convocar mais gente – disse o gordo. --- Enquanto isso esqueçam as tarefas da escola e tratem de se preparar principalmente fazendo exercícios e preparando armas para a luta – ordenou Renan Todos concordaram e ali ficamos por toda manhã contando histórias e dando risadas um do outro. Nossa turma era bastante unida e ao todo, deveriam ser uns 30 ou 40 meninos mais ou menos da mesma idade. Quase todos tinham bicicleta e os que não tinham sempre tratavam de arrumar alguma emprestada para as voltas e corridas que fazíamos pelo bairro e pelo seu entorno. Essa era com certeza nossa brincadeira predileta, andar de bicicleta. Eu nunca tive uma e às vezes pegava a do Fernando, irmão do Beto. Era muito maior do que as outras, “já era uma bicicleta de adultos” como diziam. Uma Monark verde escuro, com aros e guidão enferrujados. Ela não tinha freio, mas isso não era problema, eu conseguia parar quando quisesse colocando o pé esquerdo sobre a roda de trás e isso me causou bons tombos até que eu adquirisse a prática. Um carro parou e todo mundo correu para ver quem era. Bem ao lado do Clubinho existia uma casa onde grandes músicos da “Jovem Guarda” se reuniam. Hoje, penso nisso e acho que eram reuniões onde discutiam o roteiro dos programas de Domingo na TV Record. Era um programa de audiência nacional e dentre esses artistas estavam Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléia e todos outros que cantavam naquele programa. 7


--- Olha – disse o gordo – é o Wilson Simonal. Wilson Simonal era um grande cantor naquela época, apesar de não ser tão “badalado” como o Roberto, Erasmo, Wanderléia e outros tantos, ele era bastante famoso também. --- Me dá um autógrafo – disse o Alphonse Sempre com um sorriso, o cantor pegou uma caneta do bolso do seu paletó e assinou um papelzinho que o Alphonse deu a ele. --- Pra que isso? --- Coleciono autógrafos...um dia vão valer dinheiro... Rapidamente o Gordo pegou o papel assinado da mão do Alphonse e saiu correndo dando gargalhadas e gritando...--- agora esse autógrafo é meu No fim, era só uma brincadeira e os dois rolaram na terra ao lado do clubinho, levantando uma nuvem de poeira. Meu irmão veio me chamar. --- Mané, a Vó mandou você vir pra casa. --- Tchau gente, tenho que ir. Naquela época, a gente obedecia prontamente os mais velhos. Minha avó era uma mulher bastante brava e vira mexe “enfiava a mão” em todo molecada que ou estava em casa ou estavam na calçada de casa, que era o ponto de reunião geral da Rua Cravinhos. Achava engraçado que muitas dessas “enfiadas de mão” às vezes eram por nada ...acho que era pra gente não perder o costume daquilo. A “arma mortal” dela era o “crock”. Sei lá se é assim que se escreve, mas ela fechava a mão deixando apenas o dedo do meio dobrado para cima e batia na cabeça da gente com uma velocidade e uma presteza sem tamanho. Ela sempre acertava. Parecia uma pedrada!

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Calçada Na calçada da Rua Cravinhos, bem em frente a nossa casa, acontecia de tudo, desde peladas de futebol onde quase sempre jogavam 2 jogadores contra outros 2 e o gol era a largura da própria calçada, jogos de taco, torneios espetaculares de bolinha de gude e de jogo de botão, muita conversa jogada fora além de namoricos, paqueras e mais tarde, exposição de carros dos mais ricos da rua e de suas imediações. Era um Clube de Amigos. Vinha gente de todo entorno da Rua Cravinhos. Com toda essa gente, ao menos que me lembre, nunca vi ali uma briga ou discussão. Uma vez só que eu vi isso, foi quando um dos meninos mais velhos, amigos do meu irmão Marcelo, colocaram pimenta dentro de balas Tóffe e distribuíram para as meninas. Lembro-me que a Monica, que era uma das mais bonitas e desejadas para namoro por toda molecada foi a primeira que mastigou e sentindo o ardor, discutiu com os rapazes, chorou, disse que iria chamar seu pai, mas não me lembro dessa história ter se estendido muito. Acho que acabou ali mesmo. Uma vez por semana parava bem na frente de minha casa um furgão Chevrolet da época e quando seu proprietário abria a porta, um monte de gente chegava de todos os cantos para comprar queijos, frios, embutidos, tremoço, azeitonas, linguiça e mais um monte de produtos. Era chamado de queijeiro e quando minha avó não via que ele estava por lá, um de nós a chamava. Todos gostavam de comprar suas especiarias. O Marino, meu mano mais novo, gordinho e esganado até os dias de hoje, pegava um monte de coisas sem que o queijeiro visse... comia salsicha, pedaços de queijo, frutas secas e eu ficava morrendo de medo que o cara pegasse ele...isso nunca aconteceu. Eu morria de rir com isso! Ao lado direito de casa, bem na esquina com a Alameda Casa Branca, existia um Empório onde vez ou outra meu pai, depois do al9


moço, seguia comigo e com o Marino para comprar sorvete. Seu proprietário era o Seu Mario, um português jovem, moreno, com as bochechas rosadas. Não me lembro de meu pai conversando muito com ele, mas deveriam ser bem amigos, uma vez que tudo era ali comprado e marcado numa carteira para que meu pai acertasse no final do mês. Lembro-me que nós não tínhamos permissão para essas compras. Esse direito era somente da Daria e da minha Avó.

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Parte 2

Minha casa estava repleta de gente trabalhando. Minha avó, que recebia aposentadoria do meu avô, que por sua vez trabalhou anos e anos, acho que toda sua vida, na Estrada de Ferro Sorocabana, ela complementava seus ganhos com algo muito dinâmico que lhe rendia mais 1 ou 2 salários por mês, dependendo dos pedidos. Ela cozinhava muito bem e sempre fazia salgados e doces, principalmente doces portugueses. Fios de Ovos, Ambrosia, Olho de Sogra e muitos outros, nunca faltavam no seu diversificado cardápio, o qual oferecia aos clientes que iriam se casar, receber amigos, aniversários, etc. Muitas vezes os pedidos apareciam aos montes e ela chamava uma ou mais amigas da Daria, para auxiliar no preparativo de montanhas de salgados e doces. Quando entrei na cozinha lá estavam, minha avó, a Daria, a Guilhermina e mais duas mulheres das quais não me lembro o nome, mas eram parentes da Daria. Uma superprodução se desenrolava e minha avó, como sempre fazia me mandou e o Marino junto, irmos à Padaria da Rua Augusta esquina com a Rua Estados Unidos de onde traríamos alguns quilos de “Carolinas” as quais seriam recheadas com creme de Palmito e creme de Camarão. Lá fomos nós. A pé, pois de bicicleta os pacotes poderiam cair. A Padaria não ficava perto, mas era a única que fazia e vendia por encomenda, as tais Carolinas para serem recheadas. 11


Lembro que acontecia uma coisa engraçada toda vez em que íamos pegar Carolinas. Para que a gente não viesse comendo as massinhas, o padeiro, combinado anteriormente com minha avó, “selava” os sacos com fita adesiva e sobre as fitas, colocava o número 121, que era o número da nossa casa, aí, a gente não poderia desfazer o tal “lacre” pois ele dizia, “não abram senão elas murcham”...pura mentira daquele miserável e da minha avó “pão dura”. Para não ficarmos desconsolados, o Português da Padaria colocava na mão de cada um de nós um punhadinho com umas 4 ou 5 Carolinas, pra gente voltar pra casa comendo. Chegamos em casa, minha Avó estava no “quartinho de costura” contando uns refrigerantes que ela também comercializava e logo foi dizendo: --- Podem deixar ai nesse canto...vão tomar banho para jantar. A Cozinha Na lateral esquerda de quem entra pelo quintal ficava a porta da cozinha, também com um portãozinho para os bichos não entrarem na casa [tínhamos portõezinhos por todo lado, uma vez que minha tia detestava bichos sujando tudo, mais para frente você verá minhas observações sobre isso]. Como vovó fazia doces e salgados para festas e também por sermos uma família bem grande, a cozinha era equipada com um fogão enorme com 8 bocas, 2 fornos e 2 estufas. Lembro-me que eu fazia as tarefas escolares quase sempre na cozinha, perto da Daria que ficava fazendo comidas e muitas vezes [quase sempre] perto da minha avó que trabalhava numa dispensa ao lado dessa cozinha. A gente chamava esse ambiente de “quartinho” e ali minha avó costurava e também guardava alimentos, mais bebidas para venda, vinhos [que nunca faltavam em casa] e mais um monte de coisas, mas era até que bem arrumado. Nada desviava minha atenção das lições a não ser uma coisa que aconteceu num dia em que eu não estava ali, graças a Deus. Não sabemos até hoje 12


o que realmente aconteceu, mas quando cheguei da escola notei que o teto da cozinha estava quase que inteiro de feijões grudados. Minha avó, mais tarde explicando para alguém, dizia que a panela de pressão estourou e foi feijão para todo lado. A Daria era a única que ali estava quando tudo ocorreu e por sorte estava um pouco distante e recebeu ferimentos de queimaduras apenas em seu braço esquerdo. Isso aconteceu numa das centenas de crises financeiras que tivemos e assim, Tio Rubens raspou ou feijões do teto, mas ficaram as marcas dos grãos além do marrom espalhado. Por muito tempo, a partir daí, eu estudava e vez ou outra ficava olhando para o teto, fechava um dos olhos e repentinamente abria-os novamente... via ali figuras extraordinárias que gritavam, que cuspiam, gatos, cães. Muitas e muitas vezes, nessas épocas de crise, ou seja quase sempre, queríamos um doce ou alguma bala e me lembro que vovó colocava açúcar numa panela e fazia derreter no fogo mexendo muito. Depois ela pingava aquele melado na pia e após ter esfriado ela os retirava colocando num pratinho para mim e outro para o Marino. Sentávamos na sala e ficávamos assistindo televisão chupando as balas e as achávamos deliciosas. O banho meu e do meu irmão Marino era uma diversão. O banheiro principal da casa era enorme. Hoje fico imaginando e acho que deveria medir uns 6 por 6 metros. Muitas casas desses nossos tempos não têm uma sala desse tamanho. Tenho visto nos jornais apartamentos inteiros que não tem nem 36 m2, ou seja, o tamanho daquele banheiro. Como minha avó estava na cozinha, eu e o Marino fizemos um verdadeiro inferno naquele banheiro e pelo que me lembro , banho que era bom a gente não tomava. --- Vamos arrumar tudo e secar pra ela não ver --- Passa o pano aqui no chão e pega a esponja que você jogou atrás do armarinho. Descemos , já de pijama, e ficamos vendo TV, em preto e branco, 13


lógico. A TV da sala era grande, acho que de 30 e poucas polegadas. Lembro sua marca... Zenitt. Riqueza ou Pobreza? Muitos nos tomavam como ricos. Morávamos no Jardim Paulista, numa casa enorme, estudávamos no Colégio Dante Alighieri, éramos sócios do Clube Paulistano, enfim a conclusão não poderia ser outra. A coisa não era bem assim. Com a morte do papai, restaram essas coisas todas só que com um “porém”. Casa grande tem imposto alto, colégio e clube também e tudo isso, somados a alimentação de bocas ferozes que éramos naquela época formavam uma grande despesa. Nossa receita vinha da Vovó que recebia aposentadoria do meu avô além dos trabalhos como costureira e doceira os quais acho que rendiam bem mais do que sua aposentadoria, Tio Rubens que trabalhava na Cia. De Cimento Portland Maringá e também fazia “bicos” no Jockey Club nas noites de terça e quinta, Tia Tita trabalhava na Prefeitura de São Paulo no Departamento de Finanças dentro do Parque do Ibirapuera, o Benedito marido da Daria trabalhava em uma pequena banca de jornais e revistas na esquina da Rua Lorena com a Alameda Casa Branca, bem pertinho de casa, lembro que a Banca era de um senhor negro forte e sempre sorridente chamado Seu Patrocínio. Os dependentes eram a Daria que minha avó pagava salário e nós os consumidores, Marcelo que como todos nós começou a trabalhar cedo, Maria Luiza, Maria Izilda, eu e o Marino. Faziam parte da família também dois cães, uma tartaruga e os 50 e tantos periquitos que, como contarei, demos a liberdade. A vida em certas épocas [muitas delas ou quase sempre] foi de muita contenção de gastos. Bifes contados, um para cada e vez em quando, um reclamava de outro na mesa por ter pegado o maior ou com mais molho, etc. Nunca passamos fome, mas por diversas vezes tive vontade de ter algo ou comer alguma coisa e não o fiz uma vez que as possibilidades nos levaram naturalmente e termos limites para tudo. Eram tempos muito difíceis, mas sempre estávamos felizes. 14


Parte 3

A hora da janta era sempre cheia de conversas e de discussões sobre o dia a dia de cada um de nós. Normalmente, os mais velhos se sentavam num lado da mesa, meu Tio sempre na cabeceira e de um lado minha Avó e do outro minha Tia. Nós, os mais jovens, sentávamos do outro lado e que eu me lembre não tínhamos lugares fixos. Quem chegava ia sentando. --- Sábado vai ter festa junina no Clube --- Essas festas são tão chatas, a gente fica só olhando as coisas e tudo é muito caro --- disse minha irmã. --- A eu gosto... toda turma da gente vai estar lá e o mais legal é a hora dos fogos (de artifício)... --- Vocês tem uma turma lá Manéco, eu vou ficar na casa da Janice e da Joyce. --- Você vai Marcelo? --- Acho que vou... --- Então leva seus irmãos ... --- Ah Vó, eu num vou ficar olhando eles... --- Mas num é pra ficar olhando, é só pra eles não irem sozinhos... --- Vamos ficar quietos que vai começar a novela --- disse Tia Tita Na sala de Jantar, bem em cima de uma cristaleira, tínhamos uma TV pequena, dessas que eram portáteis. Era vermelha e bran15


ca, da marca GE. Ali, era sagrado vermos a novela na hora da janta. --- Posso sair da mesa? --- Perguntou o Marcelo --- Pode! --- Vou ficar ai na frente conversando com o pessoal! Marcelo e Maria Luiza saíram da mesa e minha Avó começou a retirar as louças sujas. Tia Tita trouxe uma cesta de frutas e o Tio Rubens foi até a geladeira e trouxe um pedaço de Jaca... --- Olha Manéco, comprei pra gente! Assim que viram a Jaca, Maria Izilda, Marino e minha Avó se retiraram, eles não suportavam nem o cheiro. Eu achava ótimo ficar com um garfo “pescando” os gominhos de Jaca gelada e o Tio Rubens se orgulhava que eu gostasse. Ele sempre dizia que comprava pra mim, mas na verdade ele adorava aquela fruta. Tio Rubens foi minha segunda chance de ter um pai. Eu o acompanhava sempre que podia. Íamos juntos ,todos os sábados cedo, ao Horto Florestal lá em Santana para encher dezenas de garrafões da água. A Tia Tita não suportava o cheiro e gosto de cloro que a água de São Paulo já tinha naquela época. Depois da água no Horto, a gente passava na feira livre de Santana na Rua Francisca Julia, lá onde o Tio Rubens nasceu e viveu até vir morar com a gente na zona sul após meu pai ter falecido. Ele conhecia todos os feirantes e muitas das pessoas que faziam compras ali. Eu achava interessante o número de vezes que ele parava para conversar com um ou outro personagem. Nunca reparei no que eles falavam, era um assunto de adultos e a gente nunca interferia naquilo que eles conversavam. Eu ficava sim reparando aquela gritaria dos vendedores, o movimento de cestas, sacolas e carrinhos e o colorido das bancas de frutas e verduras. Até hoje a feira me encanta. Depois do jantar, normalmente eu ia até a cozinha e abraçava a Daria. Eu sabia que logo estaria dormindo e aquele abraço era como um “boa noite” que eu dava a ela. 16


Eu fui à sala de televisão e o Marino já estava lá assistindo algum programa. Eu sempre me sentava numa das poltronas e que eu me lembre, não ficava assistindo nem 10 minutos e já pegava no sono. Dormíamos muito cedo, pois acordávamos cedo e eu só me lembro do Tio Rubens ou da Tia Tita me chamando... --- Manéco....Manéco... vai dormir na cama... Como um “Zumbi” eu subia as escadas e me deitava na minha cama nem sei como... A Sala de Refeições Entrando pela cozinha, logo ao lado esquerdo, tinha uma sala grande [tudo era muito grande] como a mesa em que fazíamos as refeições normalmente. Digo isso pois existia à direita dessa uma outra sala que era trancada por minha avó e minha tia e era denominada como sala de jantar. Ali ninguém podia entrar, pois era o local “chique” da casa. Estavam ali as cristaleiras repletas de vidrinhos, de copinhos, de enfeites, tudo de cristal e a meu ver, tudo muito caro uma vez que era absolutamente proibido entrar naquele setor da casa exceto em festas como aniversários, natal, almoços, etc. Essa sala de jantar dava para outra sala, a qual também era trancada a sete chaves a sala de visitas. Mais para frente comentarei algumas coisas sobre esses lugares. Voltando a sala de refeições, me lembro de várias coisas que aconteceram ali. Coisas tristes e algumas nem tanto. Tristeza ou aflição minha que acontecia ali era ver, todas as noites um pouco antes do jantar, minha tia levantando a saia para que o tio Rubens lhe aplicasse uma injeção de insulina. A diabetes de tia Tita a perseguiu terrivelmente por toda sua vida. Lembro-me de seu sofrimento com fortes dores de cabeça e uma magreza de dar dó. Muito valente, ela quase sempre disfarçava em um ou outro evento ou ainda quando conversava com alguém, mas depois, recolhida, ela chorava com as dores e eu me vi muitas vezes passando minhas mãozinhas em seu cabelo para confortá-la. Triste ou engraçado ocor17


reu ali naquela sala de refeições um caso entre eu e a tia Tita. Eu e o Marino fazíamos aula particular de inglês e um dia por semana chegávamos da escola e tínhamos de almoçar rápido para ir até a casa da Dona Ellen Frishmann, nossa Professora particular. Num desses almoços, sentamo-nos naquelas cadeiras pesadíssimas cujo pé era espécie de escultura de patas de leão e que mal conseguíamos levantar e enquanto a tia Tita trazia o macarrão da cozinha, brincávamos com alguma coisa na mesa. Deveríamos ter eu uns 13 anos e o Marino uns 11. Tia Tita veio por tras de mim com a tigela de massa e serviu o Marino e nós continuamos brincando acho que de lutar espada com a faca de comer, coisa de crianças. No momento em que ela ia me servir disse em voz alta, “chega sua cadeira mais para a frente para não deixar sujar a camisa” e eu instintivamente levantei a cadeira pesadíssima e dei uma puxada para a frente já despejando meu corpo sobre ela. Naquele momento a Tia Tita que se debruçava para colocar o macarrão no meu prato e por esse motivo estava com a boca perto de meu ouvido, deu um grito tão alto que o garfo em minha mão voou longe e eu, atônito, a olhava meio que rindo e meio preocupado, pois pensava que ela estava morrendo, ainda sentado na cadeira. Eu a olhava gritando com aquele garfo de catar macarrão cheio, sem colocar no meu prato e uivando que nem um urso feroz sem sair do lugar. Minha avó veio do quartinho ver o que acontecia e então minha tia conseguiu dizer gaguejando, “me ...me...meu...pé”. Pobrezinha, quando eu puxei a cadeira para frente, o pé de urso feito de madeira mais o peso da cadeira mais o meu tinha achatado seu pé que vestia simples chinelos. Minha avó me levantou pela orelha gritando, “você quer matar a gente moleque”. Indo para a aula de inglês, depois do ocorrido e mesmo depois, dentro da aula, eu e o Marino não conseguíamos parar de rir com o ocorrido. Lembro que a pobre tia Tita ficou bem uns 10 dias com uma faixa no pé e durante um tempo ela me olhava meio torto, como que querendo me esganar. 18


