12 minute read
belém, metrópole ribeirinha
Sou mais um brasileiro Olhando Belém enquanto uma canoa desce um rio E o curumim assite da canoa um boing riscando o vazio Eu posso acreditar que ainda da pra gente viver numa boa Os rios da minha aldeia sao maiores do que os de Fernando Pessoa ( e o sol da manha rasga o ceu da Amazonia ) Olhando os meus olhos de verde e floresta Sentindo na pele o que disse o poeta Eu olho o futuro e pergunto pra insonia Sera que o Brasil nunca viu a Amazonia E vou dormir com isso Sera que e tao dificil
Advertisement
desenho de andrés sandoval (disponível em: http://www.andressandoval.com/projetos/patterns/artigos-sobre-milton-hatoum/)
área: 1 059,458 km² habitantes: 1 492 745 hab. densidade habitacional: 1 409 hab./km²
TERRITÓRIO ALAGADO
Ao olhar para a cidade de Belém, é impossível ignorar a expressividade que a confluência entre as águas do Rio Guamá e da Baía do Guajará representam limítrofes ao território. Dentro dele, a grande densidade do território, sua herança histórica e a influência econômica e cultural que exerce entre os estados da Região Norte do país.
Dentre as diversas características que constituem este território, a água é um elemento que permeia diversos deles: desde a relação portuária que levou à estruturação da cidade como tal; o clima equatorial que a coloca como a cidade mais chuvosa do país; as médias de temperatura que fazem com que o suor seja característica das vivências na cidade; os constantes alagamentos que as soluções urbanísticas de conquista por terra firme impuseram à população; a cultura ribeirinha que a vida à beira rio proporcionou; a coloração barrenta marcante da paisagem que margeia o território; todos trazem ao primeiro plano as diversas relações que a cidade e seus habitantes têm com esse elemento da natureza tão potente e característico da cidade.
Ao notar essa potencialidade, tanto em termos de conflito quanto como um assunto comum à diversas camadas da sociedade, o trabalho toma a noção de metrópole ribeirinha como mote para tecer diálogos entre o espaço e o sujeito, com a água como elemento de tecitura para analisar e agir no território.
Para analisar essas relações, é feito um recorte a partir do centro histórico da cidade, estendendo-se aos bairros inseridos em um raio de aproximadamente 4km do centro dele, por entender as camadas históricas que essa região pode apresentar para a discussão.
evolução histórica do território
Evolução histórica do território e criação das baixadas
O território colonizado e constituído às margens do Rio Guamá e da Baía do Guajará, cuja posição da cidade foi escolhida estrategicamente com objetivos militares e comerciais no século XVII, é originalmente permeado de conflitos relativos às águas. Apesar de sua localização ter se mostrado estratégica para sua consolidação e estruturação urbana, suas características geográficas se mostraram um obstáculo para sua ocupação e desde o século XVIII suscitaram discussões sobre a escolha do sítio inicial para a capital do estado, que em meio a pantanais, o tornava de difícil acesso e defesa (ALMEIDA, 2011).
A ocupação das margens da cidade em uma lógica tipicamente ribeirinha logo foi sobreposta por traçados mais retilíneos e por sucessivos aterros desde o período colonial. Nos primeiros séculos de ocupação de Belém, os primeiros ocupantes da idade
1625 1625-1700 1700-1839 1839-1919
se depararam com um território de alagados intercalados com terrenos baixos, que com o regime de chuvas regulares inundavam e secavam conforme os movimentos da maré. Essas formações, denominadas igapós e igarapés, foram alvo de jornadas disciplinatórias das águas, que aliados ao pensamento sanitarista eurocêntrico fundamentados na teoria dos miasmas, resultaram em uma série de obras de dessecamento e esgotamento por meio da abertura de valas por toda a cidade. A drenagem por valas e aterramento dos territórios onde se localizavam o Igarapé do Piry, Igarapé das Almas e o Igarapé Murucutu, dentre outros, foi uma tarefa que se estendeu ao longo do século XIX e início do século XX, em uma busca de expandir a cidade e torná-la mais populosa, superando os alagados como obstáculos a essa expansão (ALMEIDA, 2011).
Igarapé do Piri Igarapé das Almas
Igarapé do Murucutu igapós e igarapés: desenho esquemático dos terrenos alagados no início da ocupação de Belém (elaboração prpria)
canalização dos terrenos alagados: canais atuais da cidade, utilizados para drenar o terreno
Ocupação socioespacial do território: renda x alagamento
Apesar do movimento intenso de devoração das áreas alagadas, a consolidação dos núcleos urbanos mais favorecidos economicamente priorizavam a ocupação das cotas mais altas da cidade que, apesar de não serem expressivamente mais elevadas, estavam menos sujeitas às constantes inundações em comparação aos terrenos limítrofes às valas. Esses territórios, de baixa infraestrutura urbana e grande quantidade de áreas desocupadas e desvalorizadas pelo relevo alagadiço, foram ocupados pela população de baixa renda local e adensados a partir dos anos 1960 pela migração da população rural para a capital em busca de oportunidades de emprego, que inseriram e adaptaram os padrões de ocupação ribeirinhos praticados na área rural ao meio urbano.
