Relatório da Comissão de Defesa de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj - 2015

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RELATÓRIO ANUAL DA

Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj

2015


EXPEDIENTE Coordenação Antônio Pedro Soares Marielle Franco

Edição Renata Souza Textos Antônio Pedro Soares Marielle Franco Tatiana Lima Entrevistas Bruno Villa Isabel Lessa Júlia Igreja Renata Souza Tatiana Lima Revisão Bruno Villa Renata Souza Luna Costa Fotografias e vídeo Leon Diniz Foto Capa Ato de mulheres pela descriminalização do aborto Leon Diniz

Diagramação e Arte Evlen Lauer Impressão Gráfica Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro


COMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA (CDDHC) DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

COMPOSIÇÃO: 2015 Presidência CDDHC Deputado Estadual Marcelo Freixo Vice-Presidência CDDHC Deputado Estadual Edson Albertassi Membros titulares Deputado Estadual Filipe Soares Deputada Estadual Martha Rocha Deputada Estadual Enfermeira Rejane Membros suplentes Deputado Estadual Flávio Bolsonaro Deputado Estadual Carlos Minc Deputado Estadual Flávio Serafini Deputado Estadual André Lazaroni Deputado Estadual Jorge Felippe Neto

Equipe Técnica: Antônio Pedro Soares Dejany Santos Evelyn Melo Silva Júlia Igreja Marielle Franco Michelle Lacerda Rossana Tavares Sidney Teles Valdinei Medina Estagiários: Natália Sant’Anna (Direito) Vinícius Melo (Direito) Contribuição da Equipe do Mandato Marcelo Freixo



Índice APRESENTAÇÃO

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1. A NECESSIDADE DE AVANÇAR: COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DA ALERJ 11 1.1. Papel da CDDHC

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1.2. Grupo de reflexão e discussão sobre os casos

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1.3. O papel da engenharia na ampliação dos direitos humanos no estado do Rio de Janeiro | Por Celso Avellar 1.4. Ocupa Direitos Humanos

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2. AS MULHERES E A VIOLAÇÃO DE SEUS DIREITOS HUMANOS 2.1. Direitos reprodutivos das mulheres

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2.2. Preconceito impede o atendimento de gestantes com HIV

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2.3. O acirramento da criminalização das mulheres 23 2.3.1. Entrevista: Fernanda Garcia | “O aborto é uma marca que a mulher carrega por toda vida, ela não faz isso feliz” 24 2.4. Mulheres no Sistema Prisional 26 2.4.1. Mulheres grávidas presas: o cotidiano de sofrimento e risco de vida para mães e bebês | Por Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura 2.5. Policiais mulheres assediadas sexualmente

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3. CIDADE E REGIÃO METROPOLITANA: IMPACTOS SOCIAIS DAS OBRAS OLÍMPICAS 3.1. O Caju no contexto do Projeto Porto Maravilha 37 3.1.1. Ocupa Direitos Humanos no Caju 40 3.1.2. Entrevista: Maria de Fátima da Silva | “Estamos à mercê de uma destruição psicológica” 3.1.3. Iniciativas da CDDHC 43 3.2. Justiça Ambiental e Saneamento na Região da Baía de Guanabara | Por Ana Lúcia Britto 3.2.1. A revitalização da Marina da Glória 48 3.2.2. Entrevista: Alessandro Zelesco | “Cidade Olímpica é um discurso fora da realidade” 3.3. Direito dos Povos e comunidades tradicionais

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3.4. Violência Homo, Lesbo, Bi e Transfóbica 54 3.4.1. Entrevista: Thiago Bassi | “A igualdade de direitos dever ser a união de todas as letrinhas LGBTTs” 59 3.4.2. Entrevista: Gilmara Cunha | “Deixe-me existir” 61 3.5. Intolerância Religiosa 64 3.5.1. Entrevista: Ivanir dos Santos | “A intolerância religiosa é uma ameaça à democracia” 3.6. Juventude e a cultura do medo

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3.6.1. Mobilização pelo direito à cidade 72 3.6.2. Entrevista: Thainã Medeiros | “A criminalização transforma ‘justiceiro’ em herói”

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4. SEGURANÇA PÚBLICA: A BARBÁRIE NÃO É SOLUÇÃO 4.1. Casos emblemáticos de violações dos Direitos Humanos

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4.2. Atendimento a policiais e seus familiares 89 4.2.1. Casos emblemáticos de policiais 91 4.2.2. Audiência Pública: Condições de Trabalho dos Policiais

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4.3. Sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas | Por Ibis Silva Pereira 4.4. No Complexo do Alemão, quem vai à escola é a pacificação