Parte 4

Sábado era sempre um dia especial. O movimento dos preparativos de doces e salgados para entregas e o início dos preparativos dos almoços em família no domingo agitavam a casa e principalmente a cozinha. --- Manéco...Manéco... --- Oi Tio... --- Vamos...você vai comigo? --- Vou...--- disse eu já pulando da minha cama e vestindo a primeira roupa que estava na minha frente... fui ao banheiro escovar meus dentes e desci aos pulos a escada. --- Toma o teu café. Tio Rubens tinha umas “manias” que eu adorava. Ao invés de café de coador ele preferia tomar uma caneca de leite com café solúvel. Quase sempre eu tomava o café com leite que minha tia ou minha avó preparavam, mas nos sábados, tomando café da manhã junto com o tio Rubens, eu sempre optava pelo café solúvel. Fazia tudo igual ele... acho que até os movimentos dele eu tentava imitar. Colocamos no carro todos os garrafões a serem cheios com água da fonte e entrei na Kombi verde e impecável que meu tio tinha. Era perceptível o quanto ele amava aquele carro. Meu tio era apaixonado por tudo que fazia. Ele era um perfeccionista em todos os aspectos. Vestia-se bem, penteava-se perfeitamente, diri19


gia bem, comia com muita ordem no prato e eu o admirava tanto que acho ter puxado um pouco dessa forma dele ser. Sentado ao lado do meu tio, naquele carro alto, eu adorava apreciar as ruas, as curvas, observava as pessoas e tinha orgulho de estar andando na frente do carro, lugar aquele que geralmente era destinado a minha tia Tita. Ela nunca nos acompanhava nessa empreitada dos sábados... ficava em casa fazendo nem sei o que. --- Acho que compramos tudo --- disse o Tio Rubens --- Vamos embora? --- Vamos ...quer aquilo? --- Quero! Era meu prêmio por ajudar meu tio naqueles afazeres. Se existe uma coisa que eu gosto é pão e doce. Juntando os dois a gente tem, por exemplo, o Sonho. Lá em Santana, na Rua Voluntários da Pátria, existe até hoje uma Padaria enorme que, ao menos naquela época, fazia um dos melhores Sonhos. Não sei ao certo se minhas mãos eram menores ou que era, mas quase nunca eu vencia em comer um inteiro. O recheio era um creme de baunilha amarelinho que jamais vou esquecer. --- Chegamos Manéco ... vai levando lá pra dentro um de cada vez senão você não aguenta... --- Tá bom Tio... --- Espera que eu vou prender o Petit e o Brazinha --- disse minha Tia que estava saindo da cozinha. Sempre tivemos bichos em casa. Gatos, Cachorros diversos, Passarinhos, Galinhas e na época de Natal peru que minha Avó matava na véspera do Jantar de Natal. O Petit e o Brazinha eram 2 cachorros da raça Pequinês. Todos os adoravam mas eram loucos pra fugir pra rua... quando isso acontecia a gente ficava horas atrás deles pois saiam em disparada, um para cada lado. --- Pronto ...estão presos na Lavanderia --- Vem Manéco ...me ajuda aqui com as sacolas da Feira que eu vou levando os garrafões pro quartinho. 20


--- O almoço já tá pronto --- dizia minha avó O Quintal Íamos e voltávamos do Colégio a pé e sozinhos. Na ida quase sempre, eu e o Marino, íamos juntos, mas depois de termos uns 12 ou 13 anos, a volta era sozinho quando minha aula acabava mais cedo que as dele, e vice versa. Um desses dias que eu voltei sozinho, estava feliz, nem sei por que, mas me lembro de entrar em casa, sempre pelo portão grande, caminhei até o portãozinho que dava para o quintal e enquanto abria o mesmo reparei que um saco desses de papel que davam nos supermercados, antigamente não existiam saquinhos de plástico como hoje em dia, estava no meio do quintal. Entrei, fechei o portão para que nossos cãezinhos Petit e Brazinha não fugissem e saí correndo na direção do saco gritando “lá vai ele, correu para a bola...”, como se estivesse irradiando uma partida de futebol, e chutei... foi uma visão impressionante. Bilhões de grãos de arroz voavam por toda extensão do quintal e meu pé doía como nunca. Minha avó apareceu no portãozinho da cozinha e disse “você vai pegar um por um esses grãos”. Ocorreu que ela voltara do supermercado e por estarem as compras pesando em seus braços, ela abandonou o saco de arroz no quintal enquanto descarregava as compras restantes na cozinha. Colocando-os numa lata, demorei mais ou menos umas 3 horas para colher de joelho aqueles grãos de arroz espalhados pelo enorme quintal e depois, ainda levei uns bons puxões de orelha. Acho que foi por isso que sempre preferi o tênis ou as corridas de carro ao futebol. Aquele Quintal era o nosso maior divertimento. Era grande e como desde a entrada dos portões o piso era de porcelana quebrada todo em um tom de tijolo em medidas simétricas, tinha alguns pequenos círculos de lajota quebrada preta e uma amarela no meio. O quintal dava para o portão do corredor da garagem, tinha uma escada bem à direita de quem entrava que levava até o quarto e cozinha da Daria. Ao lodo esquerdo dessa escada era a Lavanderia 21


e na frente desse portão, lá no fundo, tinha duas portas, uma da esquerda que dava na cozinha e outra da direita que era a entrada do quartinho de costura da minha avó. Ali também guardávamos os garrafões de água, estoque de alimentos, tinha uma geladeira extra, além da que existia na cozinha, e era para guardar garrafas de vinho e algum estoque de carne, isso quando a gente tinha dinheiro, o que acontecia só no começo do mês.

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Parte 5

O domingo chegou... aaahhh como eu amo o domingo! Com certeza gosto desse dia porque nossos domingos sempre foram em família. Somos descendentes de Italianos e como lá na Itália, nos reuníamos todos da família aos domingos. Mesmo após meu pai ter falecido, esses encontros continuaram, sempre em casa. As mulheres ficavam afoitas na cozinha preparando quilos e mais quilos da massa de macarrão, carnes, molho de tomate, saladas, polenta , sobremesas, aperitivos e tudo aquilo que seria consumido por uma enormidade de pessoas. Éramos eu e meus tres irmãos, minha avó, meu tio, tia e a filha deles Maria Izilda. Vô Marino, pai do meu pai, Tio Mário, irmão do meu pai e Tia Eneida sua esposa além de seus tres filhos, Mario Fernando, Mario Sérgio e Mario Luiz. A irmã de minha avó que chamávamos de Vó Miloca, a Daria que trabalhava em casa e seu marido o Dito... esses sempre vinham, mas muitos domingos vinham também o Tio Bocchini e seus filhos, o Tio Germano além de outros que apareciam para o almoço. Minha avó fazia duas mesas, daquelas improvisadas com cavaletes e tábuas, uma para os adultos e outra para as crianças. Enquanto o almoço era preparado os adultos ficavam conversando pela casa toda. Meus irmãos mais velhos, Marcelo e Maria Luiza ficavam com a Maria Izilda e amigos da rua ouvindo discos no terraço e nós, as crianças, aahh as crianças, a gente brincava de todo tipo de brincadeira daquela época. Bandido e mocinho, pega23


dor, esconde-esconde, carrinho, conjunto de música... rolávamos e nos sujávamos como nunca fato esse que quase sempre acabava em um ou outro chorando ou então “ganhávamos” os famosos “croks” e beliscões da minha Vó Maricota. --- Me passa um pãozinho... --- Só se você me der um gole do teu suco... --- Comam com modos... --- Depois vamos continuar a brincadeira no Jardim... --- Tá, mas sem empurrar... --- Vó, posso sair da mesa, vou na casa da Janice... --- Também vou... --- Quero mais frango... --- Come a massa menino, só frango num dá pra todo mundo... --- Posso pegar mais suco? --- Olha como tá tua mão... você num lavou antes do almoço... --- Aiai Vó... --- Deixa sua Vó comer em paz menino... pega ai o que você quiser... --- Pronto ...conseguiu derrubar o meu copo... --- Aiaiêê... --- Eu pedi mas você num colocou... --- Deixa que eu sirvo ele Dona Maricota... --- Vai, acabem de comer e vão brincar ...deixa a gente um pouco em paz... Esse era o diálogo daqueles maravilhosos e movimentados almoços de domingo. A gente ia acabando de comer e saindo da mesa enquanto os adultos permaneciam ali durante horas e horas conversando coisas sérias, rindo de coisas engraçadas, bebendo e comendo sem parar. Lembro que à tardinha, alguns adultos iam descansar em algum canto e minha avó, a vó Milóca, Vô Marino e Dna. Natalina, 24


mãe da Dona Ogaides a vó dos nossos vizinhos Joyce, Janice e Osvaldo Luiz, o Loló, jogavam buraco, aquele jogo de cartas. À distância, eu ficava prestando atenção no jogo deles pra ver quando o Vô Marino retirava um de seus charutos do bolso para acender... quando isso acontecia eu corria e pedia o “anel” de papel que vinha no charuto e guardava numa gavetinha do meu quarto. Eu tinha um monte deles... um dia minha avó jogou todos no lixo porque, segundo ela, a gaveta estava cheirando charuto... fiquei triste mas, logo me esqueci daquilo. Tudo era brinquedo para a gente, mas os adultos naquela época não entendiam isso direito. Um parafuso poderia ser um foguete, um rodízio de cortina um carrinho, um pedaço de madeira era uma casa, uma tábua a balsa Santos – Guarujá ...uma parte da imaginação de crianças. --- E ontem, você foi no Clubinho? O Alphonse disse que a “turma da Vergueiro” viria aqui na rua para enfrentar a gente... --- Eu passei lá... num tinha ninguém...eles não vieram...e se vieram não encontraram ninguém.

Almoços de Domingo Coisa que me lembro bem eram os almoços de domingo. Quando meu pai era vivo, muitas vezes fui com ele ao Mercado Municipal da Cantareira para comprar perna de cabrito. Era seu molho para macarrão predileto. Outras vezes, passávamos na Rua 7 de abril, acho que num restaurante e Rotisseria Fazano, no centro da cidade, onde ele comprava massa fresca [quando a Daria não fazia em casa, coisa que era rara]. Dali, íamos até outro restaurante que ficava no final da Rua Augusta e lá ele comprava um doce que minha irmã adorava que se chamava esfolhatele ou algo assim. Era um triangulo de massa folhada e dentro tinha um creme delicioso. Minha 25


avó e a Daria, mais a Guilhermina [aquela empregada feia e legal que as ajudava nos doces e salgados que minha avó vendia] faziam desde cedo toneladas de macarrão que deixavam secando no varal para depois passar numa máquina de cortar e assim estava pronto o tagliarini, grosso e fino. Além disso, ficava observando minha avó preparar uma espécie de polenta e depois de pronta e colocada numa assadeira a cobria com uma manta que eu só a via nessa ocasião e colocava essa assadeira no sol até a hora do almoço. Aquilo crescia e ficava parecendo um pão enorme e amarelinho. Outra coisa que ela sempre fazia era umas bolinhas de massa que ela fritava aos montes e depois eu não sei como era o preparo, mas aquilo vinha à mesa com um melado parecendo mel. Pareciam torradas com mel. A “italianada” vinha chegando e já se sentavam para comer ou beber vinho de garrafão sempre com o vovô Marino na cabeceira da mesa dos adultos. Quando as crianças acabavam de comer era permitido sair para brincar. Eu e o Marino, o Mario Sérgio, Mario Fernando e o Mario Luiz, filhos do tio Mario e da Tia Eneida e mais um monte de crianças nos juntavamos e fazíamos o que o tio Mario chamava de “Chiqueiro de Porquinhos”. Os adultos ficavam na mesa até escurecer enquanto a gente brincava, depois tomávamos banho e nos vestíamos com roupas limpas para o lanche. Era uma delícia. Depois que o papai morreu esses encontros foram diminuindo, as crises financeiras se agravaram e todo aquele encanto passou a ser uma vez ou outra. Uma pena!

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Parte 6

Já era noite de domingo e antes de irem embora, a gente tomava um lanche juntos. Tio Mario saia e comprava dezenas de pães. Comíamos com manteiga, com queijo, salsicha, o que tivesse. A bebida era café com leite quentinho. Antes disso, tomávamos banho. Se estivesse frio o banho era no chuveiro do banheiro grande, caso estivesse calor, todo mundo ia pro tanque de lavar roupas e fazíamos a festa. Minha avó ficava praticamente louca. Os tanques, dois, não eram esses pré fabricados de hoje em dia. Eles eram construídos ali, azulejados e enormes. Com certeza cabia tres de nós em cada um deles. --- Vamos , você já tá limpo... sai , se seca e vai colocar seu pijama que tá em cima da cama. --- Ah vó, queria ficar mais... --- Num tem mais nem menos, vai saindo... --- Mario Sérgio, limpa direito essa orelha... parece que vocês mergulharam na lama... --- Vem Mario Luiz, vem tomar seu leite que a gente já vai embora. --- Teu pai tá nervoso! --- Uuuuiii... Quando todos iam embora, após ajudarem recolher as mesas lá de fora, as cadeiras e dar uma limpada nas centenas de talheres e louças sujas, a casa voltava a ficar em paz. --- Maria Izilda, guarda esses discos ...num quero nada espa27


lhado pelo chão... --- Posso ver televisão? --- Pode um pouco... amanhã tem aula cedo e não sei se o Seu Eliezer vai dar carona pra vocês... Seu Eliezer era o pai do Beto, do Fernando e da Vera. Moravam do outro lado da rua, nós no número 121 e eles no número 88. Como o Beto estudava no mesmo horário da gente, quase sempre ele dava carona. Eu achava o máximo andar naquele Chevrolet que ele tinha. O carro não fazia barulho e era muito macio. Eu ficava olhando para trás porque atrás do banco de trás tinha uma oncinha de pelúcia e quando ele pisava no freio ela ascendia os olhos. Nos domingos tinha o Programa da Hebe Camargo e todos se sentavam na sala para assistir. Todos muito cansados, mas resistiam até que o programa terminasse. Era um programa de entrevistas, de música, desses que ela sempre fez... nada demais porém, para aqueles tempos, era uma diversão interessante. --- O Manéco já dormiu... --- Manéco...Manéco... --- Manoel Carlos... para o quarto --- Quando ouvia me chamarem pelo nome inteiro eu já sabia que os nervos estavam chegando no limite então, eu me levantava, dava boa noite a todos e mais uma vez, como um Zumbi, ia ao meu quarto e deitava na cama dormindo imediatamente. O meu Quarto Bem em frente ao final da escada ficava o meu quarto, como já disse, meu, do Marcelo e do Marino. Minha cama era a última de quem entra. A primeira era do Marino e o Marcelo dormia no meio. Além das reclamações de um ou de outro por seu vizinho estar “peidando”, 28


me lembro de uma situação dolorida que ali aconteceu comigo. Minha irmã contraiu hepatite e todos na casa deveriam tomar três injeções, sendo uma por noite. Acho que por ver a Tia Tita tomando insulina diariamente, adquiri um verdadeiro pavor por agulhas e até hoje, prefiro me curar com comprimidos a injeções mesmo sabendo que o processo é bem mais lento. Tomei a primeira e chorei muito. Tomei a segunda no dia seguinte e novamente chorei mais ainda. No terceiro dia, o tio Rubens, que era quem aplicava as malditas [ou benditas, sei lá] injeções, teve uma reunião e como eu sempre dormia cedo, subi para o quarto logo depois da janta, me deitei e tentei dormir, tudo isso numa tentativa de me livrar da picada. Não conseguia dormir. Virava para um lado, virava para outro e nada. De repente ouvi a Kombi do tio Rubens chegando. Passo a passo acompanhei aqueles acontecimentos pelos seus sons. As seringas fervendo, um a um gritando com a agulhada que levava até que num momento ele perguntou “cadê o Manéco?”. Já foi dormir alguém respondeu. “Me livrei” pensei eu. “Tem de tomar a injeção” disse ele enquanto subia a escada. Seus passos para mim, pareciam os de um dragão feroz que viria me comer. Nem bem a porta do quarto se abriu e ele foi dizendo em voz alta “vamos Manéco, baixa a calça”. Aos gritos fui para a parede no final do quarto e apavorado dizia,”não tio, num precisa mais, eu já tomei duas...”. Não adiantou nada. Veio todo mundo para me segurar. Lá foi a primeira picada e eu inconscientemente tirei a bunda da agulha. “Pior para você, vai tomar outra picada” disse ele já meio nervoso ... páf... outra picada e outra vez eu tirei a bunda da seringa. “A é” disse ele agora bem nervoso. Me pegou e me encostou na parede dizendo para minha tia e minha avó me segurarem daquele jeito. A terceira picada veio e essa foi sem dó. Parecia uma facada e não tendo para aonde tirar a bunda, ainda bati meu saquinho na parede e fiquei com dor na bunda e no saco, deitado na minha cama, chorando que nem um louco. No dia seguinte fui mancando para a escola e com os olhos inchados de tanto chorar. 29


Nosso quarto era bastante amplo. Tinha três camas de solteiro, dois armários e uma cômoda. Ele foi construído numa reforma que fizeram em casa assim que meu pai faleceu. Não sei por que “cargas d’água”, surgiram umas rachaduras bem atrás da minha cama. Um época, veio um Engenheiro ou sei lá o que era aquele homem e minha avó mostrou para ele as tais rachaduras que não eram pequenas. Ele disse, vamos fazer o seguinte, vou colar papel vegetal que é bem fininho entre a rachadura e a Sra. repara se o papel vai rasgar...se rasgar é que elas estão aumentando, se não, a gente só coloca uma massa e pinta por cima. Para mim, com 10 ou 11 anos aquilo se tornou um verdadeiro terror. Sempre que eu me deitava eu imaginava aquele papelzinho rasgando e a caixa de água que estava acima da minha cabeça mais o telhado, tudo caindo em cima de mim. Os papéis ficaram lá durante anos e nem me lembro se foram retirados quando nos mudamos da casa. Outro fato que aconteceu nesse quarto foi interessante, se é que assim podemos chamar o ocorrido. Assim que abríamos a porta do quarto, existia um armarinho onde nas estantes de baixo minha avó guardava sapatos, roupas para concertos, etc. Na estante de cima ficavam os remédios. Uma vez eu estava pintando alguma coisa, acho que era um trabalho para escola e necessitei de algodão. Fui até o armário, abri e logo vi o rolo de algodão. Eu não o alcançava para retirá-lo inteiro e queria cortar só o pedaço necessário assim, puxei um pedaço e tentei cortá-lo, porém estava duro e eu tinha medo que caísse algo que o prendia e eu não podia ver. Fui até a gaveta do Marcelo e peguei [imagine só] um isqueiro Zip. Segurando a ponta solta com a mão esquerda, coloquei fogo para cortar o que precisava imaginando estupidamente que o fogo cortaria e cessaria. Como não poderia ter acontecido o contrário, além de eu não conseguir cortar o meu pedaço, o fogo se espalhou no resto do chumaço de algodão e percebi um início de incêndio. Apavorado corri até o banheiro grande que era logo ali ao lado e peguei um banquinho para eu subir e ver o estrago. Quando voltei ao 30


armário, o fogo já alcançava o teto do armário. A fumaça era tanta que a tia Tita veio ver o que estava acontecendo e aos gritos, com um pote de água que estava no banheiro apagou o fogo. “O que você queria fazer Manoel Carlos”, perguntava ela meio assustada e meio nervosa e eu não falava nada porque não vinha uma desculpa boa na minha ideia para contar a ela. Não me lembro de outras repreensões sobre aquele caso e nem se minha avó estava em casa naquele dia, só sei que o armarinho ficou com a madeira chamuscada para sempre e a casa cheirando fumaça por um bom tempo.

