Estudos Narrativos e Cultura de Séries

Page 1

Marcelo Bolshaw Gomes (org.)

Estudos Narrativos e Cultura de SĂŠries 2018


Revisado, diagramado e organizado pelo professor Marcelo Bolshaw Gomes (DECOM/UFRN).


INDEX Prefácio

05 Metodologia para narrativas audiovisuais em série

1.

Introdução: O percurso greimasiano

07

2.

Breve história do sistema narrativo da TV

09

3.

Cultura de séries

12

4.

Semiótica Narrativa

14

5.

O Quadrado dos Actantes

17

6.

Adaptações

20

7.

Considerações finais

21

Uma visão semiótica narrativa da Série 13 Reasons Why 1.

Introdução

23

2.

Narrativa em flashback

25

3.

Os 13 porquês no Quadrado Semiótico

28

4.

Narrativas Criadas pelas Narrativa

31

5.

Considerações finais

39

Amorteamo à luz dos Actantes 1.

Introdução

41

2.

A microssérie Amorteamo

44

3.

A gênese das Assombrações do Recife Antigo

45

4.

A narrativa fantástica e maravilhosa

47

5.

De Propp a Greimas

53

6.

As personagens femininas

55

7.

Considerações finais

63


Não deixe os bastardos te desanimarem 1.

Introdução

65

2.

Forma e Substância de Expressão

66

3.

Forma e Substância de Conteúdo

70

4.

A maternidade e a função reprodutiva

77

5.

Considerações finais

81 Referências

1.

Audiovisuais

83

2.

Bibliográficas

83

3.

Jornalísticas

87


Prefácio Este ebook, Estudos Narrativos e Cultura de séries, é resultante da do Projeto de Pesquisa Teoria Narrativa e Arte Sequencial (UFRN PVC14424-2017) e da disciplina PEM0035 - SEMINÁRIOS EM COMUNICAÇÃO IV - Teoria Narrativa e Arte Sequencial, 2017.2, no Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEM/UFRN). O primeiro texto, Metodologia para análise de narrativas em série, é um artigo sobre semiótica narrativa e a televisão como sistema narrativo. Esse artigo é resultado de várias análises e ponto de partida de várias outras, desenvolvidas por alunos e outros pesquisadores. O texto Uma visão semiótica narrativa da Série 13 Reasons Why - de Renata Alves de Albuquerque; Kassandra Merielli Lopes Lima; Josilma Oliveira Lopes; e Renato Ferreira de Moraes - analisa as reações do público consumidor e das instituições jornalísticas frente às polêmicas que circularam no ambiente midiático após o lançamento da série “13 Reasons Why”, relacionando-as à teia de interações presentes no enredo. A análise demonstra uma abordagem majoritariamente negativa dos veículos e positiva dos consumidores, os quais apontam para a necessidade da abordagem do bullying e do suicídio. Em seguida, Amorteamo à luz dos actantes, de Carla Patrícia Oliveira de Souza, se propõe estudar a microssérie Amorteamo (2015) de direção geral de Flávia Lacerda. No percurso da pesquisa, identificamos que a obra de Gilberto Freyre Assombrações do Recife Antigo foi a inspiração que norteou o melodrama sobrenatural nordestino. Para compreender a narrativa fantástica e maravilhosa de Amorteamo buscamos a contribuição de Propp, Todorov e Greimas. Não deixe os bastardos te desanimarem, de Ana Karla Batista Farias, Cleber Femina e Alexandre Ferreira Mulatinho, estuda os temas do feminismo e da maternidade, apresentados na premiada série The Handmaid’s Tale. E, finalmente, O texto Quem é a vítima? é uma continuação e um aprofundamento do artigo Quem é o culpado? (2016) que explora a ‘investigação por abdução’, científica e ‘detetivesca’ dos acontecimentos, a ‘inteligência narrativa’ que descobre histórias através de pistas, evidências e provas.


Resta ainda agradecer a todos aqueles que contribuíram com essa oportunidade: ao Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia; à Pro reitoria de Pós Graduação da UFRN; à Editora Universitária; e, principalmente, aos alunos, que adotaram a metodologia e produziram textos interessantes e inteligentes. Obrigado a todos! Marcelo Bolshaw Gomes


Metodologia para narrativas audiovisuais em série Marcelo Bolshaw Gomes1 1.

O percurso greimasiano

Geralmente apresenta-se Greimas como um teórico estruturalista que superou o estruturalismo, mas isso não é inteiramente verdade. Seu livro mais importante, Semântica estrutural (1973), pode ser lido de modo linguístico estruturalista, como um conjunto de regras para analisar a linguagem como narrativa. E os livros posteriores Semiótica das paixões (1993) e Da Imperfeição (2002) tratam de compreender as emoções e os efeitos de sentido do receptor e não mais da análise linguística das narrativas. Porém, não há um corte epistemológico, uma ruptura entre duas formas distintas de pensar, e sim uma evolução dos conceitos. Na Semântica Estrutural, Greimas já considera as raízes psicológicas da linguagem e, nos últimos livros, ele não abandona inteiramente sua perspectiva estrutural e linguística. A Semiótica das Paixões (1993) acredita que as emoções são o resultado de um jogo entre as modalidades do querer ser, do dever ser, do saber ser e do poder ser. Uma paixão/ação é fruto de arranjos modais entre esses quatro actantes (e não dos actantes-personagens da Semântica Estrutural). Por um lado, Greimas passa a se referenciar em sua própria narrativa; por outro, os efeitos de sentido passionais continuam sendo construções de linguagem derivadas de arranjos nodais provisórios. Da imperfeição (2002) é um livro que lembra, em vários aspectos, Fragmentos do Discurso Amoroso (1981), último livro de Roland Barthes. A semelhança não reside apenas na passagem do estilo teórico estruturalista para uma abordagem mais artística, voltada para a análise literária e para as próprias percepções emocionais, mas, sobretudo, porque os textos extrapolam a experiência estética em busca de um sentido ético para a vida. São textos meta literários que discutem o impacto do narrado sobre o vivido.

1

Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4792219T9 e email: marcelobolshaw@gmail.com


Porém, em nenhum momento Greimas rompeu explicitamente com seu passado (como Barthes fez em sua aula inaugural no College de France2) e com o método narrativo elaborado na Semântica Estrutural. Para Greimas, a semiótica é a teoria da significação. Seu objeto são os sistemas semióticos narrativos (escritos, plásticos, musicais) e não os signos em si. A unidade mínima da linguagem também não é o signo, nem o discurso, mas o texto – seja ele escrito, visual ou sonoro. Os sistemas semióticos se constituem a partir de condições de enunciação (tecnologias do emissor) e das possibilidades linguísticas de enunciação (a linguagem e os pactos de sua leitura). Vistos do lado de dentro da narrativa, o sujeito da enunciação (o “alguém que diz”) e o sujeito enunciatário (para quem se fala) são equivalentes às categorias de ‘autor ideal’ e ‘leitor ideal’ elaboradas por Umberto Eco para traçar o limites entre a Interpretação e a Superinterpretação (1993)3. Apesar do reconhecer a importância da interpretação final do receptor, Eco destaca o peso das circunstâncias de enunciação e leitura e leva em conta o contexto do enunciador (ou as circunstâncias sócio históricas de transmissão e distribuição do discurso e os ‘pactos de leitura’ (os diferentes contextos de recepção). As estratégias de leitura textual (o autor modelo e os leitores modelos) seriam os limites da interpretação legítima. Enquanto, a semiose ilimitada absoluta endossa projeções indevidas, ‘usos’ arbitrários e ‘super-interpretações’.

2

Inaugurando, no Collège de France, a 7 de janeiro de 1977, a cadeira de semiologia literária, Roland Barthes, ao considerar a língua como um código de linguagem engendrado pelo poder (e não como uma estrutura) rompe efetivamente com Saussure e aproxima-se de Foucault. A comparação entre Barthes e Greimas é interessante porque ambos passam a ser mais literários e críticos, como se não houvesse mais tempo para explicar suas ideias de forma analítica, sendo assim pedir ajuda a poética; e consequentemente passam a ser discutir as próprias emoções. 3

Pierce (2003) entendem que o sentido é produzido mais pela relação texto-receptor do que pela intenção do enunciador (psicanálise) e/ou do significado do texto em si (estruturalismo). A ‘semiose ilimitada’ a partir do interpretante significa que um signo não representa um objeto de referência e sim outro signo, que representa outro signo e assim indefinidamente. Mesmo aceitando a semiose ilimitada do receptor, Umberto Eco (1993) traça limites para interpretação. Para Eco, há textos abertos como a arte (polissêmicos, em que vários sentidos convergentes se encaixam) e textos fechados, dirigidos a públicos específicos. Quando o receptor imagina a referência, o texto é aberto e o discurso é lúdico; quando a referência é imposta pelo emissor, o texto é autoritário e discurso é uma paráfrase. A maioria dos textos é intermediário desses extremos, podendo haver diferentes gradações. Para entende-los, Eco propõem duas estratégias de interpretação textual: o autor-modelo (a imagem que o leitor faz de quem escreve) e o leitor-modelo (a imagem que o autor faz de quem lê). E observa que há vários níveis de competência do leitor e que o texto permite diversas leituras e vários leitores ideais.


2.

Breve história do sistema narrativo da TV

Há várias forma de contar a história da televisão. A maioria se perde entre fatos técnicos e eventos transmitidos. Entre as teorias sobre rupturas e marcos na história da TV, Eliseo Verón (2003, p. 15) cita duas, que considera mais relevantes: a semiótica (que trata da linguagem) e a tecnológica-industrial. A Semiótica de Umberto Eco divide o desenvolvimento da linguagem televisiva em dois períodos distintos: a paleo-TV – em que o veículo falava do mundo objetivo, ao vivo, separando a informação da ficção/opinião; e a neo-TV, em que a televisão fala sempre de si mesma, misturando referências reais e simbólicas de múltiplos modos. A primeira fase é caracterizada pelo “olho no olho” (o apresentador garante a verdade da enunciação olhando dentro da câmera); a segunda, pelo olhar vago e descentrado dos entrevistados, pela narrativa ‘em off’, pelo desaparecimento do apresentador e do repórter ou, ao contrário, pela sua integração dentro de espaços ficcionais e/ou publicitários. Todos tornam-se personagens da narrativa televisiva, duplos ou fantoches icônicos das instituições e grupos sociais. Classificação semelhante é sustentada por Casseti e Odin (VÉRON, 2003, p. 19), em que há uma fase “de massa” ou “pedagógica” (onde a TV é uma grande sala de aula) e uma segunda fase mais individualista (que coincidiu com o advento da TV a cabo no Primeiro Mundo), marcada pelo início da segmentação da audiência e pela interatividade do público, antecipando assim a Internet. Assim, enquanto Eco analisa mais a mudança na linguagem do veículo, Casseti e Odin estudam as mudanças tecnológicas e mercadológicas da televisão. As duas abordagens não são excludentes e até se explicam. Além de proceder esta síntese, Verón apresenta ainda uma outra classificação mais abrangente, com três fases ao invés de duas (VERÓN, 2003, p. 22). De 1950 aos anos 70, a TV seria “uma janela para o mundo”, isto é, um enquadramento do contexto sócio institucional extra televisivo. O enunciador seria um mero ventríloquo, o interpretante seria o “Estado-Nação” ou o País. No Brasil, esse período corresponde à era da TV ao vivo, anterior à gravação em Vídeo. Nos anos 80, segundo Verón, a TV tornou-se a própria instituição interpretante e o videoclipe passou a ser sua unidade retórica. A televisão não espelha mais a realidade, recorrendo a cientistas para falar de ciência, a políticos para falar de política ou a artistas para falar de arte; o apresentador fala direta e legitimamente de tudo e a TV não é mais uma ‘janela’, mas sim


um espaço de montagem de discursos. Verón (2003, p. 25) identifica ainda uma terceira fase, a partir da metade dos anos 90, caracterizada pelos reality-shows. Tabela 1 – História da TV TECNOLOGIA Auge da TV de sinal aberto JANELA DO MUNDO AO VIVO Surge o vídeo MEIO-MENSAGEM, OBJETOTransistor substitui a válvula PRESENÇA DO SIMBÓLICO NO Transmissões via satélite e a cores COTIDIANO TV a cabo (fibra ótica) SEGMENTAÇÃO INTERATIVA TV digital (o microchip) Convergência com telefonia (microondas) LINGUAGEM

ANOS 1950 60 70 80 90 2000 2010

Os anos 50 foram os ‘anos de ouro’ da televisão nos EUA. A TV, totalmente ao vivo, transmitia desde concertos de música, peça de teatro de Shakespeare, eventos esportivos e telejornais em tempo real. Aqui, a TV Tupi procurava reproduzir o ‘glamour’ das três principais redes americanas (ABC, CBS e NBS). O aparecimento das gravações em vídeo barateou bastante os custos de produção de TV, mas também fez com que houvesse uma grande queda no padrão de qualidade do conteúdo transmitido. No Primeiro Mundo, essa mudança da primeira para segunda fase de desenvolvimento da TV corresponde à TV a cabo e à segmentação do mercado consumidor; mas no Brasil, a mudança corresponde à progressiva hegemonia do “padrão Globo de produção” e a programação nacional colorida difundida em rede via satélite (o programa Fantástico, o show da vida, misturando informação e entretenimento, pode ser considerado o carro-chefe dessa estética, de auto referência institucional). Aqui, a terceira fase é que corresponde ao aparecimento dos canais fechados de TV a cabo e a diminuição drástica do nível cultural da programação de sinal aberto, ao aparecimento de novos ‘programas populares’ (ao vivo, de auditório, com cenas policiais voltadas para as classes C e D). Os anos 80 foram ‘uma década perdida’ para o desenvolvimento tecnológico da televisão 4.

4

Devido à defasagem do desenvolvimento da TV brasileira em relação ao contexto internacional, Verón (2003, p. 30) faz uma perigosíssima comparação entre a vitória de Lula em 2002 e a eleição de François Mitterrand, na França em 1981: para ele, o presidente francês foi eleito presidente pela primeira vez no início da segunda fase da televisão; e Lula, quando esta fase termina e uma terceira se inicia. Mas, nos dois casos, o autor acredita que a mídia impôs uma “economia de contato” aos atores sociais e políticos durante as eleições. Em ambas as situações, não é mais a televisão que fala a respeito dos candidatos aos seus eleitores, mas sim a TV que vende produtos políticos a consumidores segmentados.


Há também várias formas de caracterizar o momento atual do desenvolvimento da televisão. O microchip e as micro-ondas aumentando a mobilidade dos meios. As telas LED/Cristal líquido miniaturizando os monitores. Veron enfatiza a linguagem dos ‘realityshows’; Mitchell (2012, 2015), a cultura de séries; Jenkins (2009), a cultura participativa do público e a narrativas transmídias distribuídas em várias plataformas. Há várias características diferenciais e diferentes formas de descrevê-las. Mas, além das análises centradas na linguagem do discurso audiovisual e na história dos suportes tecnológicos, há também aspectos mais importantes a considerar para caracterizar esse terceiro momento da televisão: a segmentação e a interatividade. A ideia da TV como uma mídia manipuladora e alienante foi um obstáculo para sua análise discursiva e narrativa como produto cultural. A televisão só passou a ser vista como ‘arte’ pela academia nos anos 80. Em 1987, Sara Ruth Kosloff (1992) apresenta uma abordagem estruturalista específica para análise da televisão, fundamentada nos pensamentos de Tzvetan Todorov, Roland Barthes e outros. A maioria dos estudos, no entanto, aplica à TV, os mesmos procedimentos analíticos utilizados nas narrativas cinematográficas (GAUDREAULT, 2017). O folhetim, o rádio novelas, as histórias em quadrinhos e os seriados da televisão serializam as narrativas ficcionais. A serialidade é a fragmentação e a descontinuidade da linguagem, gerando rotinas discursivas através da repetição e da acumulação gradativa de elementos narrativos (CALEBRESE, 1987). A linguagem da TV consolida o conteúdo serializado através de blocos, episódios e temporadas que são dispostos ao longo de dias, semanas e até anos. O sistema narrativo da televisão incorpora os parâmetros dos sistemas narrativos teatral (cenográfico, figurino, dramaturgia), literário (roteiro, diálogos, narrador em off, legendas), cinematográfico (a fotografia, o enquadramento, a sonoplastia, a edição de imagens e seus efeitos) e radiofônico (a serialização em módulos, episódios e temporadas ao longo do tempo; e o tempo simultâneo ‘ao vivo’). As narrativas ficcionais eram literárias e teatrais no século XIX e se tornaram cinematográficas no século XX. O leitor e o espectador presencial do teatro foram substituídos pelo público consumidor de imagens técnicas – em vários contextos de recepção diferentes no espaço tempo.


O sistema narrativo da televisão assimilou os sistemas narrativos da literatura, teatro e cinema gerando um novo modelo narrativo, que está, durante o século XXI, sendo reinventado pelas redes e dispositivos móveis. As narrativas audiovisuais de ficção assimilaram as antigas estruturas e estão absorvendo as novas, reformulando-as em uma constante transformação, é a chamada ‘ecologia das mídias’. Com a convergência (tecnológica e empresarial) das mídias, o sistema narrativo audiovisual em série transbordou as fronteiras da televisão, escorrendo pelos computadores e dispositivos móveis de telefonia. 3.

Cultura de séries

Porém, antes mesmo de desenvolvermos ferramentas analíticas específicas para o sistema narrativo da TV, o videogame e a internet tornam as narrativas audiovisuais ficcionais, além de seriadas e instantâneas, também interativas e segmentadas. Surgem novos modos narrativos: a complexidade narrativa de Mittell (2012; 2015) e a narrativa transmídia de Jenkins (2009). Mittell associa a fusão dos formatos seriado e capitular à noção de complexidade narrativa, identificando-a como uma poética da narrativa televisiva. Jenkins vê a serialidade da TV como base da transmidiação, em que uma narrativa é distribuída em diferentes plataformas de forma desigual e combinada. O consumo de narrativas audiovisuais de ficção seriada, produzido para televisão; é consumido fora da televisão (via DVDs, arquivos digitais ou streaming). Surgem também novas práticas culturais, como os fenômenos do bing-watching (prática de assistir a vários episódios de um mesmo programa, através de plataformas como o Netflix e/ou arquivos baixados pela internet) e do social TV (uso simultâneo da internet e da televisão pelos telespectadores, a experiência da ‘segunda tela’ e da utilização combinada dos hemisférios cerebrais)5.

5

Ler implica em concentração, em ‘entrar no livro’, através do hemisfério esquerdo; assistir televisão é deixar as imagens ‘entrarem em você’ através de um atenção dispersa pelo hemisfério direito. O computador é uma síntese do livro e da TV ao mesmo tempo e já tem um efeito de duplicar a cognição da linguagem. Na experiência de bing-watching, a dupla cognição é distribuída em duas telas, uma representando a TV e a percepção passiva; e a outra, o aspecto ativo e criativo da cognição.


Com a convergência das mídias; a televisão, o telefone e o computador se interligam através da internet das coisas. Embora a radiodifusão e a telefonia permaneçam distintas como negócios, vários ‘objetos inteligentes’ já superam essas barreiras tecnológicas. Trata-se agora de assistir as séries de ficção televisiva em canais fechados, plataformas como a Netflix e arquivos digitais. A TV aberta Broadcast como modelo de negócios já acabou (resta apenas a ferramenta de manipulação de massas), mas sua linguagem permanece viva como produto cultural artístico. Existe quem acredita que ainda é muito cedo para decretar o fim da televisão. Argumenta que o velho modelo broadcast continua sendo hegemônico internacionalmente e que a segmentação interativa atendem mais ao desejo de auto representação das elites do que à democratizar a informação ao conjunto da população. Mas não se discute o empoderamento do receptor nem a transformação da máquina hipnótica em um oráculo cognitivo – pois isso são sonhos. Silva (2014) discute a existência de uma cultura das séries, a partir de três condições centrais: a sofisticação das formas narrativas, o contexto tecnológico que permite uma ampla circulação digital (online ou não) e os novos modos de consumo, participação e crítica textual. Com isso, as séries fomentam interesses que não se restringem ao envolvimento de comunidades de fãs com obras específicas, mas também indicam a formação de um repertório histórico em torno desses programas, de uma telefilia transnacional, de uma cultura das séries. Figura 1: Diagrama de vetores dos elementos constituintes de uma cultura das séries.

Fonte: SILVA, 2017.


A nova ‘cultura de séries’ traz também uma nova geração de estudos sobre a televisão, não mais centrados no contexto social (como a Escola de Frankfurt e o funcionalismo) ou na linguagem (como o estruturalismo), mas sim nos contextos de recepção da TV. Por exemplo, nas classificações antigas, as narrativas de ficção seriada se subdividiam em novelas (de capítulos), seriados (de episódios) e teledrama (narrativas completas sobre um único tema). Com a fusão dos gêneros e a mudança da perspectiva para a recepção, as narrativas passaram a ser classificadas em: séries imóveis (ou fechadas - com começo, meio e fim predeterminados); e séries móveis, abertas ou evolutivas (ESQUENAZI, 2011, p. 93). Dentre os subtipos mais comuns, destacamos o Sitcom (comédias de situação, baseadas na comicidade da personalidade de seus protagonistas), a Soap Opera (gênero em que não há um desenvolvimento real da narrativa, cada resolução de arco é sempre provisória como a vida) e as séries nodais (em que há estrutura interna de longo prazo encadeada com os episódios para montagem de uma narrativa complexa). 4.

Semiótica Narrativa

A metodologia para leitura de narrativas audiovisuais em série tem três momentos distintos: descrição, análise e interpretação. Para descrever a narrativa, sugerimos algumas categorias narrativas simples: enredo principal (e subenredos); narrador; espaço-tempo; ambiente; e personagens. Espera-se que, descrita através dessas categorias, o leitor possa entender a narrativa sem ter a assistido. Há, em seguida, três níveis de análise: a linguística, a discursiva e a narrativa – que detalhamos adiante. E, finalmente, há ainda a interpretação, em que se discute os elementos psicológicos universais da narrativa e se define sua mensagem simbólica, a chamada “moral da história”. Tabela 1 – Descrição, análise e interpretação de narrativas CATEGORIAS NÍVEIS DE ANÁLISE INTERPRETAÇÃO DESCRITIVAS Enredo Linguística – Semiótica (Texto, QUADRADO SEMIÓTICO imagens, sons) Narrador NARRATIVO polarização Espaço Tempo Análise Discursiva de dos elementos simbólicos conteúdo Ambiente Análise Narrativa (Gênero, Personagens Mensagem tipo, comparações narrativas)


Ferdinand Saussure, criador da linguística e do estruturalismo, estabeleceu o Signo como unidade mínima da linguagem e o subdividiu em dois aspectos indissociáveis: o Significante ou aspecto material (uma “imagem acústica”); e Significado ou aspecto mental (a ideia abstrata que o signo representa). Enquanto Saussure elaborou uma linguística voltada para o estudo oral do idioma, Hjelmslev e a escola glossemática criaram uma linguística estruturalista voltada para o idioma escrito e duplicaram a dicotomia do signo em quatro níveis: 1. 2. 3. 4.