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4.5. Relatório de Execuções Sumárias da Anistia Internacional 100 4.5.1. Até quando, Acari? 102 4.5.2. Entrevista: Gilmara Coutinho | “A polícia quase destruiu os sonhos da minha filha” 4.5.3. Mães de Acari: após 25 anos, o mesmo clamor por Justiça 104 4.5.4. Entrevista: Tereza de Souza Costa e Dona Ana | “Dizem que crime prescreveu, mas a nossa dor não” 105

5 . SISTEMA PENITENCIÁRIO DO RIO DE JANEIRO

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5.1. Impactos da crise hídrica no cárcere 110 5.1.1. Alimentação inadequada 110 5.2. Audiência de Custódia

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5.3. Privatização dos presídios

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5.4. Entrevista: José de Jesus Filho | “Não há vantagens na privatização de presídios” 5.5. O direito a visitar e ser visitado: carteirinha

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5.6. Agora é lei: Fim da revista íntima vexatória

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5.7. Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro 119 5.7.1. Juventude privada de liberdade 120 5.7.2. Audiência Públicas da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos 5.7.3. Retrocesso na redução da maioridade penal 123 5.8. Entrevista: Raphael Calazans| “Temos na verdade a própria militarização dos direitos humanos” 125

6. CONCLUSÃO

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A Subcomissão da Verdade nos Tempos de Democracia Mães de Acari

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APRESENTAÇÃO

Por uma cidade mais justa

O

ano de 2015 foi marcado pela forte reivindicação pelo direito à cidade. Não à toa, já que a luta para existir na cidade é cotidiana, uma vez que, historicamente, os processos de urbanização se caracterizam pela exclusão da pobreza. A desigualdade na ocupação física da cidade se revela de forma mais enfática ao analisar o valor social agregado a cada território, a forma de tratamento e serviços oferecidos à população. Dessa forma, já era previsto o descontentamento com governos e governantes diante das tentativas de retirada de direitos fundamentais previstos na Constituição, como o direito à vida e à moradia digna. A opção pelo desgoverno gerou diversas resistências que se expressaram de diferentes maneiras no cenário social e cultural do estado do Rio de Janeiro. Se houve o avanço do conservadorismo na política no cenário nacional, que levou ao retrocesso de garantias de direitos tais como a redução da maioridade penal, a revisão do Estatuto do Desarmamento, bem como o projeto que dificulta o acesso ao aborto legal à mulher vítima de estupro. Também foi possível observar as ruas voltando a ser o palco de mobilizações, com especial protagonismo de mulheres, em um crescente despertar feminista como há muito tempo não se via em todo o Brasil. Esse fato prova que as manifestações, iniciadas em junho de 2013, ainda ecoam sobre o cotidiano de nosso país, principalmente no Rio de Janeiro. Portanto, se por um lado, o ano de 2015 trouxe desalento, por outro, também demonstrou que diante das adversidades existe espaço para luta que deve ser travada de forma criteriosa, criando novas formas de pensar e atuar. Há que se chamar a atenção ainda sobre a ampliação das ações no campo penal, com forte ruptura das garantias fundamentais trazidas no texto constitucional brasileiro. A operação Verão no estado do Rio de Janeiro, iniciada em 2015, ilustra de maneira qualificada este estado de coisas. A operação tomou como base de atuação a detenção antecipada, a uma suposta prática de delitos, de jovens negros, pobres e moradores de favelas e periferias. Uma política pública, calcada na produção do medo, que enfatiza a discriminação, segregação e exclusão social daqueles que possuem baixo poder aquisitivo. Aliado a isto, houve a chamada racionalização dos meios de transportes que encerrou o funcionamento de diversas linhas de ônibus que trafegavam de bairros pobres da zona norte para a zona sul da cidade. Trata-se de uma disputa simbólica que delimita quem são os donos da cidade e quem nela pode circular. Mesmo diante deste quadro, há conquistas a se comemorar em 2015. Porque o Rio de Janeiro despertou com um Amanhecer Contra a Redução, atividade desenvolvida pela juventude que não aceita o seu encarceramento prematuro com uma lógica punitivista, além das mobilizações do movimento de mulheres contra o Projeto de Lei