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Parte 7

--- Vamos Manoel Carlos, guarda seu material e lava a mão para vir almoçar ...e vê se larga esse cachorro... --- Tá bom... --- Sabe o que tá tendo lá na Escola? --- Hã ? --- Uma exposição de castelos e casas miniaturas... a gente foi visitar com a Professora... --- Miniaturas? --- É... Acho que o Marcelo fez um trabalho daqueles na classe dele ...precisa ver vó, tudo tão perfeito...eles desenharam tijolinho por tijolinho... O Dante, minha escola, sempre foi um colégio maravilhoso. Aprendi muito do que sei ali com bons e renomados Professores, laboratórios, salas de aula muito bem equipadas, cinema, passeios para museus e fabricas de todo tipo, etc. --- E tem lição de casa? --- Perguntou minha avó --- Tenho ...um monte... preciso fazer um trabalho sobre as plantas e vou precisar de Papel Almaço. --- Então come logo que eu vou ao Mercado, ai você vai comigo e a gente passa no Seu Rubens. O Seu Rubens ficava na Rua Pamplona... quase todos os comércios que a gente ia ficavam nessa Rua. O Mercado Pão de Açúcar, o Sapateiro, o Dentista, a loja de chocolates Kopenhaguen que a gente nunca comprava nada porque era muito caro... de vez em 32


quando minha avó comprava um pouco de umas balas deliciosas que eram durinhas e por dentro tinham Leite Condensado, mas isso era raramente. Tinha também a Pizzaria Camelo que era outro lugar muito caro para os nossos padrões e acho que eu entrei lá umas duas ou tres vezes com minha avó...nem lembro para que. A loja do Seu Rubens era aquela lojinha que tinha quase tudo. Linha, botão, papelaria, canetas e lápis e material escolar, bolas, bonecas, roupinhas enfim, uma verdadeira loja cheia de coisas. Ele era uma pessoa muito bacana ao lado da loja dele tinha um relojoeiro. Quando a gente queria montar um time de “botões”, desses de jogar num campo de Eucatex, ele conversava com o dono da Relojoaria e esse dava para gente um monte desses vidrinhos de relógio que ele havia trocado para seus clientes. A gente limpava e colava por trás o símbolo do time e pronto...era mais uma brincadeira. Uma vez, eu estava indo de braço dado com minha avó e a gente atravessava um Beco que ia da Avenida 9 de Julho até a Pamplona... num momento, tadinha, minha avó tropeçou e caiu de joelhos... um monte de gente veio ajudar e ela raspou o joelho... fiquei morrendo de dó por não ter segurado ela mais forte, mas eu era pequeno e nunca ia conseguir. --- Pronto Manéco... agora senta ai com a Daria e faz o teu trabalho enquanto eu vou adiantar uma encomenda do Seu Donatelli. Minha avó, muito esperta e prendada, era uma ótima costureira e além dos doces e salgados, refrigerantes, conservas, etc., ela costurava cortinas e colchas para esse Seu Donatelli. Como é relacionado a cortinas, acho que ele era o dono daquela loja que existe até hoje, me parece que Donatelli Tecidos... sei lá. --- Nossa ...como sua letra é bonitinha... a minha é um garrancho e só sei escrever meu nome... --- Daria... se você quiser eu te ensino a escrever e ler... 33


--- Obaaa... --- Sério... eu te passo as minhas lições e você vai aprendendo... Isso começou com essa conversa boba na cozinha e a Daria aceitava que eu a ensinasse... eu passei a ela desde o B A BA e acreditem se quiser, ela comprou um caderninho daqueles Companheiro, um lápis, uma borracha e aprendeu a escrever e a ler bem devagarzinho... Tempos depois que eu já era adulto, lembro-me dela lendo livros, palavra por palavra... sempre me orgulhei disso. Acho que uma das minhas paixões por cozinha está ai. Eu passava uma boa parte do dia na cozinha... ora ajudando minha avó e a Daria, ora só com a Daria ajudando e vendo ela fazer as delicias que cozinhava, ora fazendo minhas lições ou estudando em voz alta para minha avó ver que eu estava estudando de verdade. Às vezes, eu lia alguma coisa errada e a Tia Tita lá do quartinho me corrigia... a Daria dava risadas. O Quartinho de Despensa Hoje, tenho consciência de que não era um menino muito travesso, mas às vezes temo em afirmar isso. Na escola eu não tinha tantos problemas, sempre fui muito tímido e muito comportado, todavia em casa, sempre ficava a procurar alguma coisa para fazer e muitas vezes, fazia coisas que os adultos não gostavam muito. Aquele quartinho ou a despensa, como chamávamos na época, me traz memória dos castigos por aquilo que aprontava. Como minha avó passava grande parte do tempo ali, trabalhando com suas colchas e cortinas, era ali que eu pagava minhas penitências. Quantas e quantas vezes minha avó pegava um caderninho e escrevia na primeira linha, “nunca mais vou bater no meu irmão”, ou ainda, “nunca mais vou mexer naquilo que não devo”. Em seguida, ela me dava o caderno 34


e dizia, “você vai ter de copiar isso aqui, nas linhas de baixo até a página marcada”. Geralmente eram 5 ou 6 páginas, dependendo do ocorrido. Lembro-me de algumas vezes terem sido 20 paginas. Imagina só o que eu tinha feito. Acho que tenho uma boa caligrafia hoje graças a esses “castigos”. Outra lembrança trágica desse quartinho de dispensa é a de uma vez eu e o Marino estarmos brincando de alguma coisa no quintal até que num certo momento, eu devo ter feito alguma coisa para ele e ele me chamou de Filho da Puta. Minha avó que trabalhava no quartinho saiu pela porta da cozinha e o pegou pelo cabelo gritando, “o que você falou você vai ver só uma coisa”. Muito ruim, eu que sempre era quem apanhava, fui atrás e fiquei observando o que ocorreria. Minha avó tinha o gosto de comer coisas muito fortes, entre elas, preparava um vidro enorme de pimentas de toda espécie e só de cheirar lacrimejava-se o olho. Lembro que ela pegou um tomate, fez um furo com o dedão e encheu de pimenta para depois esfregar na boca do Marino que não parava de chorar. Enquanto ele chorava e minha avó não deixava ele limpar a boca eu muito sádico ainda olhava para ele sorrindo. Hoje penso como é que poderia ser daquele jeito. No dia seguinte o Marino tinha os lábios inflamados e várias bolhas d’água causadas pela queimadura do molho de pimenta.

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Parte 8

Quando acabei a lição e o trabalho, mostrei para minha avó e disse: --- Posso ir brincar? --- Pode... mas não vai na rua... Eu não era muito de rua, no máximo, quando fiquei com uns 13 ou 14 anos, eu ia na casa do Beto para brincar lá, andar de bicicleta... O Marino estava vendo televisão e eu fui brincar no Jardim. Nossa casa deveria ter uns 30 metros de frente e toda essa área era de jardim. Eu adorava aquele lugar... ficava brincando com as formigas, joaninhas, levava alguns ilhoses de cortina para brincar de carrinho e ficava lá, muitas vezes sozinho, até o entardecer. Hoje fico pensando, eu sempre fui bastante quieto. Não tinha grandes vontades materiais, nem me socializava muito com os outros. Fiz vários esportes e posso afirmar que aqueles que eram individuais foram os que me dei melhor. Nadava bem, mas quando treinei Polo Aquático nunca me destaquei. Futebol eu gostava de jogar como Goleiro. Tênis eu cheguei a jogar muito bem. Ping Pong eu era ótimo e no Dante, um dos únicos esportes em equipe que eu me destaquei foi o Basebol, mesmo assim não acho um jogo tão de equipe uma vez que tudo depende tão e somente de cada jogador... 36


O Jardim Toda a frente da casa era jardinada, exceto a entrada de carro ao lado direito e a entrada a pé [que a gente nunca usava] no centro do terreno. Minha avó sempre chamava um senhor para limpar o jardim e eu ficava o vendo trabalhar e me enojava porque vez em quando ele cuspia na sua mão direita e esfregava aquele cuspi na esquerda para depois continuar o trabalho. Não lembro bem se ele era Alemão ou outra nacionalidade, mas ele não falava como a gente. Arrastava os erres e eu nunca entendia nada daquilo que ele falava. A única coisa que eu entendia é que eu queria ajudá-lo e às vezes eu pegava a enxadinha ou a pá, então ele gesticulava e ficava nervoso para eu largar a ferramenta. Uma passagem naquele jardim me traumatizou até os dias de hoje. Em volta de uma arvorezinha o jardineiro mantinha uma folhagem roxa aveludada e certa vez eu estava ali, brincando com um caminhãozinho até que uma aranha enorme [nem sei se era tão grande ou se meu braço é que era fino] subiu no meu braço. Minha reação imediata foi gritar e dar um tapa naquele bicho peçonhento que sumiu no meio das plantas. Minha avó veio correndo de dentro de casa e eu não conseguia falar o que tinha acontecido. Lembro-me que ela me levou na cozinha e me deu água com açúcar até que eu acalmasse e então disse sobre o ocorrido. Ela perguntou e olhou muito para ver se o bicho tinha me picado e de tanto eu coçar estava avermelhado. Ela me levou na farmácia e o farmacêutico olhou, olhou e disse: - Não picou. Pode ficar despreocupada. Até hoje tenho pavor de aranhas. Na frente do Jardim, bem depois do muro que dava para a calçada, existiam inúmeros pés já grandes de azaleias, todos cor de rosa, apenas um único pé, o maior de todos, era branco. Hoje penso como era linda aquela paisagem. Ao lado direito desse jardim, bem ao centro, existia uma luminária que eu vi acesa uma vez só, no aniversário de 37


15 anos da Maria Luiza. Eu, o Marino e outros amigos nossos, mais vezes eu e o Marino, brincávamos embaixo dos maciços de Azaleias e quase sempre, brincando de carrinhos, fazíamos, para o desespero de minha avó, caminhos de estradas com as flores.

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Parte 9

--- Vamos Manéco... Hoje o Marino vai ficar em casa... êle tem trabalho pra fazer. --- Tá bom vó... Toda terça feira era dia de “trezena”. Eu não sabia direito o significado daquela palavra, mas sempre associei a “reza”, “terço”, alguma coisa religiosa... e acertei. Mais tarde, procurando no dicionário, eu li que “trezena é uma espécie de novena em conjunto por treze dias”. Até hoje, não sei por que minha avó pagava uma promessa de toda terça feira ir ao Largo São Francisco, na Igreja de São Francisco e rezava tres terços, bem devagarzinho. Normalmente íamos eu e o Marino junto com ela, mas dependendo da ocasião, trabalhos escolares ou mesmo um saia com ela e o outro com a Tia Tita, às vezes íamos um para cada lado. Eu gostava muito de sair com minha avó. Ela sempre foi específica naquilo que iria fazer. Ela ia me dizendo no “Troleibus” , ou ônibus Elétrico que a gente subia na Rua Augusta, bem em frente ao Cine Augusta e íamos até o ponto final, na frente da Biblioteca Municipal, na Avenida São Luiz, qual seria o nosso trajeto e o que nós iríamos fazer em cada lugar. --- Vamos sentar na frente vó... --- Vem... senta aqui... atrás do motorista que você vai vendo. Não passava nem 1 minuto no colo dela e eu já ia me levan39


tando e segurava naquele ferro que separava o motorista dos passageiros pra ficar olhando os movimentos daquele profissional. --- Segura firme tá? Se ele breca forte você vai parar lá no vidro... --- Tá bom vó... Era espetacular aquela viagem... eu queria que ela nunca terminasse. Os ônibus da CMTC – Companhia Municipal de Transportes Coletivos eram azuis e apesar de não serem novos, penso eu que eles tinham um cuidado especial com os “elétricos”. Talvez por serem mais econômicos, sei lá. O motorista dirigia aquele gigante como se estivesse brincando numa praia. A direção era enorme... tudo era enorme, o tamanho da tampa do motor elétrico ao seu lado, os pedais de acelerar e frear, aquilo enchia meus olhos de esperança de um dia dirigir um daqueles. Por várias vezes eu disse aos mais velhos que queria ser motorista de ônibus ou de caminhão, coisa de menino. --- Vem ... chegamos! --- Aonde nós vamos primeiro? --- Vamos à Igreja. Hoje, acho que muitas crianças ficam entediadas em esperar alguma coisa. Eu era diferente, gostava de ir à Igreja com minha avó e apesar de não ficar ao lado dela nem por 10 segundos, eu sempre achava alguma coisa para fazer. Naquele horário, duas ou três da tarde, o local estava vazio e muitas vezes só minha vó estava sentada num daqueles bancos enormes. Eu, por minha vez, escondido dela é lógico, ia sempre para um canto onde tinham um monte de velas acesas, aquelas que as pessoas colocam para pedir algum milagre ou “ajuda dos céus” e minha brincadeira era segurar uma bem grande acesa em minha mão e depois apagar todas as outras... depois eu ia acendendo uma a uma novamente. Fazia isso várias vezes e de vez em quando colocava a vela maior pra queimar no meio até ela se partir em duas, brincadeiras 40


desse tipo. Eu corria no corredor lateral onde as pessoas se sentam e escorregava no piso lisinho, depois corria novamente lá para trás e escorregava de novo... quando eu me cansava, deitava num banco e ficava olhando as pinturas feitas no teto. Eu sempre me impressionei com esses “afrescos” mas naquela época, particularmente eu apreciava as nuvens desenhadas ... --- São perfeitas --- eu falava comigo mesmo. Quando minha avó Maricota acabava de rezar eu ia pra perto dela, dávamos as mãos e às vezes ela me dizia... --- Olha --- apontando para uma imagem --- aquele é Jesus ele foi crucificado. Aquela é Maria, é a mamãe de Jesus ... vem aqui... Ela me dava a mão e a gente chegava bem pertinho de uma imagem... eu achava incrível os olhos perfeitos daqueles personagens...ela me pagava no colo e dizia... --- Passa a mão no pé dele e faz o sinal da cruz... --- Assim ? --- Isso... ele vai te ajudar sempre! Ela falava com tanta certeza aquilo que eu acreditava de verdade que passando a mão no pé gelado da estátua eu estaria livre dos meus pecados... Quando a gente saia da Igreja, sempre de mãos dadas para eu não me perder, a gente caminhava até a Rua Líbero Badaró para minha avó comprar alguma coisa no Empório Godinho... acho que existe até hoje. Ali, quase toda terça ela comprava azeite de oliva e um Arenque defumado, um só pois era muito caro. Minha avó era Portuguesa e sempre apreciou as comidas de sua terra. Ela desfiava esse Arenque defumado e colocava no pão com aquelas pimentas ultra fortes e lotava de azeite. Me lembro que quando ela mordia o óleo escorria no queixo dela e ela fazia uma expressão de enorme prazer. Da Casa Godinho a gente subia até a Rua São Bento e no Largo do Café, numa daquelas vilinhas que vão da São Bento até a 41


Rua XV de Novembro ela parava numa venda de fumo e comprava um pedaço de fumo de corda e algumas palhas. Ela não era viciada naquilo, nem em bebidas, mas quantas e quantas vezes eu vi ela tomar um golinho de cachaça antes do almoço e fumar um cigarrinho de palha depois que comia. Não era sempre, mas às vezes a gente passava na Botica Veado D’Ouro na própria Rua São Bento e ela comprava ou pegava alguma encomenda de Ervas ou de remédios manipulados e de lá a gente ia até a Praça do Patriarca, logo no final da São Bento, pra pegar um ônibus gratuito que ia da Exposição até a Cliper. A Loja Exposição ficava na Praça do Patriarca e a Cliper ficava no Largo Santa Cecília. Como eram associadas, colocaram um ônibus gratuito que ia de uma loja a outra de graça para os clientes das lojas. Minha avó gostava de ir à Cliper para comprar algum presente, cobertores, coisas para a casa. Uma dessas vezes eu tomei vários cascudos no meio da rua. A gente estava na loja e eu, para variar, ficava correndo e mexendo em tudo enquanto minha avó conversava sobre algo com os vendedores. Nesse dia, eu vi uma pirâmide de vidros de perfume e muito besta pensei, “será que se eu tirar um da ponta os outros caem”... dito e feito... foi uma enxurrada de vidros de perfume nos meus pés fazendo um estrondo enorme e eu, fiquei ali parado com o vidrinho que eu tinha tirado do meio dos outros na minha mão... Os vendedores vieram ver se eu tinha me machucando e acho que não perceberam o que eu tinha feito...não me lembro de ter quebrado algum, mas minha avó me pegou pelo braço e disse... --- Vamos embora... Pronto, na rua foi uma chuva de tapas e de “crock” na cabeça... --- Você num consegue parar quieto? Imagina se tivesse quebrado? Quem ia pagar? Vê se pensa antes de fazer as coisas Manoel Carlos... – dizia ela aos gritos com os dentes cerrados. 42


Vovó Maricota Minha avó foi uma Santa na vida de todos nós. Apesar de sua seriedade, ela criou com muito amor àqueles que a rodeavam. Era explícita sua preferência pelo Marino, mas quantas vezes ela me abraçava e brincava de cheirar meu pescoço. Ela nos vestia, nos penteava e acompanhava nossos estudos. Ela sempre dedicou e doou todo seu carinho e seu dinheiro para nós. Ela não ganhava muito, mas como diziam na época, “fazia das tripas coração” para dar um pouco de conforto e de alegria para a gente. Ela me ensinava as lições, me ajudava nos trabalhos escolares, me incentivava a desenhar e quase sempre nos colocava na cama e nos cobria. Antes disso, ela falava para mim e para o Marino... “Vamos rezar antes de dormir” e a gente rezava junto com ela e quantas vezes eu olhei para ela no meio dessas rezas e ela estava só acompanhando nossa reza mexendo sua boca sem soltar as palavras... ela tinha um orgulho imenso de ver a gente rezando o Pai Nosso e a Ave Maria sozinhos... Emporio Godinho

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Parte 10

Assim que cheguei da Escola, na hora do almoço, vi que o Tio Rubens estava conversando com um homem bem perto do viveiro de Periquitos que a gente tinha no quintal. Fui ouvir o que eles falavam... --- Que engraçado Rubens, isso não é normal acontecer... --- Isso pode ser da comida? --- Acho que não...vamos ver. O Homem entrou no viveiro que só eu entrava e pegando os passarinhos um a um ia observando eles de pertinho usando uma lente de aumento. Eu não sabia ao certo o que estava acontecendo mas sabia que coisa boa não era. --- É isso --- disse o homem saindo do viveiro --- eles têm essa doença no bico e isso acaba dando uma parada respiratória... --- E os que não têm a doença? --- Todos eles já contraíram só que ainda não apareceram as bolhas no bico de alguns... mais dia menos dia, todos estarão com os bicos “empipocados”. Aos poucos, eles vão morrer! Me lembro que fiquei triste, mas não chorei nem nada... eu e o Tio Rubens acompanhamos ele até o seu carro e na volta para o quintal o tio Rubens pôs a mão na minha cabeça como que me consolando... fomos juntos até o viveiro e como sempre eu retirei os jornais sujos, recoloquei os limpos, enchemos os bebedouros com água limpa e colocamos alpiste para eles comerem. 44


Ficamos ali parados, do lado de fora olhando para eles que comiam, bebiam e faziam sons de alegria. Liberdade aos Periquitos No canto direito do quintal, encostado no muro do fundo da casa, o Tio Rubens e eu construímos um enorme viveiro de madeira para criarmos periquitos. Ele tinha aproximadamente 3 metros de largura e chegamos a ter mais de 50 pássaros de todas as cores, periquitos australianos lindíssimos. Minha tarefa era dar comida todos os dias e também limpar dia sim, dia não, as 3 gavetas do fundo desse viveiro trocando o jornal velho cheio de coco dos bichinhos, substituindo-os por jornais novos e limpinhos. Eu e meu tio, o qual era extremamente meticuloso em tudo que fazia, construímos com casca de coco limpas e lixadas e colocadas dentro de pequenas casinhas de madeira, as quais serviam para que as fêmeas botassem seus ovos e os chocassem. Nosso carinho era imenso com aqueles pássaros e acreditem ou não, alguns deles tinham nome e atendiam quando eu os chamava. Lembro-me hoje de quantas tardes depois de fazer minhas tarefas escolares, ficava os observando e colocava meu dedinho para que eles viessem dar gostosas beliscadinhas com seus bicos curvos. Um dia reparei que um deles azulzinho, estava morto caído no chão do viveiro. Era um domingo e chamei meu tio que o retirou e juntos o enterramos num canteiro mais ao fundo daquele quintal. Antes disso reparamos que ele tinha algumas bolinhas no bico coisa que nunca tínhamos reparado e outros deles, ainda vivos, estavam com as mesmas bolinhas no bico. Dias depois outros morreram até que o tio Rubens chamou um amigo, não me lembro de seu nome nem se era veterinário, mas da forma que pegava em suas mãos os bichinhos para analisá-los deveria ser um entendedor de periquitos. Eu e o Tio Rubens nos comovemos quando ele disse que “todos vão morrer; isso é uma doença que não tem cura e todos eles devem estar com a doença”. Mais alguns dias se passaram e a cada dia um deles 45


aparecia morto. Os enterros cessaram por serem tantos e apenas os embrulhávamos e jogávamos no lixo. Um dia, muito cedo, o sol mal havia aparecido, Tio Rubens me chamou em minha cama e disse “Vamos soltar os periquitos?”. Lá fomos nós, ele vestido e eu ainda de pijama. Abrimos as portinhas das gaiolas e saímos de perto. Alguns chegavam até a porta e voavam em liberdade enquanto outros permaneciam como estavam. Dias depois, não sei bem certo quantos dias, 2 ou 3 ainda estavam dentro do viveiro e o tio Rubens foi até lá e os espantou de uma vez. O processo de liberdade foi tão lento que não doeu tanto quanto esperávamos. Hoje, penso que nunca deveríamos ter criado aqueles bichinhos em gaiola. Acho que quando os olhava naquelas tardes em que me sentava na frente de sua casa, era isso mesmo que eu queria. Dar uma chance para eles viverem a vida deles.

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Parte 11

--- Está chovendo...vão brincar na garagem... --- Marino, vamos levar os carrinhos... --- Por favor, não mexam em nada das minhas coisas... --- Tá bom vó... --- Acho que eu e o Marino éramos os meninos mais tranquilos do mundo Enquanto isso a frente de nossa casa estava fervendo de gente, amigos e conhecidos não só da Rua Cravinhos, mas também das imediações. Enquanto brincávamos percebemos que Maria Luiza, nossa irmã e outras amigas, Joyce, Janice e Vera, traziam uns materiais para a garagem enquanto o Omar, um amigo da Rua de baixo, descarregava sacos com algo dentro que não sabíamos o que era e deixava na porta da garagem. --- Que eles vão fazer? --- Sei lá Marino, mas acho que vão fazer alguma brincadeira... Minha irmã então entrou na Garagem e disse pra gente... --- Vão brincar no Jardim ou em outro lugar... nós vamos montar nosso teatro aqui. --- Eu e o Marino, como a maioria das crianças da época, não éramos de ficar reclamando e de brigar por alguma coisa. Conformados, recolhemos nosso material e saímos da garagem. Deixamos tudo arrumado num saco, dentro de um cesto que ficava no Quartinho e era o local determinado para guardarmos 47


nossos brinquedos e fomos ver o que iria acontecer na Garagem. O movimento agora era mais intenso, pessoas e mais pessoas iam chegando e notamos que dentro daqueles sacos tinham folhas de árvores e dos Hibiscos que ficavam na lateral do corredor de entrada da Garagem, fato esse que gerou uma boa briga entre minha Avó e os meninos que as arrancaram. O pessoal ia chegando e logo se sentavam... ali iria ser apresentada uma peça de Teatro onde minha irmã, não me lembro bem ao certo se o Marcelo, nosso irmão participou, as outras meninas da rua e mais um monte de gente. Também não me lembro do que se tratava a tal peça de teatro, mas aquilo ficou muito gravado nas minhas lembranças. A única coisa que me lembro é de minha irmã falando alto para todos ouvirem e a Daria e minha Avó, na porta da Garagem, as duas sorrindo e apreciando aquele momento.