Forma de Expressão (palavras, sons, imagens); Substância de Expressão (cores, notas musicais, sabores); Forma de Conteúdo (conceitos e enunciados); e Substância de Conteúdo (símbolos, universais do imaginários). Tabela 2 – Saussure e Hjelmslev SAUSSURE

SIGNIFICANTE Imagem acústica SIGNO

GLOSSEMÁTICA Forma de Expressão

Ordem de elementos

Substância de Expressão

Morfemas elementos

Forma de Conteúdo

Ordem estrutural

Substância de Conteúdo

Conceito puro

SIGNIFICADO Ideia abstrata

Para Greimas, todo texto pode ser analisado como uma narrativa. Por exemplo: o médico lê os sintomas de seu paciente (no plano das formas de expressão) extraindo daí um diagnóstico (no plano do conteúdo de substância) de sua enfermidade. Os sintomas são os significantes e o diagnóstico é o significado. Todo sistema semiótico narrativo é formado por uma semântica (estudo dos significados) e por uma sintaxe (estudo das relações estruturais entre os significantes). Há, portanto, três estruturas sobrepostas: a estrutura linguística de superfície (as formas e as substâncias de expressão), a estrutura discursiva intermediária (as formas de conteúdo, os enunciados e conceitos); e a estrutura narrativa de profundidade (a substância de conteúdo, o simbólico, os universais do imaginário).


Figura 1 – Estruturas linguísticas por Greimas

Assim, a linguagem (ou a estrutura linguística de superfície) é: a) sincrônica e imediata, sendo explicada pela b) análise discursiva no plano das formas de conteúdo (pelos enunciados diacrônicos e lineares do pensamento) e c) pela análise da estrutura narrativa de profundidade, o arranjo dos elementos universais e inconscientes (que voltam a ser simultâneos). Greimas afirma que o nível discursivo é uma enunciação do nível narrativo. E que, ainda no plano de conteúdo, as estruturas narrativas são anteriores e mais abrangentes do que as estruturas discursivas de um texto. No plano da expressão, os conteúdos narrativo e discursivo são manifestos tanto de forma verbal como de forma não verbal. O plano de conteúdo é mental, metalinguístico e representa a significação semântica em si; o plano da expressão é material, linguístico e formado por imagens, sons e palavras, em “estruturas de superfície”. Greimas usa o modelo da glossemática para estudar narrativas. Tabela 3 – Níveis de Análise Narrativa Forma de Expressão

Substância de Expressão

Forma de Conteúdo

Substância de Conteúdo

Análise Linguística e Semiótica do texto, da imagem e do som

Análise Discursiva da narrativa audiovisual das séries em temporadas, episódios, cenas e sequências

Crítica ideológica e Crítica estética

Universais do imaginário, elementos psicológicos e simbólicos.

Segundo Greimas, a forma de expressão é a linguagem superficial, imediata, como a percebemos através dos sentidos. Ela é composta com palavras, imagens, sons, signos materiais. Já a substância de expressão é o significado imediato, temático, do conteúdo de cada signo: o que foi dito e onde/quando foi dito. A linguagem transforma-se em discurso, um conjunto de enunciados.


Os sintomas-significantes ‘seios inchados e doloridos, atraso na menstruação, enjoos, alterações no paladar’ no plano da forma de expressão nos leva a enunciar o diagnóstico-significado de ‘gravidez’ no plano da substância de expressão. A forma de conteúdo, por sua vez, implica em se observar o contexto de enunciação e os diversos contextos de recepção (os diferentes pactos de leitura da narrativa), fazendo assim uma crítica ideológica da narrativa. A forma de conteúdo também pode ser compreendida como uma crítica estética, destacando como a narrativa se coloca em relação a ouras narrativas semelhantes em gênero ou tipo, sê assimila enredos de outras estórias ou se traz elementos novos. Para Greimas, nas narrativas no nível das formas de conteúdo, alguém (O SUJEITO) deseja alcançar algo (O OBJETO DE VALOR) e é atrapalhado por algo/alguém (O ANTI SUJEITO). Este modelo simples permite entender o gênero (que tipo de objeto de valor) e a ideologia (a identidade do anti sujeito) da narrativa. No caso da gravidez, o diagnóstico da substância de expressão: a mãe é o actante sujeito; a futura criança, o objeto de valor; e o anti sujeito, define o tipo de narrativa: gravidez de risco, gravidez indesejada, gravidez constrangedora. E, finalmente, a substância de conteúdo se refere aos elementos simbólicos e psicológicos da narrativa, aos ‘universais do imaginário’, que combinados de diferentes modos formam a “mensagem” da narrativa. Greimas sugere a organização desses elementos em pares, representando os conflitos, relações complementares e contrapontos da narrativa, em modelo chamado de Quadrado Semiótico Narrativo. Este modelo consiste em definir quatro actantes e organizá-los em seis pares de opostos: duas relações de contradição; duas relações de contrariedade; e duas relações de complementaridade – entre os quatro elementos simbólicos principais da narrativa. Essas estruturas profundas seriam lógicas e acrônicas, formadas por relações de contradição, oposição e contraponto (o quadrado semiótico). 5.

O Quadrado dos Actantes

E a esse conjunto de relações podem ser representados no esquema gráfico proposto por Greimas.


Figura 2 – Estrutura narrativa do inconsciente profundo S1 - Sujeito: persegue o objeto S2 - Ajudante: actante que dará auxílio ~S2 – Anti Sujeito: actante que cria obstáculos ~S1 - Objeto de valor: elemento central (desejo) Destinador: remetente Destinatário: quem recebe o objeto

Exemplo de Greimas (1973, p.): A Branca de Neve (sujeito) deseja ser feliz (objeto de valor) é ajudada pelos 7 anões (ajudantes) atrapalhada pela bruxa (anti sujeito) encontra o príncipe (destinador) e casa-se com ele (casamento/receptor). O Quadrado Semiótico Narrativo de Greimas consiste na representação visual da articulação lógica de uma qualquer categoria semântica no plano de conteúdo. Nele, se situam os actantes: o Herói (S1), a Sociedade (S2), seu Ajudante (~S1) e seu Adversário (~S2). As linhas bidirecionais contínuas representam as relações de contradição; as bidirecionais tracejadas, as relações de contrariedade; e as linhas unidirecionais, as relações de complementaridade. O próprio Greimas modificou os actantes do diagrama do quadrado narrativo na Semiótica das Paixões e em Da Imperfeição, indicando a necessidade de adaptação criativa de seu modelo. Na verdade, vários arranjos são possíveis, incluindo ou excluindo elementos simbólicos diferentes segundo as histórias e deve-se estar aberto para aprender a aperfeiçoar os conceitos com as narrativas novas, ao invés, de querer aplicar modelos analíticos de regras de forma inflexível. Na presente perspectiva, o Herói da narrativa corresponde ao Ego projetado pelo narrador com o qual o leitor se identifica. E o Adversário corresponde à sombra psicológica, à carga de negatividade utilizada na estória. O Ajudante é composto por vários alter egos masculino (o Animus), o melhor amigo do protagonista; e a Sociedade pode ser substituída pelo Self, o Narrador/leitor ou ainda pelo Sagrado Feminino (ou a Anima) – que geralmente desempenhando o papel de 'par romântico'.


Posição

Tabela 4 – Quadrado Semiótico Narrativo Elementos narrativos RELAÇÕES DE CONFLITO

S1/~S2 S2/~S1

Protagonista x Antagonista Narrador x Sagrado Feminino RELAÇÕES DE OPOSIÇÃO

S1/S2

Protagonista e Narrador

~S1/~S2

Sagrado Feminino e Antagonista RELAÇÕES DE CONTRAPONTO

S1/~S1

Protagonista + Sagrado Feminino

S2/~S2

Narrador + Antagonista

Os actantes de Greimas não são (necessariamente) personagens ou arquétipos psicológicos. Mas guardam grande semelhanças com essas categorias. Actantes são “os seres ou as coisas que, a título qualquer e de um modo qualquer, ainda a título de meros figurantes e de maneira mais passiva possível, participam do processo” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 20). Assim, Actante para Greimas é “um tipo de unidade sintática, de caráter propriamente formal, anteriormente a qualquer investimento semântico e/ou ideológico” (2008, p. 21). Greimas escreveu um texto específico (1983), em que explica as semelhanças e diferenças entre personagens, figuras e actantes. Aqui considera-se as categorias de protagonista e antagonista (tipos de personagens para Propp) como equivalentes aos actantes Sujeito e Anti Sujeito. Nas narrativas audiovisuais atuais, os personagens são quase sempre actantes. Embora seja possível que um protagonista narrativo seja um anti sujeito simbólico, como, por exemplo, uma história de Lúcifer. Mas, há também trabalhos mais sofisticados com protagonistas coletivos ou abstratos. Antagonistas também: adversidades, preconceitos, medos, tudo que for contrário ao protagonista. Hoje, o elemento feminino deixou de ser um objeto passivo e também protagoniza a narrativa, instaurando novos objetos de valor abstratos. Assim, o actante ‘Objeto de Valor’ foi associado ao arquétipo psicológico do ‘Sagrado Feminino’ assumindo diversas identidades narrativas: a natureza, a mulher, a sociedade. E, no lugar do actante Ajudante, coloca-se aqui o Narrador, que corresponde ao Self (ou identidade da consciência) e deve ser entendido como uma mediação entre autor e leitor; e não como “narração”, um discurso da narrativa que “conta” a história. Onipresente e onisciente, ele é uma presença narrativa constante e invisível.


6.

Adaptações

Também alterou-se as relações de polaridade entre os actantes para Contradição, Contraste e Complemento – mais simples e mais abrangentes para análise de texto audiovisuais que as relações de Oposição, Contrariedade e Implicação originalmente propostas por Greimas, que são mais literárias e menos visuais. Trabalha-se assim com uma adaptação criativa da proposta de Greimas e não com a aplicação rígida de sua metodologia. Aliás, a definição dos elementos simbólicos (para o quadrado semiótico narrativo) é sempre arbitrária e subjetiva, pois trata-se de uma interpretação. A mensagem da história vai sempre depender de quem a lê, da definição dos elementos simbólicos de quem analisa a narrativa. Diferentes leitores podem identificar diferentes actantes da narrativa que leem; e chegar à conclusões morais diferentes. Poder-se-ia dizer que se faz aqui uma leitura muito junguiana de Greimas, confundindo as noções de arquétipo com actante. De fato: a diferença entre as noções é apenas de contexto teórico, pois, enquanto o arquétipo é uma forma-modelo dentro de uma arqueologia; o actante é um universal do imaginário, dentro de uma narrativa. Na narrativa A queda do Éden do Genesis há quatro elementos actantes e arquetípicos: Jeová (narrador/self), Adão (protagonista/ego), Eva (ajudante/anima) e a Serpente (antagonista/sombra). Tradicionalmente, os actantes combinam com os arquétipos, mas é possível contar a mesma história de outras formas. Por exemplo, posso recontar a história com a serpente narradora e/ou com Eva como protagonista da narrativa. Isto mostraria os lados negativos de Adão e de Jeová (os actantes seriam destacados dos seus arquétipos de origem), abrindo novas possibilidades de leitura e interpretação da narrativa. E por isso o primeiro elemento a ser definido é sempre o narrador, o Self, elemento consciencial da narrativa. Eu posso contar a história do ponto de vista de Adão, Eva ou da Serpente; transformando o arquétipo de Jeová em personagem actante da narrativa de um deles. O segundo passo é definir os actantes protagonista e antagonista entre os outros três arquétipos restantes. Resumindo: os arquétipos são elementos psicológicos e os actantes são dispositivos narrativos. Podem coincidir, reforçando a estrutura narrativa; ou não, desconstruindo narrativas tradicionais.


7.

Conclusão

Primeiro, descreveu-se sumariamente o percurso teórico de Greimas, ressaltando sua posição limítrofe entre o estruturalismo e o pensamento pós-moderno; acrescentando também algumas referências teóricas importantes para semiótica, como Eco e Barthes. Depois apresentou-se uma brevíssima história da televisão, destacando nela três momentos de seu sistema narrativo: os anos de ouro ao vivo, a era da máquina hipnótica e o momento atual de transição, caracterizado pela interatividade relativa (sob controle) e pela segmentação crescente. A convergência dos meios está transformando a televisão em um oráculo cognitivo? Observou-se, em seguida, que a ideia de que a TV é apenas uma mídia manipuladora e alienante (pela Escola de Frankfurt, por exemplo) se configura como um obstáculo para sua análise; e que o modelo de fluxo televisual da grade de programação, proposto por Raymond Williams, desestimulou a análise dos programas individualmente. A televisão se tornou uma espécie de ‘tabu’ epistemológico. Finalmente, apresentou-se uma metodologia para leitura de textos audiovisuais em série, englobando parâmetros para descrição, análise e interpretação das tele séries. Demorou até que se reconhece-se a TV como forma de arte e/ou como um produto cultural. O discurso televisivo passou a ser sempre visto como algo superficial, fragmentado, repetido, ampliando e sugerindo alguns aspectos em detrimento de outros, como um filtro da realidade social, como algo que não merece ser estudado – entre outras aversões. Agora, segundo vários teóricos e críticos contemporâneos estamos vivendo um terceiro momento, caracterizado pela convergência das mídias e pela segmentação interativa do público: a “segunda era de ouro da televisão” e um declínio do cinema. Atores, diretores, escritores estão migrando da sétima para décima segunda arte. Surge a nova competência artística de ‘redator-produtor’ da série. A (autoria da) arte no teatro é do escritor; no cinema, do diretor; e na TV, do produtor – diz o ditado. Mas, hoje percebemos que a arte está nos olhos de quem a vê. Que toda arte agora é do seu receptor. Daí a importância das interpretações criativas, principalmente daquelas que compreendam e contribuam para ampliar e expandir essa situação limítrofe entre consciência e linguagem, a interação entre o sujeito e os efeitos de sentido, a dialética entre a vida e a narrativa.



Uma visão semiótica narrativa da Série 13 Reasons Why Renata Alves de Albuquerque Othon6; Kassandra Merielli Lopes Lima7; Josilma Oliveira Lopes8; Renato Ferreira de Moraes9.

1.

Introdução

O universo dos jovens americanos diante dos desafios da passagem da adolescência para a fase adulta - que inclui dramas familiares, sexualidade, questões de gênero, a exigência de um bom desempenho no Ensino Médio (High School, nos Estados Unidos) para o acesso a uma boa universidade, entre outros - foi e continua sendo objeto de uma série de obras “de formação” exibidas no cinema e na televisão, algumas baseadas na literatura. Parte da escola do cinema americano abordou o tema de forma romântica ou com tendência para a comédia. Ainda adolescente, Lindsay Lohan protagonizou a comédia Mean Girls (Paramount Pictures, 2004), Meninas Malvadas, título no Brasil, que mostra as estratégias de um grupo de estudantes em busca da popularidade na escola. Tornar-se popular é tema também de Sydney White, título original de Ela e os Caras (Universal Pictures, 2007), que narra a história de uma estudante expulsa de uma comunidade feminina que encontra abrigo numa república de garotos nerds10 para montar sua vingança contra as ex-colegas. A 6

Mestre e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4415887E6 e email: renata.othon@hotmail.com 7

Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4679558T1 e email: kassandramlopes@gmail.com 8

Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4732587E6 e email: jomestrado@gmail.com 9

Mestrando do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4278440D3 e email: rmoraes132@gmail.com 10

Nerd é um conceito sociológico que está profundamente atrelado à adolescência e juventude e à cultura do sistema escolar dos Estados Unidos. Geralmente faz referência a


Mentira (Sony Pictures, 2010), título em português de Easy A, protagonizado por Emma Stone, conta a história de uma estudante que se torna vítima da própria mentira ao tornar público um encontro com um calouro em que supostamente teria perdido a virgindade. Há exceções. Carrie (United Artists, 1976), por exemplo, baseado no romance de Stephen King, exibido no Brasil com o título de Carrie, a Estranha, é uma narrativa de suspense que aborda a história de uma adolescente perseguida na escola, acuada pela mãe, que percebe ter estranhos poderes que fogem de seu domínio no baile de formatura. Nas séries de TV, o tema passa a ser abordado em outra perspectiva dramática. Assuntos como bullying, orientações e comportamentos sexuais e o papel e a reação da escola enquanto instituição diante desses problemas passam a ser discutidos em séries como Big Little Lies (HBO MAX, 2017). A obra retrata o olhar e a atitude de três mães de alunos sobre os episódios de humilhação na escola que envolvem seus filhos. Na segunda temporada de American crime (ABC, 2015), exibida a partir de janeiro de 2016, bullying e homofobia são abordados ao longo de dez episódios através da história de um estudante vítima de humilhação na escola após acusar seus colegas jogadores de basquete de abuso sexual e publicação das fotos do episódio. Produzida pela Paramount Television e exibida pela NETFLIX, 13 Reasons Why, objeto deste artigo, explora esses dramas inserindo na discussão uma de suas consequências mais trágicas: o suicídio. A série é uma adaptação do diretor Brian Yorkey ao livro Thirteen Reasons Why (2007), de Jay Asher. Após vários episódios de humilhação - que inclui estupro, bullying, violação de privacidade, assédio, incompreensão sofridos na escola, Hannah Baker comete suicídio, mas antes planeja uma espécie de vingança ao gravar fitas-depoimento sobre todos os 13 motivos que a levaram a cometer o ato. A trama se desenrola na reação de amigos e familiares envolvidos nos episódios relatados por Hannah em seu diário post mortem. A partir de um olhar crítico e técnico, lançamos mão de três aspectos pelos quais uma narrativa pode ser analisada: narrativa e técnicas utilizadas; rede de discursos que circularam entre os públicos produtores e consumidores; e quadrado semiótico de personagens e conflitos da narrativa (GREIMAS, 1976). uma pessoa vista como intelectual, interessada por assuntos que a maioria das pessoas não se interessa e com poucas habilidades sociais.


Pretende-se, neste artigo, analisar as reações do público consumidor e das instituições jornalísticas frente às polêmicas que circularam no ambiente midiático após o lançamento da série e relacioná-las à teia de interações presentes na série, identificadas a partir do quadrado semiótico de Greimas (1976). Para a análise escolheu-se o Facebook (reações do público) e sites jornalísticos online, realizando a busca a partir de palavras-chave no Google e comentários nas publicações da Nteflix, respectivamente. 2.

Narrativa em flashback

A série é caracterizada pela exposição dos acontecimentos em flashback, uma ferramenta narrativa que permite a organização de eventos de forma não cronológica. Assim, a narrativa alterna o passado narrado pela própria Hannah sobre os motivos que a levaram a cometer o suicídio - e o presente – através da narrativa do cotidiano conturbado de Clay, amigo da estudante morta, e outros colegas e respectivos familiares que tiveram alguma participação nos problemas enfrentados por ela. Os 13 episódios são organizados de acordo com a sequência de apresentação dos principais personagens da série enquanto “culpados” na morte de Hannah, que vai contando a Clay, através das fitas, quem são eles (inclusive ele próprio) e quais os motivos de estarem incluídos na lista. No primeiro episódio, Clay recebe as fitas deixadas por Hannah e as instruções sobre o jogo de desvendar a sua morte. Na fita, ela apresenta Justin Foley, seu primeiro namorado, responsável também pelo primeiro caso de bullying ao expor aos amigos a foto (vazada na internet) de um momento íntimo entre os dois e de espalhar rumores obscenos sobre o encontro. No capítulo 2, ela apresenta Jessica Davis, “ex-amiga”, também novata na escola, cuja amizade foi desfeita em virtude de ciúmes e fofocas. A estudante volta a aparecer em episódios posteriores, quando é revelado que ela foi estuprada por um colega com o consentimento do namorado - fato presenciado por Hannah. Ainda nesse episódio, na narrativa presente, a mãe de Hannah encontra um bilhete que a faz acreditar que a filha vinha sofrendo bullying. A esta altura, os colegas da escola já sabiam que Clay estava ouvindo as fitas e Sherri (personagem que faz parte dos 13 porquês e aparece em episódios posteriores) se aproxima dele. O episódio 3 narra a relação de Hannah com Alex Standall, outro novato na escola, que se torna amigo de Hannah e namorado de Jessica.


Alex é protagonista de outro episódio de bullying contra Hannah ao incluí-la numa lista de “melhores e piores” da escola. No presente, a mãe de Hannah procura o diretor da escola e os amigos começam a pressionar Clay. Alex dá sinais de que também precisa de ajuda. No capítulo 4, Tyler Down, fotógrafo oficial do grêmio estudantil, é mostrado perseguindo Hannah, com quem tenta uma aproximação. Repelido, se vinga expondo as fotos de um beijo entre Hannah e Courtney (outra personagem envolvida na prática de bullying contra Hannah). Na narrativa do presente, Clay é pressionado pelos colegas a beber e se excede no consumo de álcool pela primeira vez, o que eleva a desconfiança dos pais em relação ao comportamento do filho. O rapaz começa a executar um plano de vingança contra os que praticaram bullying contra Hannah: fotografa Tyler nu e envia a foto para os colegas. O episódio 5 traz a história da curta amizade entre Hannah e Courtney Crimsen, homossexual não assumida, que se afasta de Hannah após ser fotografada beijando a amiga, passa a evitá-la de todas as formas e expõe a colega para esconder sua orientação sexual. No presente, dando continuidade ao seu “plano” de vingança, Clay pressiona Courtney ao levá-la ao túmulo de Hannah. Marcus Cole é o personagem central do episódio 6. Com a ajuda de Zach Dempsey, de quem é amigo, tenta aproximar-se de Hannah no Dia dos Namorados para aproveitar-se da suposta fama de “fácil” que a estudante adquiriu. Mais uma humilhação. Enquanto isso, na narrativa presente, o clima entre os colegas começa a ficar pesado. Alex briga com Montgomery, um “valentão” da escola. Ambos são levados ao conselho de classe. O sétimo capítulo aborda a história de Zach Dempsey. Jogador de basquete do time da escola, que aproveita o episódio entre Cole e Hannah para tentar uma aproximação, mas é rejeitado. Vinga-se sabotando recados dos alunos em sala de aula para expô-la ao ridículo perante os colegas. No presente, Clay começa a ter alucinações com Hannah. No oitavo episódio, Hannah apresenta Ryan Shaver, editor da revista da escola, que a envolve em outro caso de bullying ao expor, sem o seu consentimento, um poema da estudante na publicação escolar (uma espécie de revista). No presente, enquanto conversam sobre as fitas, Tony conta a Clay que é homossexual e fala sobre o sentimento de culpa pela morte de Hannah.