5069, que dificulta o acesso ao aborto legal à mulher vítima de estupro. Outra luta importante foi encabeçada por profissionais e usuários da rede de saúde mental que foram contra a nomeação do psiquiatra Valencius Wurch, denunciado por violações aos direitos humanos enquanto diretor da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, para o cargo de Coordenador Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Estas foram algumas iniciativas que demonstram a capacidade de mobilização, força e resistência dos movimentos sociais. A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania (CDDHC) da Alerj desenvolve um trabalho institucional em que a prioridade é o investimento em canais de acolhimento, atendimento e promoção de audiências públicas. Sendo assim, atuou no acompanhamento das manifestações de rua, em atendimentos de casos específicos e na própria realização de audiências públicas, que foram fundamentais para importantes progressos no debate coletivo de ações no âmbito da garantia dos direitos previstos na Constituição. Tudo isso graças ao diálogo permanente com pessoas e movimentos que lutam por um Rio de Janeiro mais humano e democrático. Essa parceria gerou uma agenda de promoção de direitos e de incentivo à transparência e participação social, inclusive no que diz respeito ao trabalho no Parlamento Fluminense com a apresentação de projetos de leis, emendas constitucionais e indicações legislativas importantes para o avanço e desenvolvimento dos direitos humanos no Rio de Janeiro. O Dia Internacional dos Direitos Humanos, comemorado em 10 de dezembro, marcou vitórias pontuais em 2015. Nesta mesma data, além de aprovarmos o projeto de lei que proíbe o uso de algemas durante o trabalho de parto de presas e internas dos Sistemas Prisional e Socioeducativo, realizamos o Festival Todo Mundo Tem Direitos. O evento, que reuniu cerca de 50 mil pessoas no Parque de Madureira, foi possível por conta da parceria entre a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, a Justiça Global e a Anistia Internacional. Coletivos de cultura de rua e artistas da música popular se doaram com seu talento e criatividade para dar o seguinte recado: Os direitos humanos são o caminho para a construção da democracia que queremos. Tanto a atuação da CDDHC frente às violações de direitos humanos, quanto as conquistas para garantir uma cidade mais justa não seriam possíveis sem o apoio e a mobilização permanente de tantas pessoas que compartilham desde denúncias a sonhos, como o de observar a defesa da dignidade humana no centro de todas políticas públicas. Por isso, toda a equipe da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj agradece especialmente a todas e todos parceiros de luta cotidiana. Na conjuntura local, a reta final dos preparativos da cidade do Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos de 2016 também merece atenção. As diversas violações de direitos humanos observadas nos últimos anos, tais como remoções forçadas, repressão a camelôs e obras de grande impacto socioambiental, entre outros, tendem a se agravar e a ser cada vez mais violentas diante da proximidade do megaevento esportivo. Por isso, este ano que se inicia também promete muita luta. Continuemos juntos em 2016! Deputado Estadual Marcelo Freixo Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj


Introdução

A

s violações de direitos humanos continuam ocorrendo de forma sistemática a cada ano. Os dados divulgados pelo 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública1 revelam que por detrás da imagem de um país pacífico, há o fato de o Brasil se apresentar como uma sociedade violenta provedora de políticas públicas ineficientes. Anualmente, cercar de 60 mil mortes são cometidas de forma violenta2 e intencional. Destas, 30 mil são de jovens entre 15 a 29 anos, sendo que 77% das vítimas são negros. Esse quadro revela o enorme desafio de se avançar em ações de defesa dos direitos humanos que deem conta das emergências relativas às violações cotidianas, além de propor iniciativas proativas e preventivas. Não por acaso, cabe à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (CDDHC Alerj) apresentar à população fluminense o trabalho desenvolvido ao longo do ano de 2015. Por isso, o presente relatório anual foi organizado metodologicamente com uma abordagem dos temas de maneira mais humana, com o intuito de corporificar com sensibilidade a frieza dos dados estatísticos de violações. Assim, há entrevistas com pessoas que de forma direta ou indireta tiveram seus direitos violados. Há ainda artigos analíticos de parceiros da CDDHC sobre os assuntos elencados neste relatório. Além disso, o documento aborda os encaminhamentos efetivados pela CDDHC e a realização de audiências públicas. Desse modo, o relatório anual da CDDHC Alerj apresenta-se da seguinte maneira: O primeiro capítulo intitulado “A necessidade de avançar: Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj” busca delimitar o papel da CDDHC e apresentar o trabalho concreto realizado no cotidiano de sua equipe técnica. Há o esforço de uma breve análise quantitativa e qualitativa dos atendimentos realizados. O capítulo também revela o investimento na qualificação pessoal, material e técnica da estrutura oferecida pela CDDHC à população. O segundo capítulo, sob o título “Violação dos direitos humanos das mulheres”, pretende abordar a crescente demanda relativa aos direitos reprodutivos das mulheres, com ênfase no debate sobre as gestantes que convivem com o vírus HIV e a perda gestacional. Há ainda uma entrevista sobre o avanço da criminalização do aborto e um artigo do Mecanismo da Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro sobre a situação das mulheres grávidas no Sistema Prisional. Ainda com relação às violações institucionais, há a abordagem sobre o assédio sexual sofrido por policiais mulheres no âmbito da corporação.