A Garagem Minha primeira casa, a da Rua Cravinhos 121, era gigantesca. Imagino que tinha aproximadamente uns 30 metros de frente para a rua e mais uns 25 ou 30 metros de fundo. Entravamos sempre pelo portão grande que dava a um corredor e lá no final existia uma grande garagem. Antes dessa passávamos pela entrada da casa propriamente dita, logo a esquerda após o jardim e de outra mais no fundo, um pouco antes da garagem, que dava para um enorme quintal. Essa garagem foi palco de teatrinhos divertidos que boa parte do pessoal da rua vinha assistir. Ali, além das peças de teatro, aconteceram fatos engraçados ou às vezes nem tão divertidos. Uma vez, eu e meu irmão mais novo, o Marino, brincávamos com dois filhos do zelador de um prédio que assistimos ser erguido bem atrás de nossa casa. Um deles se chamava Paulo e o outro, se não me engano era o Mauro. 48


Antes de contar essa lembrança gostaria de ressaltar que minha avó era uma eximia negociante. Ela costurava e confeccionava colchas e cortinas para um homem chamado Sr. Donatelli que tempos depois soubemos ter expandido seus negócios e o seu nome está na rede de lojas até os dias de hoje. Além disso, ela cozinhava como ninguém, principalmente doces portugueses e canapés para festas e casamentos e me lembro bem de sempre um ou outro carro parava na frente de casa para levar quilos de doces e salgados encomendados a ela. Muito esperta a velha avó, comprava caminhões de refrigerante para também revender aos clientes que vez ou outra, além dos doces e salgados, carregavam algumas caixas de guaraná, soda e cerveja, [tudo de vidro, pois não existiam garrafas pet naquela época] dando mais um lucro para a casa. Voltando a brincadeira minha com o Marino, o Paulo e o Mauro, me lembro de que eu e um dos dois vizinhos éramos mocinhos e os outros dois os bandidos. Capturados a certa altura dessa brincadeira, meu comparsa em voz de comando disse “Vamos levá-los para o esconderijo”, que era a garagem. Detidos, ele novamente comandou que eu os amarrasse numa das estantes, repletas em dois andares que circundavam o local, para que os mesmos fossem chicoteados. Sem a mínima noção do estava fazendo, prendi as mãos dos dois numa mangueira dessas de regar jardim que estava atada a um prego numa dessas prateleiras. Armado de uma daquelas espadas de plástico que são vendidas até hoje nas lojas de 1,99, meu companheiro gritou “Isso é para vocês aprenderem a não fugir da cadeira...” e arremeteu uma forte lambada na bunda do meu irmão que gritou e puxou as mãos da mangueira fazendo com que andar por andar de garrafas fossem caindo e se quebrando a nossa volta. Aquele momento passa até hoje em meu pensamento exatamente como ocorreu, parecia um filme em câmara lenta e o barulho era único, o de montanhas de vidros se quebrando ao lado de nós quatro. O som só foi interrompido com o grito que minha avó deu da porta da garagem “o que vocês fizeram meu Deus”. Gritando e ao mesmo tempo nos acalmando para ficarmos parados no lugar, 49


ela ia, juntamente com a Daria, varrendo os cacos com o auxilio de um rodinho para abrir passagem e conseguir assim nos tirar de lá de dentro. Logicamente os dois vizinhos foram mandados para suas casas e tanto eu como Marino entramos cercados de tantas mãos que minha avó tinha naquele momento que me senti cercado por um polvo furioso. Logicamente eu sempre apanhava mais por ser o mais velho e não cuidar de meu irmão menor. Deveria ter nessa época uns 12 anos.

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Parte 12

Antes do meu pai falecer, a vitrola de casa ficava na sala de visitas, uma sala trancada que eu vou falar dela mais adiante. Depois dele ter falecido, a Tia Tita, como já disse, se mudou para nossa casa e trouxe com ela seus móveis e com eles, uma “radio vitrola” a qual ficava no terraço, porta de entrada lateral da casa, junto com a sala de Televisão. Ali a gente lia livros, estudava, recebíamos os amigos e logicamente, ouvíamos musica e assistíamos TV. As recordações que mais tenho daquele ambiente são da poltrona deliciosa onde eu me sentava para ver televisão e que está até hoje na casa dos meus sobrinhos e da minha cunhada Alba, filhos do Marcelo e também das músicas dos Beatles. Nossa como aquela vitrola tocou discos dessa banda que marcou não só a nossa infância e juventude, mas de toda nossa geração. Nossas maiores brincadeiras de carrinho se passaram naquela sala, sempre ouvindo musica. No terraço tinha um tapete e na sala de TV, logo ao lado, tinha outro tapete. Entre eles acho que deveria ter uma distância de 50 cm mais ou menos e ali, pacientemente eu e o Marino deixávamos uma fila de carrinhos todos em fila num dos tapetes onde a gente imaginava ser a cidade de Santos. No outro tapete a mesma coisa e imaginávamos ser o Guarujá. Um pedacinho de Eucatex, esses condensados de madeira era a Balsa. Lotávamos a “Balsa” e devagarzinho, fazendo o barulho dos 51


motores da embarcação ela atravessava de um tapete a outro levando os carros, caminhões, ônibus... Hoje, me lembrando disso fico pensando o tamanho da nossa paciência colocando os carros na madeira e depois tirando um a um, uma vez eu dirigia a “Balsa” outra vez o Marino. O Tio Rubens e a Tia Tita, juntamente com uma espécie de “Consórcio” entre amigos, construíram um prédio no Guarujá onde eles tinham 1 apartamento duplo. Íamos constantemente para lá e na época não existia a Rodovia Piassaguera que hoje liga as duas cidades assim, o único caminho era a Balsa Santos – Guarujá e aquilo nos deixava simplesmente maravilhados. Para mim a travessia era a melhor parte da viagem.

A Sala de TV Passando pela sala de refeições existia um pequeno hall com uma escada a esquerda que levava a parte de cima da casa e a direita, uma porta de vidro que dava para a tal sala de visitas, sempre trancada como já citei acima. Passando esse hall, vinha a sala de som e televisão. Nessa passagem ficava um “barzinho” o qual nunca tinha bebidas uma vez que meu pai proibia bebidas alcoólicas em casa e também o telefone. Nessa época de celulares ultra minúsculos às vezes fico imaginando aquele telefone que tinha na nossa casa e deveria ter também na casa de milhares de pessoas. Era um aparelho enorme, de ferro e a gente colocava os números através de um disco o qual, ao menos para mim que naquela época ainda era pequeno, era muito duro de girar e quantas vezes errava o numero pois o dedo fino escapava do buraquinho do disco duro. Ali, tínhamos também uma grande vitrola aonde ouvíamos Beatles, Ray Coniff e tantos outros long play’s e compactos simples da época. Para quem não sabe isso eram os CD’s da época. Na mesma sala tinha uma TV em preto 52


e branco, chamada Zenit e assistíamos às sessões da tarde, as novelas, futebol, etc. A programação da TV não era contínua e muitas vezes quando a ligávamos antes de começar a programação, víamos a imagem de um índio com umas figuras simétricas que eu ficava passando o dedo até que alguém gritasse, “não fica perto demais da TV que você vai ficar cego”. A imagem que mais me recordo daquela sala era de eu ficar assistindo os programas à noite até dormir na poltrona e meu tio, minha tia e minha avó dizendo, “vai dormir na cama Maneco”. Eu ouvia e virava para o lado e continuava dormindo e eles repetiam e repetiam e repetiam até gritarem. Então eu dava um beijo em cada um deles e subia para meu quarto e desmaiava em minha cama. Eu dormia muito cedo todos os dias. Modelo do nosso Telefone

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Parte 13

A nossa casa era muito grande (não canso em dizer isso). Tudo nela à minha visão naquela época era de dimensões que hoje a gente vê em poucas residências. --- Marino, vamos aproveitar que a Vó tá lá no quartinho e vamos brincar de descer a escada com o tapetinho... --- Vamos... O Marino quase sempre mais quieto me acompanhava em aventuras que acho que não faria se eu não o incentivasse. A brincadeira era simples, consistia em sentar no primeiro degrau de cima da escada sobre o tapetinho do banheiro, o qual era grosso e peludo, e o outro ia puxando o tapete para baixo...a gente ria a cada vez que a bunda de quem estava sentado batia no degrau de baixo e bem baixinho, para a Vó não ouvir, dávamos gemidos de dor...

A Escada para a parte de cima Saindo da sala de TV, passando pelo hall aonde tinha um sofazinho de dois lugares e o telefone ao seu lado, tendo à esquerda a sempre trancada sala de visitas, a direita dessa porta de vidro vinha a escada para os quartos. Ela tinha 3 fases, cada uma com mais ou menos 54


uns 6 ou 7 degraus, circundando o hall. Lá em cima, logo a direita um banheiro enorme, com banheira, logo a frente da escada o quarto meu, do Marino e do Marcelo, a direita ao lado do nosso quarto ficavam os aposentos que eram de meu pai e mãe, depois só de meu pai e depois da tia Tita e do Tio Rubens. A direita no final do corredor mais duas portas. Uma a direita dava para outro banheiro menor e em frente a que dava para o quarto da Vovó e entrando nesse, logo a esquerda o da Maria Luiza. Nesse corredor eu e o Marino jogávamos futebol ou gol a gol com bolinhas de meia e era uma brincadeira diária nossa uma vez que ninguém [nenhum dos mais velhos] reclamava daquilo. Era uma brincadeira inocente, não tinha nada para quebrar e não riscava o chão impecavelmente brilhante de sinteco e cera, por ser a bola de meias e nós estarmos descalços. A única coisa que deixava minha avó furiosa e não sei por que, era quando eu imitava a torcida e fazia o barulho dela com a boca. Ela gritava, “para de bufar moleque, isso é feio”. No final da escada, existia esse corredor com os quartos à esquerda e à direita, uma mureta que por cima dela via-se o hall lá em baixo e o sofazinho de dois lugares com o telefone. Uma vez, eu estava lá em cima e minha avó falava nesse telefone. Olhei por cima da muretinha e via exatamente a cabeça de velhinha falando ao aparelho. Coisa de criança, puxei um pouco de saliva pela garganta e fingia que ia cuspir na cabeça dela e no momento que o cuspe estava saindo eu o puxava com o ar e fazia então o barulho da torcida, a tal da bufada que minha avó não gostava falando baixinho [imitando os radialistas que narravam e narram até hoje as partidas de futebol pelo rádio], “ele conseguiu torcida brasileira, conseguiu puxar o cuspe incrivelmente antes de cair”. Minha avó interrompia sua conversa no telefone e gritava “para de bufar moleque”. É impressionante a capacidade das crianças sempre repetir aquilo que os adultos não gostam que façam, hoje percebo isso mais claro com meus alunos. Guardava novamente mais saliva na boca e repetia a operação ten55


tando deixar o cuspe sair mais longe ainda da boca, chupava, fazia a voz do radialista e bufava, fazendo minha avó chamar a atenção novamente. Lá pela quarta ou quinta vez, acumulei muitíssimo cuspe na boca e mirei bem no “cocuruto” da vovó. Quando fui chupar, infiel e demoníaco, o cuspe se soltou de minha capacidade de aspirar e caiu... lentamente... em câmara lenta, até atingir bem o meio da cabeça de minha avó. Ela, passando uma das mãos na cabeça e percebendo que era cuspe, disse então ao telefone, “já que te ligo de novo”. Saí da mureta gritando, não fui eu avó, foi sem querer e entrei no quarto, imaginando na minha doce estupidez que ela se quisesse arrombaria aquela porta frágil com apenas um sopro . Ela parecia um polvo cheio de braços e de mãos me atacando de forma praticamente letal. Alem disso, fiquei de castigo sem poder brincar por um bom par de dias. Nunca mais brinquei daquilo.

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Parte 14

--- Oi Pai... --- Como está filhão? Algumas vezes, que eu me lembre, o papai foi me buscar na escola...essa, era uma das vezes... --- Hoje entreguei o trabalho que fiz para a Professora... Papai estava mexendo no seu carrão novo, o Aero Willys e tinha acionado o acendedor de cigarros, acho que para ver como funcionava uma vez que ele não fumava e não admitia cigarros dentro de casa. O irmão dele, o Tio Mário, quando ia em casa aos domingos, fumava na calçada pois sabia que meu pai detestava aquele vicio. --- E o que ela falou do seu trabalho? --- Num sei... A hora que eu falei isso, não sei se foi sem querer mas meu pai encostou o acendedor de cigarros no meu joelho e disse ... --- Não fale não sei... Eu me lembro que a queimadura ardeu tanto apesar do acendedor não estar totalmente incandescente que eu perdi a voz e chorava mas não saia o som da minha boca... Meu pai ficou desesperado com aquilo, penso hoje que ele não sabia que o negócio estava tão quente. Ele parou o carro, olhou o ferimento e me abraçou e me beijou... --- Vamos na Farmácia... Quando voltamos da Farmácia minha Vó perguntou o que 57


havia acontecido e meu pai conversou com ela na cozinha enquanto eu fui pra o quarto dele, onde eu dormia, e me deitei. Mais tarde, ouvi minha Vó dizer para mim --- Manéco, vem almoçar... Quando eu sai do quarto, ouvi um barulho no banheiro grande que estava com a porta encostada, olhei para ver quem era e vi meu pai, com os braços apoiados na pia, as mãos na água da torneira e o rosto baixo olhando para o chão... --- Que você está fazendo? --- Oi filho...nada...vamos almoçar... --- Você tá chorando? --- Num estou...estava lavando meu rosto... --- Já melhorou o machucado... nem dói mais... Meu pai me abraçou forte... acho que foi o último abraço que ele me deu e ele estava mesmo chorando!

O Quarto de meu Pai As recordações que tenho daquele quarto vêm da época em que ele ainda estava vivo, ou seja, quando eu tinha menos de 10 anos. Eu dormia com ele todas as noites. O Marino, menor ainda do que eu dormia com minha avó. Maria Luiza e Marcelo no quarto do lado da vovó e o nosso quarto, como contei acima, não existia naquela época, ele só foi construído depois da morte de meu pai. Muitas vezes meu pai chegava e minha avó já tinha me colocado na cama dele. Ele era um grande jogador de tênis e por toda casa existiam troféus que ele conquistou durante sua vida, jogando pelo Clube Paulistano. Lembro-me bem de uma vez que ele me contava 58


de sua vinda da Itália, pequenino com o Vovô Marino e de repente, colocou as mãos no seu abdômen fazendo cara de dor. Acho que a úlcera e suas complicações que o levaram já estavam bem adiantadas. Eu perguntei a ele, “está com dor de barriga?” e ele disse que sim. Eu falei para ele então [vejam como as crianças tem o poder de assimilar o que acontece consigo desde tão pequenas] “quando eu tenho dores de barriga eu deito com a barriga para baixo e a dor passa”. Ele assim o fez (lógico que ele já sabia daquilo, mas mesmo assim fingiu que eu estava o ensinando a fazer, acho que para me agradar) e disse para mim, “está melhorando”. Lembro-me que ele dormiu em seguida bem antes de mim. Fiquei orgulhoso por tê-lo curado. Pena que aquela cura foi passageira. Papai Menotti Uma passagem que me lembro bem de meu papai foi quando eu era ainda muito pequeno, deveria ter uns 5 anos e ele chegou em casa com um carro novo. Ele tinha até então um carrinho verde chamado Ford Vanguard e depois desse comprou um AeroWillys bordô [cor de vinho] com bancos na cor creme zero quilômetro. Ele me chamou e disse, vamos buscar sua irmã. Entrei na frente [na época não era exigido menores no banco traseiro] e lá fomos. Aquele cheiro de carro novo, o orgulho com que ele colocava o braço para fora e o outro na direção e o tamanho do interior daquele veículo são inesquecíveis. Chegamos ao Sacré Coeur onde minha irmã estudava e ficamos parados quase na porta. Quando ela saiu e viu meu pai a esperando ao lado daquele carro, acho que nunca vi o semblante de alguém tão feliz. Minha irmã o abraçava, beijava até entrar no banco de trás e seguirmos para casa. -o-o-o-o-o-o-o-oOutro momento de alegria foi quando ele comprou uma máquina de lavar nova. Não me lembro a marca dessa máquina, mas me recor59


do que quando ela chegou os entregadores a colocaram na garagem e lá fomos nós abri-la. Quando abriram meu pai me colocou sobre ela [eu era bem pequeno] e qual foi o meu espanto quando vimos que estava repleta de caixas de sabão em pó da marca Rinso. Foi uma grande alegria e eu que sempre gostei muito da Daria fiquei hiper feliz com a alegria dela. Mais tarde, quando eu era mais velho perguntei a ela se ainda tinha recordações daquilo. Ela disse que foi um dos dias mais legais da vida dela. Disse que quando era pequena e morava ainda no interior de Minas Gerais ouvia no radio as propagandas das maquinas de lavar e ela imaginava que se tratavam de um tanque com duas mãos mecânicas dos lados para esfregar as roupas. o AeroWillys do Papai

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Parte 15

--- Vamos lá, os dois para o banho... sem bagunça no banheiro --- Tá bom... Acho incrível como as crianças, até hoje em dia, tem uma enorme preguiça de tomar banho. A gente não era diferente. Gostávamos quando estava calor e éramos bem menores, quando minha avó dava banho na gente no tanque da lavanderia...ai sim era uma diversão... --- Você vai tomar banho? --- Vamos dar o golpe...

O Banheiro Grande de Cima Como já disse anteriormente, tudo era muito grande naquela casa [as pessoas dizem que quando somos crianças guardamos a relação de tamanho das coisas com exageros uma vez sermos pequenos, mas não é assim neste caso. Era grande mesmo]. O Banheiro que ficava logo a esquerda de quem sobe a escada era enorme, deveria medir uns 6m d largura por 6 de profundidade. Ali aconteceram coisas que marcaram na minha lembrança e uma delas é de quando minha avó, portuguesa e assim com bigode, ia retirar seus pelinhos com cera quente. Lembro uma vez que ela estava na frente do espelho da 61


pia passando a meleca quente em seu bigode e embaixo do queixo, hoje sei que é cera de depilação. Eu ficava apoiado na pia com os braços e meu queixo sobre eles a observar. Ninguém falava nada até que vovó levava a mão ao queixo e puxava aquela massa seca dando um grito. Eu morria de rir com aquilo e minha avó furiosa dizia, “ do que você tá rindo menino, nunca viu...” e dava outro puxão em outra parte arrancando mais cera com pelos e novamente gritava e eu ria muito com seus gritos de sofrimento. Num certo momento ela me tirava do banheiro a trancava a porta. Sentava-me na porta do banheiro e ficava prestando atenção para ver quando ela gritava de novo. Achava muito engraçado aquilo. -o-o-o-o-o-o-o-oOutra lembrança daquele banheiro enorme eram os “golpes” que eu e meu irmão Marino aplicávamos em minha avó. Na época de verão, sempre para economizar energia elétrica, tomávamos banho, eu e o Marino, num dos dois tanques gigantes que existiam numa salinha no quintal que chamávamos de lavanderia. Esses tanques eram grandes em razão de minha avó fazer muitas coisas com tecido, uma vez que antes de costurar ela lavava os tecidos acho que para não encolherem ou para retirar a dureza da goma de fábrica, algo assim. O fato é que no inverno ou em dias mais frios, minha avó mandava eu e o Marino tomar banho no chuveiro do banheiro grande. Preguiçosos até para isso, acho que como a maioria das crianças, ligávamos o chuveiro e brincávamos de toda sorte de brincadeiras naquele banheiro. Um ficava sentado na privada e era o balconista enquanto o outro era o comprador, futebol de meia, tênis com bola de meia e os chinelos como raquetes, luta livre e muitas outras brincadeiras. Ao grito de minha avó, desligávamos o chuveiro e antes disso molhávamos o cabelo, nos enrolávamos na toalha e saíamos para o quarto. Lembro-me que ficávamos 2 ou três dias sem tomar banho, dando o “golpe” na vovó. 62


Parte 16

--- Vó, posso pegar um livro na Sala de Visitas --- Vai, mas não mexe em mais nada... --- Tá bom... Aquela sala era linda. Além dos móveis dali, que eram sem dúvida os mais bonitos da casa, existia uma lareira fictícia. Sempre que eu entrava ali eu ia olhar a lareira. Ela era só de enfeite, pois não tinha uma chaminé era tampada na parte de cima, mas era maravilhosa. --- Que você tá fazendo ai? --- Vem ver... --- O que? --- Os discos que eram do papai... --- Se a vó pega a gente aqui a gente apanha... --- Eu sei...só to vendo os discos A maioria desses discos era de músicas italianas e muitos deles eram pesados que tocavam numa rotação diferente dos “normais”, acho que era rotação 78 e os normais eram 33. --- Vem ver uma coisa... Chamei o Marino para ver como era a rotação 78 e mal sabia eu que quando ligava a vitrola, ligava também o Radio que por sua vez estava no volume máximo... Qual não foi o nosso susto quando o som do Radio começou 63


a fazer aquele barulho que dava para ouvir do outro lado da rua... trememos de medo... O Marino saiu correndo e eu, mesmo assustado, desliguei, fechei a tampa da vitrola, peguei rápido o meu livro e sai da Sala ...estava fechando a porta de correr de vidro quando minha vó entrava pela cozinha... --- Não mexeu em nada? --- Não vó... só peguei o livro. Para conferir ela foi até a porta e olhou para dentro da sala através do vidro da porta de correr... Olhei para o Marino que estava fazendo lição na sala de refeições e demos risadas baixinhas...

