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sobre a cidade, o sujeito urbano e a coletividade
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O espaço urbano é resultado físico de fenômenos, acordos e principalmente, conflitos sociais. Ele, ao mesmo tempo em que é consequência desses processos, é também estruturado de forma a mantê-los e potencializá-los, tornando-se responsável pela criação de mecanismos de controle complexos, que atuam na subjetividade dos indivíduos e diretamente em suas percepções sobre si próprio enquanto componente da estrutura urbana.
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A investigação aqui proposta parte de uma interpretação sobre a produção do espaço urbano, que através da criação de consensos induz também à produção de um sujeito urbano passivo e à supressão de seus potenciais como causadores de mudanças nessa estrutura. A partir destes conceitos é possível construir um entendimento sobre a relação sujeito-coletivocidade, que justifica a característica multi escalar do exercício de projeto.
AÇÃO
A constituição da sociedade fragmentada
Harvey (2012), em Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, aponta que a cidade foi, desde o princípio, moldada a partir da acomodação social e geográfica de um excedente de produção, conformando uma representação física de um fenômeno de classe. Sob o modelo capitalista essa situação é potencializada, tendo em vista que esse sistema tem como premissa a geração constante de excedente de produção para que possa produzir a maisvalia – o lucro –, o cerne de seu sistema. Sendo o excedente (de capital e de mão de obra) um dos principais insumos das obras de urbanismo, a cidade se torna não apenas resultado, mas também instrumento de absorção e reinvestimento do lucro, gerando uma relação íntima entre desenvolvimento do capitalismo, urbanização e segregação socioespacial.
Esse movimento de absorção de excedente pela urbanização levou às diversas transformações de escala do processo urbano. Desde as obras Haussmanianas em Paris no século XVII, que buscaram reinserir o capital monetário e a mão de obra excedente na transformação da cidade, passando pelas grandes obras de infraestrutura e suburbanização de Nova Iorque implementadas por Robert Moses durante do século XX e, na atual conjuntura, atingindo uma nova escala, chegando a um nível global de urbanização. Harvey (2012) aponta a urbanização da China nos últimos vinte anos como caso mais expressivo dessa “hiperurbanização”, ou desse “novo urbanismo”, mas também afirma que esse é só o cerne de um processo de urbanização de caráter global, baseado em booms imobiliários, em projetos urbanísticos tecnicamente mirabolantes e ambientalmente absurdos, na promoção de eventos de escala global e na expansão de infraestruturas que se adequem ao competitivo modelo de “cidade global”, tanto no parâmetro infraestrutural, com a construção de grandes aeroportos, parques científicos e enormes centros comerciais, como também no parâmetro midiático, gerando paisagens ao mesmo tempo mais sedutoras e mais genéricas, adaptadas à tendência estética global.
Todos esses processos, em suas distintas escalas, foram baseados na violência – referida por Harvey também como destruição criativa – contra as camadas sociais de menor renda, que são sistematicamente desapropriadas e deslocadas pelo território das cidades em prol do redesenvolvimento urbano e de benefícios supostamente públicos. O novo urbanismo territorializa a segregação social capitalista (percebido nos processos de periferização e favelização das cidades) e, com isso, retira das massas urbanas “todo e qualquer direito à cidade” (HARVEY, 2012). Morar, circular, trabalhar, conviver, todos são direitos cada vez mais negados às massas populares e concentrados nas mãos de uma “pequena elite política e econômica com condições de moldar a cidade cada vez mais segundo suas necessidades particulares e seus mais profundos desejos” (HARVEY, 2012, p. 63).
“A qualidade da vida urbana tornou-se uma mercadoria para os que têm dinheiro, como aconteceu com a própria cidade em um mundo no qual o consumismo, o turismo, as atividades culturais e baseadas no conhecimento, assim como o eterno recurso à economia do espetáculo, tornaram-se aspectos fundamentais da economia política urbana [...]. A tendência pós-moderna a estimular a formação de nichos de mercado, tanto nas escolhas de estilo de vida urbano quanto de hábitos de consumo e formas culturais, envolve a experiência urbana contemporânea em uma aura de liberdade de escolha do mercado, desde que você tenha dinheiro [...].” (HARVEY, 2012, p. 46)
A expansão do capitalismo a partir da globalização da economia levou a uma urbanização também globalizada, generalizante, que se utiliza de um “manual” de espetacularização e empresariamento para a produção de seus espaços e que prioriza a proliferação de espaços direta ou indiretamente ligados ao consumo, generalizando a mercantilização da experiência urbana, como apontado por Harvey (2012). Isso resulta em dois nichos principais de empreendimentos urbanos: a profusão de espaços de consumo considerados como legítimos espaços de coletividade, como os shoppings centers, e a priorização de obras que sejam
estrategicamente localizadas em zonas de maior concentração de renda na cidade, por propiciar valorização e, com isso, maior geração de capital.