Próximo às áreas centrais e de fácil acesso ao rio contituíram-se as primeiras “baixadas” da cidade, termo dado para as ocupações irregulares ao longo das obras de drenagem, e que se transformaram em bairros ao longo da orla fluvial da capital e na periferia próxima (LEÃO, 2017). Dos mais de 60 canais que hoje compõem o território de Belém, apenas 20 foram urbanizados (IOEPA, 2016), e mesmo apesar das obras, a precariedade e grande densidade habitacional dos seus entornos fez com que os canais se tornassem grandes esgotos a céu aberto. A grande extensão que percorrem a cidade somados à desvalorização do solo de seus entornos também fez o poder público se ausentar da maior parte desses territórios, faltando tanto com projetos quanto com a manutenção básica dos canais existentes.
O acúmulo de lixo às margens e dentro dos canais, associado às chuvas constantes em boa parte do ano tornam a relação entre a cidade e os canais ainda mais hostil devido aos caóticos alagamentos que se estendem pela cidade para muito além dos limites dos canais. Ainda que muito mais trágicos à população de baixa renda que habita em suas proximidades, os alagamentos impactam grande parte da cidade, que parece tomar de volta os perfis dos grandes alagados do século XVIII.
ÁGUA, CIDADE E ESPAÇO PÚBLICO
Contato com as águas
Oriundo do desenvolvimento de uma urbanização pautada no desejo pelas terras secas, a relação da cidade de Belém com suas margens foi se tornando cada vez mais fragmentada e mistificada. Não apenas a ocupação como também o imaginário belenense se constituiu ao mesmo tempo negando e almejando um contato com as águas fluviais. Na história da cidade, as margens foram conquistadas de forma juridicamente irregular sobre os aterros e às margens do rio e da baía (XIMENES, 2004), seja em forma de portos particulares, empresas diversas ou em assentamentos informais, levando a uma dinâmica paisagística e socioespacial que, por bastante tempo, vê com maus olhos a relação com a água, resumindo-a à sua relevância econômica, à marginalização social e à degradação ambiental.
Processos econômicos
Devido às mudanças econômicas sentidas na Região Norte como um todo a partir do declínio do ciclo da borracha, ainda no início do século passado, e especialmente na capital devido à pulverização da produção industrial em microrregiões no estado, o município sofre um processo de empobrecimento e diminuição da sua relevância de seu PIB para a economia do estado a partir dos anos 1970, com recuperação na década de 80 e nova queda nos anos 90 (XIMENES, 2004). Em Belém,
portos e terminais hidroviários espaços de lazer e turismo instalações institucionais comércio em geral
com a decadência dos ciclos, a mudança das bases produtivas e a construção da rodovia Belém-Brasília (finalizada nos anos 60), há uma estagnação econômica devida ao relativo esvaziamento da região e a cidade passa por alterações na administração das políticas públicas visando o enfrentamento da crise (ibid.).
Belém entra nos anos 90 sob a crise brasileira e mundial dos anos 80 e busca, diante dela, alternativas para a dinamização dos setores da economia. Tendo que lidar com o problema da reestruturação do perfil econômico do município, “que permanece calcado no setor terciário e com uma precarização evidente, com a estagnação como perspectiva” (XIMENES, 2004), as políticas públicas e os discursos da política urbana se alinham ao modelo globalizado de desenvolvimento baseado na capitalização sobre o patrimônio histórico-cultural e ambiental da cidade e buscam inserir a cidade na lógica de competitividade e empresariamento urbano como estratégia de transformação sócio-econômica (ibid.).
baseado em PAIVA, 2018)
baseado em PAIVA, 2018) construções do séc. XVII construções do séc. XVIII construções do séc. XIX construções do séc. XX construções do séc. XXI
clubes sociais cinemas e teatros
Espaço público: direito e lazer na cidade
É nessa virada econômica nos anos 90 em que, dentre as estratégias adotadas, há uma redefinição da visão estratégica que a administração pública tem com relação à orla fluvial e o centro da cidade. Cria-se um discurso de “devolução” da orla e do centro à cidade, tida como uma demanda consensual da população e que tem na situação de irregularidade da ocupação das margens um dos principais argumentos para o desenvolvimento de projetos de abertura de “janelas para o rio”, expressão importante cunhada pelo próprio poder público e que passou a ser disseminada no imaginário da cidade. Belém passa então a ser alvo de projetos e intervenções mirando a “abertura urbanística da orla fluvial da cidade, para a apropriação franca, aberta e irrestrita daquele espaço” (XIMENES, 2004, p. 13), em um processo de construção de narrativa de “resgate” das qualidades ambientais e paisagísticas da cidade sob o mote da “devolução” das bordas da cidade à população (ibid.).