A Sala de Visitas Não deveriam ser muitas as recordações dessa sala uma vez que vivia trancada quase que o ano todo. Uma recordação triste é do dia em que meu papai faleceu. Lembro-me que um Senhor, nosso vizinho o qual não lembro seu nome apareceu na porta da minha classe da escola, junto com a Diretora e a mesma após pedir licença para a Professora seguiu até perto de mim pedindo para que eu arrumasse minhas coisas, pois eu tinha de ir embora. Ela me ajudou a fazer isso. Depois já me lembro só de muita gente na sala de visitas, as pessoas conversando baixinho [não sei com certeza se já tinha sido o enterro] e num momento, minha avó chamou eu e o Marino [não me lembro do Marcelo nem da Maria Luiza naquele dia, deveriam estar cada um em seu quarto chorando] que ficamos um de cada lado dela enquanto ela dizia, “o papai de vocês foi para o céu...” disse mais coisas, mas eu não me lembro. Só sei que ela acabou aquele dialogo em que só ela falava e nós ouvíamos dizendo “... e eu vou cuidar sempre de vocês!”. Recordo que ela nos beijou e nós saímos para 64


continuar brincando com nossos primos ou com outras crianças que ali estavam. Eu tinha 9 anos. -o-o-o-o-o-o-o-oOutra recordação da sala de visitas foi a do aniversário de 15 anos da Maria Luiza. Aquela festa me marcou muito. Vieram duas empregadas para ajudar a Daria e minha avó e pelo que recordo uma delas se chamava Guilhermina e era amiga da Daria. Eu a achava a mulher mais feia do mundo e em compensação a mais legal de todas que vinham ajudar as duas na cozinha. Vieram garçons, a sala de visitas foi totalmente aberta e decorada com flores todos estavam vestidos com trajes sociais, inclusive eu e o Marino e pela primeira vez e única, vi a porta principal da casa aberta. Essa porta vinha de um portãozinho da rua que ficava há uns 15 metros do portão grande por onde sempre entramos, mas nunca foi usado antes desse dia, eu até imaginava que aquilo estava emperrado e nunca mais iria abrir. Foi uma festa estupenda, ao som dos Beatles e dos Rolling Stones [imagina estão ai até hoje], Roberto Carlos, Erasmo, Wanderléia e todos da Jovem Guarda que era um programa histórico que passava na TV Record. Até hoje, eu e minha irmã revemos essas fotos e morremos de rir com os cabelos penteados e armados das moças, as calças curtas dos moços, muito engraçado rever tudo isso em fotos. -o-o-o-o-o-o-o-oTenho outras recordações daquela sala. Nas festas de Natal que sempre, até os dias de hoje, comemoramos com muito respeito, lá ficavam os presentes sob a árvore toda iluminada, acho... não sei se tinha luzes. Num desses Natais o Tio Rubens que era muito brincalhão embrulhou uma bexiga como se fosse um presente e colocou ao lado do verdadeiro presente que era a bola de couro. Eu e o Marino tínhamos pedido ao Papai Noel uma bola de futebol e nem pensávamos nas comidas que estavam colocadas na sala de refeições. Ficávamos os dois olhando pela porta de vidro, ansiosos em chegar a meia noite para então abrirmos os presentes e pelo que víamos do vidro, tinha 65


uma bola para cada um. Após a meia noite, após as orações e após ficarmos vendo todo mundo comer que nem loucos finalmente a tia Tita disse, “vamos aos presentes”. Todos entravam na sala e ela ia lendo de quem para quem naqueles bilhetinhos nos presentes e a pessoa que ganhava abria para então passar ao próximo. Não tinham muitos presentes devido a recessão da casa e do país, como sempre, mas para nós, parecia uma eternidade. Chegado o momento o tio Rubens disse, “eu vou dar esse” e pegando um pacote com bola em cada mão falou, “de Papai Noel para o Marino e para o Manéco”. Mais que rápido pegamos os pacotes e qual foi minha decepção quando abri meu pacote e vi que tinha uma bexiga azul. Conformado, passei a ajudar o Marino a abrir o outro pacote enquanto a tia Tita dizia, “que ruindade Rubens”. No dia seguinte, felizes demais, acordamos e fomos ao campo do Clube para chutar nossa bola nova. Quase esquecemos a hora de voltar para casa. Essa é verdadeiramente uma lembrança muito boa. -o-o-o-o-o-o-o-oOutro momento em que me lembro da sala de visitas foi no final do ano que meu pai morreu. Lembro que [com certeza por sentir o peso dessa perda] fiquei de segunda época na escola. Para quem não sabe, antigamente existiam depois das provas normais de final de ano, do último bimestre, os exames finais. Eram para aqueles que não conseguiram fechar suas notas durante o ano letivo comum. Para quem não conseguisse a nota mínima nesses exames existia a segunda época. O aluno estudava até o final de janeiro e então fazia nova prova para tentar passar de ano. Tia Tita ainda não morava em casa, acho que iria se mudar no próximo ano, então veio nos visitar e como soube que eu tinha ficado para essa segunda época me trouxe de presente um disco compacto simples com a música Bigorrilho. Acho que para eu não ver as outras crianças brincando, minha avó me deixava ficar estudando na sala de visitas e milagrosamente [acho que para eu me conformar da perda de meu pai] além de estudar ali podia agora ouvir o meu disco do 66


Bigorrilho. O fato é que eu o ouvi tantas vezes essa música que até hoje sei ela de cor. Com todo cuidado eu colocava o disco e acionava o botão que fazia o braço da agulha ir sozinho até o começo do disco e ai iniciava a música. Eu achava aquilo a coisa mais engenhosa do mundo. Passei de ano na segunda época. -o-o-o-o-o-o-o-oOutra lembrança da sala de visitas é a que, tempos depois de meu pai ter falecido com todos um pouco maiores e mais ajuizados, a sala passou a não ser mais trancada. O acesso era permitido para estudos. O Colégio em que estávamos pedia mensalmente aos alunos, trabalhos sobre analise de livros, de textos, inclusive aquilo me despertou muito para a leitura mais literária. Até então eu era apaixonado por histórias em quadrinhos e as lia com muita frequência, uma vez que o Benedito, o Dito, marido da Daria trabalhava na Banca de Jornal e trazia sempre uma ou outra revistinha para mim. Um dia, após fazer um trabalho, fui guardar naquela sala [ali existiam duas estantes com muitos livros e coleções] um livro sobre Mamíferos e me deparei com uma coleção novinha que acho eu, nunca ninguém a abriu. Era a coleção do Monteiro Lobato e as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo. Peguei o livro número 1 que se chama Reinações de Narizinho, me sentei na poltrona e comecei a ler. Lembro-me que eu vibrava com as histórias e tempos depois eu havia lido a coleção toda com 17 livros. Parece que aquilo abriu minha mente para as histórias e as ficções. Leio muito até os dias de hoje.

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Parte 17

--- Veja se não suja a mesa com essa cola... --- Tá bom --- Me ajuda Luiza... --- Você tem que colar isso aqui... --- Vou pedir pra Daria fazer “grude” Grude, na época das “vacas magras” era a cola feita de farinha e água que a gente usava para os trabalhos escolares. Os adultos até que gostavam mais que a gente trabalhasse com ela porque, caso caísse ou sujasse alguma coisa, ela poderia ser retirada facilmente com água. Às vezes, quando minha avó preparava algum doce na mesa da sala de almoço, a gente era autorizado a fazer trabalhos na Sala de Jantar, desde que não tocássemos em nada.

A Sala de Jantar Da mesma forma que a sala de visitas, não tenho muitas recordações da sala de jantar, pois da mesma forma que a Sala de Visitas, sempre estava tão fechada e tão proibida. Uma das coisas em que me lembro dali eram as aulas que o Osvaldo Luiz, filho do Professor Osvaldo, nos dava, para mim e para o Marino. Ele entendia matemática 68


como ninguém e explicava direitinho. Ocorria que quando eu já me cansava tirava meu tênis cujo qual vertia um cheiro insuportável de chulé que ele parava a aula no mesmo momento e ia embora. Para variar, outra de minhas artes aconteceu ali. A tia Tita tinha viajado para não sei onde e dessa viagem ela trouxe umas bolinhas de vidro com um liquido colorido dentro delas que quando a gente colocava na palma da mão e a fechava, o líquido dentro do vidrinho começava a borbulhar. Um dia, o Beto, meu melhor amigo estava em casa e eu quis mostrar a bolinha para ele e elas estavam numa cristaleira, dentro da sala de jantar. Abri a porta bem devagar, abri a cristaleira com todo cuidado e na ponta dos pés enfiei a mão direita dentro de um pote também de vidro que estava acho eu no terceiro andar. Quando minha mão já saia do pote minha avó gritou me chamando. Soltei a bolinha que caiu dentro do pote se quebrando espalhando aquela água alaranjada por cima das outras. Fechei a cristaleira, sai da sala de jantar e fui ver o que minha avó queria. Tempos depois eu vi a Daria conversando com minha avó sobre a bolinha quebrada. “Acho que quebrou com o calor” diziam elas. Dos males o menor, nem mentir eu precisei. As ceias de Natal eram realizadas naquela sala. Como ela ficava bonita com aquela comilança toda arrumada em 2 enormes bufês ... saladas, carnes, maionese doce e salgada, salgadinhos, doces portugueses, pudins...da água na boca só de pensar. A gente se reunia ali nas noites de Natal, todos com roupas mais apropriadas, banho tomado e goma no cabelo. Na minha família sempre houve um imenso respeito pelas festas de Natal. Hoje em dia, todos divididos co suas próprias famílias, ficou mais difícil de a gente se reunir. Achava maravilhoso ver o Tio Rubens cortando o pernil, arrumando tudo em travessas cercadas de verduras e tomate, a Tia Tita, minha vó e a Dária sempre na cozinha preparando um monte de coisas deliciosas, são ótimas recordações essas. 69


Parte 18

--- Fica ai sem mexer na tomada senão você leva choque... --- Tá ... Quando eu não estudava na cozinha ao lado da Daria eu ficava brincando embaixo da mesa onde ela passava roupa na Lavanderia. --- Daria, porque você sempre coloca um pé descalço sobre o outro enquanto cozinha ou passa roupa... --- hahahahahha...você reparou isso? --- Sim...você se equilibra num pé só... --- Mania da gente da roça... Lavanderia Era uma grande casa e lá moravam muitas pessoas, assim existia um quartinho bem ao lado direito de quem entra pelo portãozinho do quintal o qual chamávamos de lavanderia. Era pequena para os padrões da casa, mas ali tinha uma mesa grande onde se passavam as roupas, uma máquina de lavar roupas que digamos de passagem, não são compactas como as de hoje em dia, acho que era muito maior, e também dois tanques de lavar roupas que comparado ao que temos hoje aqui em casa, com certeza media umas 4 vezes mais. Não era um tanque comprado pronto, ele tinha sido construído naquele local. Lembro-me bem que em dias quentes, minha avó dava 70


banho em mim e no Marino naquele tanque. Apesar da água fria, para nós aquilo era uma festa e até vovó dava risadas com nossa bagunça. Acho que ela fazia isso para economizar energia elétrica e também porque ali ela não precisava se agachar para nos lavar direito. -o-o-o-o-o-o-o-oOutra passagem que me recordo bastante era que, quando pequeno eu sempre queria estar perto da Daria. Enquanto ela lavava as louças do almoço eu ficava na cozinha fazendo minhas tarefas. Quando ela estava na lavanderia passando ou lavando roupas, eu brincava embaixo da mesa da lavanderia. Geralmente a brincadeira era de carrinhos e muitas vezes com o Marino, mas como não tínhamos carrinhos, nós pegávamos aqueles rodízios [não sei bem se o nome é esse, mas são aqueles ferrinhos que são costurados nas cortinas para que elas corram sobre os trilhos] e fazíamos fileiras de “carrinhos”, brincávamos de fila da balsa Santos – Guarujá e todos os dias era a mesma brincadeira, nunca nos cansávamos daquilo. Acho que daí vem um pouco do gosto que tenho por música sertaneja e country uma vez que era o que a Daria ouvia no seu radinho de pilhas. Lembro-me também das novelas no rádio e de um cara que contava histórias fazendo seus sons e depois, acho que descobri ou associei ao Jô Soares, uma vez que o vi na televisão contando as mesmas histórias e fabricando os sons todos. O som do trovão das tempestades era uma folha de zinco que balançava, barulho de fogo era papel celofane sendo amassado e assim outros sons... quando mais velho vi ele fazer o mesmo programa com esses sons “fabricados” na televisão.

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Parte 19

Sobre alguns daqueles que e cercavam... Daria Hoje, quando escrevo essas linhas, algum tempo depois de iniciar esse texto, a Daria com 87 anos ela já não está mais entre nós. Ela foi minha mãe preta, como ela mesma dizia. Sempre fui muito ligado a ela e hoje, com meu trabalho em outro município e a doença dela, a via 1 ou 2 vezes ao mês. A Daria me ensinou a cozinhar, conversava diariamente comigo desde o tempo em que fazia as lições na cozinha, me ajudava em tarefas e sempre me defendia dos meus irmãos e de minha avó, dessa última, quando podia. Tanto da Daria como do Marino citei muitas vezes nesses textos. A Daria por me considerar seu filho e o Marino, como sempre foi e é meu grande e melhor amigo. Uma lembrança engraçada co a Daria foi quando eu, que paquerava a Marli, uma menina que morava no prédio na frente de casa, aceitou namorar comigo e demos um beijinho na boca...acho que foi o primeiro beijo que eu dei na boca de uma menina... Voltei para casa tão afoito e tão feliz que a Daria estava varrendo a calçada e me viu daquele jeito e perguntou... --- Que foi – com um sorriso costumeiro --- Marli aceitou namorar comigo...--- e dei um beijo na boca dela... Tempos depois lembrávamos disso e morríamos de rir... 72


A Daria, minha querida mãezinha nos deixou em 29 de maio de 2012. Os últimos momentos que passei ao seu lado, sem que ela ao menos soubesse, foram de muitas e muitas orações. Eu e minha irmã passamos a residir dentro daquele hospital e dentro daquele quartinho, repleto de aparelhos e de cabos e fios ligados ao seu corpo. Num sábado de sol, quando todos de sua família estavam presentes ela abriu seus olhinhos negros, deu um suspiro e se foi. Muita gente compareceu em sua despedida, ela era realmente um anjo para todos que a conheceram e ali, senti o sentimento sincero de cada um que chorava, que tocava em suas mãos e que orava ao seu lado. Mamãe Maria Stella Minha mãe, como já citei anteriormente, morreu quando eu tinha apenas 2 anos. São poucas as fotos dela comigo, todavia, não sei se foi pensamento ou realidade [não sei se é possível alguém se lembrar de algo que passou consigo com 2 ou menos anos de idade] me lembro de uma cena em que eu via o rosto de uma mulher que de cima de mim me olhava e sorria. Essa imagem que tenho até hoje em minha memória tinha ao fundo vozes, outros sorrisos e um barulho que há algum tempo decifro como sendo de um trem, ou o barulho em que ouvimos quando estamos dentro de um trem, aquele som das rodas e das maquinas trabalhando. Incrivelmente eu sempre ia com minha avó receber a aposentadoria do meu avô que ela retirava numa parada de trens. Meu avô era maquinista da Cia. Sorocabana de Trens e naquela época, minha mãe já havia falecido fazia anos, todas as vezes que entrava naquele local me vinha essa cena novamente a memória. Acho eu, que se tratava da minha mãe que me carregava no colo dentro de um vagão de trem com pessoas a sua volta conversando. Hoje, olhando fotos de seu rosto afirmo a todos e a mim mesmo que era mamãe que me segurava no colo. Mesmo que não seja isso não faz mal, quero morrer 73


com esse pensamento de que seja verdadeiro. Tia Tita Eu sempre fui um admirador de minha tia. Ela conseguiu atravessar uma vida inteira com uma diabetes que a perseguiu cruelmente e todos os dias era obrigada a receber doses de insulina para que as células fossem alimentadas normalmente. O que eu mais admirava nela era seu sorriso. Ela ria muito alto e quando alguém contava algo engraçado para ela, chegava a chorar de rir. Tia Tita era apaixonada por viagens. Ela e o Tio Rubens, acho que viajaram o pais inteiro de carro. Ela gostava desse meio de transporte, pois poderia parar aonde quisesse, muitas vezes só para admirar as paisagens e a natureza. Em casa cuidava muito das plantas, cozinhava e lia incansavelmente. Acho que o dia mais feliz em sua vida foi quando ela se aposentou. Trabalhava na Prefeitura de São Paulo e morria de ódio de sua chefa à qual ela sempre falava mal quando saia do serviço e entrava no carro nas vezes que o Tio Rubens ia pegá-la e eu ia sempre junto. Sempre a achei muito forte. Tio Rubens Foi verdadeiramente um pai para mim. Além da Daria a qual eu acompanhava para toda parte, o tio Rubens era aquele com quem eu gostava de conversar, de viajar e de ficar por perto. Como já disse ele era uma pessoa altamente capacitada e minuciosamente eficiente naquilo que fazia. Com ele aprendi a ser uma pessoa calma e sempre pensar muito antes de falar. Aprendi a medir, ser cuidadoso quando se constrói algo, ter atenção quando se usa ferramentas e estudar aquilo que deve ser feito para se arrumar alguma coisa. Aprendi muito com ele o senso de organização e até hoje cuido muito daquilo que tenho , minhas ferramentas, meus materiais de trabalho, minhas roupas, etc. Eu o 74


acompanhava em praticamente tudo e ele me ensinava a cada dia uma coisa. Depois que comecei a trabalhar como office boy com o Sr. Odilon da Silva na Rua Marconi [eu deveria ter uns 14 anos], ele sempre falava para eu passar no escritório dele que ficava na Rua São Bento e eu obedeci. Fui lá muitas e muitas vezes. Ele me mostrava como funcionava um mimeógrafo, me mostrava aquelas calculadoras que a gente tinha de virar uma maçanetinha, me ensinava a datilografar, a ter uma boa letra e além disso tudo, tanto ele como seu parceiro de sala o Seu Scott, me davam café com leite e pão com manteiga. Eles gostavam realmente que eu fosse lá, não era uma coisa fingida. Aos sábados eu sempre acompanhava o tio Rubens em sua Kombi e íamos da zona sul onde morávamos até o Horto Florestal na zona norte de São Paulo e lá enchíamos dezenas de garrafões de água pura. Ele adorava aquela água. Como já contei, de lá passávamos na feira da Francisca Júlia, ainda na zona norte e ali fazíamos as compras de frutas e verduras uma vez que ele conhecia todos os donos das bancas na feira. Numa certa altura da vida ele e a tia Tita queriam ter um apartamento no Guarujá. Ele e outro amigo organizaram uma espécie de consórcio, compraram todos em conjunto um terreno e ele acompanhava as obras quase todos os finais de semana. Eu sempre ia junto com ele e com a tia Tita. Ali, na Kombi verde, ele me ensinou os primeiros passos para dirigir e as suas lições foram melhores do que qualquer instrutor de auto-escola. Não me lembro de ele ter me dado uma bronca ou me chamado a atenção por algo. Ele sempre me mostrava como e o que fazer. Obrigado tio Rubens. Benedito (Dito) O marido da Daria, Benedito ou só Dito, como costumeiramente o chamávamos era um homem trabalhador e cumpridor de seus deveres, todavia tinha o grave defeito de beber. E olha que bebia muito. Quase todos os dias chegava em casa embriagado, se nós 75


estivéssemos no quintal brincando entre amigos ou fazendo outra coisa qualquer ele dizia bravo com a voz enrolada e a cara de nervoso, “já tão atrapalhando a Daria é... procurem o que fazer... a Daria tem trabalho”. A gente saia então da visão dele, entravamos na cozinha com um pouco de medo e assim que ele subia ao seu quarto, voltávamos para o quintal e continuávamos a brincadeira. Minha avó e a Daria davam risada daquilo, do nosso medo dele. Apesar disso, nunca o vi machucar ou agredir ninguém, pelo contrário, sem beber era uma pessoa amável e cumpridora de seus deveres. Quando eu tinha uns 13 anos e o Marino 11, vários e vários domingos ele nos pegava, com o consentimento de minha avó e nos levava para assistir partidas de futebol no Estádio do Pacaembu. O Marino sempre ia mais vezes, pois eu quase sempre ia com o Tio Rubens e a Tia Tita para o Guarujá, acompanhar a obra do prédio que eles fizeram com os amigos. No Estádio ele comprava para gente toda sorte de comida que por ali passava. Amendoim, pipoca, esfiha e o que eu mais gostava eram uns canudinhos de massa de pastel com creme dentro. Na verdade o creme só estava nas duas extremidades e no meio era oco, só a massa. Nesses dias ele bebia, mas não muito.