O capítulo 9 mostra de novo o drama entre Hannah e Justin Foley. Neste episódio, Foley – único a ter duas fitas dedicadas a ele - é citado por consentir e se calar diante do estupro da namorada Jessica Davis pelo amigo Bryce Walker. Enquanto isso, no presente, durante uma revista em sala de aula, Clay descobre que os colegas plantaram maconha em sua mochila. Depois, tenta falar com Jessica sobre o estupro, mas sem sucesso. No 10º, Hannah mostra o drama que viveu ao lado de Sherri Holland. Líder de torcida, Holland faz tudo para esconder sua participação num acidente – testemunhado por Hannah – que matou Jeff, estudante do mesmo colégio. No presente, Jessica começa a ter problemas com o consumo excessivo de álcool. O capítulo 11 é dedicado a Clay Jensen, amigo de Hannah, um dos personagens centrais da trama, que viveu uma relação amorosa mal resolvida com a estudante e carrega o remorso pela omissão na ajuda à amiga. Enquanto isso, a mãe de Hannah encontra a lista da protagonista com os amigos que a importunaram na escola. Uma das professoras de Hannah revela a Porter (inspetor da escola, última pessoa a falar com Hannah antes de a estudante cometer suicídio) ter recebido bilhete anônimo com pedido de ajuda e é aconselhada a escondê-lo. No penúltimo episódio, Hannah relata os detalhes da noite em que foi estuprada por Bryce Walker, que começou com o desânimo por ter perdido o dinheiro de um depósito para os pais e acabou na saída de casa sem rumo e a chegada à festa. No presente, Clay vai à casa de Bryce e consegue gravar uma confissão do estupro. Os nomes na lista de Hannah começam a ser intimados a depor. Enquanto ouve a fita em que Hannah relata seus últimos momentos, o inspetor recebe do diretor da escola a notícia que Alex havia dado um tiro na cabeça. No último episódio, Clay entrega a fita com a confissão de Bryce a Kevin Porter, inspetor da escola, última pessoa a ser procurada pela protagonista em busca de ajuda antes do suicídio. No flashback, Hannah denuncia o estupro, mas o inspetor a demove de denunciar o estuprador. Depois de gravar a conversa com Porter, Hannah volta para casa e corta os pulsos. Enquanto isso, alguns dos depoentes vão confessando suas culpas. Justin deixa a cidade e Jessica relata ao pai ter sido estuprada. Clay se reaproxima de Skye, uma colega de classe que tentou suicídio. Por fim, os pais de Hannah recebem as fitas com as gravações da estudante.


A organização dos episódios de 13 Reasons Why revela, em um primeiro olhar, a aparição de vários personagens que podem representar os antagonistas da narrativa, dependendo de como ela é analisada. Questionamos, a partir de então, quem são os protagonistas, coadjuvantes e antagonistas da série, e como se dá a relação entre eles. Para tanto, passamos do papel de “consumidor comum” e analisamos os nós, as temáticas abordadas e os espaços nos quais as cenas acontecem por meio do quadrado semiótico de Greimas (1976). 3.

Os 13 porquês no Quadrado Semiótico

Dentro das Escolas Narrativas, Greimas (1976) foi o autor responsável por construir um modelo estruturalista para interpretação e análise de narrativas através das relações entre os actantes. Tabela 1 – Actantes do Quadrado Semiótico de Greimas (1976) Relações de contradição S1/~S2

Protagonista X Antagonista

~S2/S1

Sociedade X Coadjuvante

Relações de Contrariedade S1/ S2

Protagonista e Sociedade

~S1/~S2

Coadjuvante e Antagonista

Relações de Complementaridade S1/~S1

Protagonista + Coadjuvante

S2/~S2

Sociedade + Antagonista Fonte: Gomes (2017)

Gomes (no texto anterior) define como actantes: o Protagonista (S1), a Sociedade (S2), o Coadjuvante (~S1) e o Antagonista (~S2). Observando as três relações do Quadrado Semiótico de Greimas (1976), que são contradição, contrariedade e complementaridade, os actantes da série Os 13 Porquês estariam assim organizados: Hannah Baker (S1: a protagonista), o Colégio (S2: a sociedade), Clay Jensen (~S1: o coadjuvante) e o Bullying (~S2: o antagonista). Para auxiliar na compreensão elaborou-se o seguinte quadro esquemático a partir do modelo narrativo de Greimas (1976):


Tabela 2 – Actantes do Quadrado Semiótico na série 13 Reasons Why Posição

Elementos Narrativos

Narrativa

S1/~S2

Protagonista X Antagonista

Hannah Baker X O Bullying

~S2/S1

Sociedade X Coadjuvante

O Colégio X Clay Jensen

S1/ S2

Protagonista e Sociedade

Hannah Baker e O colégio

~S1/~S2

Coadjuvante e Antagonista

Clay Jensen e O Bullying

S1/~S1

Protagonista + Coadjuvante

Hannah Baker + Clay Jensen

S2/~S2

Sociedade + Antagonista

O Colégio + O Bullying

Fonte: autoria própria.

Na posição S1/~S2 é estabelecida a relação contraditória entre Hannah Baker e o Bullying, que definimos nessa análise como o antagonista da história. Preferimos, então, não pensar em cada um dos endereçados às fitas como antagonistas da narrativa, mas o próprio Bullying, que é classificado pelo Dicionário Priberam11 como [...] “conjunto de maus-tratos, ameaças, coações ou outros atos de intimidação física ou psicológica exercido de forma continuada sobre uma pessoa considerada fraca ou vulnerável”.

Entretanto, o fato de considerar O Bullying como antagonista da trama não exime as culpas individuais dos 13 Porquês, no entanto, pontua-se nessa reflexão também a vulnerabilidade e a instabilidade emocional da protagonista. Na posição ~S2/S1, há uma outra relação de contradição, essa porém realizada entre o coadjuvante da trama, Clay Jensen, e a sociedade retratada na narrativa como a ambiência d’O Colégio. A escola é uma amostra da sociedade, já que é nela em que boa parte das cenas se desenvolve e também são as relações estabelecidas na ambiência do Colégio que vão gerando O Bullying. Clay Jensen é um dos estudantes do colégio d’Os 13 Porquês e se descobre apaixonado pela colega de turma Hannah Baker, porém é também no mesmo ambiente em que ele cria outras relações de afinidade, e ao longo de boa parte da trama, desenvolve relacionamentos de descontentamento, raiva e até de fúria. Na posição S1/S2, em que os actantes estabelecem relações de contrariedade, é colocado em questão o relacionamento entre Hannah Baker (protagonista) e o Colégio (a sociedade). Hannah é uma estudante 11

Disponível em:< https://www.priberam.pt/dlpo/bullying>. Acesso em: 15 nov. 2017.


que aparenta ser igual aos demais, porém apresenta ao longo da trama sinais de fragilidade emocional. Além disso, as repetidas violências físicas e psicológicas a fazem criar uma relação de ódio com o Colégio e com os estudantes. Como a ambiência da adolescente se restringe àquela amostra da sociedade, os sentimentos dela com relação ao Colégio parecem ser maximizados, intensificando os efeitos do Bullying. Na posição ~S1/~S2, a relação de contrariedade se mantém, mas agora entre Clay Jensen (coadjuvante) e o Bullying (antagonista). Clay mostra ser um personagem diferente dos demais do Colégio. Ele discorda de boa parte das ações dos outros estudantes, porém o que pesa sobre Clay ao longo da trama é a omissão, já que por mais que ele não tenha sido autor de nenhuma das ações de Bullying, ele pouco faz para contornar as violências dos colegas à Hannah. A relação entre Clay e o Bullying é pautada pela omissão. Na posição S1/~S1, existe uma nova relação, dessa vez de complementaridade entre Hannah Baker e Clay Jensen. Os colegas de turma iniciam uma amizade despretensiosa e à medida que os capítulos avançam Clay se descobre apaixonado por Hannah, porém o garoto não tem coragem de relevar os seus sentimentos. Hannah, entretanto, também se mostra apaixonada pelo colega de turma, mas o Bullying a faz em repetidas cenas não ter forças para investir nesse sentimento e a insere em um ciclo vicioso de violências psicológicas, da qual Clay colabora em parte com suas omissões. Por fim, na posição S2/~S2, em que mais uma vez é mantida uma relação de complementaridade, agora porém entre o colégio (sociedade) e o Bullying (antagonista). A junção entre os dois na história de Hannah Baker é explosiva que acaba culminando com o suicídio da jovem, além do impacto psicológico gerado com esta atitude para todos os personagens da trama. É importante ressaltar que essa é uma relação de complementaridade negativa em que um se retroalimenta do outro, já que o Colégio do seriado é o ambiente propício para o desenvolvimento das ações de Bullying. Há ainda a relação entre os actantes destinador e destinatário, que ampliam a relação entre Protagonista + Coadjuvante (S1/~S1), isto é, entre Hannah Baker + Clay Jensen. Hannah é destinadora porque enuncia e envia os 13 vídeos autobiográficos e Jensen (e todos os personagens que assistem aos 13 vídeos) são os destinatários (em conjunto com o público receptor dos 13 episódios da série através dos flashbacks e da narrativa presente, em uma oitava acima).


Dessa forma, com auxílio do Quadrado Semiótico de Greimas (1976), direcionamos a análise da série 13 Reasons Why não para a culpabilidade do suicídio de Hannah Baker, mas para o impacto do antagonista Bullying dentro das relações com os outros três actantes, que são a própria Hannah, Clay e o Colégio. Dentre as seis relações identificadas entre os personagens, destacamos três que apresentaram um papel central nas discussões e polêmicas que envolveram a exibição dos episódios: as relações contraditórias entre Hannah Baker e o Bullying, entre a protagonista e o Colégio, e a relação de complementaridade entre o Colégio e o Bullying. Todas elas contêm elementos com os quais os espectadores se identificaram e, portanto, geraram polêmica entre os públicos relacionados ao produto: Hannah (pessoas que sofrem ou sofreram bullying), o Bullying (pessoas que praticaram, sofreram ou já viram alguém ser alvo da prática) e o Colégio (local onde é mais propício que aconteçam fatos semelhantes). 4.

Narrativas Criadas pelas Narrativa

As relações entre os personagens são marcadas por conflitos pouco abordados na circulação midiática – ou pelo menos pouco abordados de forma aprofundada e explícita, quando comparados com outros temas que estão sempre na pauta jornalística e informacional, como política, economia, violência (homicídios e crimes na editoria de cidades), entre outros. Nessa perspectiva, o suicídio é alvo de polêmicas e posicionamentos contrastantes que ora defendem a necessidade da abordagem do assunto, justificada como uma política de prevenção, controle e esclarecimento, ora criticam e apontam o suicídio viabilizado por operações midiáticas e de memória como um fator de influência para a ocorrência de outros suicídios e para a percepção de uma existência post-mortem. Por conseguinte, a série 13 Reasons Why despertou reações diversas do público, surpreso pela forma direta como os episódios mostraram o caso de Hannah. Para analisar os diferentes tipos de feedback de um produto narrativo, parte-se da proposta de Pureza (2016), que faz uso do circuito-ambiente como uma ferramenta metodológica no estudo do filme Whiplash12 (Figura 2).

12

Pureza (2016), em artigo apresentado no I Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, busca elementos para analisar e entender o filme Whiplash no contexto da circulação midiática, com foco na compreensão de como as narrativas sobre cinema produzem novas narrativas.


Figura 2 – Circuito-Ambiente proposto por Pureza (2016)

Fonte: Pureza (2016)

Neste artigo, nos apropriamos do circuito-ambiente a partir de duas vertentes: discurso informativo e narrativas sobre narrativas. Buscamos por notícias em portais jornalísticos online, via palavras-chave no buscador Google, e por comentários de usuários no Facebook em publicações da Netflix a respeito da série. Antes dessa busca, procuramos por documentos oficiais que tratassem da relação entre profissionais de mídia e abordagens midiáticas que envolvam suicídio, visto que o tratamento de publicações que incluem casos de suicídio é uma prática delicada - ao mesmo tempo em que o assunto precisa ser abordado dentro da perspectiva das práticas de saúde (em psicologia, psiquiatria e no contexto dos gatilhos sociais que desencadeiam problemas afins), há pesquisas que apontam para uma espécie de “incentivo” que esse tipo de publicação pode causar. Percebido como o mais citado, em 2000, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou um manual que enfatiza o impacto que a cobertura midiática pode ter nos suicídios, indica fontes de informações confiáveis, e sugere como abordar casos em circunstâncias gerais e específicas. Uma das primeiras associações conhecidas entre os meios de comunicação de massa e o suicídio vem da novela de Goethe Die Leiden des Jungen Werther (Os Sofrimentos do Jovem Werther), publicada em 1774. Nesta novela, o herói se dá um tiro após um amor mal sucedido. Logo após sua publicação, começaram a surgir na Europa vários relatos de jovens que cometeram o suicídio usando o mesmo método. Isto resultou na proibição do livro em diversos lugares. Este fenômeno originou o termo “Efeito Werther”, usado na literatura técnica, para designar a imitação de suicídios. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2000, online).


Ainda de acordo com o documento, a imitação de suicídios, na literatura técnica, consiste no “processo pelo qual um suicida exerce um efeito modelador em suicídios subsequentes”, e o contágio é “o processo pelo qual um determinado suicídio facilita a ocorrência de outros, a despeito do conhecimento direto ou indireto do suicídio prévio” (OMS, 2000, online), ambos relacionados ao termo psicanalítico “Efeito Werther”13. Dessa forma, a divulgação de qualquer fato relacionado a casos de suicídio por produtos midiáticos deve ser feita com cautela e atenção. Nas recomendações, o manual relata alguns pontos que devem ser considerados em qualquer produto midiático: “não publicar fotos do falecido ou cartas suicidas, não informar detalhes específicos do método utilizado, não fornecer explicações simplistas, não glorificar o suicídio ou fazer sensacionalismo sobre o caso, não usar estereótipos religiosos ou culturais, não atribuir culpas” (OMS, 2000, online, grifo nosso). Por conseguinte, a série contraria pelo menos três das recomendações se levarmos em conta que a carta suicida seria as fitas gravadas pela protagonista, os detalhes do método foram explicitamente divulgados na cena do último episódio, e a culpa foi atribuída aos personagens em cada problema por qual Hannah atravessou. Por outro lado, a narrativa mostra indicadores de risco e sinais de alerta sobre comportamento suicida e fornece informações sobre endereços e serviços onde se possa obter ajuda14, que fazem parte também das recomendações da OMS. As duas faces da moeda de 13 Reasons Why dividiram as opiniões no meio jornalístico e entre o público. A série foi abordada em larga escala por vários meios como a Rede CNN (EUA) e revistas online, como a Galileu e a Revista Época, além dos veículos Folha de S. Paulo, Carta Capital e Estadão. A narrativa foi considerada um avanço na discussão de temas polêmicos como o estupro, bullying, homofobia, falhas de comunicação no ambiente familiar, uso de drogas por adolescentes, a obsessão pelo sucesso profissional, mas também acusada de incentivar o suicídio entre os jovens.

13

Na psicanálise, o termo “Werther” foi criado em detrimento ao aumento do número de suicídios entre jovens na Alemanha, no século XVIII, após a publicação literária Os Sofrimentos do Jovem Werther, do poeta e escritor Johann Wolfgang Goethe, cujo enredo gira em torno de uma história de amor entre Charlotte e Werther e o posterior suicídio do jovem, ao não poder ser correspondido completamente por sua amada, casada. 14

Antes do início de cada episódio, a série divulgou o site http://13reasonswhy.info, no qual se encontram endereços e contatos de centros de ajuda e organizações que trabalham com a temática.


Entre os sites pesquisados, todos se embasaram em opiniões de especialistas na área, o que resultou em grande parte de notícias negativas sobre a série: “Série ’13 Reasons Why’ aumenta buscas relacionadas ao suicídio”, da Folha de São Paulo (SÉRIE..., 2017); “Buscas no Google sobre ‘como se suicidar’ aumentaram 26% após ‘13 Reasons Why’”, do portal IG (BUSCAS..., 2017); “Organização de saúde mental americana diz que série é irresponsável”, do portal UOL (ESTEVES, 2017); “Série ’13 Reasons Why’ aumentou o interesse por suicídio, diz pesquisa”, da Galileu (VIGGIANO, 2017); e “13 Reasons Why provocou aumento de 19% em buscas sobre suicídio na internet, diz estudo”, do Estadão (CASTRO, 2017). Buscato (2017), em reportagem para a revista Época, por exemplo, divulgou estudo que demonstra que a série estimulou ideias de suicídio. O veículo entrevistou um grupo de pesquisadores americanos liderados por John Ayers, da Universidade Estadual de San Diego, que analisou a busca em “um grande buscador da internet entre 31 de março, data do lançamento da série, e 18 de abril”: Eles analisaram o volume de buscas de 20 termos ligados a suicídio, como a palavra em si e outras expressões associadas: “como se matar”, “ideação suicida”, “prevenção do suicídio”, “suicídio indolor”, “suicide hotline” (telefones de serviços de apoio psicológico). O resultado não causou muita surpresa: “O lançamento de 13 Reasons Why foi seguido rapidamente por um aumento nas buscas na internet relacionadas a suicídio, incluindo métodos para se matar”, afirma Ayers. No período estabelecido pelo estudo, a procura por temas relacionados a esse universo foi 19% maior do que era esperado, conforme projeções feitas com base em períodos anteriores. As buscas chegaram a 1,5 milhão a mais. (BUSCATO, 2017).

No entanto, encontramos algumas matérias que expuseram ambas as opiniões, como em “‘13 reasons why’ vira alvo de polêmica e levanta a questão: como a ficção deve abordar o suicídio?”, do jornal O Globo (RISTOW E BRANDÃO, 2017), “‘13 Reasons Why’ e o suicídio de jovens: o que especialistas veem de positivo e de negativo na série”, publicada no Gauchazh (ROSO E MELO, 2017) e “3 razões para ver e outras 3 para não ver ’13 Reasons Why’”, da Galileu (MOREIRA, 2017). Por um lado, essa repercussão teve um efeito que especialistas consideram positivo: chamou a atenção para um problema extremamente sério e que com frequência passa despercebido, abrindo caminho para que as pessoas estejam atentas a sinais de risco e que


busquem auxílio. Um forte indício de que isso está acontecendo é justamente o aumento da procura pelos serviços de prevenção, como o CVV15. A outra face da moeda, no entanto, é o temor, manifestado por vários profissionais, de que a maneira como o suicídio é abordado no seriado possa encorajar comportamentos parecidos. (ROSO E MELO, 2017).

Por fim, dentro de uma reação positiva em relação às consequências da série, localizamos notícias que se debruçaram sobre o aumento na busca por ajuda em combate ao suicídio, apesar de aparecem em menor número em detrimento das primeiras: “'13 Reasons Why' aumenta busca por ajuda em combate ao suicídio”, publicado pela Catraca Livre (13 REASONS..., 2017), “Busca por centro de prevenção ao suicídio cresce 445% após série”, do Estadão (DIÓGENES E TOLEDO, 2017) e “Série ‘13 Reasons Why’ fez pedidos de ajuda ao CVV dobrarem”, do Portal UOL (SÉRIE 13 REASONS..., 2017). Depois da estreia da série 13 Reasons Why, produto da Netflix que trata de bullying e suicídio em uma escola americana, subiu 445% o número de e-mails com pedidos de ajuda recebidos pelo Centro de Valorização da Vida (CVV). Houve alta ainda de 170% na média diária de visitantes únicos no site. [...] Segundo o centro, a maioria das pessoas que está buscando atendimento nos canais do CVV nos últimos dias é jovem e se identifica com a dor da personagem principal. (DIÓGENES E TOLEDO, 2017).

Por se tratar de assunto que divide opiniões e é pouco discutido, percebe-se que a maioria das publicações em sites e portais jornalísticos que envolviam a série consistia em artigos de opinião em blogs e colunas, provavelmente pela finalidade de certa “isenção” na polêmica discussão e pela necessidade de posicionamento dos escritores, vistos também como consumidores e, de certa forma, influenciadores, pela autoridade e reputação que conquistam em suas colunas. Em um curso semelhante, o posicionamento do público consumidor também contrasta opiniões favoráveis e contra a abordagem da narrativa. Analisamos os comentários dos consumidores em duas das postagens da Netflix sobre a série (Figura 3), na intenção de identificar os principais tipos de reação.

15

CVV, sigla para Centro de Valorização da Vida, instituição se fins lucrativos que realiza apoio emocional e prevenção do suicídio no Brasil.


Figura 3 – Publicações da Netflix

Fonte: Facebook Acesso em: 21 nov. 2017.

Dentre os padrões encontrados, o que nos chamou atenção foi o grande número de comentários de pessoas que se identificaram com a narrativa por já terem sofrido bullying, o que mostra, de certa forma, o quanto a cultura brasileira em escolas e universidades se aproxima da norte-americana, apesar de a maioria dos produtos midiáticos que ganham visibilidade e retratam preconceitos e práticas de bullying em ambientes escolares (principalmente no Ensino Médio/High School) serem produzidos nos Estados Unidos e reproduzidos em ambientes americanos. Acabei de assistir e fiquei super na bad. Infelizmente me identifiquei com algumas coisas que aconteceram com a Hannah e isso não é nada legal. 13 Reasons Why não é uma série agradável de se ver, ela causa repulsa, raiva, tristeza e angústia. Nem por um minuto me senti feliz assistindo ela. Mas é uma série que merece ser vista pelo maior número de pessoas possível, para que ninguém seja o porquê de alguém. Jamais!16 Eu assisti tudo em um dia só, confesso que foi bem pesado e me fez relembrar muita coisa da minha vida. Eu poderia ter sido ela, muitas amigas minhas tb, algumas até foram... A lição que a trama traz é fantástica mas precisa ter um psicológico forte pra não levar pro lado contrário e incentivar a pessoa. A dica é: não assista sozinho se não se sentir confortável e não assista tudo em um dia só, hehe.