Assim como a expansão da cidade, a oferta de espaços de lazer, público e privados, historicamente adentrou o território, dissociado de sua margem. Com o advento do discurso de abertura da orla e de janelas para o rio, o apelo paisagístico de recuperação da orla fluvial da cidade se une à oportunidade de criar espaços de lazer associados a ela. Tendo em vista a escassez e limitada distribuição territorial dos espaços públicos de lazer na cidade, a possibilidade de ampliação desses espaços é percebida tanto pelo poder público como pelo poder privado e há, mesmo que ainda de forma ainda pontual, uma série de investidas rumo às margens da cidade.
feira do ver-o-peso
complexo feliz lusitânia complexo ver o rio
porto futuro
praça das mercês
mangal das garças
portal da amazônia praça da república
praça batista campos
basílica n. sra. nazaré
porto custódio
praça princesa isabel
porto da palha
universidade federal do pará museu emílio gueldi
Novas janelas: as obras para abertura da orla
Para a realização do projeto político de aberturas da orla, Belém passa ao longo dos anos por diferentes modelos de gestão desse ideal. Algumas propostas se apresentam alinhadas mais diretamente aos modelos de empresariamento da gestão urbana, dando destaque para parcerias público-privadas, associadas a discursos culturalizantes e apoiados nos interesses de mercado, como foi o caso do complexo turístico da Estação das Docas inaugurado no ano 2000 e do Mangal das Garças em 2005.
Outras propostas se apresentam com discursos mais alinhados a ideias de democratização do espaço e de produção do lugar público, franco e aberto como paradigma, mas que reproduzem usos do solo sem maiores proposições alternativas (XIMENES, 2004) e que muito se alinham às concepções do modelo de orla como um modelo salvador das sociabilidades e da democratização do patrimônio natural (SILVA, 2015), como é o caso do Complexo do Ver o Rio, de 1999, e do Portal da Amazônia, de 2012. Apesar de terem se consolidado como intervenções de caráter mais popular do que as citadas anteriormente, também suscitam discussões sobre o real impacto de sua implementação na população do seu entorno.
Consensos ilusórios e o sujeito passivo
O discurso democratizante sobre o Rio e a Baía, patrimônios naturais da cidade, anda de mãos dadas com um ideário de orla relativamente novo, que acolhe a retomada do rio como um reencontro ressentido sobre sua exclusão e a exclusão de suas benesses no passado. O desejo das “janelas para o rio”, portanto, antes de se tornar um discurso dominante, foi construído, do sentimento da decadência pós ciclo da borracha, passando pela consolidação, através da permissividade governamental, de uma imagem de obstrução da orla até o ponto de uma exaltação do modelo de modernização como única alternativa possível.
Firmada em interesses econômicos e vendida como de interesse público, a aspiração pela orla se coloca como discurso hegemônico, apesar de não ser. Em contraponto à lógica de renovação urbana para criação de novas fronteiras de aculamulação (XIMENES, 2004) se colocam também resistências culturais, simbólicas e até mesmo econômicas, de populações historicamente estabelecidas nas margens. Ao mesmo passo que esse modelo de criação de “janelas” busca favorecer o turismo e a especulação imobiliária, aos quais interessa “o visitante, no papel do cliente” (SILVA, 2015, p. 695), no outro pólo deste processo se situa a vivência ribeirinha, que propõe, alternativamente, a metáfora das “portas para o rio”. (ibid. p. 8). Esta disputa metafórica é uma disputa quase invisível, mas que expressa a vivência histórica da população que se estabeleceu às margens da baía: sujeitos ativos na relação com as águas da cidade, que veem nos portos, portas de acesso à educação, saúde, trabalho e laços familiares.
Apesar da disputa metafórica, a disputa política real se dá de forma muito díspar, como há de ser na sociedade neoliberal. A criação e disseminação do discurso das janelas para o rio cria uma esfera mítica para a relação entre a cidade e a água que mascara muito bem as intenções de mercado e cumpre o papel de espetáculo e para criar o sujeito espectador. Apesar da validade e da potência dicotômica das disputas de narrativa entre a visão de “portas” e “janelas” apresentada por Silva, há uma profusão de disputas vigentes no território, como é característico das cidades, mas sob o poder do discurso de consenso coletivo a relação de passividade dos sujeitos se sobrepõe aos conflitos.