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Parte 20 A Turma da Rua Cravinhos Nossa rua era como se fosse um clube. Nossa casa ficava quase na esquina com a Alameda Casa Branca e antes dela tinha um empório do Seu Mario. Ele era um português de bochechas vermelhas e muito gente boa. Quantas vezes fomos lá com a vovó ou com a Daria, sempre para comprar alguma coisa, e ele dava uma bala ou uma salsicha para a gente sair mastigando. Depois da nossa casa vinha a dos Barmak, depois a dos Kallas, a do Sr. Osvaldo que era professor respeitado e da mãe de sua esposa, a Dona Natalina que era uma senhora boazinha que sempre vinha jogar buraco com minha avó e muitas vezes com a tia Milóca. Depois da casa deles era a do Sr. Tarcisio e ai tinha uma vilinha sem saída. Passando a vila tinha a casa do Celso e da sua irmã e lá na esquina com a Avenida 9 de Julho morava o Pernila e o Mosca, dois caras magros que nem eles só, daí o apelido. Vindo da Avenida 9 de Julho no sentido da Alameda Casa Branca pelo outro lado da rua tinha o prédio onde morava a avó do Marcelinho [ou Cabeça, eu nunca o chamei assim pois achava um desrespeito, mas saibam que naquela época já existia o tal do bulling e como existia], a casa do Afonso cujo pai era um respeitado diretor da Nestlé, a casa da mãe da Marina que tenho contatado até hoje em Campos do Jordão, a do Beto, que era meu irmão, meu melhor amigo e por conta das nossas vidas diferentes raramente temos nos visto. Vejo mais o seu irmão o Fernando que se tornou um grande Médico Cardiologista e vive me cobrando 77


para emagrecer e parar de fumar... já emagreci, agora falta parar de fumar. Depois vinha um prédio com alguns outros conhecidos que já não me recordo mais, a casa do Conde que eu nem sei até hoje porque ou quem era o tal Conde que ali morava, só sei que morríamos de medo deles uma vez que quase nunca apareciam a não ser para furar nossas bolas de futebol quando essa caia no seu jardim ou quando minha avó me levava para comprar deles pacotes de manteiga e litros de leite da fazenda. Mais para frente vinha um predio de três andares onde morava minha primeira namorada, Lucia, filha do Sr. Horácio um corredor de kart ou coisa assim. Esse prédio último ficava na frente de minha casa e já ficava também, como o Empório do Seu Mario, na esquina da Alameda Casa Branca. A turma do Marcelo ,da Maria Luiza e da Maria Izilda era diferente da minha e do Marino, logicamente pela diferença de idades. Na turma deles tinha a Sandra e a Lizete Barmak, o Eduardo e o Luiz Kallas, a Janice a Joice e o Osvaldo Luiz, vulgo Loló, filhos do Professor Oswaldo, o Tarcisinho filho do Seu Tarcisio, a Angela e o Celso, o Joaquim e a Cacau filhos da Dona Gessy, o Pernila e o Mosca, o Esquiqui que morava no prédio da esquina com a Avenida 9 de Julho, o Afonso, a Marina e seus irmãos, a Monica que era considerada a menina mais bonita e cobiçada pelos meninos,a Vera Lúcia e o Fernando, irmãos do Beto que era meu melhor amigo todos filhos da Dona Glorinha e do Seu Eliezer e mais um monte de outros que não eram da rua mas se agregavam àqueles. O Roberto e Alberto, o Gilberto, o Marcelo, Lauro Paulo, o Barrica e outros que não me recordo. Eu e o Marino vivíamos na casa do Beto. No fundo da casa dele tinha uma casinha que era da irmã dele e acabou virando nosso segundo clubinho. Brincávamos de carrinho de conjunto musical, imitando meu irmão Marcelo que formou uma banda de rock com os colegas dele. Essa banda se chamava The Junkers. 78


Eles não sabiam que nome dar e na época e pelo que sei, dentro do chiclete Ping Pong vinham figurinhas de aviões então eles compraram um chiclete desses e falaram, “o nome que vier será o nome da banda”. Era um Junker, avião fabricado pela Luftwaffe em 1952. Lembro-me da turma da rua e das coisas que os mais velhos aprontavam. Jogavam taco nas calçadas, soltavam bombinhas na época de São João, jogavam bolinhas de gude na frente da vilinha que existia em nossa rua e lembro que esse fato gerou diversas brigas entre eles e o Sr. Tarcísio que não queria aquele monte de jovens na frente de sua casa. A maior febre na rua era o jogo de botões. Campos e mais campos de Eucatex polido se estendiam aos sábados e domingos por toda a rua. Eram campeonatos vibrantes e disputadíssimos. -o-o-o-o-o-o-o-o Hoje fico pensando sobre a minha capacidade de fazer e de criar brincadeiras estúpidas e que de uma forma ou de outra, minha avó acabaria sabendo e eu com certeza, seria punido por aquilo. Uma vez amarrei um pedaço de barbante forte num poste que ficava um pouco antes do portão grande da minha casa. Estiquei-o até o portão e o cobri com algumas folhas e areia e me escondi agachado atrás do muro de casa. Fiquei então observando a calçada e a primeira sombra que surgisse eu puxaria o barbante. Demorou um pouco e lá veio uma sombra devagarzinho. Puxei. Uma das melhores amigas de minha avó e que volta e meia a ajudava com os doces e salgados, uma senhora negra que trabalhava acho que na casa do Sr. Tarcisio, caiu de cara no chão olhando para mim que de escondido não estava nada, só tinha me agachado ao lado do muro e não calculei que a “vitima” iria cair bem ali. Bem, já se pode imaginar o que aconteceu. A mulher se machucou, quebraram-se os ovos e outras coisas que ela trazia do Mercadinho 79


do Seu Mario e minha avó ouvindo os gritos e vendo-me passando por ela pelo portão do quintal que nem uma bala perdida acudindo a pobre mulher. Pagou suas compras e lá veio o polvo de mil braços para cima de mim. Depois ainda me levou até a casa aonde a mulher trabalhava e me fez pedir desculpas para a mesma. Coitada tinha ataduras no rosto e nos braços. -o-o-o-o-o-o-o-o Uma das minhas diversões preferidas era andar de bicicleta. Eu nunca tive uma delas e sempre andava com bicicletas emprestadas. Certa vez, eu deveria ter por volta de treze anos,o Beto me disse, “pega a bicicleta do Nando [seu irmão mais velho, o Fernando]. Lá fomos nós e quando vi percebi que era uma bicicleta grande, acho que aro 36 como chamavam na época e eu não conseguia ficar sentado e colocar o pé no chão. Quando parasse, teria de pular do banco para equilibrar ela em pé. Alem disso, a bicicleta do Nando estava com o freio desregulado e para brecar mais rápido eu tinha de usar a sola do tênis no pneu de trás. Me acostumei e pensei que já a dominava totalmente então, fomos andar mais longe da Rua Cravinhos, passamos a dar voltas no quarteirão. Saíamos da Rua Cravinhos, entravamos a direita na Rua Presidente Prudente e subíamos novamente pela Avenida 9 de Julho até alcançarmos a Rua Cravinhos. A confiança era tanta que começamos a ir então mais longe ainda. Na Rua Presidente Prudente tinha uma Travessa que descia para a Rua Estados Unidos que era bastante movimentada e esse foi o local do meu primeiro acidente. Achando eu que já era o rei da bicicleta grande, entrei a toda velocidade na Rua Presidente Prudente e pedalei mais até fazer a curva a direita naquela travessa que descia para a Rua Estados Unidos. Com carros estacionados dos dois lados e chegando já no seu final, me preparava para brecar com os pés no pneu de trás quando de repente um enorme taxi, daqueles modelos Ford com paralamas dos lados 80


entrou na rua. Nem deu tempo de eu tentar fazer alguma coisa e bati de frente indo meu corpo ir parar no vidro do motorista. Sem nem pensar em me acudir desceu do carro o português mais nervoso que já conheci por toda a minha vida. Aos tapas ele me retirou de cima do carro, arremessou a bicicleta do Fernando na calçada e perguntou aonde eu morava. Sentado na calçada, meio nervoso com o acontecido eu disse, “moro na Rua Augusta, lá do outro lado da Avenida Paulista”. A mentira deu certo. Ele deu um chute na bicicleta entrou no carro e eu voltei para casa empurrando a bicicleta, mancando e com dores pelo corpo todo, principalmente na orelha e nas bochechas. -o-o-o-o-o-o-o-o Um dos nossos amigos, que não era bem da nossa rua e sim da rua de cima, a Rua Caçapava, era o Alfonse. Seu pai era proprietário de uma joalheiro muito famosa e acho que até hoje existem lojas com o nome dele em São Paulo. Alfonse era um dos caras mais doidos que eu conheci até hoje. Certa vez, após assistirmos um filme no cinema chamado Melody, resolvemos então fazer uma bomba caseira imitando os garotos do filme. O chofer da casa de sua mãe foi fazer um trabalho no centro da cidade e ele pediu para que o mesmo comprasse um pedaço de estopim, desses que são fabricados para ascender dinamites. Juntamos nosso dinheiro [mais o dele porque eu não tinha quase nada] e compramos muitas bombinhas. Abrimos com cuidado uma por uma e no total, enchemos de pólvora quase que metade uma lata de Nescau. Completamos a mesma com pedras, fizemos um furo para o estopim e a fechamos com mais de 5 rolos de fita isolante ou seja, fizemos uma bomba mais poderosa que uma dinamite de verdade. Ele morava num prédio e do outro lado da rua existia um terreno baldio. Fomos até o meio desse terreno, cavamos uns 3 81


palmos de terra, pusemos a nossa “dinamite” que era como chamávamos, cobrimos a mesma com terra e pedra e ascendemos o curto estopim. Foi ai que descobrimos que aquilo não se queima tão lentamente como aparece nos filmes, antes de nos levantar dali a chama já estava quase que dentro da terra e ele gritou, “corre...”. Assim que atravessamos a rua eu olhei para trás e a explosão aconteceu. Ela nos empurrou para frente nos derrubando sobre a grama e quando eu cai deitado, olhei para trás e vi um enorme cogumelo de pó e fumaça que se erguia a uma altura maior do que o sobrado ao lado do terreno. Pensei comigo, “meu Deus, o que nós fizemos”. As pessoas saíram nas janelas das casas, algumas delas quebradas pelo impacto e me lembro de uma senhora no terraço de uma casa gritando, “meu marido é doente, vocês querem matá-lo...”. Infantilmente corremos para dentro do prédio e subimos para o seu apartamento. No elevador ele ainda olhou para mim e disse, “vamos fazer outra”. Não demorou 5 minutos que estávamos no seu quarto e ouvimos mais de 5 carros da Policia chegando. Estávamos em plena ditadura militar e aquilo me fez tremer o corpo todo. Lá de cima vimos os policiais entrando no prédio e logo depois tocaram a campainha do apartamento. A avó dele que estava em casa atendeu, ficou conversando com os policiais e chamou o Afonso. Ouvi ele com a voz trêmula falando aos policiais, “nós juntamos um monte de bombinhas e coincidentemente elas estouraram todas juntas”. Essa não vai colar, pensei comigo, mas logo ele voltou com o rosto pálido, sua avó conversou um pouco mais e eles se foram. A avó dele o chamou e ele pediu para eu ir embora que ele me ligava depois. Dois ou três dias depois ele me convidava para irmos juntos ao cinema. Eu fui. -o-o-o-o-o-o-o-o82


Outro fato que aconteceu comigo e com gente da rua foi o de uma vez eu estar voltando da escola e descia a Alameda Casa Branca. Era uma reta até em casa. Quando passei pela Alameda Lorena, um caminhão desses de concreto [uma betoneira como chamam], que subia a Alameda Casa Branca começou a pender para o lado esquerdo, pois o motorista havia passado dentro de um buraco que a companhia de água havia feito na rua. Ele pendeu, pendeu e o buraco afundou e foi impressionante, metade do caminhão de lado ficou afundado no buraco. Eu vi tudo e fiquei impressionado com aquela cena. Fiquei ali parado, com a mala da escola entre as pernas e a aglomeração foi geral. Chegou polícia, ambulância, outros carros da companhia de águas, muita gente. Numa certa altura desse acontecimento alguém me perguntou se eu tinha visto o que ocorrera e eu timidamente disse que “o motorista acertou o buraco com a roda de trás e o caminhão foi engolido...”. Mal eu tinha acabado de falar isso, um senhor [que depois percebi ser o motorista do caminhão] veio para cima de mim querendo me bater. Assim que ele se aproximou de mim, aos gritos, me xingando dos piores nomes do mundo, surgiu o namorado da Lisete, que era nossa vizinha. Seu nome era Nathan, jamais me esquecerei desse meu salvador. O Nathan era faixa preta de judô e me lembro que ele pegou o motorista pelo colarinho e levantou o homem já o estapeando e gritando. “Você vai bater no menino, vai, bate em mim primeiro” e não dava nem chance do homem responder. Eu peguei minha mala assustado e comecei a seguir o caminho de casa quando o Nathan disse, “se quiser pode ficar Maneco, eu vou estar aqui”. Fui embora. -o-o-o-o-o-o-o-o Nessa mesma esquina, da Alameda Casa Branca com a Alameda Lorena, bem pertinho de casa, acho que 2 quarteirões pequenos, foi aonde o Governo Militar armou uma emboscada e 83


mataram o que eles chamavam de Terrorista ou Comunista chamado Carlos Marighela. Na verdade ele era do Partido Comunista e logicamente não era bem visto pelo Governo Militar. Nesse dia, já deveria ser mais ou menos umas 6 horas da tarde, estava começando a escurecer e era um domingo pois o Tio Mario estava em casa, estávamos vendo televisão, jogo do Corinthians e um repórter entrou em uma espécie de plantão e contou sobre o atentado...curioso que eu era fui lá correndo para ver...

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Parte 21

A Escola Boletim Alterado Uma das recordações mais marcantes do meu início de estudos é que quando comecei a receber notas. Recebi o meu primeiro boletim que vinha junto com a carteirinha de presença. Eu deveria ter 6 anos pois nem sabia ler e escrever direito. Distribuídas as carteiras com as notas para todos da classe, a Professora explicou, “nessa carteirinha tem as notas de vocês, peçam para seus pais assinarem e tragam na segunda feira”. Acabada a aula, meu pai sempre demorava um pouco para vir me buscar e eu fiquei olhando as notas até que me deparei com um zero. Era o fim do mundo, eu não poderia acreditar o que meu pai ia falar por eu ter levado um zero. Fui para casa e não mostrei para ninguém. Num momento, consegui uma caneta preta, igual a que o zero estava escrito e sorrateiramente coloquei um número 1 na frente do zero. Não me lembro de comentários de meu pai sobre aquilo comigo, mas na segunda feira, quando me levava na escola achei estranho ele descer do carro e seguir comigo, normalmente ele me deixava e ia embora. Ele chegou até a Diretora do meu lado e disse a ela, “deve ter alguma coisa errada nisso aqui, pois ele está com 10 faltas, como pode isso se ele nunca faltou?”. A Diretora olhando para mim com ar de quem sabia o que havia acontecido disse, “deve ter 85


ocorrido algum erro Seu Menotti, pode deixar que eu arrumo. Não vou dizer que nunca mais falsifiquei assinaturas de notas ou de advertências, mas comecei a prestar muito mais atenção quando fazia aquilo. Barbantinho de Enxofre Lembro bastante de todas as aulas que tínhamos na escola. O laboratório de química, as aulas de educação física com o Professor Ribas, as de áudio visual, educação sexual com a Professora Munira, enfim, o Dante Alighieri sempre foi e sempre será uma escola inovadora e bem a frente das outras. Uma das aulas que mais me recordo era a do Professor Maestro Callia, o qual virou até nome de rua e fico contente por isso. Muitas vezes ele dava solfejo e canto e ele ia ao piano para tocar enquanto os alunos, atrás dele, faziam brincadeiras e gracejos até ele dizer com um forte sotaque italiano, “o piano nella mia frente es un espelho, posso vere tuto que acontece”. Uma vez, alguns amigos e eu compramos aqueles barbantinhos de enxofre, acho que nem vendem mais. A gente ateava fogo numa ponta e logo apagava e ele ia queimando sozinho. O cheiro que aquilo exalava era de profundo enjôo. Certa feita, quando ele tocava seu piano, ascendi 3 ao mesmo tempo e como me sentava no fundo da classe ninguém pode ver, a não ser uma menina chamada Denise que se sentava a minha direita. O cheiro foi se alastrando de tal forma que o Professor foi até a janela para ver se existia algum esgoto aberto e a essa altura, todos alunos da classe estavam passando mal. Ele olhou para a classe e disse, “quem está soltando esse cheiro?”. A classe ficou em completo silencio e a Denise ficava me olhando com um jeito de que iria me dedurar. Ele repetiu com seu sotaque italianíssimo, “última chance, quero saber quem está soltando essa coisa fedorenta senão a classe toda será suspensa”. Denise não iria aguentar ser suspensa e no momento 86


em que ela ia falar... vomitou, sei lá se de medo da suspensão ou dos meus olhares ou ainda do forte cheiro. O Professor Callia, comovido com aquela situação pediu para que todos então saíssem da classe. Aquela foi por pouco. Eu deveria ter uns 13 anos. Queimadura Outra recordação que tenho e um dos motivos pelo qual não tenho tantos pelos na lateral de dentro de minha perna esquerda, aconteceu lá na escola. Quando meu pai faleceu, quem vinha nos buscar na escola era a minha avó. Na parte de trás da escola depois das grades que cercam todo colégio, existia uma cerca viva de Fícus cortada toda quadradinha como um ornamento. Minha avó sempre falava para mim e para o Marino, “não brinquem perto dessas árvores que aí tem taturanas”. Um dia, estávamos brincando de esconde - esconde esperando minha avó ou meu irmão [não me lembro ao certo] e voltar para casa. Vi o pezinho do Marino atrás de um desses arbustos e pensei, “vou dar um susto nele”. Olhei para o chão e reparei que tinham uns vidrinhos marrons jogados no chão. Peguei um deles e quando ia jogar um líquido saiu de dentro dele e caiu no meu joelho. Aquilo começou a queimar muito e eu mancando caminhei para dentro do prédio, fui até um bebedor ali perto e joguei água. A dor se espalhou, o sinal do colegial tocou e eu desmaiei. Acordei momentos depois dentro da enfermaria da escola com uma enfermeira esvaziando dois frascos de Hipoglós sobre a minha perna. A pasta caia branca e derretia amarelada. Levaram-me para casa no carro de alguém e minha avó ainda me deu uns puxões de orelha. Mais tarde soube que os vidros continham restos de ácido sulfúrico usado pelos alunos no laboratório e jogados pela janela desse, quem sabe por eles mesmos. Sorte que não consegui jogar no Marino. 87