16

Os nomes dos autores foram retirados para preservar suas identidades.


Além do grupo de consumidor que se identifica com a narrativa por já ter passado por situações parecidas, identificamos outras similaridades entre os comentários. O posicionamento de mães/pais/responsáveis também apresentam discordâncias, visto que alguns acreditam que a série seja muito “pesada” para crianças e adolescentes17 e possa influenciá-los a ter os mesmo comportamentos, e outros a acham necessária por abordar assuntos que se passam na vida dos filhos. Nossa amando essa serie, muito reveladora pois sou mãe e algumas coisas q acontece no dia a dia do meu filho eu acho bobeira mais os jovens realmente levam muito a sério. Super indico. Olha...Na minha opinião como mãe, acho q a classificação devia ser maior...Eu assisti antes dá minha filha, e proibi ela de assistir, claro q conta sobre Bulling e isso é o que acontece hj em dia, porém na minha opinião para apresentar aos adolescentes deveria ser a história q uma menina sofria Bulling, pensou em suicídio mas conseguiu ajuda e venceu [...] Jovens usando drogas, bebendo, mentindo para os pais, cenas fortes de sexo e estupro, mortes...Acho q isso só serve para dar ideias. Imagina se a moda pega e todos os adolescentes q sofrerem Bulling começarem a se suicidar e deixar fitas para os outros ao invés de procurar ajuda!!! [...].

Os que não concordam com a exibição e abordagem do assunto de forma tão explícita apresentam argumentos compatíveis com o “Efeito Werther”. Ou seja, acredita-se que a série pode influenciar e impactar diretamente a vida de jovens que estão passando por situações semelhantes com a da protagonista, tanto pela similaridade dos conflitos vividos pelos personagens com a “realidade”, quanto pela romantização do suicídio. Achei muito tendenciosa essa questão do suicídio... Essa molecada que se sente vítima de tudo pode querer resolver seus assuntos da mesma forma que a Hannah. E o fim da história não foi bacana. Não se teve justiça! E não há razão para mais temporadas. Decepcionado com o fim da história. Ela romantiza o suicídio. A protagonista prefere "punir" do q buscar ajuda. Acho perigoso.

17

A série foi censurada para menores de 18 anos, por exemplo, na Nova Zelândia, decisão do escritório de classificação de cinema e literatura, órgão que regula a faixa etária recomendada para filmes e séries no país. A medida foi tomada, entre outras, em razão de o país ter uma das maiores taxas de suicídio juvenil nas nações da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).


Atenção, orientação, acompanhamento... Muitas coisas que aconteceram com a Hannah são corriqueiras nas escolas. Os jovens precisam ser orientados pelos pais e pelas escolas a falarem, exporem seus sentimentos aos orientadores. Por outro lado, os colegas precisam estar atentos ao seu redor. Os pais não podem ignorar os filhos em pequenos "sinais" que são emitidos. É preciso muita conversa.... Nossa, são muitas coisas que envolvem tudo isso... Ótimo alerta e oportunidade de discussão sobre esse tema tão importante. Muito embora, no final, achei perigoso, por exemplo, para um adolescente que enfrenta problemas semelhantes e já tem pensamentos nessa linha, ser de certa forma encorajado a seguir o triste caminho da protagonista. A cena do suicídio foi muito chocante.

Por outro lado, a maioria dos comentários apresentou uma visão positiva e argumentou a respeito da necessidade de se colocar o bullying em discussão, ainda que os episódios tragam uma carga emocional densa. Debate importante. Tema universal. Hoje em dia, com as redes sociais e as diversas mídias disponíveis, o bullying ultrapassa os portões da escola e amplifica o sofrimento de quem é perseguido. Se já era ruim e danoso no passado, está muito pior e mais grave agora. Todos devem ver! Obrigado Netflix! Além de uma ótima série é uma lição para a vida de qualquer pessoa! Me sinto triste e ao mesmo tempo motivado por ter visto essa série! Para quem não viu, prepare os lenços, é forte, emocionante e viciante!

A polêmica em torno da exposição, da narrativa e dos conflitos presentes na trama vai além de questões relacionadas ao bullying e ao suicídio para questionar, também, o papel dos produtos midiáticos – principalmente os audiovisuais, os quais alcançam um número maior de consumidores - em se inserir parcialmente na esfera pública como “debatedores” de práticas sociais. A parcialidade, aqui, é vista na perspectiva de que se produzam narrativas não só no sentido de entreter, mas prioritariamente a fim de gerar discussão e reflexão. Vejo a série como serviço à comunidade, exatamente porquê fala de suicídio de maneira direta com os jovens. É densa, é pesada, tem gatilhos muito específicos sim, mas é necessário expor o outro lado da moeda dos que ficam quando há um suicídio de um jovem. Falar sobre o suicídio é necessário demais!


6.

Considerações Finais

É possível fazer uma leitura da série como uma discussão sobre diversos aspectos da juventude. Esses temas, muitas vezes, são pauta constante na vida de crianças e adolescentes, porém não ganham espaço na esfera pública, sendo muitas vezes encarados como tabu: i) o suicídio; ii) o estupro, visto de diversas maneiras; iii) o machismo; iv) a pressão sobre os jovens que terminam o ensino médio e devem, imediatamente, ingressar em uma universidade renomada; v) a falta de comunicação entre pais e filhos; vi) a orientação sexual na adolescência; vii) a violação da privacidade; viii) o papel da escola e suas responsabilidades na questão do bullying; além de problemáticas que têm sido objeto de estudos acadêmicos, como viv) o smartphone na mediação da sociabilidade na juventude; x) a espetacularização e midiatização das práticas; e, por fim, xi) a obsolescência de suportes midiáticos. Podemos, partindo desse ponto de vista, identificar múltiplos antagonistas que aparecem ao longo dos episódios e aplicar o quadrado semiótico a cada um deles. Optamos, no entanto, por analisar a série como um todo e incluir a maior parte desses conflitos no conceito do Bullying. Acreditamos que as abordagens na narrativa, apesar de densas, chamaram atenção do público e cumpriram o objetivo o qual os produtores propuseram: gerar discussão sobre o bullying e o suicídio e servir como uma espécie de alerta à sociedade. A análise sobre o impacto positivo ou negativo do produto sobre determinado consumidor deve ser feita com cautela, considerando o contexto ao qual o sujeito está exposto, ou seja, o produto deve ser estudado isolado de fatores socioculturais que variam a cada telespectador; é preciso levar em conta que cada pessoa interpretará a narrativa de uma forma diferente a partir de suas próprias experiências – o que faz com que as opiniões sejam tão divergentes. Salientamos, aqui, a importância do diálogo com e do acompanhamento de crianças e adolescentes que estão passando por fases semelhantes, responsabilidades compatíveis com as instituições ligadas diretamente ao desenvolvimento dessa parcela da sociedade: instituições como a família, a escola e, dentro da perspectiva dos estudos de midiatização, da mídia.


A construção do artigo nos permitiu conhecer ferramentas de análise de narrativas seriadas e nos deixou a possibilidade de dar continuidade ao estudo de “13 Reasons Why”, que poderá ser feito a partir da abordagem completa e mais aprofundada do circuito-ambiente (PUREZA, 2016), de entrevistas com profissionais, pais e crianças/adolescentes que assistiram à série, ou de análise de conteúdo que contemple as suas perspectivas políticas e estéticas, entre outros que poderão surgir na medida em que mergulhamos na narrativa.


Amorteamo à luz dos Actantes Carla Patrícia Oliveira de Souza18

1.

Introdução

A microssérie Amorteamo (2015) veiculada pela Rede Globo de Televisão em cinco episódios no período de maio e junho de 2015, as sextas-feiras no horário das 23:30horas, é uma criação de Newton Moreno, Guel Arraes e Cláudio Paiva. Com direção geral de Flávia Lacerda. O dramaturgo pernambucano Newton Moreno teve a ideia inicial inspirada no livro Assombrações do Recife Antigo de Gilberto Freyre de adaptar esta obra literária para um produto televisivo, já que o mesmo tinha adaptado essa obra para o teatro. A temática sobrenatural atravessa a narrativa de dois triângulos amorosos, habitantes da cidade de Recife da década de 1920. Utiliza-se o termo ‘microssérie’ para designar Amorteamo neste trabalho, por se distinguir da ‘minissérie’ que apresenta uma quantidade maior de episódios. Balogh (2004) nos diz que o formato mais fechado do gênero, a minissérie, é estruturalmente mais coeso que a novela, por possuir as marcas da autoria no texto roteirizado. E que as marcas da autoria e o formato fechado da minissérie em relação aos outros produtos de ficção da televisão a tornam um meio propicio para as adaptações da literatura. Pois é o produto que menos segue os moldes da “estética da repetição”. As séries, seriados e novelas são caracterizadas por apresentar reiterações tanto no nível narrativo quanto no nível figurativo. 18

Mestra e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4357183A8 e email: carlasouza@supercabo.com.br


As minisséries oferecem traços de originalidade raros na ficção televisiva, até mesmo em um universo fictício já per se original como o da teledramaturgia brasileira (BALOGH,2004, p.96).

A minissérie como produto diferenciado, possui um horário de transmissão que costuma ser após as 22:00 horas, visando atingir um público mais seleto. No âmbito cultural, as minisséries transpostas da literatura representam um incentivo nas vendas das obras originais. Pelo caráter estrutural da minissérie, a clausura poética do texto, já apontada, o formato se presta admiravelmente à transmutação de textos literários consagrados pela tradição cultural brasileira. Clássicos, enfim, que representam a maioria das minisséries realizadas. Clássicos considerados intransmutáveis, como Grande Sertão: Veredas foram traduzidos por Walter George Durst e Walter Avancini. Eça de Queiroz foi adaptado em duas minisséries primorosas: O Primo Basílio, com roteiro de Gilberto Braga, e Os Maias, com roteiro de Maria Adelaide Amaral. Érico Veríssimo foi transposto para a TV em O tempo e o Vento, com adaptação de Doc Comparato. A Muralha foi transposta da obra homônima de Dinhah Silveira de Queiroz por Maria Adelaide Amaral. [...] a maioria das facetas de nossa cultura plasmada na literatura se encontra representada no formato em termos de adaptações. (BALOGH, 2004, p.99)

Para um melhor entendimento sobre a passagem do texto literário ao televisual, buscamos a conceituação do termo adaptação, para podermos situar a relação da obra de Gilberto Freyre – Assombrações do Recife Antigo com a microssérie Amorteamo. Este processo pressupõe a passagem de um texto caracterizado por uma substância da expressão homogênea – a palavra -, para um texto no qual convivem substâncias da expressão heterogênea, tanto no que concerne ao visual quanto ao sonoro” (BALOGH, 1996, p.37).

A autora cita Alvarez Garcia para explicar a divisão da matéria visual em: imagem fixa, imagem em movimento e palavra escrita; e a matéria sonora em música, ruído e palavra falada. Logo, o termo mais apropriado que Jakobson sugere para a tradução é ‘intersemiótica’, a passagem do literário ao sincrético é sua transmutação. A passagem de uma obra literária para uma fílmica implica uma operação intertextual especifica. Há algum tempo a semiótica vê a intertextualidade como objeto de estudo. As adaptações são nomeadas nos próprios créditos da


obra como resultante de uma relação intertextual. Há inclusive o uso pelo cineasta tradutor da gradação da tradução intersemiótica realizada. “Na adaptação de Grande Sertão :Veredas, para Globo, as vinhetas de abertura dizem apenas “do livro de Guimarães Rosa” (BALOGH, 1996, p.38). Em alguns casos, os criadores optam pela liberdade de adaptação, não evidenciando nos créditos “a adaptação de” por se tratar de uma relação intertextual mais livre. É o caso da microssérie Amorteamo, em que o processo de transmutação da obra de Gilberto Freyre foi bem sutil. Os criadores Newton Moreno, Cláudio Paiva e Guel Arraes absorveram a atmosfera sobrenatural do livro sobre as assombrações no Recife antigo, principalmente no intercambio dos vivos com os mortos. Primeiramente através das cenas que mostram o espirito liberto do corpo material, Chico (Daniel Oliveira) após ser assassinato já em sua forma espiritual faz companhia a amante Arlinda; e as assombrações na igreja realizadas pela forma espiritual do padre Lauro (Gilray Coutinho) que se enforcou no sino da igreja. E posteriormente, quando os mortos vivos Malvina (Marina Ruy Barbosa) e Chico (Daniel Oliveira) retornam para se vingar, estes assumem a personalidade má de algumas lendas como a judia Branca Dias e o Boca de Ouro retratadas no livro de Gilberto Freyre. Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise da narrativa da microssérie Amorteamo amparado pela teoria de Algirdas Greimas. Para tanto faz-se necessário um breve estudo da obra televisiva Amorteamo, bem como a gênese do livro Assombrações do Recife Antigo para uma melhor entendimento do processo de transmutação da literatura para a televisão. Uma reflexão acerca da narrativa fantástica de Tzvetan Todorov e do conto maravilhoso de Vladimir Propp é essencial para situar a narrativa de Amorteamo, para finalmente interpretar a narrativa das personagens femininas da microssérie. Selecionou-se cinco personagens femininas de Amorteamo, por considerá-las de grande importância para o entendimento da narrativa. E também para evidenciar a representação do papel feminino nas diferentes classes sociais da cidade do Recife na década de 1920. Outro aspecto que merece atenção nas minisséries é a ênfase dada as heroínas, sejam produtos de biografias romanceadas ou uma visão fictícia de heroínas de nossa história, ou ainda uma aproximação, a mais fiel possível, ao real dentro do contexto da ficção (BALOGH,2004, p.100).


Diante da importância das heroínas retratadas nas minisséries, neste trabalho vamos também mostrar as ante heroínas, mulheres que pela infelicidade da sua trajetória de vida não conseguiram vislumbrar um destino melhor que a morte, caso da noiva suicida Malvina (Marina Ruy Barbosa) e da dona do prostíbulo Dora (Maria Luísa Mendonça). Além dessas personagens, analisa-se também Arlinda (Leticia Sabatella), Lena (Arianne Botelho) e Cândida (Guta Stresser). 2.

A microssérie Amorteamo

A microssérie Amorteamo é um melodrama19 segundo seus criadores, ambientada em Recife, cidade nordestina cortada pelas águas do rios Capibaribe e Beberibe, na década de 1920 e mostra a decadência financeira de uma família dona de engenho de açúcar, e também o declínio moral do casal protagonista Arlinda (Leticia Sabatella) e Aragão (Jackson Antunes). Há traições de ambos cônjuges, que resulta em um crime, e filhos bastardos. Após dezoito anos de uma convivência infeliz, uma maldição assola a cidade, provocada por essa família. No site da Memória Globo20, a diretora Flávia Lacerda revela que associou as referências clássicas do audiovisual com as técnicas tradicionais do cinema e dos efeitos visuais contemporâneos, resultando em um audiovisual com uma estética romântica em uma atmosfera misteriosa. “O texto trabalha com elementos mais fantásticos e a gente se inspirou muito no que acontecia culturalmente no mundo no início do século XX”. E acrescenta que a história é um produto da linguagem do expressionismo, do cinema mudo e do teatro circense. A trama principal de Amorteamo gira em torno de dois triângulos amorosos. O primeiro constituído por Aragão (Jackson Antunes), a esposa Arlinda (Letícia Sabatella), e o amante dela Chico (Daniel de Oliveira). O segundo triângulo é formado por Gabriel (Johnny Massaro) filho extraconjugal de Arlinda com Chico, mas que Aragão criou como filho legitimo; Lena (Arianne Botelho) filha da empregada do casarão de Arlinda com Aragão, o amor de infância de Gabriel; e Malvina

19

Martin-Barbeiro (2009) nos explica que o melodrama surgiu em 1790 na França e na Inglaterra como um espetáculo popular que se assemelhava ao teatro. É um tipo de espetáculo encenado em feiras e com narrativas cujas temáticas vêm da literatura oral onde prevalece os contos de medo, mistério e terror. 20

Disponível em: http://www.memoriaglobo.com/programas/entretenimento/seriados/amorteamo/amort eamo-curiosidades Acesso em: 21/08/2016


(Marina Ruy Barbosa) a noiva abandonada por Gabriel que se suicida na ponte do Rio Capibaribe. Gabriel se desespera após ter conhecimento do suicídio de Malvina, em um ato de arrependimento ele abre o túmulo de Malvina que retorna a vida, como uma morta viva, e a partir desse momento, uma maldição assola a cidade do Recife, e todas as pessoas que foram enterradas no cemitério da cidade retornam a vida, em busca de resgatar algo ou para se vingar. A microssérie Amorteamo foi organizada em cinco episódios. No site da memória globo21 temos o título de cada episódio com uma síntese da narrativa. No primeiro episódio, intitulado “Amor e revolta”, a história se desenvolve a partir do assassinato de Chico, Aragão o mata com um tiro ao flagrá-lo com sua esposa. A esposa infiel Arlinda, grávida do amante é mantida presa no sótão até o nascimento de Gabriel. Após o perdão de Aragão todos voltam a se reunir como uma família. Desde pequeno Gabriel gosta de frequentar o cemitério e conversar com Zé Coveiro (Tonico Pereira). Gabriel também gosta da companhia de Lena, a filha da empregada, por quem se apaixona na fase adulta. A empregada do casarão, Zefa (Gheuza Sena), preocupada com o envolvimento da filha com Gabriel, pede a filha que se afaste do filho de Aragão pois ela é somente a filha da empregada, encobrindo a verdadeira paternidade dela. Várias intrigas ocorrem entre Lena e Gabriel, e este com Aragão. Inclusive o pai o expulsa de casa. Mas nada impede que Lena e Gabriel fiquem juntos. Quando Gabriel pede Lena em casamento a Zefa, o segredo da paternidade de Lena é revelado, e os dois se entristecem profundamente ao saber que são irmãos. Aragão não revela que Gabriel não é seu filho legitimo por temer ser exposto como marido traído na cidade. Neste episódio também é mostrado o suicídio do padre Lauro logo após a chegada do padre substituto Joaquim, que chega para investigar as denúncias sobre a corrupção na igreja. O segundo episódio chamado “O noivado” mostra a infelicidade de Gabriel de um lado, bebendo com os amigos no bar de Cândida (Guta Stresser) e Manoel (Aramis Trindade). E do outro, Lena que não perdoa 21

Disponível em: http://www.memoriaglobo.com/programas/entrerenimento/seriados/amorteamo/amort eamo-trama-principal.htm Acesso em: 21/08/2016


a mãe por ter escondido a verdade sobre o seu pai. Arlinda adoece com a ausência de Gabriel em casa, Aragão manda Lena procurar Gabriel que o encontra no bar. Gabriel encontra a mãe muito doente, e o pai sem recursos financeiros para arcar com o tratamento médico. Por intermédio do advogado de Aragão, o judeu agiota da cidade, Isaac, é convidado para ir a casa de Aragão. Para não deixar a filha sozinha em casa Isaac leva Malvina a negociação. Aragão negocia um pedido de empréstimo a Isaac que pede garantias, como Aragão só tem uma engenho de açúcar falido e um casarão deteriorado, Aragão propõe um casamento entre as famílias. Ele proporcionaria um sobrenome tradicional já que o judeu era mal visto na cidade. Diante da afeição de Malvina por Gabriel, Isaac aceita o acordo, como também Gabriel com a única intenção de salvar a mãe. Fatos sinistros começam a ocorrer na igreja, como o sino que badala sozinho à noite. A população não frequenta mais a igreja, o padre Joaquim não consegue atrair os fiéis de volta a igreja, devido a fama de lugar mal assombrado. O terceiro episódio intitulado de “Noiva Cadáver” mostra o suicídio de Malvina após ser abandonada por Gabriel na Igreja. Arlinda inconformada por seu único filho casar sem amor, revela toda a verdade a Gabriel, que desiste de casar e vai atrás de Lena. Malvina retorna a vida como morta viva após ter o seu túmulo violado por Gabriel, e com ela todos os mortos retornam em busca de resgatar algo. No quarto episódio chamado de “Sede de Vingança”, Gabriel se arrepende mais uma vez, agora por ter trazido Malvina à vida. Ela indignada com a sua condição de morta, procura seu pai e se surpreende ao saber que sua mãe está viva. E que passou 18 anos sendo enganada por acreditar na morte da mãe no parto. Ao saber que foi comprada ainda bebe pelo pai, se revolta e mata os dois. Chico, o ex amante de Arlinda também retorna com sede de vingança, convence Arlinda a denunciar Aragão por assassinato, e mesmo com Aragão detido na cela, Chico o assombra todas as noites enlouquecendo Aragão. O padre Lauro também retorna a igreja para assumir sua posição de pároco, deixando padre Joaquim perplexo além de Cândida e Manoel que presenciam a cena. Os donos do bar se assustam mais uma vez ao chegar no seu estabelecimento e encontrar o falecido Jeremias, primeiro marido de Cândida e irmão de Manoel. Jeremias quer reatar o casamento com a esposa, a sua peruca e o bar que o irmão Manoel tomou posse.


No último episódio intitulado “Final Feliz?” é mostrado a trajetória final de Malvina e dos outros mortos vivos na cidade. Malvina impulsionada pelo amor por Gabriel tenta matá-lo para enfim ficarem juntos, mas é impedida por Zé Coveiro. Depois de muitas tentativas de atrair Gabriel para junto de si, sem retorno, Malvina decide se jogar novamente da ponte. Enquanto isso Chico tenta matar Aragão mas Arlinda o protege recebendo a bala fatal. O padre Lauro reza uma missa junto com o padre Joaquim para os fies mortos vivos, antigos frequentadores da igreja. E Jeremias tenta conquistar a esposa e seus bens. Assim que Malvina é finalmente enterrada no cemitério por Gabriel, a maldição termina e todos os mortos vivos retornam para seus túmulos. Gabriel se casa com Lena, mas uma questão fica no ar se eles realmente serão felizes. Para compreender melhor a inspiração sobrenatural na narrativa de Amorteamo, no tópico a seguir faremos um breve estudo sobre as motivações que levaram Gilberto Freyre a pesquisar as assombrações recifenses e a importância que essas lendas folclóricas possuem na história cultural da cidade, lendas que surgiram desde a época da colonização. 3.