Essa estratégia de empreendimento urbano pontual ligado à “valorização e reprodução ampliada do capital dominados pela financeirização” é o que Vera Pallamin (2015) comenta como principal mudança conceitual na forma de intervir nas cidades. Em oposição a uma análise sistêmica e englobante das quais os planos urbanos se encarregaram, o que se tem hoje são “intervenções pontuais, localizadas e desconectadas entre si”, implementadas como estratégia de gentrificação e mercantilização compulsiva, numa escala jamais vista das cidades (PALLAMIN, 2015).
Essa lógica de conformação das cidades, portanto, leva a uma urbanidade ao mesmo tempo homogeneizada, em termos de uma ocupação regulada pela capacidade de consumo; fragmentada, pela valorização exacerbada dos direitos de propriedade privada com a consequente formação de “comunidades muradas e espaços públicos mantidos sob vigilância constante” (HARVEY, 2012, p. 48); e individualizante, cujo modelo de socialização segue a ética neoliberal de intenso individualismo (HARVEY, 2012). As noções de coletividade, identidade urbana, cidadania e pertencimento são fortemente abaladas – ou em visões mais pessimistas, impossibilitadas – frente ao individualismo e fragmentação tão potentes.
O sujeito passivo
Um dos produtos resultantes dessa urbanização que mais interessam esse trabalho é a noção de passividade ao mesmo tempo imposta e assumida pelos sujeitos urbanos. Retirado seu poder de apreensão e decisão sobre o território, o indivíduo é tranquilizado pela figura do especialista, assumindo uma posição de passividade não apenas no âmbito da ação, mas também das preocupações envolvidas nas decisões sobre a cidade. Rita Velloso (2016) aponta que o resultado na dominância da opinião do especialista sobre a cotidianidade é esse espaço petrificado no qual a submissão do indivíduo passa a ser não apenas tolerada como também aceita.
“A passividade corresponde a uma acomodação nociva, cujas razões estão dadas na fragmentação do fenômeno urbano, e, por outro lado, manipulação do cotidiano, na medida em que este se torna objeto da organização social. Em tais condições, que são o chão no qual germina a sociedade burocrática de consumo dirigido, o uso desaparece ou cai no silêncio, que, de resto, não é outra coisa senão a passividade, ou aquilo a que o habitante urbano chama satisfação (...)” (VELLOSO, 2016, n.p)
O que Velloso aponta aqui é a criação de uma noção de normalidade na ausência de poder por parte do indivíduo e, com isso, uma noção limitada e limitante sobre si, sobre as estruturas de governança e sobre a sua própria vivência urbana, mas que é interpretada como uma satisfação por estar cumprindo o papel a que foi designado: o de espectador. A atitude passiva demarca o sujeito vivendo sob regime do espetáculo, “alheio de tudo, não merecedor de nada” (DEBORD apud VELLOSO, 2016, n.p), ao qual lhe basta e lhe convém apenas observar o desenrolar dos fatos e das decisões sem intervir.
O espetáculo é a sociedade sem a comunidade, afirma Debord. O regime do espetáculo cria não somente o indivíduo passivo como também uma incomunicabilidade coletiva que reitera a noção de que a única semelhança entre
si é a condição de um viver em conjunto, empobrecendo a comunicabilidade e a vida urbana. A coletividade é suprimida enquanto ideia, pois a comunicação é unilateral - do espetáculo para o espectador passivo -, retirando do sujeito sua subjetividade e assim, condenando-o ao isolamento e a comunicação inautêntica entre os indivíduos.
“A própria justificação da sociedade existente como a única possível proferida repetidamente pelos instrumentos do espetáculo baseia-se nessa unilateralidade da comunicação. “O espetáculo é o único a falar sem esperar a mínima réplica, condena quem ouve a jamais replicar, o que equivale à passividade na contemplação”.” (VELLOSO, 2016)
O sujeito como espectador não reflete, apenas absorve a realidade à qual é submetido. É retirado junto com a sua subjetividade a capacidade de imaginar outras realidades e, desassociado de outros sujeitos, é também impossibilitado de gerar trocas que levem à criação de reflexões coletivas. A contemplação é o que lhe compete e mesmo que a realidade apresentada não seja satisfatória, o papel de espectador o é.
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PERCEPÇÃO
“(...) o potencial é, obviamente, é mover a fronteira entre quem é o autor e quem é o receptor. Quem é o consumidor, se você quiser, e quem é o responsável pelo que alguém vê. Eu acho que existe uma dimensão socializante em, digamos, mover essas fronteiras. Quem decide o que a realidade é?”
Olafur Eliassom, 2010
Combater a passividade
O contrário da passividade é a ação. Entretanto, a ação consciente é ligada a uma compreensão da totalidade na qual ela se insere. A superação da noção de um poder central, ao qual estamos subordinados e, mais ainda, da desconexão entre o espaço edificado, o espaço urbano e o território de forma ampla é o que Velloso (2016) aponta como a noção totalitária fundamental para que se possa imaginar possíveis mundos alternativos. “Só a compreensão do cotidiano numa totalidade cria espaço para experimentos mentais” (VELLOSO, 2016, n.p).