Parte 22

Trabalhos Valdisa Meu primeiro emprego foi na Valdisa, uma distribuidora de títulos e valores mobiliários, como dizia na placa de entrada, num edifício tão antigo quanto a cidade de São Paulo. Essa Empresa era de um amigo de meu pai, o Senhor Odilon da Silva. Hoje fico imaginando quanta paciência aquele homem teve comigo. Ele e seus funcionários me ensinaram muita coisa naquele começo. Diga-se de passagem, não eram muitos e que eu me lembre tinha uma secretária chamada Henriqueta, o Oséias, um rapaz que fazia a contabilidade no próprio local e o Senhor Jaime Braga Rocha, que não sei bem ao certo o que fazia ali, mas acho que deveria ter alguma parceria com o Sr. Odilon e usava uma das 4 salas do escritório. O escritório da Valdisa ficava na Rua Marconi, quase na esquina com a Barão de Itapetininga. Assim que se entrava no prédio, podia-se notar a data em que aquele edifício deve ter sido construído. A recepção do Prédio era toda de mármore cor de rosa e após as recepção existiam os 2 elevadores. Sempre tive muito medo daqueles elevadores e apesar de serem conduzidos por ascensoristas, sempre que eu os utilizava imaginava que iríamos cair dali. O elevador tinha duas portas, uma de madeira que ficava na parte externa e uma grade de ferro [com uma sanfona] que ficava para o lado de dentro. Para subir, o ascensorista empurrava uma alavanca gasta 88


de madeira para a esquerda e para descer no sentido contrário. Quando estava chegando ao andar para parar [nas paredes entre um andar e o outro existia uma pintura na parede com o número do andar seguinte] o ascensorista deixava aquela alavanca na metade de sua inclinação e soltava-a exatamente na hora de parar. Achava o máximo que eles nunca deixavam degrau para as pessoas descerem. Logicamente que com minha curiosidade e com o tempo, ficando íntimo daqueles homens, pedia várias vezes para dirigir o elevador, e eles sempre deixavam. Quando o aparelho parava, eles abriam a porta sanfonada de metal com as mãos e existia uma alavanca nas portas de madeira que só se abriam por dentro. No 10º andar, quase todas as portas era o escritório da Valdisa, mas apenas uma das portas ficava aberta para o corredor, as demais eu nunca as vi abertas. A sala de entrada era a da Secretária, à esquerda ficava a do Sr. Odilon, à direita era a minha e do Sr. Jaime e seguindo mais em frente a do Oséias e mais uma tonelada de papéis. Meu trabalho não era complicado, eu como office boy ia para todo canto levar coisas que muitas vezes eu nem sabia o que era [estavam em envelopes]. No fim da tarde me mandavam fazer depósitos nos bancos, pagamento de contas, etc. Quando estava no escritório eu ficava a pedido da secretária conferindo números, escrevendo alguma coisa que ela pedia na máquina de escrever, somando algumas contas, o que na época se fazia numas máquinas de somar que se apertavam os botões do número e girava uma alavanca para carregar a máquina, depois se colocava outro número e repetia-se o processo, difícil de descrever como era só vendo mesmo. O que eu mais gostava de fazer era mexer no mimeógrafo. O Sr. Odilon pedia para eu tirar cópias de uns avisos e eles tinham de ser datilografados numa folha que se chamava estêncil. Eu tomava o maior cuidado para não errar porque não tinha como consertar o erro e o Sr. Odilon sempre dizia que aquilo custava caro. Muita gente, principalmente os jovens não devem conhecer. Trata-se de uma maquina com um cilindro aonde é fixado o estêncil e quando 89


girado, ele fica umedecido ao álcool e então se coloca uma folha em branco à qual é imprensada e assim o que está no estêncil aparece na folha de papel. Eu gostava muito de fazer aquilo. -o-o-o-o-o-o-o-o Comecei a trabalhar na Valdisa quando completei 13 anos. O mais engraçado é que fico vendo nos dias de hoje como eu era diferente dos meus alunos com aproximadamente a mesma idade . Eu andava muito por todo o centro de São Paulo, Avenida Paulista e muitos outros locais. Meu maior divertimento era brincar comigo mesmo e com as outras pessoas pelas ruas sem que ao menos elas imaginassem isso. Como o Sr. Odilon dizia sempre para eu ter cuidado com aqueles documentos eu os levava numa pastinha de couro colada ao meu peito e ao mesmo tempo fingia que ela era a direção de um carro de corrida. Numa avenida qualquer ou num viaduto eu mirava uma pessoa lá na frente, distante de mim e pensava comigo mesmo, “tenho de alcançar aquela pessoa que está em primeiro lugar”. Eu saia em disparada, sem correr, mas andando bastante rápido desviando das centenas de pessoas que iam e vinham até ultrapassar aquele indivíduo e assim, passando a ser o primeiro sei lá do que. Acho que de uma competição que estava dentro de minha própria cabeça. Nunca contei isso para quem quer que fosse, mas o Senhor Odilon sempre me elogiava porque eu era muito rápido para fazer todo o meu trabalho. -o-o-o-o-o-o-o-o Como descrevi em textos anteriores, o Senhor Odilon era uma pessoa muito paciente comigo e minha maior falha naquele primeiro emprego era a de chegar atrasado de manhã. Eu sempre acordava atrasado e o transito em São Paulo já era bastante intenso [não como hoje]. Uma daquelas manhãs eu estava um pouco 90


adiantado e caminhava tranquilamente pela Rua Xavier de Toledo até quando cheguei na frente do Teatro Municipal e ouvi alguém gritar, “olha, um incêndio”. Quando olhei para onde a pessoa estava apontando pude ver o início do fogo que queimava um dos andares do Edifício Joelma. Curioso como sou até hoje, lá fui eu até a Ladeira da Memória e ali permaneci. Vi os primeiros bombeiros chegarem, vi o fogo se alastrar até que o prédio todo estava em chamas. Num momento olhei no relógio e já eram quase 10 horas da manhã e eu entrava as 9. Saí correndo pela Rua 7 de Abril, desci a Rua Marconi correndo e entrei no escritório onde o Sr. Odilon estava na primeira sala a minha espera. Assim que entrei ele disse, “o que houve dessa vez Manéco, são mais de 10 horas da manhã”. Puxando o ar pelo cansaço eu disse, “os ônibus que chegam pela Avenida 9 de Julho não passam... o Edifício Joelma está inteiro em chamas”. Ele mais do que rápido vestiu seu paletó e se foi. No dia seguinte fiquei sabendo que ele tinha amigos que ali trabalhavam e muitos deles morreram no incêndio. Fiação e Tecelagem Sant’Anna Indicado não sei por quem, fui preencher uma ficha na Fiação e Tecelagem Sant’Anna. Eu havia acabado de sair do serviço militar e queria retomar a vida civil o mais rápido possível. Depois de preencher a tal ficha pediram para que eu aguardasse um pouco numa sala e depois de alguns minutos me chamaram dizendo que eu seria entrevistado. Entrei numa pequena sala e ali estava um homem pequeno, mas com uma voz alta, bastante estridente. Ele me fez diversas perguntas e disse ter gostado de minha ficha. Me perguntou tantas coisas pessoais que eu quase o indaguei o porque de se saber tanto de minha vida pessoal, coisas como, “sua avó está bem de saúde?” ou “qual a idade da sua irmã?”. Num certo momento ele retirou do bolso de seu paletó um cartão e colocou na minha frente. Era um cartão pessoal e o nome daquele homem 91


era Luiz Antonio Conti Nunes. Eu olhei para ele e disse, “temos o mesmo sobrenome”. Ele começou a rir e disse, “nós somos primos, eu sou filho da Dona Rosa, irmã do teu pai Menotti”. Eu achei muita coincidência, entretanto já me senti empregado e foi exatamente o que aconteceu. Ele me apresentou meus dois colegas de trabalho, o José Carlos Cervelleiras e o Washington Hiroshi Togawa. Eram dois caras incrivelmente legais e ali fiquei anos trabalhando com bons amigos. Além do ramo de fiação e tecelagem existia uma nova vertente naquela empresa, a divisão de pisos e azulejos Sant’Anna. Meu trabalho era distribuir as novas tabelas de preços e atender a todas as necessidades dos vendedores que chegavam a toda hora de todos os dias, datilografar os pedidos que eles traziam e distribuí-los ao José Carlos que cuidava da Divisão de Pisos e Azulejos e os pedidos da Fiação e Tecelagem para o Washington. Era bastante trabalho, mas nós três nos dávamos muito bem.

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Parte 23

O Clube A turma do Clube Paulistano era a minha turma. Além de frequentarmos as piscinas e os esportes desde pequenos, eu e o Marino íamos diariamente ao Clube, nem que fosse só para passear e conversar com a turminha. Como ele ficava razoavelmente perto de casa, mais ou menos uns 2 quilômetros, os adultos deixavam a gente ir sozinhos. Maria Luiza e Marcelo frequentavam bem menos o clube, ela ia nos finais de semana para tomar sol e o Marcelo raramente estava por lá. Uma das minhas paixões ali era jogar ping pong. Eu e o Neco grudávamos na raquete e ficávamos muitas vezes um sábado inteiro sem sair da mesa. Tínhamos uma boa técnica e o jogo era assistido por muitos que ali estavam, me sentia um profissional. Houve épocas em que frequentávamos mais a sala de xadrez, assistíamos os mais velhos jogando sinuca e nosso ídolo era o Pondé. Eles jogavam “vida” valendo dinheiro e os jogos eram bastante tensos. Muitas vezes vimos brigas feias ali. A freqüência de todos no bar térreo era imensa e na minha adolescência levava até as lições de escola para fazer ali nos finais de semana uma vez que comecei a trabalhar aos 14 anos. Aos domingos a atração era o Mingau. Uma espécie de boate para os mais jovens que começava as 8 da noite e terminava as 10 e meia. No clube ou com o pessoal de lá aconteceram vários casos que ficaram marcados em minha memória. Vou descrevê-los e procurarei ser bastante ético para em 93


alguns desses casos só colocar os apelidos das pessoas. Além disso minha memória não está tão boa para lembrar nomes. Minhas namoradas Déborah, Maria Lucia, Inês, meus amigos Neco, Silvio Semin, Gato Preto, Renato, João irmão do Renato, Sérgio, Waldiner, Carula, Galinha e tantos outros que seria impossível lembrar todos aqui. A Casa da Suzana Você vai pensar que isso é mentira, mas posso afirmar e jurar de pés juntos que é a mais pura verdade. Veja até que ponto chegava minha timidez. Acho que por volta dos meus 17 ou 18 anos namorei com uma menina que se chamava Suzana. Eu sempre que podia ia vê-la em sua casa e muitas dessas vezes sua mãe, Dona Ida e seu pai Seu Alfredo me convidavam para jantar. Esses convites eram sempre feitos por telefone antes de eu ir. Tenho certeza que todos eles gostavam muito que eu fosse lá. Numa noite de verão, em que eu já sentia alguns desarranjos intestinais lá cheguei para um daqueles jantares. Tudo muito bom, não tenho a mínima lembrança do que foi servido no jantar e na sobremesa, mas terminada a janta, eu e a Suzana fomos ver televisão. Seus pais, sua irmã, que era uma menina lindinha e não me recordo o nome e mais uma senhora que lá estava, acho que era a avó dela, todos foram juntos. Imagine você que essa sala de televisão era bem pequena, deveria medir uns 5 metros por 2 de largura e tinha a poltrona que pai e filha menor em seu colo sentaram, uma cadeira extra colocada ao lado dessa poltrona onde sentou sua mãe, à esquerda deles um sofazinho de 2 lugares onde sentamos eu e a Suzana e a nossa esquerda, acho que uma cadeira de balanço aonde sentou-se aquela senhora, a avó. Bem atrás de onde estava a avó de Suzana, tinha um banheirinho que deveria medir 1 metro e meio por 1 metro e lá dentro, só a privada. A pia ficava logo que se saía desse cubículo. Vimos alguns minutos de televisão e começou a minha maldita dor de barriga. Segurei o quanto pude 94


e isso, ao que me lembro, não foram nem 5 minutos. Pensei que iria fazer cocô nas calças. Levantei-me e disse, “posso usar o banheiro?”. Autorizado, lá fui eu. Sentei-me confortavelmente apesar de logo notar que ali estava mais quente do que fora, pois não havia nenhuma janela no local. Todos sabem que muitas vezes fazer cocô às vezes desprende barulhos de toda sorte. Principalmente gases, ainda mais quando você está com um total desarranjo dos diabos. Resumindo, acho que de tanto fazer o cocô devagar para não fazer barulho, pois só pensava comigo, “eles estão ai do lado, posso ouvir a respiração deles”, imagine o que eles ouviam lá de fora. Acho que aquele trabalho demorou bem uns 10 minutos, ou mais. Tudo terminado, já nem me incomodava mais o cheiro que deveria estar, o que me deixava apavorado era que eu estava absolutamente molhado de suor por permanecer tanto tempo em um lugar tão pequeno e tão fechado como aquele numa noite dessas que por baixo deveria fazer 28 graus, no mínimo. Mas o pior não havia passado, e para o meu desespero total foi depois de tudo isso notar que no local apropriado e logicamente, em lugar algum do cubículo, existia um pedaço de papel higiênico. Eu poderia simplesmente pedir, mas não. Quase chorei. Não sei por que, puxei a descarga que era aquela de caixa que demora certo tempo para encher. Acho que até pensei em lavar com a água limpa que entrava na privada, mas não sei por que, não o fiz. Pensei rápido em o que fazer, vestir as calças e ir embora, não dava, estava muito sujo. Uma luz veio a minha cabeça. As meias. Retirei os sapatos e as meias, vestindo novamente os sapatos sem elas. Limpei-me. Mas e agora, pensava eu, aonde jogo. Dentro da privada, nada mais certo. Levantei-me, vesti as calças, tentei secar o suor que jorrava de minha cabeça e eu sentia as gotas escorrendo pelo pescoço. Acho que nessa altura, eu deveria estar lá dentro a mais ou menos uns 20 minutos. Sem ar. Desesperado. Apertei o botão da descarga e pensei, “pronto, saio e digo que não estou passando bem e vou embora”. Quando a privada voltou a se encher, deparei com outro 95


terror. As meias não tinham descido pelo cano. “Meu Deus” pensei apavorado. Eles vão ver isso e logicamente vão saber que fui eu. Esperei mais um tempo até a maldita caixinha de água se encher e plaft, tentei novamente. Nada. A água levava e trazia. Acho eu, não me lembraria disso nem no dia seguinte do ocorrido tamanho era meu desespero, mas puxei aquela descarga e a esperei encher novamente umas 6 vezes. Vi então no local aonde se coloca o papel higiênico, aquele papelão onde o papel propriamente dito é enrolado. Pensei comigo, “será a última vez”. Apertei a descarga, chuchei com aquele tubinho fazendo com que minha mão se molhasse na água e pronto, a meia se foi. Joguei o papelão no lixo, me preparei psicologicamente e abri a porta. Todos me olhavam espantados. Calmamente fui até a piazinha, lavei minhas mãos, lavei o meu rosto, me sequei com a toalhinha que com certeza não era para tanto e me virei dizendo, “gente, me desculpem, não estou muito bem e acho que vou embora... você abre para mim Suzana”. Quando ia me despedindo me lembro que a mãe dela disse, “nossa Mané, você tá suando”. Respondi, “acho que é o calor, boa noite e obrigado pelo jantar”.

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Parte 24

Guarujá Posso dizer que cresci no Guarujá. Como eu ia todos os finais de semana com a Tia Tita e o Tio Rubens para lá, onde eles acompanhavam as obras do futuro apartamento deles. Antes de o prédio ficar pronto, a Tia Tita preparava delícias para comermos e assim que a obra era verificada, lá íamos nós para a praia. Ficávamos ali mesmo, na esquina da rua do Prédio, na praia da Enseada. Éramos perfeitos farofeiros e o que mais me irritava e que me deixa enjoado até hoje só de sentir o cheiro, é o creme Nívea. Naquela época não existia filtro solar e eu, mais branco que uma folha de papel era enlameado com aquela coisa no nariz, lábios, ombros e pernas. Eu não saia da água e sempre imaginei que não servia para nada uma vez que o creme saia rápido e lá vinha a tia Tita passar mais. Minha relação com água foi muito grande durante toda a minha vida. Adoro nadar seja em piscina, cachoeira, mar, lago e hoje, morando em Campos do Jordão, é uma das coisas que sinto muita falta por aqui. A presença de água. Lembro-me que antes de passarmos pela balsa que leva as pessoas de Santos para o Guarujá, passávamos numa padaria na Avenida Ana Costa e a Tia Tita comprava enormes sonhos com muito recheio de baunilha. Como toda criança era a única coisa que eu queria comer e muitas vezes implorei para que ela dispensasse a comida da minha frente e me desse o sonho. A tardezinha, quando o sol estava para se por, entrava na Kombi do Tio Rubens e antes de voltarmos para São 97


Paulo passávamos na casa de um velhinho que cultivava bananas na estrada que liga Guarujá a Bertioga e o Tio Rubens comprava pencas de banana de todo tipo. Quase sempre eu voltava dormindo num dos bancos de trás e só acordava em casa. -o-o-o-o-o-o-o-o Ali no Guarujá também aconteceram fatos de medo que ficaram marcados na minha vida e na minha memória. Um deles aconteceu uma vez que estava eu, meu primo Kleber e mais um primo o qual não me recordo o nome. Não sei ao certo, mas acho que o Marino não estava nesse dia. Passeando pela rua da praia da Enseada, achei num monte de entulho uma garupa velha de uma bicicleta. Ao lado dela tinha um arame, também velho. Amarrei o arame na tal garupa de ferro e comecei a rodá-la. Meu primo dizia, “cuidado que isso vai escapar”. Dito e feito. Bem na esquina de nossa rua o arame quebrou ou se soltou, nem vi, e voou direto no vidro traseiro de um carro da polícia que passava por ali. Com o vidro estilhaçado e os guardas descendo do carro eu comecei a correr no sentido do Prédio do Tio Rubens e percebi que os policiais olharam, demoraram um pouco, mas vieram atrás. Nunca corri tanto em toda minha vida. Estava apavorado de medo e vendo que não iria dar o fôlego para chegar ao Prédio, entrei por um muro quebrado num terreno baldio, fui ao fundo dele e me deitei no meio do mato. Foram momentos de tensão. Ouvi os passos dos policiais que chegaram até a frente do terreno... um deles disse “acho que ele entrou nesse terreno”. Eu tremia e suava de medo. Ouvi o barulho do mato sendo pisado até que a menos de 2 metros de mim apareceu um coturno, aquelas botas que a polícia usa. Fiquei imóvel e acho que nem respirei. Foram embora. Até hoje fico pensando se aquele soldado não me viu ou se por pura piedade do que poderia acontecer comigo ele não me dedurou. Fiquei ali deitado acho que por uns 30 minutos ou mais. Quando escureceu 98


levantei a cabeça, vi que não tinha ninguém e fui para o Prédio. A turma estava toda sentada na mureta e logo me perguntaram, “onde você estava escondido... eles te pegaram?”. Entrei, tomei banho e não sai naquela noite para brincar na rua como era costume.

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Parte 25 Adolescente Os Acampamentos Minha passagem pela adolescência ficou marcada pela série de acampamentos que fiz. Um dos nossos lugares prediletos era Monte Verde. Bastava haver um feriado e lá íamos nós. O Marino ia somente em alguns. Normalmente eu, o Carlo Longobardi, Renato Hellmeister, Sérgio Assumpção, Raul Aronis, Betinho, que era um cara de impressionante força de vontade, eu sempre o admirei intensamente. O Betinho teve paralisia infantil e fazia muito mais coisas do que todos nós juntos. Ele dirigia como ninguém seu Tomate que era o nome dado a 1 opala 4100 vermelho e automático. Subia em árvores para fazer cocô com uma facilidade indescritível, usando logicamente somente seus braços, subia e descia morros e cozinhava muito bem. Algumas histórias dos acampamentos em Monte Verde marcaram muito. Uma vez, nessa o Marino estava, montamos as barracas e cada uma delas tinha duas pessoas. Eu estava com meu amigo Carlo e o Raul ficou na mesma barraca do Marino. Antes de continuar a história gostaria de ressaltar o ronco do Marino. À noite, ele parecia (não sei se isso ainda ocorre hoje) um urso. Seu ronco era capaz de atravessar paredes de uma casa e incomodar os vizinhos. Em casa, quando morávamos juntos, quantas vezes eu esmurrava a barriga dele para ver se parava, mas a interrupção era momentânea. Minutos depois de parar, ele voltava a roncar muito mais alto do que antes. Voltando àquela história, a 100


noite estava geladíssima as barracas estavam montadas ao lado de um riacho. Lá pelas 2 ou 3 horas da manhã, acordei com alguém falando alto, era o Raul que dormia na mesma barraca do Marino. “Marino... Marino, pára” dizia ele. O urso parava momentaneamente e dali a pouco reiniciava sua sinfonia altíssima. Fico imaginando a situação do Raul. Em casa quando dormíamos no mesmo quarto aquilo me irritava de tal forma que centenas de vezes desci para a sala com travesseiro e cobertor e fui dormir no sofá da sala. Imagine estar dentro de uma barraca medindo no máximo 2 metros por 2 e sem chance alguma de se retirar dali uma vez que do lado de fora a temperatura chegava a 1 ou 2 graus negativos. Passava mais um tempo e eu ouvia o Raul falando um pouco mais alto, “Marino....ô Marino... pára caralho”. Ouvi risadas na barraca ao lado onde estava o Renato e mais alguém. Bem, encurtando a história, depois de muitas advertências do Raul ouvimos um grito dele, “Marino... para cacete, eu não agüento mais esse barulho”. Assim que ele disse isso aos berros, ouvi então o zipper da barraca onde ele estava se abrindo e depois de 1 ou 2 minutos, algo pesado caiu na água. Perguntei ao Carlo que também havia acordado, “será que ele matou o Marino e rolou ele até o rio?” e o Carlo disse espera... ouve. Baixinho alguém dizia, “so...socorro, me...me tira daqui... Mais que rápido todos saíram de suas barracas e qual foi o nosso espanto quando vimos o Raul, naquele frio, com o travesseiro e cobertor molhados em suas mãos, dentro do rio e com água gelada pela cintura. Na raiva ele saiu da barraca e no escuro começou a correr, segundo ele, “para fugir daquele barulho”. Não deu 5 passos e sem enxergar nada, caiu dentro do rio. -o-o-o-o-o-o-o-o Outra passagem inesquecível em Monte Verde foi uma vez que acampamos um pouco mais longe do rio. Eu sempre me meti a ser cozinheiro, adoro isso, e as comidas estavam todas na minha 101


Brasília 1975 amarela. O tempo estava nublado e eu disse ao pessoal após um convite para caminhada, “vão vocês que eu vou ficar e preparar o feijão branco e o arroz”. Nossos acampamentos eram resumidos a curtir uma fogueira, alguns passeios, nadar no rio e comer, comer, comer muito. Quase sempre íamos com 2 carros sendo que num deles transportávamos as comidas e apetrechos para cozinhar. O pessoal saiu e logo cedo comecei lavando um saco de feijão branco e umas 3 xícaras de arroz. Cozinhávamos na fogueira assim, coloquei as panelas com água no fogo, fritei muita cebola e alho e dividi nas panelas. Numa fritei junto com os temperos o arroz, coloquei água e tampei, não havia muito segredo para mim naquilo. Na outra, coloquei água e o feijão que logo começou a borbulhar. Tampei também e fui para o porta-malas da Brasília prepara o complemento do feijão. Peguei um daqueles pacotinhos de carne seca e piquei toda ela bem pequeninho num prato, sem ao menos imaginar que aquilo era seco e salgado e que depois de um tempo, falando com a Daria ela me disse que se deve cozinhar umas 2 vezes para retirar o sal da carne seca. Ela ria muito enquanto me explicava. Não contente e sem saber, ainda coloquei no feijão uma colher de sopa lotada de sal. O pessoal voltou da caminhada e lá estava a comida pronta. Eu que já havia provado um pouco do arroz e do caldo do feijão disse para todos que, “tem alguma coisa um pouco salgada, mas tá muito bom”. Cada um fez seu prato e sentamos lá por perto. Com meu prato cheio olhei rosto por rosto após a primeira garfada. Não teve 1 ao menos que não franziu a testa e disse, “tá bom mas meio salgado”. Quando eu coloquei aquela garfada na minha boca pensei comigo, “tem gosto de água do mar... “. Logo que acabamos de comer, já deveria ser umas 6 horas da tarde, descansamos, fizemos algumas caminhadas até a cidade e voltamos. A chuva começou e todos nos reunimos numa barraca grande, daquelas que tem terraço, para jogar buraco. Ali ficamos até a madrugada e por duas vezes eu fui eleitíssimo pela maioria para ir encher o garrafão de água no rio. Eu colocava um 102


capuz e n達o reclamava. Afinal de contas errei um pouco no sal do feij達o.