A gênese das Assombrações do Recife Antigo

Em 1928, a pedido do governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre aceita o convite de dirigir o jornal A Província em Recife. Época em que o jornal acolhe a colaboração de novos escritores do Brasil. Freyre publica artigos e caricaturas sob a assinatura de diferentes pseudônimos, como: Esmeraldino Olímpio, Antônio Ricardo, J. Rialto e outros. Nesse mesmo período, Gilberto Freyre é nomeado professor da Escola Normal do Estado de Pernambuco, na primeira cadeira de sociologia que se instala no Brasil com a mais atual orientação antropológica e com as respectivas pesquisas de campo, conforme Fonseca (2008). Durante a passagem de Freyre na direção A Província, jornal de José Mariano e José Maria, de Joaquim Nabuco e Carneiro Vilela, precisamente em 1929, Gilberto Freyre é procurado por um assinante fiel do jornal com o objetivo de conseguir o apoio do chefe da polícia para investigar o sobrado no bairro de São José, que segundo o leitor, estava repleto de assombrações. Estávamos na época em que se atribuía ao Presidente da República, aliás brasileiro honrado e homem de bem, o critério de considerar toda a agitação brasileira de operários contra as explorações de patrões, simples


questão de polícia. O diretor d’A Província tinha diante de si, naquela noite de 1929, um cidadão igualmente honrado que, acreditando em espíritos maus e zombeteiros, acreditava ao mesmo tempo em solução policial para as assombrações da sua casa. Não admitia que fossem obras de ladrões. Nem de malandros. (FREYRE, 2008, p.28-29).

Freyre, ao mesmo tempo em que aconselha o leitor procurar um psiquiatra, começa a pesquisar o tema. Para tal investigação, convoca o repórter policial do jornal Oscar de Melo, para averiguar nos arquivos e nas tradições policiais da cidade tudo sobre casas mal-assombradas e casos de assombração. Todas as denúncias realizadas na polícia contra ruídos de almas e afins deviam ser copiadas. Antes dos primeiros dados sobre as denúncias de assombração colhidas na polícia chegar, Freyre começa a publicar uma série de artigos sobre o tema, que a princípio geraram um certo ruído mas apenas restrito a província. O poeta Manuel Bandeira, colaborador do jornal A província, escreve do Rio de Janeiro parabenizando o diretor do jornal pela série de artigos sobre o sobrenatural do passado recifense. A Província organizou as reportagens sobre as assombrações como uma série sobre Crimes célebres em Pernambuco, conforme nos explica Freyre (2008), assim o jornal contribuiu para a história íntima da cidade. Foi realizado uma pesquisa não apenas jornalística mais também histórica, na qual o diretor foi auxiliado pelo repórter investigativo e demais fontes da cidade. Dos artigos sobre assombrações organizados a partir do ano 1929 no jornal A Província, ao lançamento do livro em 1951 sobre essa mesma temática, muitas outras histórias foram coletadas, a maioria diretamente de fontes orais dos moradores da cidade. Sendo assim, o livro foi elaborado a partir de três fontes: os arquivos da polícia, com as denúncias de casas mal assombradas; dos relatos dos cronistas da cidade no período do império; e através dos contadores, como: preto José Pedro, Josefina Minha-fé, preto velho Manoel Santana, Dona Maroquinha, Velho Brotherhod, Dr. Alfredo Freyre e outros. Sustentado na tradição oral da cultura popular, o livro quer nos aproximar dessas figuras sobre-humanas, fantasmas mestiços com seus testemunhos sobre a construção deste país. [...] Um povo se conhece pelos seus mortos. A perspicácia de Gilberto está no seu entendimento de Recife, como um amálgama de influências contraditórias que vai se harmonizando, como nas releituras de mães d’água, caboclas, como a Iara, africanas como oxum e iemanjá, ou como o fantasma da judia, chamada branca, que emergia das


águas do Capibaribe para assombrar. No livro, surgem os diabos negros, os exus pertencentes aos escravos africanos, na mesma medida em que outros demônio de cabelo em fogo e vermelhos assustavam recifenses à época da invasão holandesa. Metáfora implícita do fantasma do demônio colonizador. (MORENO, 2008, p.11)

Freyre (2008) relata vários episódios em que alguns moradores da cidade do Recife expõem suas experiências com fatos sobrenaturais, ou ainda alguns desses contadores relembram as histórias que circulam na cidade cortada por rios. Uma dessas histórias, é sobre um sitio que se tornou conhecido pelo nome de Encanta-moça, devido uma mulher bonita ter se encantado nos mangues, após ter fugido do marido ciumento. Essa mulher surge aos homens em noites de lua, enfeitiçando-os com sua nudez branca. Mas que se desmancha quando alguém tenta se aproximar, deixando apenas um ar gélido como sinal de sua presença. A lembrança desse mistério nomeou o local chamado de Encanta-Moça. Mas que após o transporte aéreo ter chegado aquela localidade, o Instituto Arqueológico concordou na mudança de nome para o de Santos Dumont. O nome Encanta-moça não tinha nenhum valor histórico para permanecer nomeando aquela localidade. Encanta-moça não significava nada para a história da cidade porque era uma lenda. Argumento de quem nunca leu aquela página de Chesterton em que o ensaísta inglês lembra que uma lenda é obra de muitos e como tal deve ser tratada com mais respeito do que um livro de história: obra de um único homem. E antes de Chersterton já dizia a sabedoria francesa: Une legende ment parfois moins qu’um document. (FREYRE, 2008, p.42-43)

A seguir, discute-se a narrativa fantástica e maravilhosa a partir da contribuição dos linguistas russos Todorov e Propp para compreender a narrativa da microssérie Amorteamo. 4.

A narrativa fantástica e maravilhosa

Em um mundo materialista em que habitamos, onde figuras ou fatos sobrenaturais não podem ser explicados pelas leis deste mundo, nomeia-se esses acontecimentos como um produto da imaginação. Neste caso, as leis deste mundo continuam inalteradas, ou então procura-se verificar se esse acontecimento ocorre realmente; e, se sim, deve ser regido por leis desconhecidas para nós.


Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão, ou então existe realmente, como os outros seres vivos, só que o encontramos raramente. O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; assim que escolhemos uma ou outra resposta, saímos do fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente natural (TODOROV, 2006, p.148).

O Manuscrito Encontrado em Saragossa, de Jan Potocki, é o livro que inaugura as narrativas fantásticas. No início da narrativa, as leis da natureza são respeitadas, o máximo que ocorre são acontecimentos estranhos e coincidências raras. Porém, um primeiro acontecimento sobrenatural surge “as duas moças formosas se transformam em cadáveres podres”, mesmo diante desse fato o protagonista continua não acreditando na existência de forças sobrenaturais, o que teria acabado com a hesitação e assim o fantástico não existiria. Os acontecimentos que sucedem não retiram as dúvidas do protagonista, ele tenta encontrar uma explicação racional para os fatos esquisitos, porém outro evento surge para confundi-lo mais ainda. E isso se reproduz tantas vezes até ele confessar que “quase cheguei a acreditar ...” E essa sentença é a formula que sintetiza melhor o espirito do fantástico.” A fé absoluta, como a incredulidade total, nos levam para fora do fantástico, é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2006, p.150). Para que o fantástico se instale, é necessário a existência de um fato estranho que provoque uma hesitação tanto no protagonista como também no leitor. A narrativa fantástica pressupõe três condições. Primeiro, o leitor deve se convencido de que o mundo das personagens é um mundo de pessoas vivas, e deve haver a hesitação entre um esclarecimento natural e um esclarecimento sobrenatural sobre os fatos. Segundo: essa hesitação deve ser sentida também por um dos personagens. E finalmente, o papel do leitor é confiado a uma personagem, a hesitação é representada na narrativa e é um dos temas desta. “O gênero fantástico é pois definido essencialmente por categorias que dizem respeito às visões na narrativa; e, em parte, por seus temas” (TODOROV, 2006, p.151). O fantástico permanece apenas durante o tempo da hesitação, esta que é comum ao leitor e à personagem. Se no fim da narrativa, o leitor senão a personagem opta por uma decisão e fazendo assim sai do fantástico. Se ele acredita nas leis da realidade e explica o fenômeno, a


obra pertence ao gênero do estranho. Porém, se ele aceita as novas leis da natureza, para explicar o fenômeno, então a narrativa entra no gênero do maravilhoso. Percebe-se que há narrativas do gênero fantástico, estranho e maravilhoso, e em cada um, há subgêneros transitórios (entre o fantástico e o estranho; e entre o fantástico e o maravilhoso). Esses subgêneros contem obras que permanecem durante um determinado tempo na hesitação fantástica mas que acabam sendo direcionadas para o maravilhoso ou o estranho. No fantástico-estranho, os acontecimentos tem ares de sobrenatural durante o decorrer da história porém finaliza com uma explicação racional. Nada de sobrenatural ocorreu, tudo é resultado de uma imaginação desregrada (loucura, sonho ou drogas). O fantástico-maravilhoso trata das narrativas que se iniciam como fantásticas e que atingem o sobrenatural. São essas as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de não ter sido explicado, racionalizado, nos sugere a existência do sobrenatural. O limite entre os dois será portanto incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos pormenores nos permitirá sempre decidir. (TODOROV, 2006, p 158).

A introdução de elementos sobrenaturais é um modo de impedir a reprovação da sociedade para determinados temas, como por exemplo a loucura. A função do sobrenatural é deduzir o texto à ação da lei, e a partir disso transgredi-la. Em relação a função literária do sobrenatural, há uma coincidência peculiar entre os autores que trabalham com temas sobrenaturais e os que na obra estão atentos principalmente para o desenvolvimento da ação. As primeiras narrativas que contém elementos do sobrenatural são os contos de fada. As obras A odisseia, o Decameron e Don Quixote possuem em diferentes níveis elementos maravilhosos. Na época moderna, autores como Balzac, Mérimee, Hugo, Flaubert e Maupassant possuem também contos fantásticos. Para entender a coincidência entre os diversos autores que trabalham com as narrativas fantásticas, é importante questionar a própria natureza da narrativa. Em toda narrativa há um movimento entre dois equilíbrios análogos mas não idênticos. No início da narrativa, sempre temos uma situação estável, com personagens que constituem uma configuração que pode ser móvel porém com determinados traços fundamentais. A narrativa básica é composta por dois tipos de episódio:


a descrição do estado de equilíbrio ou do desequilíbrio e a descrição do acesso de um a outro. Toda narrativa possui esse esquema tradicional, as vezes é difícil de identificar porque pode-se eliminar o começo ou o fim, intercalar digressões ou outras narrativas. Um bom exemplo segundo Todorov (2006) para entender o lugar dos elementos sobrenaturais nesse esquema é a História dos amores de Camaralzaman das Mil e Uma Noites. Este Camaralzaman é o filho do rei da Pérsia e é o mais inteligente e mais belo rapaz do reino e mesmo para além das fronteiras. Um dia, seu pai decide casá-lo; mas o jovem príncipe descobre de repente ter uma aversão insuportável pelas mulheres, e recusa categoricamente a obedecer-lhe. Para puni-lo, seu pai o fecha numa torre. Eis uma situação (de desequilíbrio) que poderia bem durar dez anos. Mas é nesse momento que o elemento sobrenatural intervém. A fada Maimune descobre um dia, em suas peregrinações, o belo rapaz e dele se encanta; ela encontra em seguida um gênio, Danhasch, que conhece a filha do rei da China, que é evidentemente a mais bela princesa do mundo; além disso, esta se recusa obstinadamente a casar-se. Para comparar a beleza dos dois heróis, a fada e o gênio transportam a princesa adormecida ao leito do príncipe adormecido; depois os despertam e os observam. Segue-se uma longa série de aventuras, em que o príncipe e a princesa vão procurar reunir-se, depois desse fugidio e noturno encontro; por fim, formam uma nova família (TODOROV, 2006, p.162).

Nesse exemplo, há o equilíbrio inicial e o final em consonância com o realismo. Os acontecimentos sobrenaturais rompem com o desequilíbrio mediano, e geram a extensa demanda do segundo equilíbrio. O sobrenatural entra no encadeamento de episódios, que mostram a passagem de um estado a outro. A transgressão da lei provoca uma mudança célere, então é necessário que as forças sobrenaturais intervenham para impedir que a narrativa se torne lenta. É o elemento maravilhoso que modifica a situação precedente, rompe o equilíbrio ou desequilíbrio. A função social e literária do sobrenatural é transgredir a lei da vida social e/ou da narrativa, a interferência do elemento maravilhoso forma uma ruptura no sistema de regras preestabelecidas. O folclorista russo Vladimir Propp (1984) estuda a morfologia do conto maravilhoso comparando seus enredos. Após a comparação de determinados tipos de contos de magia, classificados no índice de


Aarne22, foi identificado elementos constantes e variáveis. Propp conclui que o que muda são os nomes e os atributos dos personagens, e o que permanece são as suas ações ou funções. Daí a conclusão de que o conto maravilhoso atribui ações iguais a personagens diferentes e nos permite estudar os contos a partir das funções dos personagens.” (1984, p.25). Faz-se necessário identificar em que nível as funções representam as grandezas constantes, que são tantas vezes repetidas em um conto maravilhoso. Por isso que a questão “De quantas funções pode abarcar um conto maravilhoso?” nos ajuda a entender a importância da repetição das funções nesses tipos de conto. Os personagens do contos maravilhoso mesmo os mais distintos executam comumente as mesmas ações. O meio em que a função é realizada pode alterar, pois é uma grandeza variável, porém a função é uma grandeza constante. Nas pesquisas de Propp sobre o conto maravilhoso o que importa é identificar o que fazem os personagens. As funções dos personagens representam as partes constituintes que podem tomar o lugar dos motivos de Vesselóvski, ou dos elementos de Bédier. Lembremos que a repetição de funções por personagens diferentes foi observada há bastante tempo pelos historiadores das religiões nos mitos e nas crenças, mas não pelos historiadores do conto maravilhoso. Assim como as propriedades e funções dos deuses se deslocam de uns para outros, chegando finalmente até os santos do cristianismo, as funções de certos personagens dos contos maravilhosos se transferem para outros personagens. Antecipando, podemos dizer que existem bem poucas funções, enquanto que os personagens são numerosíssimos (PROPP, 1984, p.26).

Pode-se entender o duplo aspecto do conto maravilhoso, que se caracteriza pela grande diversidade de contos, o caráter variado e a sua repetibilidade. Sendo as funções dos personagens as partes essenciais do conto maravilhoso, vale destacar algumas considerações acerca das funções, como: o personagem que executa a função é menos importante que ação, e esta deve ser definida por um substantivo (proibição, fuga etc.). O significado de uma determinada função deve ser observado no desenvolvimento da ação. “Por função, compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” (PROPP,1984, pag.26). Os personagens para Propp 22

Antti Aarne é um dos fundadores da escola finlandesa. Ele elaborou uma lista de contos observando um elenco de enredos. Essa lista teve circulação internacional, e contribuiu para o estudo do conto maravilhoso, tornando possível numerar os contos.


(1984) devem ser estudados de acordo com suas funções, a sua divisão em categorias, e a sua entrada em cena. A partir desse estudo chegamos ao problema geral dos personagens do conto maravilhoso. Logo, faz-se necessário diferenciar dois objetos de estudo: os autores das ações e as próprias ações. São grandezas variáveis do conto, a nomenclatura e os atributos dos personagens. Conceituamos como atributos, a reunião de todas as qualidades dos personagens: a idade, sexo, posição social, caraterização física. São esses atributos que conferem o encanto do conto. Mas no conto, como vimos, um personagem pode facilmente tomar o lugar de outro. Estas trocas têm suas próprias causas por vezes muito complexas. A vida real cria sempre figuras novas, brilhantes, coloridas, que se sobrepõem aos personagens imaginários; o conto sofre a influência da realidade histórica contemporânea, do epos dos povos vizinhos, e também da literatura e da religião, tanto dos dogmas cristãos como das crenças populares locais. O conto guarda em seu seio traços do paganismo mais antigo, dos costumes e ritos da antiguidade. (PROPP, 1984, p.81)

O conto aos poucos vai se transformando devido as múltiplas influências que absorve, gerando uma grande diversidade de formas. Apesar disso, o seu estudo é possível porque a constância dos contos está nas funções, o que permite a análise dos elementos que circundam as funções. Para o estudo dos atributos dos personagens deve-se considerar a aparência e nomenclatura, as características da aparição em cena e o habitat. Pode-se agregar também uma série de elementos auxiliares que apesar de não ter tanta relevância nos ajudar a contextualizar a narrativa. Assim, os traços característicos de Baba-Iagá são: seu nome, sua aparência (perna descarnada, o nariz que sobe ao teto, etc.), a casinha que gira sobre patas de galinha; e seu modo de entrar em cena: a chegada num almofariz voador, sempre acompanhada de silvos e ruídos (PROPP, 1984, p.82).

O personagem pode também ser definido através do ponto de vista das funções, pode ser um doador ou um auxiliar, etc. E a partir daí pode se fazer um estudo das diferentes rubricas. Todas as informações de uma rubrica pode ser analisadas independentemente de toda a diversidade de contos. As formas que mais se destacam representam um determinado cânone. E estes podem ser de âmbito internacional, nacional, regional. Há também as formas que definem determinadas


categorias sociais (militares, rurais, urbanos). É importante acrescentar que um elemento que representa uma rubrica pode aparecer em outra de uma forma inesperada. Um personagem pode assumir um papel de doador-conselheiro por exemplo. Esses deslocamentos fazem parte da constituição das formações de um conto, que apesar de aparentar ter um novo enredo na verdade foi derivado de um antigo transformado. Propp (1984) nos apresenta informações iniciais sobre as funções das personagens dos contos maravilhosos, estes nos ajudam a refletir juntamente com Greimas as personagens femininas da Microssérie Amorteamo. 5.

De Propp a Greimas

O linguista Algirdas Greimas (1973) atualizou a obra Morfologia do conto maravilhoso de Propp, principalmente em relação ao modelo atuacional e ao inventário reduzido de funções. “Após ter definido o conto popular como uma extensão de suas 31 funções sobre a linha temporal, Propp se coloca a questão dos atuantes, ou dos dramatis personae, como ele os chama” (GREIMAS, 1973, p.228). Greimas (1973) diz que a concepção de Propp sobre os atuantes é funcional, os personagens são definidos por “esferas de ação” das quais praticam, e estas são formadas pela atribuição de funções. Ele observou uma invariância ao comparar os contos-ocorrências do corpus, percebeu que as “esferas de ação” atribuídas às personagens, são variáveis de um conto ao outro. Greimas nomeia as personagens de atores, e a partir de uma análise em um esquema simples, onde ele relaciona as funções, a esfera de atividade e os atores, constatou que. Resulta daí que, se os atores podem ser instituídos dentro de um conto-ocorrência, os atuantes que são classes de atores, não podem sê-lo senão a partir do corpus de todos os contos: uma articulação de atores constitui um conto particular; uma estrutura de atuantes, um gênero. Os atuantes possuem, pois um estatuto metalinguístico em relação aos atores; pressupõem acabada, além disso, isto é, a constituição de esferas. (GREIMAS,1973, p.229).

A organização dos atores pela descrição de suas funções e a diminuição das classes de atores à das atuantes do gênero, propiciaram a Propp constituiu um inventário dos atuantes. Esse inventário dos personagens do conto popular russo é definido como uma narrativa de 7 personagens, que são: o vilão, o doador, o ajudante, a pessoa procurada, o mandante, o herói e o falso herói.


Greimas (1973) faz uma crítica a pesquisa de Propp e diz que [...] [...] definir um gênero apenas pelo número de atuantes, fazendo abstração de todo o conteúdo, é situar a definição num nível formal excessivamente elevado; apresentar os atuantes sob a forma de um simples inventário, sem se interrogar sobre as relações possíveis entre eles, é renunciar muito cedo à análise, deixando a segunda parte da definição, seus traços específicos, num nível de formalização insuficiente (GREIMAS,1973, p.230-231).

Greimas (1973) também se opõe a Propp em relação às categorias atuacionais “destinador” versus “destinatário”, devido a manifestação sincrética usual dos atuantes, identificada no nível da sintaxe e da repetição constatada de dois atuantes em um só ator. E exemplifica, em uma narrativa de uma história de amor simples que seu desfecho se dá com o casamento sem a interferência dos pais. O sujeito é também o destinatário, e o objeto é ao mesmo tempo o destinatário do amor. Ele ≈ sujeito + Destinatário / Ela ≈ objeto + destinatário. “No caso, os quatro atuantes são simétricos e invertidos, mas sincretizados sob a forma de dois atores” (GREIMAS, 1973, p.232). Em uma narrativa como a da Procura do Santo Graal, temos quatro atuantes bem diferentes, dispostos em duas categorias. Sujeito ≈ herói/objeto ≈ Santo Graal/Destinador ≈ Deus/Destinatário ≈ Humanidade. Esta descrição é de E. Souriau23, e Greimas não identificou nenhuma dificuldade, diferentemente do primeiro exemplo de Propp que o destinatário deve estar articulado em dois atores, sendo o primeiro confundido com o objeto do desejo (a pessoa procurada – pai dela). No conto popular russo, o campo de atividade do destinatário se funde com o sujeito-herói. O que gera um questionamento “[...] é saber se tais fusões podem ser consideradas como critérios pertinentes para as divisões de um gênero em subgêneros” (GREIMAS,1973, p.233). O que se percebe é que as duas categorias atuacionais parecem formar um modelo básico, edificado sobre o objeto, este que é simultaneamente objeto de desejo e objeto de comunicação. Greimas (1973) reconhece facilmente duas esferas de atividade, e cada uma com duas funções bem distintas. A primeira tem como objetivo auxiliar, age no sentido do desejo, ou promove a comunicação. A segunda, age no sentido oposto, cria empecilhos, opõe-se na 23

E. Souriau é o autor da obra 200 000 Situations Dramatiques, onde formulou o catálogo das funções dramáticas


consumação do desejo. Essas duas funções antagônicas podem ser atribuídas a dois atuantes diferentes, chamados de adjuvante e oponente. O termo oponente foi trazido por Souriau e o temo adjuvante foi introduzido por Guy Michaud por intermédio de Soriau. Para Propp, o termo oponente é denominado vilão, e o termo adjuvante abarca dois personagens o ajudante e o doador. 6.