Para contestar o sujeito em estado de espectador é necessário que haja um sujeito oposto que possa confrontá-lo em sua passividade. Esse sujeito oposto é dotado de uma subjetividade radical que opera através dos acontecimentos, da percepção da realidade, de si e dos contextos e através deles se permite construir imaginários próprios para alternativas de mundo (VELLOSO, 2016). A compreensão do todo o permite visualizar possibilidades que não àquelas que são impostas; a percepção da totalidade é o primeiro passo para a validação das subjetividades e, através delas, o rompimento da passividade.
Dan Graham, instalação Public Spaces/Two Audiences (1976). Fonte: You May Find Yourself, 2012.
Jogos de percepção como esse são explorados, no campo da arte, pelo artista Dan Graham em uma série de obras nas quais ele discute as relações entre o objeto e o público convencionadas pelo espaço da arte. Através de espaços que exploram as diferentes compreensões que o público consegue estabelecer entre a obra, o público, o espaço e o artista, Dan Graham tece um suporte à subjetividade do observador, deslocando-o de sua passividade espectadora e colocando-o em constante movimento de relevância para a compreensão do todo. Na obra Public Spaces/Two Audiences (1976), por exemplo, Dan Graham cria um jogo de visualidades provocado por um ambiente conformado por espelhos e planos de vidro, no qual a instalação coloca os observadores a observarem as outras pessoas interagindo com a obra, ao mesmo tempo em que possibilita uma auto observação através do reflexo e também um “achatamento” desses personagens, visualmente sobrepostos e aglutinados como um grupo social (de espectadores), mas que leva a uma percepção de si próprios e do ambiente em que se inserem.
O espelho toma aqui o papel de abrigar esse mundo imaginário, virtual, no qual há o deslocamento do sujeito através do espaço visível mas irreal que existe “dentro” do espelho. O espaço da obra supõe o deslocamento físico e perceptivo do espectador como formas de reflexão sobre a situação normativa: a relação entre o público e o objeto no espaço da arte, comumente passiva. É através dele que há a contestação do que é real e do que não é; o questionamento do corpo, do espaço e do outro, trazendo à tona o sujeito que confronta a passividade de si próprio.
No espaço da cidade, a compreensão da totalidade é profundamente complexa; entretanto, as reflexões sobre a relação entre o corpo, a cidade e o outro se tornam possíveis quando o indivíduo, assim como na obra, é provocado constantemente a se colocar em primeiro plano, como agente, em segundo, como coletivo, e em terceiro, como componente da cidade, tecendo através dessas sociabilidades novas possibilidades de urbanidade. Olafur Eliasson (2010) aponta que a compreensão do corpo como parte do espaço, ao invés da ideia do corpo como observador dele, é algo que traz uma noção de consequência ao sujeito, pois ao perceber a tangibilidade do espaço, o sujeito sente a possibilidade de alterá-lo ou, ao menos, de imaginar possibilidades a ele.
Coletividade como proposta
O que se percebe, então, é que para imaginar outras possibilidades de sociedade é fundamental que se combata a comunicação unilateral e se instaure uma comunicação ativa. Para isso, Velloso (2016) aponta dois movimentos de resistência ao espetáculo: uma, no campo individual, é o engajamento do corpo e dos gestos no espaço urbano, apontada como a primeira dimensão da revolução política e transformação do espaço. É a partir dela que se dá o primeiro âmbito de significado da arquitetura e da relação entre a percepção do corpo e sua relação com o espaço, permitindo imaginar e inaugurar uma alternativa inicialmente utópica ao espaço atual existente.
No entanto, esse engajamento individual do corpo à experiência urbana, o qual é denominado práxis urbana por Lefebvre, não seria suficiente se realizado individualmente, pois somente a realização da subjetividade individual em uma forma coletiva, que possa potencializá-la, seria capaz de revolucionar a percepção cotidiana sobre os habitantes e sua própria vivência urbana. Estar
presente no “uso da cidade” é instaurar uma atitude revolucionária frente à imposição de uma atitude espectadora, passiva, e realizála de forma coletiva. carregando uma consciência de subjetividade individual é dar subsídios para momentos de espontaneidade e manifestações de alternativas à dominação espetacular (VELLOSO, 2016).
O esvaziamento da noção de coletividade leva também a um esvaziamento do espaço físico da coletividade. Desconectado da esfera do consumo, o espaço público é condenado ao esvaziamento; aliado ao consumo, mantém a alienação dos sujeitos submissos à condição de espectadores. O que se quer apontar aqui, então, é essa ilusão promovida pelo espetáculo urbano e pela conformação neoliberal dos espaços nas cidades – a sensação de uma alteridade quando na verdade, se promove segregação e homogeneidade – e impacto que tem no esvaziamento do potencial dos espaços públicos em serem palcos de disputa pelo direito à cidade.
O trabalho se coloca, assim, em uma posição de investigação acerca de formas de estruturar sociabilidades no território que tragam ao primeiro plano o sujeito, suas subjetividades, auto percepções e sua relação com o coletivo e com a cidade, para assim, buscar formas de romper a unilateralidade do discurso de configuração da cidade, abrindo espaço físico e imaterial para a imaginação de possibilidades outras de configuração das sociabilidades e do próprio espaço.