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Parte 26

Brigas Avenida do Samba Sempre fugi de brigas, da mesma forma que o Diabo foge de uma cruz, mas que me lembre lá vai... Eu já deveria ter uns 20 anos e andava nessa época com o Sérgio Assumpção, hoje um bom advogado. Fomos até a Avenida Ibirapuera para as costumeiras paqueras e ficamos na frente de uma dessas casas de samba que ali existiam. Era carnaval e o chão, na frente do lugar estava cheio de confetes e de serpentina. Num momento em que estávamos apoiados num carro para ver quem passava na rua, passou um Puma, que era um carro pequeno para duas pessoas e 2 moças estavam nele. Para chamar a atenção das duas o Sérgio pegou um punhadinho de confetes que estavam no chão e brincando, jogou nas meninas. Acho que os 10 carros que estavam atrás daquele carro delas, eram todos amigos delas. Saiu gente de todos os lados e eu e o Sérgio começamos a ver gente chegando e batendo, chutando a gente de tudo quanto era lado. Num certo momento, como naqueles filmes que o bandido passa por baixo das pernas do inimigo foi o que eu fiz. Passei rapidamente agachado pelo meio daquele exército de protetores das meninas e corri mais de 6 quarteirões até a minha casa sendo que em 3 desses, um pelotão deles corria atrás de mim. No dia seguinte estava todo dolorido e o Sérgio me ligou. Ele fez o mesmo só que de táxi. 104


Parte 27 Milagres O Relógio do Marcelo Meu irmão Marcelo tinha ganhado ou comprado [ele já trabalhava] um belíssimo relógio Tissot. Eu deveria ter uns 13 anos e um dia, eu querendo aparecer num desses bailinhos de domingo, me arrumei e fui até as coisas dele e coloquei o Tissot. Tomei um lanche antes de ir sempre escondendo de todos o artigo do empréstimo com a manga da blusa que eu vestia. Fui à festa, dancei, conversei e tudo com a manga arregaçada para que todos vissem minha jóia no braço. Pouco antes de chegar a casa, retirei o relógio de meu braço para guardá-lo e ninguém ver o que eu tinha feito e iria ser um plano perfeito até que, para meu desespero notei que tinha perdido aquele botãozinho de dar cordas. Desesperado, entrei em casa e fui até a cômoda aonde ele guardava o relógio e o depositei ali. Mal consegui dormir a noite toda pensando no tal botãozinho e que, de alguma forma, iriam saber que foi eu quem usou e que perdeu a peça crucial para o funcionamento da máquina. No dia seguinte, me aprontei para ir a escola e desci para tomar o café da manhã. Pensando e mexendo nas migalhas de pão sobre a toalha, qual foi o meu espanto de ver uma rodinha dourada. Era a peça do relógio. Corri, subi no quarto e como o Marcelo já tinha saído e sem o relógio, recoloquei a peça. Agradeço até hoje a Deus por aquele milagre.

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O Rojão Uma vez no prédio em que morava o Alphonse, aquele que fez a “dinamite” que quase nos levou para a cadeia, compramos rojões de vara desses que soltam em festas. Eram 2 rojões. Um ele soltava e o outro sería eu. Na vez dele aprendi como funcionava. Apoiávamos a varo de bambu no chão, um segurava o rojão propriamente dito enquanto o outro acendia um pequeno pavio no fundo deste. Assim que começavam a sair as faíscas, o que segurava o rojão soltava e lá ia ele a caminho do céu para dar o estouro lá em cima. Era minha vez de ascender e assim o fiz, as chamas vieram ele soltou e pronto, o danado subiu muito alto e estourou maravilhosamente. Eram mais ou menos umas 6 horas da tarde e já anoitecia. Chegada minha vez de segurar, estava morrendo de medo que aquela coisa pipocasse na minha mão. Segurei tremendo enquanto o Alphonse acendia... assim que o pavio acendeu fiquei atento observando e quando saiu uma faisquinha de nada eu soltei. Ainda não era o momento. O rojão pendeu para frente e quando estava a mais ou menos 45 graus voou. Ele entrou numa casa que tinha um corredor comprido para entrada de carros e lá no fundo tinha uma garagem com uma menininha brincando sentada no chão. O rojão foi voando até lá, bateu na parede do fundo da garagem a uns 5 metros da menina e ficou batendo, batendo e faiscando. Eu e o Afonso com as mãos na cabeça esperávamos a explosão até que, milagrosamente ele apagou e caiu no chão, sem pipocar. A menina ficou olhando e depois continuou brincando. Eu olhei para o Alphonse e ele me disse, “vamos comprar mais dois?”. O cara era louco. Salário duplo Num dos episódios anteriores em que descrevo lembranças do trabalho, descrevi um texto sobre o meu primeiro emprego na 106


Valdisa do Senhor Odilon da Silva. Eu já trabalhava há algum tempo com ele e meu salário era pago todo dia 10 de cada mês. Minhas obrigações com o pouco que recebia era, dar metade do valor total para minha avó e com a outra metade eu comprava passes de ônibus e passes escolares [que eram metade do preço comum] para assim poder me locomover tanto para casa como para a escola à noite. Num dia, o Senhor Odilon me pagou antes da hora do almoço. Coloquei meu dinheiro numa carteira de mão que eu usava naquela época e fui comprar os passes antes de ir para casa almoçar. Comprei todos eles e quando ia para o ponto de ônibus, alguém veio por trás de mim, me deu um tranco e levou minha carteira. Fiquei desesperado pois ali estava todo o meu salário do mês, meus documentos e uma caneta Cross [eu sempre fui aficionado em canetas] que eu havia comprado em prestações por ser bastante cara. Me lembro que peguei o ônibus com o passe que estava no meu bolso e fui para casa. Lá chegando desandei a chorar e abraçar minha avó à qual me deu um copo de água com açúcar para que me acalmasse. Quando isso aconteceu, contei a história para ela até que o telefone tocou. Ela atendeu e era o Sr. Odilon dizendo que haviam encontrado minha carteira jogada numa galeria bem perto de onde eu comprava os passes. Minha avó me acalmou e me deu dinheiro para eu voltar ao trabalho naquela tarde e lá chegando, o próprio Sr. Odilon tinha ida retirar a carteira no local onde estava e a colocou na minha frente. Abri a mesma na frente dele e virei tudo que estava nela sobre a sua mesa. Caíram meus documentos os passes e a minha caneta Cross. Chorando eu disse a ele, “levaram só meu dinheiro”. Ele pediu que eu me acalmasse e abrindo sua gaveta retirou algumas notas que perfaziam exatamente a quantia que haviam roubado dizendo, “tome mais cuidado Maneco”. Eu o agradeci e secando as lágrimas sai de sua sala feliz com o dinheiro que teria de dar para minha avó, com o restante que sobrava para mim, meus passes e principalmente minha caneta Cross à qual guardo até os dias de hoje. Para mim, tudo aquilo 107


foi mesmo um grande milagre.

Troleibus na Rua Augusta

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Parte 28 Exército O dia que eu recebi o telegrama do Ministério do Exército que dizia “esta convocado a servir o Serviço Militar obrigatório” e ter de me apresentar em 2 de janeiro no 2º Batalhão de Guardas da Polícia do Exército, meu mundo desabou. Abateu-me uma depressão tão grande que eu entrei em casa, passei por todos com cara de choro e fui ao eu quarto, deitar na cama ...eu tinha de chorar. A Daria veio, se sentou ao meu lado na cama e disse: --- O exército te chamou? --- Sim... --- Você vai ver que você vai acabar gostando... tanta gente quer fazer e não é chamado, às vezes isso é para o seu bem... --- É mesmo... Assim que acordei fui ao barbeiro do Clube e cortei meu cabelo que estava quase no ombro no corte meio americano...era final do ano e passei o Natal e Ano Novo junto com todos da família, o mais que eu pude...em tempos de regime militar eu me tornaria um deles e esse pensamento não parava de girar na minha cabeça. Os primeiros 3 meses foram terríveis...eles chamam de “meses de adaptação”. Depois disso, os soldados que entraram 1 ano atrás vão embora após ensinarem todas as “manhas e macetes” a nós, recrutas e ai a coisa vai entrando num ritmo mais normal. Muita coisa marcou esse tempo de minha vida e, acreditem se quiser, até hoje, anos depois disso, ainda sonho com os colegas 109


soldados, oficiais e o dia a dia do exército. Hoje existe um ditado que diz “o primeiro amor a gente nunca esquece” ...no exército a gente muda essa frase para “o primeiro dia de tiro a gente nunca esquece”. Quando me vi com um FAL – Fusil Automático Leve 7.65, com poder de matar e de destruir e perfurar até uma chapa de aço, meus joelhos tremeram, minha boca secou e quando me deitei para os primeiros tiros, parecia que eu estava verdadeiramente numa guerra. Olhei para o alvo que apesar de enorme, ficava pequeno vista a distância que estava. O Tenente Neves, comandante do meu Pelotão deu a ordem... “soldados, tiro livre à vontade”... eu que já estava com o alvo “pregado” na alça de mira, puxei o gatilho e pow...pow...pow...pow... 10 tiros seguidos e ensurdecedores... Como eu já havia aprendido nas aulas em classe que tivemos antes dessa aula prática, coloquei meu FAU no chão, encostei meu rosto no chão e coloquei as mãos sobre o capacete de ferro aguardando a ordem de “levantar”. Adorei aquilo... No Batalhão, no dia seguinte, o Tenente chamou meu nome, Soldado Conti, e mais uns 2 ou três e nos levou até a sala do Capitão Rostei, Comandante da 3ª Companhia. --- Parabéns a vocês... o desempenho de vocês na primeira prática de tiros mostrou que vocês tem capacidade de competir pelo 2º Batalhão de Guardas da Polícia do Exército...vocês formam à partir de hoje o time de tiros dos Praças. No Exército, os Praças são aqueles que vão desde Soldados até Sub Tenente passando por Cabos e Sargentos. Aprendi e treinei tiro com FAL, Metralhadora INA (antiga Indústria Nacional de Armamentos), Pistola Automática 45 e Revolver de tambor 38... meu melhor desempenho foi mesmo com o FAL e com ele, ganhei medalhas, troféus e elogios dos oficiais do Batalhão... menos de um Cabo... seu nome era Cabo Irmo... até então ele era hà anos o Campeão de Tiro do Batalhão e um simples recruta, eu no caso, havia tirado seu honroso posto. Graças a isso 110


ele sempre me provocava...e nós brigamos. Foi num teste de sobrevivência na selva, em Caçapava. Durante 3 dias e 3 noites eu e meu Pelotão formado no total por 9 homens, seguimos mapas, acompanhando estrelas e ponteiros de bússolas para percorrer um difícil percurso comendo e bebendo aquilo que achávamos e fizemos aquilo com tanta presteza que fomos o primeiro Pelotão a conseguir chegar ao destino final...em nossas barracas, aguardando a chegada dos outros 4 Pelotões nos lembramos da aventura, da galinha que roubamos num sítio e comemos crua, das verdurinhas que colhemos na mata e vimos que poderiam ou não serem digeridas, da água dos córregos até que ouvimos o toque de que seria servido o almoço... Como fomos os primeiros a chegar e nos preparar para o almoço após banhos e troca de fardas, éramos então os primeiros da fila para se servir... eu deveria estar em 10º lugar na fila e me lembrei que havia esquecido meus talheres (cada um tinha os seus) dentro da barraca... pedi ao meu colega Marcelo que guardasse meu lugar e fui e voltei correndo... quando cheguei de volta o Marcelo estava em terceiro na fila... Fiz meu prato com tudo que estava sendo servido, fazia 3 dias que não comíamos comida de verdade... assim que eu saí da fila o Cabo Irmo chegou perto de mim e disse aos gritos... --- Você furou a fila Soldado... Antes que eu pudesse explicar ele me empurrou com força e eu cai ao lado de um barranco deixando cair toda comida no chão... --- Agora vai pro fim da fila... Como já disse, sempre fujo de brigas, mas naquele momento não resisti...parti para cima dele e rolamos no chão aos tapas até que num certo momento eu estar em cima dele e olhei para o lado e vi um enorme formigueiro de Saúvas... não tive a menor duvida... num momento em que ele soltou meus braços enchi as duas mãos com o formigueiro e joguei na cara dele que ficou preta de formi111


gas... Ele se levantou aos gritos e ai um Sargento e o Tenente Neves que estavam por perto vieram apartar a briga...ele foi levado a enfermaria do acampamento e seu voltei a fila e peguei outro prato de comida... No Batalhão, depois de nossa chegada, fui chamado a sala do Tenente Neves que era nosso Comandante... lá chegando vi o Cabo Irmo sentado e com o rosto transfigurado de tanta picada que havia levado.. --- Isso que vocês fizeram é uma verdadeira falta de companheirismo... --- Ele furou a fila Tenente... --- Irmo...eu vi e presenciei tudo... ele já estava na fila Eu fiquei quieto e sabia que alguma punição estaria por vir... --- Vocês dois não vão para casa hoje... ficarão no fim de semana para ajudar na guarda e na limpeza do Batalhão e das armas que voltaram sujas de terra... Foi um castigo bem ameno e o mais gostoso foi ver naquele final de semana o Cabo Irmo lavando banheiro e varrendo o chão com a cara inchada ... o-o-o-o-o-o-o-o Outra passagem que jamais vou esquecer foi uma vez que estávamos de guarda no QG do 2º Exército no Ibirapuera. Ali se reuniam as maiores autoridades da época, inclusive o Presidente da República o General Ernesto Geisel, um ditador. Era domingo e assim, todos estávamos relaxados no banco de descanso da guarda e nunca imaginávamos que alguém poderia chegar ali num domingo... o apito tocou alto 3 vezes e o Tenente Neves gritou... --- Guarda em forma...guarda em forma... Ficamos enfileirados na entrada do prédio e o Opala oficial 112


preto estacionou na nossa frente... dele saiu e (terrível na época) General Edinardo D’avila Mello... o Tenente, logo a minha direita gritou... --- Guarda... sentido...apresentar armas... Quando eu fiz o gesto e apresentei armas o General veio até a minha frente e co os olhos de quem queria me devorar ficou me olhando enquanto o corneteiro tocava o toque de General presente... Num momento, ele baixou os olhos e olhou para a minha mão...eu olhei em seguida e notei que eu havia esquecido de vestir as luvas brancas...todos estavam de luvas menos eu... Acabado o toque o General entrou e voltamos a posição de descansar e fora de forma... Fiquei quieto... não falei nada e pensei que ninguém tivesse notado... nada aconteceu. Mais tarde, no alojamento na hora de dormir o Tenente Neves, que diga-se de passagem era uma pessoa admirável, chegou perto de mim e disse... --- Ainda bem que o General não falou nada... --- Sim Senhor...melhor assim não é Comandante... Como a Daria me disse, o dia que eu sai do Exercito, 1 ano e 1 mes depois de ter entrado, eu senti lágrimas saindo dos meus olhos... foi um período que jamais esquecerei...

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Eu na época do Exército

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Epílogo Parte da minha vida foi isso. Para quem lê e sabe como tudo isso aconteceu, sabe da minha luta diária para fugir da tristeza e das más recordações. Todas as noites converso com meu pai, não o Papai do céu, mas meu próprio pai. Ele esteve presente ao meu lado me explicando o porquê as coisas acontecem e porque são assim, de uma forma como muitas vezes eu não gostaria que fosse. Ele me aconselha e me orienta e acredite se quiserem muitas dessas vezes, o senti se deitando ao meu lado, como quando fazia aos meus 8 anos de idade. Muitos me perguntam o que penso da vida e sempre respondo aquilo que meu pai comenta comigo, em meus pensamentos. Sobre a vida, somos uma conexão e estamos em uma espécie de “curso”. Voltaremos para “segundas épocas” quantas vezes forem necessárias até que possamos então passar a um outro plano não materializado, ali sim os “conhecimentos” de todos se unem por uma razão maior, seremos como que o cérebro de todo o Universo. Sempre imaginei que somos microscópicos seres dentro de um pequeno átomo de um Ser maior. O Universo é um corpo e nele nós residimos. A Terra é apenas uma espécie de átomo desse tal corpo. São tantas e tantas lembranças da casa grande a qual eu não me cansei em repetir várias vezes nesse texto, das brincadeiras, das brigas em casa, momentos de alegria e de tristeza. Acho que me tornei uma pessoa digna. Amo trabalhar e amo todas as pessoas que conheço. Quem me conhece sabe que sou incapaz de desejar o mal a alguém e mesmo aqueles que têm opiniões diferentes às minhas, sempre procuro tratar da melhor forma possível. Sou Jornalista, Ilustrador e Empreiteiro... ofícios bem dife113


rentes para quem vê a primeira vista. Para mim, todos eles referem-se à construção, de entretenimento a quem lê, a quem vê e a quem se sente melhor num ambiente. Marcelo se casou com a Alba e tem 2 filhos, meus maravilhosos sobrinhos Tiago e Carolina. Marino se casou com Ilka e da mesma forma me deram 2 sobrinhos lindos, Stella e João Victor. Maria Luiza se casou e depois de um tempo se separou e não teve filhos. Maria Izilda não se casou. Eu, há 30 anos estou com o amor de minha vida Rosita, que está sempre ao meu lado. Ela me presenteou com 2 filhas(do seu primeiro casamento), Paula e Sabrina e com uma neta (filha da Paula), a Thalita que é uma menina linda e especial na minha vida. Ontem, quando estava acabando esses textos ainda perguntei para a Rosita, “qual nome poderei dar para esse meu livro...”. P e n s a mos em vários nomes, mas não chegamos a um acordo ...sonhei com isso, com qual seria o nome! No dia seguinte, hoje, um domingo de frio, resolvi ir bem cedo na padaria perto de casa para comprar pães para o nosso café da manhã. Coloquei a guia no nosso querido Johnny, um cachorro adorável e saímos. Fomos pelo mesmo caminho de sempre e quando estava a um quarteirão de casa, vi um senhor negro, forte, acho que guarda de um comércio naquela rua, vestindo um daqueles casacos compridos, eu nunca tinha visto ele que olhou para mim e deu um sorriso e me disse: --- Você pode dizer que é uma pessoa Iluminada! Você é Iluminado! FIM (setembro/2105) 114



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