As personagens femininas

No universo mítico, esta oposição entre o advujante e o oponente pode ser visto como um espetáculo projetado em uma tela axiológica, e que nós podemos perceber atuantes sendo representados por forças benfazejas e malfazejas do mundo. São as encarnações do anjo e do diabo do drama medieval. Na manifestação mítica, que nos preocupa, entendemos que o adjuvante e o oponente não são senão projeções da vontade de agir e resistências imaginárias do próprio sujeito, julgadas benéficas ou maléficas em relação ao seu desejo. Esta interpretação vale o que é. Tenta explicar o aparecimento nos dois inventários, ao lado de verdadeiros atuantes, dos circunstantes e dar conta de seu estatuto sintático e semântico, ao mesmo tempo. (GREIMAS, 1973, p.235).

Esse modelo pode ser usado para análise de manifestações míticas, devido a sua simplicidade operacional. A simplicidade reside no fato de ser totalmente fundado sobre o objeto do desejo do sujeito, e colocado como objeto de comunicação entre o destinador e o destinatário. O desejo do sujeito é modulado em projeções do adjuvante e do oponente. “Diríamos assim que as particularizações eventuais do modelo deveriam incidir inicialmente sobre a relação entre os atuantes “sujeito vs objeto”, e manifesta-se com uma classe de variáveis constituída de investituras suplementares” (GREIMAS,1973, p.236). O autor exemplifica esse método de análise com a pequena narrativa de um sábio filosofo da época clássica que tinha o desejo de descobrir quem era os atuantes do seu espetáculo de conhecimento. Sendo assim, o sujeito = filósofo, objeto = mundo, destinador = Deus, Destinatário = humanidade, oponente =matéria, adjuvante= Espirito. As principais forças temáticas dessas narrativas passíveis de serem analisadas com esse método, são: o amor (sexual ou fraterno), inveja, ciúme, raiva, desejo de vingança de riqueza, de beleza dentre outros.


Pode-se seguir esse modelo de análise para interpretar a narrativa da microssérie Amorteamo, focando principalmente nas personagens femininas. A trama de Amorteamo é desenvolvida a partir de dois triângulos amorosos na capital de Pernambuco, Recife, na década de 1920. Há também os tramas paralelos que se desenvolvem de forma simultânea, como os que ocorrem na igreja da cidade, no bar e no prostibulo. O primeiro triângulo amoroso é formado por Arlinda (Leticia Sabatella) mulher casada que no início da narrativa, vivia como uma senhora de posses, proprietária de um casarão iluminado, conforme fotogramas 01 e 02. O esposo Aragão (Jackson Antunes) tinha um engenho de açúcar prospero. É no cenário do seu quarto de casada com tudo o que havia de mais belo e bom em termos de decoração e cuidados com a beleza, que seu amante Chico (Daniel Oliveira) aparece para seduzi-la. Como que saindo de uma tela à óleo, Aragão aparece cavalgando e adentra o casarão armado, entra no quarto e flagra os dois. Ele mata o amante Chico, e prende a esposa infiel no sótão escuro e empoeirado. Lá acompanhada do espirito do amante descobre que está grávida, e durante os noves meses da gestação tem como companhia o espirito de Chico que só a deixa após Arlinda dá a luz a um menino, e prometer ao marido traído que vai esquecer o amante. Ela coloca o nome do filho de Gabriel, nome do pai do marido, e volta para o quarto do casal. Quando Gabriel (Johnny Massaro) ainda é criança, a família vai ao cemitério para o enterro do padre suicida Lauro, e Gabriel corre entre os túmulos. Ela vai em seguida e acaba encontrando o tumulo do ex amante, de onde canta uma música para o amante, o marido ciumento vê e só não a bate por causa de Gabriel que a defende. Como castigo por não ter esquecido o amante volta para o sótão. Dezoito anos se passam, o casarão já todo deteriorado guarda a esposa triste e maltrapilha, o marido que passa a maior parte do tempo bêbado no prostibulo, o filho Gabriel, um poeta boêmio que tem um amor de infância pela filha da empregada, e que adora ir ao cemitério. Arlinda, uma mulher infeliz, que a cada dia adoece cada vez mais, piora com uma briga de Aragão e Gabriel. Como Aragão não tem mais recursos financeiros para tratar a esposa, recorre a um agiota Judeu chamado Isaac que tem uma casa de penhores, como não tem nada de valor para colocar como garantia, negocia o casamento entre o filho que nunca trabalhou com a filha de Isac, uma moça depressiva chamada Malvina que possui um fascínio pela morte.


Arlinda vê a angustia do filho que não quer se casar sem amor, já que ele é apaixonado por Lena, filha da empregada com Aragão, que ele pensa ser sua irmã. Então, no dia do casamento Arlinda revela a verdade sobre a paternidade de Gabriel, que não casa, deixa a noiva no altar e foge com Lena. Por esse ato, Aragão abandona a esposa no prostibulo da cidade para ela se prostituir. Seu primeiro e único cliente foi um amigo de Gabriel. Quando ela pensa que chegou no fundo, eis que uma maldição assola a cidade, e os mortos ressurgem com ânsia de vingança. Chico é um desses que aparece para resgatar Arlinda e se vingar de Aragão. Chico induz Arlinda denunciar Aragão por assassinato. Ele é preso, e Chico morto vivo vai viver com Arlinda no casarão, mas como voltou com muito ódio, enferniza Aragão na cadeia que enlouquece. Arlinda percebe a maldade de Chico morto vivo, e retira queixa contra Aragão. Coloca ele no sótão para tratá-lo, mas mesmo assim Chico continua indo lá assombrá-lo, e em um momento de muita raiva por Arlinda não aceita-lo mais, atira contra Aragão. Porém Arlinda fica na frente do esposo enlouquecido e morre. Fotograma 01: Arlinda e Chico dançam no quarto do casarão

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda. Fotograma 02:Aragão e Arlinda na fase da decadência

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.


A narrativa de Arlinda pode ser analisada pelo método desenvolvido por Greimas do modelo atuacional. “O sujeito-herói” dessa narrativa é a própria personagem de Arlinda que deseja viver o amor com o amante Chico. “O objeto de valor” é a salvação da relação amorosa de Arlinda com Chico. “O oponente” aparece representado por dois personagens: Aragão, marido traído que assassina Chico pois se sentiu ameaçado pelo rival. E a dona do prostibulo Dora, que amava Chico e revelou o caso deles para o marido Aragão. O “adjuvante” ou ajudante é o amor pelo filho Gabriel que a mantém viva durante todo a vida de Arlinda no sótão. “O destinador” é o amante Chico. “O destinatário” é a segunda oportunidade de Arlinda ser feliz com Chico, mas como ele retorna com tanto ódio, o amor não poderá sobreviver, e ela prefere morrer para salvar o marido enlouquecido. A narrativa de Lena (Arianne Botelho), ver fotogramas 03 e 04, se desenvolve a partir do momento em que Aragão leva uma mãe com uma filha de colo para morar e trabalhar no casarão. Pois Arlinda não tem leite para amamentar Gabriel. Como a mãe de Lena, Zefa (Gheuza Sena) tem muito leite materno, ela amamenta Gabriel. Lena e Gabriel crescem juntos e se apaixonam. A revelação que Lena é filha de Aragão, deixa Lena e Gabriel impossibilitados de levar esse amor adiante. Com o casamento arranjado de Gabriel e Malvina, ela decide deixar a cidade. Arlinda revela ao filho que os dois não são irmãos, então Gabriel desiste do casamento e vai atrás de Lena. Os dois se entregam ao amor, porém no dia seguinte Gabriel descobre que Malvina se suicidou. Enlouquecido de remorso, viola o túmulo de Malvina, que desperta do mundo dos mortos para casar com Gabriel. Nesse período em que Gabriel está confuso, Malvina descobre que foi por Lena que Gabriel desistiu de casar e manda ele escolher, ou salva Lena ou morre para que os dois fiquem juntos. Quando Malvina percebe que nunca terá o amor de Gabriel, se joga novamente da ponte do rio Capibaribe, e assim livres de Malvina morta viva, Gabriel e Lena se casam. Fotograma 03: Lena ajuda a sua mãe na cozinha do Casarão

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.


Fotograma 04: Lena e Malvina na ponte

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

A narrativa de Lena pode ser analisada através do modelo atuacional de Greimas, o sujeito-herói é Lena, o objeto de valor é o a amor de Gabriel, nessa jornada ela apenas recebe ajuda da mãe de Gabriel que revela ao filho que os dois não são irmãos. O maior oponente é Malvina, que tentou ficar com Gabriel quando estava viva e morta viva. O destinador é o momento em que Malvina morre pela última vez, deixando Lena e Gabriel livres para se amar e se casar. E finalmente o destinatário, é Gabriel. Malvina, só aparece no segundo episódio da microssérie. Ver fotogramas 05 e 06. Quando é mostrado que Aragão não tem como arcar com as despesas medicas da esposa. E o advogado dele sugere pedir um empréstimo com Isaac (Isio Guelman) o judeu, comerciante de uma loja de penhores. Como Aragão não tem nenhum imóvel em bom estado para dar como garantia, o advogado fala da filha de Isaac, uma moça estranha, e que poderia se casar com Gabriel. Aragão faz o acordo a Isaac que aceita porque viu que Malvina gostou de Gabriel. Este é receptivo a Malvina. Eles noivam, mas no dia do casamento Gabriel não aparece. Malvina não aguenta tanta dor, e se joga no rio Capibaribe, pois é uma moça depressiva que já tinha tentado o suicídio várias vezes, tem uma obsessão pela morte, porque desde pequena o pai dela fala que a mãe morreu no parto e ela se sente culpada pela morte da mãe. Após Gabriel descobrir o suicídio de Malvina, desespera-se e desenterra o tumulo de Malvina, que desperta do mundo dos mortos com a personalidade má. Ela retorna a casa do pai, e descobre que a mãe não morreu, tudo foi uma encenação. O pai de Malvina a comprou quando ela era um bebe da sua mãe que era uma prostituta de rua.


Malvina, primeiramente assassina o pai, pela mentira e tenta matar a mãe, que é levada ao hospital. Quando Esmeralda (Fabiana Gugli) está se recuperando Malvina entra discute com a mãe e a mata. Malvina tenta se casar com Gabriel, mas o padre foge com medo, então Malvina tenta matar Gabriel para levá-lo, porém Gabriel consegue ser salvo e decide que terá que enterra-la novamente para a maldição acabar. Gabriel e o coveiro (Tonico Pereira) até conseguem enterrá-la mas ela desperta e mata o coveiro e vai atrás de Lena. Malvina pedi para Gabriel escolher entre a vida dele ou a de Lena. Ele decide pela de Lena, é quando ela percebe que Gabriel nunca irá amá-la, ela se joga novamente da ponte. Morre definitivamente, e Gabriel a enterra. O pai de Malvina, Isaac como morto vivo, mostra todo seu amor pela filha no momento da despedida. Assim encerra a maldição e todos os mortos vivos retornam aos seus túmulos. Fotograma 05: Malvina como morta viva

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda. Fotograma 06: Malvina morta viva tenta se casar com Gabriel na igreja

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.


A narrativa fantástica de Malvina pode ser analisada pelo modelo atuacional de Greimas. Sendo assim, o sujeito-herói é Malvina, apesar dela ser considerada a vilã da microssérie Amorteamo. Ela deseja ser feliz com Gabriel (objeto de valor), nessa jornada ela só tem o amor do pai (advujante). O oponente de Malvina é principalmente Lena, mas Gabriel e o coveiro também são seus opositores. Em busca do amor, ela encontra a morte (destinador) duas vezes, até ela finalmente encontrar a paz (Destinatário). Outra personagem que também se suicida é Dora (Maria Luísa Mendonça), a dona do prostibulo da cidade, ver figuras 07 e 08. Ela aparece logo no primeiro episódio da microssérie, na cena em que o corpo de Chico boia no rio. Ela juntamente com as outras garotas do prostibulo circulam pela cidade, vão ao enterro do padre Lauro, mas não são aceitas no bar de Cândida. O prostibulo tem apresentações musicais, onde ela recebe os homens poderosos da cidade. Aragão é um frequentador assíduo. Por trás da vestimenta e cabelo extravagante, existe uma mulher melancólica, fria e vingativa. Apaixonada pelo galanteador Chico, revela a Aragão o caso extraconjugal de sua esposa, em uma carta anônima, logo ela também é culpada pela morte de Chico. Ela aceita Arlinda no prostibulo e a manipula para a se prostituir. Quando Chico retorna a vida como morto vivo, ele visita o prostibulo, é então que percebemos todo amor e ódio que ela sente por ele. A dor maior de Dora foi descobrir que sua melhor amiga Maria (Lívia Falcão) também se relaciona com Chico. Em um momento de muita tristeza e decepção se suicida na frente da amiga. Fotograma07: Dora no seu prostibulo

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.


Fotograma 08: Dora lamenta por não ter ninguém que vá sofrer a sua morte

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

Segundo o modelo atuacional de Greimas, na narrativa de Dora, ela é o sujeito, a protagonista da sua história que tem como objeto o amor de Chico, a sua maior oponente é Arlinda. A sua adjuvante é Maria, sua melhor amiga até o dia em que ela descobre a traição. Ela chama a morte (destinador), e o destinatário seria a sua ilusória fuga do mundo de sofrimentos. A última personagem a ser analisada é Cândida (Guta Stresser), ver fotogramas 09 e 10. Cândida é a dona do bar, onde Gabriel bebe com os amigos, e o padre Joaquim (Gustavo Falcão) frequenta somente para beber água. Cândida é a fofoqueira da cidade. Ela frequenta todos os eventos sociais, de casamentos a velórios. Foi ela quem fez a denúncia de corrupção do padre Lauro (Gilray Coutinho) que acabou se suicidando no sino da igreja. Quando os mortos retornam a vida. O seu falecido marido Jeremias (Bruno Garcia) volta em busca da esposa, do bar e da peruca. O irmão de Jeremias, Manoel (Aramis Trindade) casou com a cunhada, tomou posse do bar e da peruca. O conflito se instala, Cândida fica balançada e propõe ficar casada com os dois. O clima de ciúmes entre os irmãos foi apaziguado pelo chamamento dos mortos vivos, logo após Malvina ser enterrada no cemitério, uma voz chama todos para retornar. Cândida se despede amorosamente do seu primeiro marido e volta para o segundo marido que era o seu cunhado.


Fotograma 09:Cândida e Manoel ao descobrir que Malvina estava morta

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda. Fotograma 10: Cândida na dúvida entre os dois maridos: Jeremias ou Manoel

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda

Interpretando a narrativa de Cândida com o modelo atuacional de Greimas, percebe-se o sujeito como Cândida, o objeto é ser feliz no amor não importando com qual dos irmãos. O Adjuvante na narrativa de Cândida é o seu marido Manoel, que está junto dela em todas as situações, inclusive atendendo ao pedido do padre Joaquim para ver as assombrações na igreja. Não foi identificado nenhum oponente humano a felicidade no amor de Cândida, logo a sua principal barreira pode ser a dúvida de qual irmão escolher. O destinador é o marido Manoel, e o destinatário é o casamento feliz e a parceria no bar. 6. Considerações Finais A microssérie Amorteamo (2015) foi inspirada na obra Assombrações do Recife Antigo, de Gilberto Freyre. Principalmente no que diz respeito a convivência dos seres espirituais com os seres vivos do mundo material. Essa informação sobrenatural é o que caracteriza a narrativa fantástica maravilhosa.


A hesitação está presente na microssérie. Somos indagados o tempo todo sobre as leis que regem essa narrativa. Principalmente quando mostra cenas do espirito de Chico ajudando Arlinda presa no sótão. Partilhamos da experiência do sobrenatural com os personagens. O folclorista russo Propp foi de fundamental importância para os estudos dos contos maravilhosos, ele alicerçou as pesquisas principalmente sobre as funções dos personagens para pesquisadores como Greimas que nos forneceu um modelo de análise para interpretar não somente as narrativas míticas. Tornando possível entender os atuantes como herói, opositor, adjuvante, objeto de desejo, destinador e destinatário. Selecionamos cinco personagens femininas de Amorteamo para interpretar de acordo com o modelo atuacional de Greimas. Dessas cinco personagens, percebemos similitudes principalmente no objeto de desejo que é o amor. Todas as personagens querem se realizar no amor, mas somente duas conseguem, Lena e Cândida. Lena, a heroína da microssérie, sofreu os cincos episódios por Gabriel, só encontrando a felicidade no desfecho da microssérie com o casamento. Na cena final, é colocado uma dúvida no telespectador quando mostra cenas do casamento de Arlinda e Aragão, eles casaram por amor também. Mas a trajetória de vida desse casal teve mais oponentes que apoiadores, então o objeto do desejo se modificou. Malvina a anti-heroína de Amorteamo, tem na sua narrativa vários aspectos que poderíamos considera-la como uma heroína, porém ela foi a oponente ao amor de Gabriel e Lena que desencadeou o estado de desequilíbrio da narrativa. A morte está presente em todas as narrativas femininas. O Amor e a morte podem ser consideradas duas forças antagônicas na microssérie Amorteamo. O amor como adjuvante dessas personagens e a morte como principal oponente.


Não deixe os bastardos te desanimarem: Feminismo e maternidade em The Handmaid’s Tale Ana Karla Batista Farias24 Cleber Femina25 Alexandre Ferreira Mulatinho26

1.

Introdução

A série The Handmaid’s Tale (THT) é um exemplo de narrativa transmídia, advinda da obra O Conto da Aia, de autoria da escritora canadense Margaret Atwood, publicado originalmente em 1985. A história distópica sobre a opressão das mulheres numa sociedade vindoura militar, patriarcal e teocrática, fora adaptada para o meio audiovisual em forma de ficção seriada pelo site de streaming Hulu em parceria com os Estúdios MGM e exibida a partir de abril de 2017. A primeira temporada, a qual esta comunicação se concentra, possui dez episódios, cada um com duração aproximada de uma hora. 24

Jornalista graduada pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), especialista em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais e militante feminista do Movimento Mulheres do Seridó. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4239453D7 e e-mail: anakarlatvmossoró@hotmail.com 25

Jornalista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestre e doutorando em Estudos da Mídia pelo PPgEM UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4425438H6 e e-mail: cleberfemina@hotmail.com 26

Jornalista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8549065Y8 e e-mail: mulatinho.alexandre@gmail.com


Caracterizada como um drama, a história é ambientada na República de Gilead, um Estado totalitário, que outrora fora os Estados Unidos da América (EUA), construído a partir de um golpe civil e militar. Nesta primeira temporada a narrativa trata em primeiro plano da história de June, ou Offred, uma aia que busca se libertar da opressão vivida e reencontrar sua família. A série, assim como o livro no qual é baseada, deixa evidente a reflexão sobre o quão a função biológica da mulher pode ser usada como pretexto para o exercício do controle social sobre a autonomia, direitos reprodutivos e a sexualidade das mulheres, que passam a ter a maternidade como pressuposto norteador de seu papel na sociedade. Para tal, apresentamos uma breve descrição dos elementos que compõem a estrutura narrativa da série para, em seguida, adentrarmos nas estruturas interiores e revelar a forma e a substância do conteúdo que dela faz parte. Adotamos a perspectiva greimasiana (GREIMAS, 1976) para realizar esse trajeto e no final retomamos a importância da união feminina na luta contra a opressão. 2.

