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SALVADOR DOMINGO 25/11/2012
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s paredes dos casarões maltratados, os espaços decadentes e os corpos generosos nos bordéis da Cidade Baixa se oferecem às lentes do fotógrafo japonês Hirosuke Kitamura. As texturas e luzes dos bregas são pincel, tinta e tela para este artista, radicado em Salvador há quase 20 anos. Nascido em Osaka, Hirosuke cresceu na pequenaNara,primeiracapitaldoJapão,a meio caminho entre Osaka e Kyoto. Já adulto, formou-se em letras na Kyoto University of Foreign Studies. Lá, nasceu o interesse pela língua portuguesa. Ainda criança, quis ser trompetista de jazz. Tocou em uma banda no ginásio. O trompete está pegando poeira no Japão. Na faculdade, lutou boxe. Mas se feriu em combate antes de se tornar profissional. Nocaute. Em 1990, tão logo terminou a faculdade, virou Sarariman, assalariado de terno e gravata. Nada mais distante do seu estilo despojado. Decidiu sair do Japão. O destino já estava escolhido: Brasil. Para morar, Salvador. “Aqui diziam ser mais típico, tradicional”. Achava tudo interessante: filas e assaltos. Findo o contrato, voltou para o arquipélago e para a burocracia corporativa. Em dois anos, quis voltar. Em1993,passouemumconcursodaFederação Cultural Nipo-Brasileira e veio dar aulasdejaponêsparaimigrantes.Asaulas, o trompete e o boxe eram apenas cortina de fumaça para a vocação. “Queria me especializar em algo, ganhar dinheiro. Podia ser qualquer coisa: fotografia ou cortar cabelos”. Estudou fotografia. Em 1996, participou da primeira mostra coletiva O Olhar Oriental sobre a Bahia, pela Fundação Kikuchi, no Pelourinho. A segurança veio com o primeiro lugar no PrêmioBaíadeTodososÂngulos,em1997.No mesmo ano, ele se tornou correspondente
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Retratos do
submundo
Radicado há 20 anos em Salvador, Hirosuke Kitamura transforma a penumbra dos bordéis da cidade em uma paleta de luzes Texto MARCEL BANE marcel.bane@grupoatarde.com.br Foto FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br
da revista japonesa de música Latina, especializada em sons do mundo, com a qual colabora até hoje: “Eu escrevia e fotografava. Cobria Carnaval, São João...”.
CAÇADOR DE COQUETÉIS Kitamura considera como o início da carreira a participação na Bienal Internacional de Fotografia de Curitiba, em 2000. A guinada se deu graças ao encontro com Dulce Sudor Amargo, de Miguel Rio Branco. “Me abriu o olhar para outras possibilidades estéticas”. A essa altura, ele já conhecia Mario Cravo Neto e as gravuras de Hansen Bahia. “Me despertou para o submundo”. Por vezes, Kitamura se revela modesto e inseguro. Incapaz de julgar o próprio talento. Sobre ele, Mario Cravo Neto escreveu: ”O seu trabalho é uma gota de veneno na vaidade dos fotógrafos de nossa cidade. Oske, continue produzindo”.
Foi um amigo de Salvador que o convidou a dar uma volta no lado selvagem da cidade. Resolveram passear na Ladeira da Montanha. “Fomos tomar cerveja, conhecer. As mulheres pareciam fantasmas”. Na primeira incursão, notou como a vista deslumbrante da Baía de Todos-os-Santos contrastava com a penumbra do interior das casas. “Depois, levei a máquina. Senti que eles não gostam de ser retratados. Mas depende da dona. O espaço é delas”. As primeiras fotos deram origem à série Casa de Encontro, de 2002. A pecha de fotógrafo de bregas não o incomoda. “Houve um tempo no qual eu ficava preocupado. Mas fotografo muitas coisas. Me interessam a passagem do tempo, a degradação. Quando encontro isso, fotografo”. De fato, há uma diversidade de temas nas fotos. Elas retratam não só corpos, mas texturas e paradoxos, revelados
O fotógrafo japonês Hirosuke Kitamura e dois de seus trabalhos: Cama y mesa (à esquerda) e Te vejo no parque
em poucas, mas intensas cores. “Meu trabalho é monocromático”. Além da relação com o corpo, tem muita coisa misturada: prazer e sofrimento, alegria e tristeza, coletividade e solidão”. OelementoreligiosotambémestápresenteemsériescomoSalvador – Cidade que se mantém orando, que ele expôs em 2002, no salão Nikon, em Tóquio, sua primeira exposição fora do Brasil. No exterior, Hirosuke é representado pela 1500 Gallery, de Nova York. O convite veio via Facebook, após um dos sócios da galeria ver um dos trabalhos do fotógrafo que integra a Coleção Pirelli de Fotografia, no Masp. Com curadoria de Miguel Rio Branco, a exposição Hidra, série de fotos em bordéis, entrou em cartaz em NYC em fevereiro deste ano e passou por São Paulo em julho. O jornal britânico The Huffington Post disse: “Quando Kitamura captura uma imagem, ele converte seus sujeitos de mulheres em vítimas”. Entretanto, seu trabalho está mais próximo da literatura do que do fotojornalismo. “Não tem nada de denúncia. As pessoas falam muito sobre eu ser um japonês fotografando prostíbulos. Mas não estou documentando, não há um julgamento. O que interessa é a cena”. Quando fotografa, ele prefere interferir pouco. “Eu dirijo o mínimo possível. Mas há um pouco de performance também”. « FOTOS: HIROSUKE KITAMURA