Construção do objeto (ou a forma e a substância de expressão)

A ficção seriada de The Handmaid’s Tale (THT), em sua adaptação audiovisual, apresenta uma narrativa cujo eixo principal aborda a perda de todos os direitos das mulheres e sua localização, pelos homens, em um papel social inferior construído somente em torno das suas características biológicas, mais precisamente, da sua capacidade de reprodução. Originalmente escrita e publicada na década de 1980, uma época de crescente luta pelos diretos femininos, mas que também via a ascensão da política neoliberal, do convívio com a guerra fria e com as lembranças ainda recentes do holocausto da Segunda Guerra, a história, de natureza distópica, busca refletir sobre as consequências de uma sociedade na qual a liberdade de corpo e de pensamento de alguns seres humanos é controlada, sobre a inexistência de igualdade de gêneros e sobre como essa realidade afetaria as mulheres. O enredo reflete, ainda, acerca da importância da união entre as pessoas em torno de um objetivo em comum, neste caso, a reconquista da liberdade e dos direitos das mulheres, fato que começa a ser abordado no clímax desta primeira temporada e que desponta como base do enredo da vindoura. Para tal, é contada a história de June Osborne (Elizabeth Moss), também conhecida como Offred, uma mulher comum que tem sua vida devastada após a revolução que transformou os Estados Unidos na República de Gilead, uma nação totalitarista, teocrática e falocêntrica,


como será detalhado adiante. Neste contexto, o objetivo primário de June é reencontrar sua filha Hannah (Jordana Blake), que fora capturada junto com ela durante a tentativa de fuga de ambas e do marido, Luke Bankole (O-T Fagbenle), para o Canadá. Para alcançar seu objetivo, ela deve sobreviver às diversas formas de violências físicas e mentais impetradas pelos representantes do atual regime. No enredo, aufere-se que o mundo vivencia uma onda de infertilidade decorrente dos efeitos da poluição e do aquecimento global, o que desencadeia uma redução expressiva nas taxas de natalidade e de sobrevivência das crianças recém-nascidas. Desta feita, emerge um cenário de exaltação à maternidade como uma dádiva divina. Por conseguinte, um grupo de fundamentalistas religiosos formado por homens e mulheres oriundos de uma classe social abastada, branca e conservadora, começa a defender piamente, sem aceitar argumentos contrários, que a crescente infertilidade alastrada pelo mundo constitui uma manifestação da ira de Deus, em face das ações pecaminosas e promíscuas da sociedade hodierna de então. Este grupo se reúne sob a alcunha de Filhos de Jacó, com referências diretas à trajetória deste patriarca bíblico (GÊNESIS: 25-50). A história de infertilidade entre Jacó e sua esposa Raquel é utilizada como paradigma principal para as ações desse grupo, que acredita que somente copulando com mulheres férteis serão capazes de resolver o problema da baixa natalidade que assola o país. Entretanto, o papel de responsáveis pelo “salvamento da humanidade” é dado apenas aos homens detentores de alguma posição de comando dentro desta organização política, militar e religiosa. Outro ponto pelo qual é possível aferir a escolha da analogia a Jacó dentre tantos outros personagens bíblicos com o mesmo problema enfrentado por ele 27, é a formação de um novo Estado político e religioso, uma vez que os doze filhos de Jacó seriam responsáveis pela formação das Tribos de Israel base do judaísmo e do atual Estado de Israel. Logo, as crianças oriundas desse processo reprodutivo seriam as responsáveis pelo estabelecimento de uma nova nação abençoada por Deus. Após usurparem o poder político por meio de uma sequência de atentados, ardilosa e irresponsavelmente imputados a grupos 27

Abraão e Sara, avós de Jacó, possuem história análoga. Sara não podia ter filhos e entregou sua escrava Agar para que ela engravidasse de Abraão. Agar, então, deu à luz a Ismael. Sara engravidou de Abraão dez anos depois e deu à luz a Isaque, pai de Jacó e Esaú (Gen: 16-24).


fundamentalistas islâmicos, os Filhos de Jacó assumem o Governo, implantam uma enxurrada de medidas antidemocráticas, misóginas, homofóbicas e neofascistas, onde os direitos humanos, sobretudo, das minorias sociais são anulados. A Constituição dos Estados Unidos é suspensa, passando a população a ser regida com fulcro no Antigo Testamento. O país passa a se chamar República de Gilead, em referência ao monte de Gileade no qual Jacó e sua família buscaram abrigo após fugirem do domínio do seu sogro, Labão (GÊNESIS. 31-32). Dos 50 estados norte-americanos, 48 passaram a estar sob o julgo da nova república, ficando de fora apenas o Alasca e o Havaí, que não estão ligados territorialmente aos demais. Contraditoriamente, apesar de a natalidade ser vista como uma bênção divina a serviço da reconstrução da nação, as mulheres são as principais prejudicadas, tendo sua emancipação política e civil suprimida. Elas são impedidas de exercer qualquer atividade empregatícia, segundo os ditames do novo governo. Suas contas bancárias são bloqueadas e, por fim, as mulheres são reduzidas ao papel de propriedade dos homens ou do Estado, sendo-lhes negadas a cidadania e direitos básicos, como a simples possibilidade de ler qualquer material que seja. A posição de cada mulher na sociedade criada pelos Filhos de Jacó varia conforme sua vida pregressa. As mulheres férteis, mesmo casadas, são capturadas e enviadas para os Centros Vermelhos, onde são torturadas e doutrinadas para exercerem o papel de aias nas casas dos comandantes da República de Gilead. Coercitivamente, elas são responsáveis pela gestação das futuras crianças, como ocorre com a protagonista, June. As mais velhas e que comungam dos valores do novo governo podem atuar como Tias, que são as doutrinadoras e comandantes dos Centros Vermelhos. As mulheres inférteis e submissas ao atual regime trabalham nas casas dos comandantes como cozinheiras ou secretárias e são chamadas de Marthas. Aquelas que são inférteis, ou mesmo as férteis que se rebelaram contra o governo, ou são aprisionadas em bordéis secretos, chamados de Palácios de Jezebel, onde são obrigadas a servir aos prazeres lascivos dos comandantes e dos homens elitizados, ou são enviadas para as colônias, locais não mostrados durante a série, mas de onde se deduz que as pessoas são forçadas ao trabalho escravo ou à punição por morte. Por fim, as casadas com os homens que promoveram o golpe de Estado continuam a manter seu status social, embora se comportem de maneira subserviente ao marido e também tenham seus direitos civis negados.


Temporalmente, a adaptação audiovisual da história se desenvolve em um futuro próximo. Nesta primeira temporada da série não há a apresentação de uma data precisa, porém alguns itens de cenário e construções narrativas apontam para um período posterior ao ano de 201528. Por outro lado, a época na qual é desenvolvida a linha central da narrativa se passa três anos após a revolução que destituiu o governo dos Estados Unidos e iniciou a República de Gilead. Geograficamente, o núcleo central de personagens se localiza nas proximidades da cidade de Boston, estado de Massachusetts, nordeste dos Estados Unidos. Apesar da distância da fronteira com o Canadá, é a partir dali que muitas pessoas contrárias ao regime imposto pelos Filhos de Jacó partem para fugir em direção ao país vizinho. É neste cenário que a história da personagem June é desenvolvida. Após ser capturada durante uma tentativa de sair do país, sobretudo devido ao que ocorre com as mulheres que são férteis, June é enviada para o Centro Vermelho Leia e Raquel, onde passa por um processo de ressocialização por meio de violência física e mental para agir como aia. Tia Lydia (Ann Dowd), a responsável pelo grupo de mulheres do qual June faz parte é categórica sobre o papel que elas deverão seguir a partir de então: “Bila serviu Raquel, vocês vão servir os líderes dos fiéis. Vocês vão gerar crianças para eles” (episódio 01). O ponto principal da doutrinação imposta no Centro Vermelho é a participação das aias na “cerimônia de concepção”, um estupro travestido de ritual religioso, realizado periodicamente e cuja finalidade é a geração de crianças para repovoar Gilead. Como tal, a cerimônia é legitimada em consonância com as leis da nova república e formalizada de acordo com um protocolo de ações em duas etapas: na primeira, a aia se dirige a um determinado local da casa e se mantém ajoelhada e em oração; adentram ao recinto os demais empregados da família e, em seguida, a patroa; por último, entra o comandante, que lê a passagem bíblica na qual Raquel entrega Bila para que Jacó a engravide (GÊNESIS, 30, 1-3). Na segunda, a esposa e a aia vão para o quarto; sobre a cama, a aia deita de costas sobre as pernas da patroa, que a segura pelos pulsos; por fim, o comandante realiza o estupro e encerra a cerimônia. 28

No episódio 01, dentro do Centro Vermelho, durante o treinamento das aias, Tia Lydia apresenta um gráfico com a redução da natalidade, no qual é possível ver as taxas do ano de 2015; no episódio 05, em um dos flashbacks da história de June antes da revolução, é narrado o primeiro encontro entre ela e Luke, seu esposo, a partir de uma escolha de foto para o perfil dela no Tinder, uma plataforma de encontros virtuais via aplicativo lançada em 2012.


Após o treinamento, June é enviada para a casa da família Waterford, composta pelo comandante Fred (Joseph Fiennes) e sua esposa Serena Joy (Yvonne Strahovski). É a partir desse ponto que June passa a ser chamada de Offred, aglutinação de of Fred, ou “de Fred”, denotando que ela é propriedade do comandante. Completam o núcleo de personagens da casa dos Waterford a Martha Rita (Amanda Brugel) e o motorista Nick Blaine (Max Minghella), que também é um espião à serviço do Olho, uma agência de espionagem do governo da República de Gilead. Além destes, June conta com o apoio da amiga Moira (Samira Wiley), aia fugitiva que, recapturada, foi enviada para o Palácio de Jezebel, de onde escapou novamente e se refugiou no Canadá, e das aias Emili, ou Ofglen (Alexis Bledel), Janine ou Ofwarren (Madeline Brewer), Ofsamuel (Jenessa Grant) e de Alma (Nina Kiri) 29, que convence June a participar de uma rede de aias com viés rebelde, denominada Mayday, que buscam a libertação. A pedido de Alma, June deve conseguir uma arma a ser utilizada pelas supostas componentes da Mayday e capaz de desestabilizar o governo. June passa a ter acesso a ela somente no episódio 10, o último da temporada. Para sua surpresa, a arma se revela como um pacote de cartas de outras mulheres com seus depoimentos, seus relatos de suas vidas pregressas e dos abusos que passaram a sofrer após a prisão. Elas contam, ainda, sobre a esperança que cada uma cultiva na queda do regime imposto e no reencontro com as famílias. Neste sentido, a unidade das estórias escritas nas cartas demonstra que o pior inimigo do governo é a união entre a mulheres, fato revelado nas cenas finais do último episódio da temporada, quando as aias se rebelam contra a execução de uma delas (Janine, neste momento Ofdaniel). 3.

A busca por igualdade (ou a forma e a substância de conteúdo)

The Handmaid’s Tale é contada a partir da perspectiva de June, com a personagem sendo protagonista e narradora da história. Seus pensamentos são ouvidos pelos telespectadores, evidenciando seus sofrimentos, planos e desejos, fazendo com que o público adote sua perspectiva da história. As opções de enquadramento fotográfico utilizadas, como planos fechados e closes, também revelem os sentimentos da protagonista através das suas expressões.

29

Ofsamuel não teve seu nome de batismo revelado nesta temporada, assim como Alma, que não foi dito a qual comandante ela estaria submissa.


A memória da vida de June antes do Golpe de Estado é resgatada por meio de flashbacks, nos quais o público pode acompanhar desde o momento do primeiro encontro com Luke (episódio 05) e o nascimento da sua filha, Hannah (episódio 02), até sua captura e envio para o Centro Vermelho (episódio 01). As mudanças sociais que culminaram com a ascensão da República de Gilead também podem ser conhecidas pelos flashbacks de June e de outros personagens, como o de Serena Joy (episódio 06), que revela que o movimento que originou os Filhos de Jacó se apoderou das ideias dela de “reprodução como um imperativo moral” e de “fertilidade como um recurso nacional” para paradigmatizar as diretrizes norteadoras do establishment a ser introduzido. Ou seja, demonstra que Serena foi uma das primeiras a ter seu pensamento apropriado pelos comandantes do Filhos de Jacó. De maneira geral, seja na literatura de romance ou de ficção ou nas séries televisivas, o público é convidado a tomar o lugar dos personagens e a vivenciar a história por seus pontos de vista por meio de um processo de abdução. De acordo com Gomes (2017), a abdução consiste na inferência a fim de se obter a melhor interpretação sobre a narrativa, na tentativa de lograr uma explicação sistêmica para um acontecimento ou conjunto de acontecimentos. Assim, por tratar-se de um conteúdo seriado, a cada desfecho de episódio, o receptor/espectador da mensagem é imbuído a tentar destrinchar, abduzir o capítulo seguinte e imergir no enredo psicológico e denso da história. Ao contrário das narrativas seriadas tradicionais como o sitcom e a soap opera, a serialização de obras literárias, sobretudo de ficções futuristas que guardam um alto teor enigmático, induzem o público a ver cada episódio minuciosamente ou até o rever, no intuito de compreender os desdobramentos de longo prazo, descortinando os mistérios por trás dos elementos narrativos. Ademais, o modelo narrativo que constitui THT difere de uma estrutura tradicional em que os actantes possuem funções no processo muito bem delimitadas, seguindo a praxe do herói que trava um embate com o vilão, obtendo auxílio do ajudante em busca de um objeto-valor (GREIMAS, 1976). Com base nos ensinamentos de Reuter (2007), THT consiste numa narração homodiegética cuja perspectiva perpassa pela personagem protagonista, June, que narra a intriga ocorrida no momento em que acontece, como também se remete ao tempo psicológico que vem e vai sem obedecer a uma ordem cronológica.


Quanto aos actantes, eles assumem uma complexidade moral, psicológica e de emoções, sendo forçoso encaixá-los em uma única funcionalidade. Aqui, alguns antagonistas também são oprimidos pelo sistema e pela supressão de liberdades fundamentais que também os tornam vítimas ainda que em menor amplitude. É o caso, por exemplo, das esposas dos comandantes, com destaque para Serena Joy, que embora seja conivente ao regime totalitário, fundamentalista e patriarcal instalado, tendo ajudando, inclusive, a implantá-lo, também está descontente com a situação, o que somente pode ser abduzido no desenrolar do esquema canônico da narrativa, no encadeamento das ações a que Greimas (1976) define como dinâmica. Tabela 01 – Quadrado narrativo da ficção seriada distópica A tentativa do espectador de abduzir os improváveis colaboradores do sistema, quem é confiável ou não.

VÍTIMAS

ANTAGONISTAS

Desvendar o conflito da função exercida pelos personagens. Vítimas ou vilões?

Compondo o enredo, os conflitos presentes em The Handmaid’s Tale são terrenos propícios para a tentativa de abduzir e encontrar respostas plausíveis no que concerne às tensões desencadeadas na série. A título de exemplo, tem-se o conflito narrativo de cunho moral e religioso, expressado por parte de alguns comandantes, como Fred, que demonstra incoerência e contradição ética entre o discurso que apregoa, pautado na moral religiosa e nos bons costumes, e o seu comportamento de fato. Muito embora comporte-se como um homem temente e obediente a Deus, que diante da esposa e da sociedade de Gilead, mantém conjunção carnal com Offred somente para fins de procriação, segundo as normas que regem o Estado, às escondidas frequenta o Palácio de Jezebel, como muitos líderes da nova república, obrigando sua aia a acompanhá-lo e a satisfazer-lhe os prazeres carnais, atentando às leis daquela sociedade e cometendo o tão condenado pecado da luxúria. O espectador é conduzido a abduzir sobre o caráter dos Filhos de Jacó e daquela sociedade, se é mesmo alicerçada no conservadorismo e no fundamentalismo religioso ou no falso moralismo. Ao fim da primeira temporada, o espectador também é convidado a supor diversas possibilidades quanto ao desfecho do conflito: June conseguirá escapar ao sistema opressor? Reencontrará seu marido? Resgatará sua filha? Ou estará deixando a casa do comandante Fred para um lugar pior? São incógnitas que deixam brechas para que o espectador formule suas apostas na tentativa de desvendar o código da narrativa seriada.


Outro conflito presente de maneira constante e, possivelmente por isso, o que permite maior abdução do público na construção do sentido macro que envolve o seriado, se refere ao embate dicotômico entre a busca pela liberdade feminina e a opressão masculina. Retomando o pressuposto greimasiano, no qual a narrativa é uma disputa entre sujeito e antissujeito em busca do mesmo objeto-valor (MENDES, 2013), podemos aferir que na trama de THT o objeto-valor que é desejado por protagonistas e antagonistas é a liberdade. Para o sujeito “mulheres”, a liberdade significa a retomada dos direitos perdidos durante o processo revolucionário e o retorno a um sistema social supostamente igualitário (esses pontos também podem ser vistos aqui como destinador e destinatário, respectivamente, de acordo com o pensamento greimasiano). Para os antissujeitos, os Filhos de Jacó, a liberdade feminina, uma vez cerceada e sob o controle dos seus comandantes, representa a retomada do crescimento populacional, a recolocação das mulheres em seu papel social primário, tal como fora, em seu entendimento, designado por Deus, e, em última instância, a afirmação de uma suposta soberania biológica. Imagem 01 – Ativista segura cartaz: “O Conto da Aia não é um manual de instruções”.

Fonte: Reprodução do Facebook de Margaret Atwood. Publicado originalmente em 23/01/2017.

Essa perspectiva aparece consonante com o momento político que a sociedade norte-americana tem enfrentado desde 2016, sobretudo com a retomada de crescimento de movimentos de extremadireita30,31 durante dois mandatos do ex-presidente Barack Obama, tido, 30 “'Sou nazista, sim': o protesto da

extrema-direita dos EUA contra negros, imigrantes, gays e judeus”. Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927>. 31

“Três mortos na jornada de violência provocada por grupos racistas norte-americanos”. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/12/internacional/1502553163_703843.html>.


por sua condição de origem um representante das minorias sociais, e que culminaram com a eleição de Donald Trump à presidência daquele país. Movimentos sociais em prol dos direitos femininos e das minorias foram às ruas um dia após a posse de Trump cobrar dele maior compromisso com a manutenção dos direitos humanos32. Em uma ação promovida pela organização não-governamental Marcha das Mulheres na cidade de Toronto, no Canadá, em janeiro de 2017, a própria autora da obra O Conto da Aia, Margaret Atwood, viu e fotografou ativistas que referenciavam sua obra como instrumento de luta pela igualdade de gênero e direitos humanos, como mostram as imagens a seguir. Imagem 02 – Ativista segura cartaz: “O Conto da Aia é uma ficção distópica, não um manual de instruções”.

. Fonte: Reprodução do Facebook de Margaret Atwood. Publicado originalmente em 23/01/2017.

Neste sentido, o debate trazido à esfera pública pela obra aborda a importância da manutenção dos direitos humanos e das minorias a partir da defesa da igualdade de gênero contra grupos opressores e detentores dos poderes dos capitais financeiro e moral. No nosso entendimento, este é o conteúdo que está oculto na forma de expressão adotada em THT, de uma ficção distópica de totalitarismo religioso em uma sociedade que busca a repovoação do planeta. Com isso, podemos construir nosso quadrado semiótico narrativo greimasiano a partir da seguinte base estrutural: 32 “Protesto de mulheres

contra Trump reúne dezenas de milhares nos EUA”. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/21/internacional/1485009994_849896.html>.


Imagem 03 – Quadrado semiótico em The Handmaid’s Tale. Feminismo (S1) Patriarcado (S2)

Direitos Humanos (-S1)

Machismo (-S2) Fonte: Elaboração Própria

A partir dessa estrutura optamos por evidenciar como instância de conflito a relação entre o Feminismo e o Machismo, sendo o primeiro o protagonista e o segundo o seu antagonista. Isto porque entendemos que esta oposição age de forma basilar para os demais conflitos existentes na série, bem como ela dirige as ações dos personagens ao longo da trama. Dessa forma, os ângulos do nosso quadrado semiótico narrativo greimasiano seriam formados pelo Feminismo (S1); pelo NãoFeminismo (S2), aqui representado pelo Patriarcado; pelo Machismo (S2); e pelo Não-Machismo (-S1), aqui visto como os Direitos Humanos, conforme a representação diagramática a seguir. Tabela 02 – Conflito entre elementos do quadrado semiótico em The Handmaid’s Tale. Posição

Elementos Narrativos Relações de conflito S1 x -S2 Feminismo x Machismo -S1 x S2 Direitos Humanos x Patriarcado Relações de oposição S1 & S2 Feminismo x Patriarcado -S1 & –S2 Direitos Humanos x Machismo Relações de complemento S1 + -S1 Feminismo + Direitos Humanos S2 + -S2 Patriarcado + Machismo Fonte: Elaboração própria.

As relações de complementaridade demonstradas por S1 + -S2 e S2 + -S2 refletem a ligação intrínseca que cada um desses elementos tem em relação ao outro com o qual forma par: o machismo como decorrente de uma tradição social baseada no patriarcado opõe-se diretamente ao feminismo como expoente da luta por direitos humanos e por igualdade social. Um exemplo da ligação S2 + -S2 em THT é claramente percebida no episódio 06, em um flashback de Serena Joy. Mesmo tendo sido mentora do ideário da “fertilidade como recurso nacional”, adotado pelos Filhos de Jacó, ela foi impedida de expor suas ideias para o conselho, formado apenas por homens.


A conversa que se segue após a sua saída, entre Fred e o comandante Putman, elucida bem a posição: [Putman] - Ela ficou chateada? [Fred] - Não, só frustrada. Ela está envolvida desde o começo. [Putman] - Bom, isso é culpa nossa. Nós demos mais do que elas podiam lidar. Focam tanto em buscas acadêmicas e ambições profissionais, nós as deixamos esquecer o verdadeiro propósito. Não acontecerá novamente. (Colchetes nossos)

Como exemplo da ligação complementar S1 + -S1, podemos destacar a união das aias no episódio 10 contra a execução de Janine/Ofdaniel, quando elas se opõem ao comando emitido por Tia Lydia. Por sua vez, nos eixos S1 & S2 e -S1 & -S2 apresentam as relações de oposição direta entre os conceitos. No primeiro (S1 & S2), o feminismo e sua concepção de igualdade entre gêneros têm como representante da sua ausência uma cultura paternalista, na qual às mulheres são destinados os papeis coadjuvantes, mesmo na construção das suas próprias histórias, quando, muitas vezes, não lhe são atribuídos papeis alguns, apagando sua presença na história. É o caso do discurso que envolve a atribuição de propriedade de uma aia à determinada família, como mencionado anteriormente. Como aponta Strauss (1997, p. 35) “um nome pode revelar muita coisa, tanto de quem o deu quanto de quem o porta”. Neste sentido, nomear uma mulher com a preposição “de” (of, em inglês) seguida do nome do homem, revela que ela é propriedade dele, e não da família à qual ela é enviada, revelando uma desigualdade de gênero mesmo dentro das casas dos comandantes. No segundo (-S1 & -S2) ocorre o mesmo efeito. O machismo se estabelece culturalmente e age de maneira agressiva e opressora sobre as minorias, principalmente nas mulheres, atribuindo a elas um discurso vitimista e de dependência do homem, ao passo que enaltece a conduta do indivíduo do sexo masculino na sociedade. Em oposição a ele, os direitos humanos buscam o rompimento deste ciclo cultural, seja por meio de leis universais de valorização da vida e de ações efetivas de defesa dos oprimidos. No âmbito da sociedade mundial representada em THT, percebesse que inúmeros países estabeleceram sanções comerciais e econômicas contra a República de Gilead devido aos desrespeitos à liberdade e à vida implantados contra a população, em especial contra as mulheres.


As relações de conflito, por sua vez, expõem o âmago da disputa simbólica presente na narrativa de The Handmaid’s Tale. Ao longo de toda a série é possível extrair inúmeros exemplos dos embates entre feminismo e machismo (S1 x -S2) e dos direitos humanos contra a cultura paternalista (-S1 x S2) exercida pelos comandantes do novo governo. A própria existência do Palácio de Jezebel é um deles, pois no local as mulheres são violentadas, mutiladas e obrigadas a consumirem álcool e outras drogas ilícitas a fim de satisfazerem os desejos dos comandantes e de outros homens apoiadores do atual regime que, ao saírem, voltam a propagar a moralidade social e a temeridade a Deus. Outro exemplo desse conflito é o simples fato de as mulheres serem proibidas de ler e escrever. Muito embora o tom distópico da narrativa nos leve a perceber que os ângulos do feminismo e dos direitos humanos são subjugados constantemente perante seus contrapontos, essa abordagem também desperta uma esperança de rompimento do modelo vigente. 4.

A maternidade e a função reprodutiva

A partir das relações de conflito extraídas do quadrado semiótico narrativo que utilizamos, podemos abduzir uma das questões de The Handmaid’s Tale: a maternidade Volvendo os olhos para a história da humanidade, a construção de espaços sociais tradicionalmente ocupados por homens e mulheres deu-se de acordo com as características atribuídas à natureza do feminino e masculino. Assim, enquanto ao homem traçou-se uma função social identificada com o mundo externo, à gerência do universo, à força, à razão e ao poder, o papel social designado às mulheres limitou-se à esfera privada, ao interior da casa, ao mundo da intuição, da emotividade e da passividade. Segundo os padrões impostos pela sociedade que criam paradigmas e modelos de mulher a serem seguidos, a função essencial do gênero feminino corresponde ao cumprimento do dever de ser mãe, dona de casa e esposa. Historicamente, em sociedades europeias e nas que decorreram de suas colonizações, é possível se verificar uma delimitação de papéis sociais considerados adequados para homens e mulheres conforme a “natureza” determinava. Em sociedades antigas, como a de Atenas, polis historicamente nomeada como berço da democracia, a mulher ocupava uma posição social inferior àqueles considerados cidadãos, pois somente gozavam de direitos os homens livres, da alta camada social e nascidos naquela própria cidade. Os demais segmentos sociais compostos por mulheres, escravos, estrangeiros e crianças eram socialmente marginalizados por não possuírem representatividade.


Enquanto os escravos e os estrangeiros eram designados aos trabalhos braçais, às mulheres destinavam-se os encargos domésticos que as preparavam para as funções sociais que lhes foram atribuídas como a maternidade e os cuidados do lar. As atividades mais nobres da sociedade ateniense, vinculadas ao exercício da reflexão como filosofia, política e artes, eram consideradas tradicionalmente masculinas. A essa nítida divisão dos espaços e atividades a serem ocupados entre os gêneros, atribuía-se a justificativa da naturalização da desigualdade com base nas diferenças biológicas. Assim, em decorrência da natureza feminina tida como frágil e passiva, a realização de determinadas atividades por mulheres era inconcebível, incluindo o acesso às primeiras letras e ao conhecimento. Estando limitado o horizonte da mulher, ela era excluída do mundo do pensamento, do conhecimento, tão valorizado pela civilização grega. Exceção feita às hetairas, cortesãs cujo cultivo das artes tinha como objetivo torná-las agradáveis companheiras dos homens em seus momentos de lazer, em suma a mulher grega não tinha acesso à educação intelectual (ALVES; PITANGUY, 2003, p. 12).

No que concerne à maternidade, até o século XVII era comum o modo negligente como pais e mães tratavam os filhos, demonstrando a partir da falta de convívio e de laços afetivos com a criança, uma notória indiferença. Embora se prevaleça a concepção de que o amor dos pais pelos filhos é incondicional e capaz de enfrentar renúncias pessoais, eles não pareciam dispostos a abdicar de si mesmos e da vida social que levavam para dedicar todo o tempo aos cuidados necessários para o bem-estar de um bebê. Assim, era preferível eximir-se das responsabilidades de criar e acompanhar os filhos a abrir mão das ambições pessoais. Os primeiros sinais de rejeição de pais e mães em relação às crianças se manifestavam na recusa da mãe em dar o seio, as mulheres, sobretudo, da alta sociedade consideravam indigno e “animalesco” para uma dama o ato de amamentar o próprio filho. Em nome do bom tom, declarou-se a amamentação ridícula e repugnante. [...] Mães, sogras e parteiras desaconselham a jovem mãe a amamentar, pois a tarefa não é nobre o bastante para uma dama superior. Não ficava bem tirar o seio a todo instante para alimentar o bebe. Além de dar uma imagem animalizada da mulher “vaca leiteira”, é um gesto despudorado (BADINTER, 1985, p. 97. Grifo da autora).


O receio de deformar os seios passou também a ser usado como argumento pelas mulheres da nobreza contra a amamentação. Se o aleitamento materno comprometia a vaidade feminina e representava à mulher um empecilho para manutenção da boa aparência física, ele também atrapalhava a relação conjugal. Segundo Badinter (1985) na época existia uma crença muito difundida pelos médicos, de que durante a fase de aleitamento, os casais deveriam suspender as relações sexuais sob a alegação de que o esperma poderia azedar o leite e causar danos à saúde da criança. Assim, os maridos teriam de enfrentar um longo período de abstinência sexual durante o aleitamento materno, em consequência eles acabavam também assumindo posição contrária à amamentação para não serem forçados a abdicar de seu prazer sexual. Somente em meados do final do século XVIII, com a disseminação das ideias de igualdade e felicidade, herança do iluminismo, os filhos abandonam a imagem de estorvo na vida dos pais que, para não abdicarem das ambições pessoais, preferiam entregar a responsabilidade de criar, cuidar e educar os filhos a terceiros, sem nenhum vínculo sanguíneo. No fim do século XVIII, além de se atribuir maior importância à relação afetiva entre pais e filhos, a imagem autoritária do pai e seu poder supremo são abalados, uma vez que a mãe conquista mais autonomia no núcleo familiar, sendo depois da figura do pai a segunda maior autoridade perante os filhos e nas decisões de âmbito doméstico. Para Rousseau (apud BADINTER, 1985, p. 241-242) a mulher não deve fugir da sua condição natural de exercer a maternidade, mesmo que ela exija sacrifícios e abdicações pessoais e de aceitar a submissão ao homem. A verdadeira mulher traçada por Rousseau deve ser educada para dedicar a vida em função dos outros (pai, marido e filhos) e se inclinar para o universo interior que corresponde ao serviço da casa e aos cuidados do marido. Para o ideólogo da revolução francesa, os deveres da mulher são cuidar do lar, do marido e da prole. As mães agora desfrutavam de igual poder em relação aos pais na criação dos filhos, devendo enxergar a maternidade como vocação e tornarem-se dedicadas aos cuidados maternos. A natureza feminina é, propriamente falando, “alienada” pelo e para o homem. Sua essência, sua finalidade, sua função são relativas ao homem. A mulher é feita não para si mesma, mas “para agradar ao homem... para ceder e para suportar até mesmo a sua injustiça”. Logo, essa mulher será uma mãe, pronta a viver pelo e para o filho (BADINTER, 1985, p. 242. Grifo da autora).


A valorização da criança a partir dos ideais de igualdade e fraternidade contribuiu para que a figura da mãe dedicada ao filho passasse a ser exaltada e imitada por mulheres de diferentes classes sociais. A maternidade começa a ser encarada como um dever inerente à natureza feminina e a “verdadeira” mãe deve sacrificar-se e abdicar de si mesma em nome do amor e devoção ao filho. Os seguidores da nova ideologia exaltam as doçuras do ato de ser mãe e pregam que as mulheres agora devem ter satisfação em cuidar e amamentar seus filhos, relegando os serviços da ama-de-leite. A mulher assume a figura doce e maternal identificada com Maria em substituição à imagem diabólica e pecadora de antes, identificada com a figura de Eva. Agora se cria em torno dela, a representação de uma figura delicada, servil e companheira. Neste sentido, o arco narrativo apresentado nesta primeira temporada de The Handmaid’s Tale bebe da fonte da mentalidade patriarcal e da hierarquização do poder do homem sobre a mulher tão arraigados na sociedade, o que resulta numa perspectiva diegética que dialoga em profundidade com a realidade em que os espectadores vivem. Na narrativa seriada, a mulher perde o status quo de pessoa humana, sujeito de direitos e protagonistas dos atos da vida civil, sendo reduzida a uma função biológica, o de procriar. A maternidade, desta feita, passa a ser o único papel social da mulher na República de Gilead, concebida como uma dádiva divina. A maternidade não como uma manifestação do livre-arbítrio e uma escolha voluntária da mulher, mas tão somente como uma imposição estatal, uma violência institucional que dita às mulheres que ser mãe lhes é a única ação dignificadora possível para o gênero feminino, para o “sexo inferior”, o outro do homem. Em face da epidemia de infertilidade que se alastrara pelo mundo, o endeusamento da maternidade é auferido em muitas passagens da narrativa diegética, tal como na fala de Janine, uma das aias, que após ter concebido uma filha saudável para o seu comandante, revela à Offred o fato de que teve um bebê dos bons, o que lhe dava a condição de poder fazer o que quiser, inclusive, tomar sorvete. Os únicos momentos em que as aias logravam uma situação mais autônoma e dignificante, de fato, eram quando conseguiam cumprir o dever que lhes foi imposto, o destino predeterminado para suas vidas: o de serem reprodutoras. No terceiro episódio, é perceptível uma mudança de tratamento brusca da esposa do comandante Waterford, Serena, para com Offred. Se ao longo do enredo, aquela só hostilizava a aia, a partir da mínima suspeita de que sua serva pudesse estar grávida, Serena torna-se doce e gentil, chegando a confessar à Offred que ela lhe


representava um lindo milagre, o milagre divino de conceber um filho, de ser a escolhida por Deus. O comportamento cortês muda repentinamente quando Offred conta-lhe que não está esperando um filho, passando a ser trancafiada em um quarto como punição. Na República de Gilead em alusão às sociedades mais conservadoras e falocêntricas, a infertilidade nunca é atribuída ao homem que é eximido de toda e qualquer culpa. O ato falho é sempre de responsabilidade da mulher. Posto isso, a narrativa ficcional lança luz à problematização de como as instâncias da sociedade representam a figura feminina, construindo sua identidade social em processos definidos histórica e culturalmente, dizendo quem e o que as mulheres devem ser, resultado de sua “natureza”. 5.

Conclusão (ou a importância da sororidade entre as aias)

Depreende-se da análise da narrativa seriada, The Haindmaid’s Tale, um enredo centrado na opressão perpetrada por um sistema patriarcal e teocrático contra os direitos da pessoa humana, subjugando, sobretudo, os segmentos mais vulneráveis da população, o que inclui as mulheres. Em tal sociedade distópica, a mulher perde o status quo de pessoa humana, sujeito de direitos e protagonistas dos atos da vida civil, sendo reduzida à função biológica de procriar. Ao longo da narrativa ficcional, os espectadores podem lançar-se à tentativa de abduzir a lógica interna da trama que evidencia a relação de conflito entre os protagonistas simbólicos: feminismo/direitos humanos e do outro lado, os antagonistas: machismo/sistema patriarcal. Não é aleatoriamente que a cena do último episódio da primeira temporada de The Handmaid’s Tale correspondente ao maior ato de resistência das aias que desobedecem às ordens do sistema opressor e patriarcal, é embalada pela música de fundo da cantora, que fora ativista dos direitos civis dos negros nos EUA, Nina Simone, intitulada Feeling Good. Na ocasião, as aias são recrutadas para o habitual ritual de “salvamento”. Contudo, elas se surpreendem ao deparar-se com a figura de Janine/ Ofdaniel, que deverá ser condenada à pena de apedrejamento sob a acusação de atentar contra a integridade física de uma criança e colocá-la em perigo. Após terem se munido de pedras, atendendo aos imperativos de Tia Lydia, mesmo estando suscetíveis a sanções por desacato à autoridade da Tia e do sistema, as aias rebelam-se, recusando-se a matar Janine. Ato considerado como a mais importante manifestação de empoderamento feminino coletivo e sororidade entre mulheres, verificada na série.


De modo simbólico, as aias em solidariedade à Janine, despertam a consciência de que as ações tomadas individualmente podem resultar em feitos deletérios a uma dada coletividade. Quando as mulheres passam a se perceber enquanto uma unidade, rompe-se um dos preceitos do patriarcado que cristalizam e mantêm as bases da relação de poder hierárquica de homens sobre as mulheres, qual seja: o pensamento arraigado e naturalizado de que as mulheres são rivais e inimigas umas das outras. Uma invenção da lógica patriarcal para aprisionar as mulheres na condição de oprimidas. O que pode ser auferido na narrativa seriada, logo no seu primeiro episódio, quando June/Offred profere que “não há amigas aqui. A verdade é que vigiamos umas às outras”, referindo-se à desconfiança nutrida por Ofglen, a priori. Esta, por sua vez, confirma “eles fazem isso muito bem. Fazem-nos desconfiar umas das outras”. Ainda no último episódio, June é a primeira a deixar cair a pedra que deveria ser lançada contra Janine, e quando julgava está sozinha em seu ato de resistência, June presencia um exército de mulheres taciturnas que compartilham de sua iniciativa e também se eximem de apedrejar Janine. Com um arco emocional forte, as aias retornam do salvamento, marchando juntas, em comunhão. O que sugere a reflexão de que a desconstrução de um regime opressor como o patriarcado só pode ser trilhada por meio do florescer do sentimento de empatia entre mulheres e da auto-organização como enfrentamento ao sistema. Com fulcro no pensamento de Beauvoir (2000), não há salvação individual, assim a emancipação feminina não se dá isoladamente, em face da impossibilidade de se tornar livre se ao redor as outras não o são. Desta feita, a narrativa seriada lança luz sobre o empoderamento das mulheres que só pode existir coletivamente, já que ninguém se liberta sozinho/a e autonomia perpassa pelo autoconhecimento de que a mulher pode escolher seu próprio destino não sendo condicionado ao reducionismo biológico.


Referências Audiovisuais AMERICAN crime. Direção: John Ridley. Produção: John Ridley, Michael J. McDonald, Nova York: ABC, 2015: Disponível em <https://www.netflix.com/title/80024103>. Acesso em 18 nov. 2017 AMORTEAMO. Criadores: Newton Moreno, Cláudio Paiva, Guel Arraes. Diretora: Flávia Lacerda. Produção: Câmera Multicâmera. Exibição: Emissora de televisão original Brasil Rede Globo. Brasil. Transmissão original: 5 episódios de 45 minutos 8 de maio – 5 de junho de 2015. BIG little lies. Direção: Jean-Marc Vallée. Produção: Barbara A. Hall, Liane Moriarty. Monterey: HBO, 2017. Disponível em: <https://br.hbogola.com/itemView/e056da0ed818-442a-8467-f6fcb3121b6c>. Acesso em: 11 nov. 2017. CARRIE. Direção: Direção: Brian De Palma. Produção: Paul Monash. Los Angeles, MGM: 1976. 1h 38m. Disponível em: <http://www.mgm.com/#/our-titles/336/Carrie-(1976)>. Acesso em: 12 nov. 2017. EASY a. Direção: Will Gluck. Produção: Will Gluck, Zanne Devine. Culver City: SONY PICTURES, 2010. 1h 32min. Disponível em: <http://www.sonypictures.com/movies/easya/>. Acesso em: 12 nov. 2017. HANDMAID’S Tale, The. Produzida por Sheila Hockin, Mike Backer, Margaret Atwood entre outros. Com Elisabeth Moss, Joseph Fienes, Yvonne Strahovski e outros. Canadá. Hulu & MGM Television. Temporada 01; 2017. MEAN girls. Direção e Produção: Lorne Michaels. Los Angeles: Paramount Pictures, 2004. 1h 37min. Disponível em: <https://www.netflix.com/watch/60034551?trackId=14277281&tctx=0%2C0%2C7e16e07 5-c4ed-45af-82e5-26dc92daa9ee-48152535>. Acesso em: 11 nov. 2017. SIDNEY white. Direção: Joe Nussbaum. Produção: James J. Robinson. Universal City: Universal Pictures, 2007. 1h 48min. Disponível em: <https://www.uphe.com/movies/sydney-white>. Acesso em: 12 nov. 2017. 13 reasons why. Direção: Tom MacCarty, Helen Shaver, Kyle Patrick Alvarez, Gregg Araki, Carl Franklin, Jessica Yu. Produção: Joseph Incaprera. Scotts Valley, NETFLIX: 2017. Disponível em: <https://www.netflix.com/Kids/title/80117470>. Acesso em: 09 nov. 2017. Referências bibliográficas ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BALOGH, Anna Maria. Conjunções, disjunções, transmutações: Da literatura ao cinema e à TV. São Paulo: Annablume: ECA-USP,1996. __________Anna Maria. Minisséries: La créme de la créme da ficção na tv. Disponível em: http://www.usp.be/revistausp/61/09=annamaria.pdf Acesso em: 07/06/2013 BARTHES, R. Fragmentos do Discurso Amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.


CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1987. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ESQUENAZI, Jean-Pierre. As séries televisivas. Coimbra: Texto & Grafia, 2011. FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho: Algumas notas históricas e outras tantas folclóricas em torno do sobrenatural no passado recifense. Prefácio de Newton Moreno; bibliografia de Edson Nery da Fonseca.6ed.São Paulo: Global,2008. KOZLOFF, Sarah. Narrative Theory and Television. In: Allen, Robert C. Channels of Discurse. Chapel Hill: University of North Carolina Press, [1987] 1992, p. 67-100. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1995. GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília: UnB, 2009. GÊNESIS. In: BÍBLIA Sagrada. Nova tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Paulinas Editora, 2005. GOMES, Marcelo Bolshaw. Quem é o culpado? O que os seriados policiais da TV nos ensinam. Revista Culturas Midiáticas. Ano IX, n. 17 - jul-dez/2016 - ISSN 1983-5930 Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/cm> última acesso em 24/06/2017. ____ A narrativa midiática – mediações dos acontecimentos. In Lugar Comum – Estudo Narrativos III. João Pessoa, Marca de Fantasia, janeiro de 2017. Disponível em: <https://www.academia.edu/31345404/lugar-comum-marcelo-bolshaw.pdf> última acesso em 24/06/2017. GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. Tradução de H. Osakape e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix/EdUSP, 1976. ______. Les actants, les acteurs et les figures. In: ________ Du Sens II: essais sémiotiques. Éditions du Seuil: Paris, p. 49-66, 1983. _______. Da Imperfeição. Hacker editores: São Paulo, 2002. GREIMAS, A. J e COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. GREIMAS, A. e FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1993. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009. HJARVARD, Stig. Midiatização: conceituando a mudança social e cultural. Matrizes, São Paulo, v.8, n.1, p. 21-44, jan/jun. 2014. MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia.6ed.Rio de Janeiro: Editora UFRJ,2009 MENDES, Conrado Moreira. A noção de narrativa em Greimas. E-COM. Belo Horizonte, v. 06, p. 01-12, 2013. MITTELL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. Revista MATRIZes, Vol. 5, No 2. São Paulo: USP, 2012. Disponível em: <http://200.144.189.42/ojs/index.php/MATRIZes/article/view/8138/7504> última acesso em 24/06/2017.


ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da mídia. Genebra, 2000. Disponível em: <http://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_media_port.pdf >. Acesso em: 18 nov. 2017. PEIRCE Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária,1984. PUREZA, Gabriel Machado. O filme no contexto da circulação midiática: estudos de caso. In: Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, 1, São Leopoldo, RS. Anais... Disponível em: < http://midiaticom.org/anais/index.php/seminariointernacional/article/view/131/115>. Acesso em: 10 nov. 2017. REUTER, Y. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: Difel, 2002. SILVA, M. V. B. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na contemporaneidade. Galaxia (São Paulo, Online), n. 27, p. 241-252, jun. 2014. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542014115810> última acesso em 24/06/2017. STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras. A busca pela identidade. São Paulo: Edusp, 1997. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva,2006. Referências Jornalísticas BUSCAS no google sobre... Portal IG, ago. 2017. Disponível em: < http://gente.ig.com.br/cultura/2017-08-01/13-reasons-why-suicidio.html>. Acesso em: 20 nov. 2017. BUSCATO, Marcela. Série 13 Reasons Why estimulou ideias de suicídio, diz estudo. Época, jul. 2017. Disponível em: < http://epoca.globo.com/saude/checkup/noticia/2017/07/serie-13-reasons-why-estimulou-ideias-de-suicidio-diz-estudo.html>. Acesso em: 10 nov. 2017. CASTRO, Fábio de. 13 Reasons Why provocou aumento de 19% em buscas sobre suicídio na internet, diz estudo. Estadão, jul. 2017. Disponível em: < http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,13-reasons-why-aumentou-em-19-buscasna-internet-sobre-suicidio,70001916924>. Acesso em: 20 nov. 2017. DIÓGENES, Juliana; TOLEDO, Luiz Fernando. Busca por centro de prevenção ao suicídio cresce 445% após série. Estadão, abril. 2017. Disponível em: < http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,busca-por-centro-de-prevencao-ao-suicidiocresce-445-apos-serie-da-netflix,70001734246>. Acesso em: 20 nov. 2017. ESTEVES, Luiz. Organização de saúde mental diz que série é irresponsável. Observatório do Cinema, UOL, abril. 2017. Disponível em: < https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/series-e-tv/2017/04/13-reasons-whyorganizacao-de-saude-mental-americana-diz-que-serie-e-irresponsavel>. Acesso em: 19 nov. 2017. MOREIRA, Isabela. 3 razões para ver e outras 3 para não ver '13 Reasons Why'. Galileu, maio. 2017. Disponível em:


<http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2017/05/3-razoes-para-ver-e-outras3-para-nao-ver-13-reasons-why.html>. Acesso em: 20 nov. 2017. RISTOW, Fabiano; BRANDÃO, Liv. 13 Reasons Why vira alvo de polêmica e levanta a questão: como a ficção deve abordar o suicídio? O Globo, abril. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/13-reasons-why-vira-alvo-de-polemicalevanta-questao-como-ficcao-deve-abordar-suicidio-21189561>. Acesso em: 10 nov. 2017. ROSSO, Larissa; MELO, Itamar. 13 Reasons Why e o suicídio de jovens: o que os especialistas veem de positivo e negativo na série. Gauchazh, abril. 2017. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2017/04/13-reasons-why-e-osuicidio-de-jovens-o-que-especialistas-veem-de-positivo-e-de-negativo-na-serie9775601.html>. Acesso em: 10 nov. 2017. SÉRIE ‘13 Reasons Why’ aumenta... Folha de S. Paulo, jul. 2017. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/07/1905890-serie-13-reasons-whyaumentou-buscas-relacionadas-ao-suicidio.shtml>. Acesso em: 20 nov. 2017. SÉRIE ‘13 REASONS Why’ fez pedidos... UOL, abril 2017. Disponível em: < https://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2017/04/06/serie-13-reasons-why-fezpedidos-de-ajuda-ao-cvv-dobrarem.htm>. Acesso em: 20 nov. 2017. VIGGIANO, Giuliana. Série “13 Reasons Why” aumentou o interesse por suicídio, diz pesquisa. Galileu, ago. 2017. Disponível em: < http://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2017/08/serie-13-reasons-whyaumentou-o-interesse-por-suicidio-diz-pesquisa.html>. Acesso em: 20 nov. 2017. '13 REASONS WHY’ aumenta busca por ajuda em combate ao suicídio. Catraca Livre, abril. 2017. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/geral/saude-bem-estar/indicacao/13reasons-why-aumenta-busca-por-ajuda-em-combate-ao-suicidio/>. Acesso em: 20 nov. 2017.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.