1 Disponível em <http:// www.forumseguranca.org. br/storage/download// anuario_2015.retificado_.pdf>.

O terceiro capítulo “Cidade e Região Metropolitana” busca abordar os problemas relativos à cidade às vésperas de um megaevento esportivo como os Jogos Olímpicos de 2016. O relatório demonstra as intervenções urbanas sofridas com as obras do Porto Maravilha e o abandono do Caju, favela que possui 40% da população da área portuária. Há ainda um artigo sobre justiça ambiental e uma entrevista sobre a revitalização da Marina da Glória e seu questionável legado olímpico. Ainda no âmbito dos

2 No Brasil, de acordo com o Mapa da Violência para cada jovem branco que morre assassinado, morrem 2,7 jovens negros. Disponível em <http://www.mapadaviolencia. org.br/pdf2015/ mapaViolencia2015.pdf>.


impactos dos megaempreendimentos, será apresentado o debate sobre o direto dos povos e comunidades tradicionais, com ênfase na diligência realizada pela CDDHC na comunidade tradicional de Zacarias, em Maricá. Como não poderia faltar, o terceiro capítulo também pretende abarcar as diversas opressões vivenciadas na região metropolitana como o acirramento da violência e discriminação contra a população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti e Transexual, além da intolerância religiosa. O capítulo busca abordar ainda os temas relativos à juventude e a cultura do medo, além da mobilização na rua e nas redes sociais pelo direito à livre circulação na cidade. O quarto capítulo intitulado “Segurança Pública” busca apresentar o Rio de Janeiro de fato e não o do cartão postal. Em 2014, o estado amargou o 2º lugar nas estatísticas de pessoas mortas pela polícia. Não por acaso, os policiais também são as principais vítimas. Assim, o capítulo apresenta os casos emblemáticos de violações de direitos tanto de civis como de militares e atuação da CDDHC nos atendimentos e encaminhamentos relativos às vítimas e/ou familiares. Há ainda a abordagem da situação da Escola Caic Theóphilo de Souza Pinto, no Complexo do Alemão, que foi obrigada a conviver com uma Unidade de Polícia Pacificadora no pátio escolar. Nesta sessão, a favela de Acari também ganha espaço por conta de seu alto índice de execuções sumárias e dos 25 anos das Mães de Acari. O quinto capítulo “Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro” pretende abordar as situações de violações dentro do cárcere, desde a falta d`água à visitação. A vitória relativa à lei que põe fim à revista íntima e vexatória nas unidades de privação de liberdade é um dos temas apresentados. O capítulo traz ainda uma reflexão sobre a privatização dos presídios. O Sistema Socioeducativo é contemplado nessa sessão durante a abordagem sobre o retrocesso social representado pela redução da maioridade penal e encarceramento da juventude. O último capítulo “Conclusão: A Subcomissão da Verdade nos Tempos de Democracia Mães de Acari” busca expor o processo histórico e social que justifica a construção desta ferramenta institucional no âmbito da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Desejamos uma boa leitura.


1. A necessidade de avançar: Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj

A

Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj (CDDHC) prioriza a articulação de canais efetivos, institucionalizados ou não, para a intermediação entre sociedade e poder público a fim de alterar a fórmula tradicional de elaboração e implementação de políticas públicas. O objetivo principal é acompanhar e se manifestar sobre programas e ações relacionadas a todos os direitos humanos, e se necessário, agir em casos de violações. Dessa forma, ao assumir uma postura diferenciada de estabelecer uma arena de diálogo entre as diferentes esferas governamentais e a sociedade civil, a CDDHC viabiliza e amplifica a voz dos movimentos sociais. Diante das denúncias, solicitações de auxílio e acompanhamentos de casos, a CDDHC Alerj pode tomar medidas com o intuito de esclarecer ou solucionar fatos reportados sobre violações de direitos humanos a partir dos seguintes mecanismos: acolhimento das famílias vítimas de violações de direitos; requerimento de informações mediante ofício às instituições públicas envolvidas na denúncia; encaminhamento do usuário para órgãos responsáveis pelas diferentes setores governamentais; realização de audiência pública para convocar instituições públicas a prestar esclarecimentos, o que promove a discussão sobre o tema em busca do avanço na qualidade das políticas públicas. Em 2015, foram 809 atendimentos que se desdobraram em dois ou três outros atendimentos. Isso significa que, somente em relação aos novos casos no último ano, a Comissão realizou 2.427 atendimentos em diferentes esferas, tais como: desaparecimento; remoção; acesso ao sistema público de saúde; racismo; milícias; acesso a serviço público; assunto do idoso; violência familiar; violações dentro do sistema prisional; violações dentro do serviço público; abuso de autoridade; ameaça; violência policial; homicídios cometidos por policiais; intolerância religiosa; violações dentro do sistema socioeducativo; homofobia; bem como demandas jurídicos sociais. Excluem-se desse total os casos que ainda são acompanhados desde os anos anteriores. Dentre esses atendimentos acima mencionados, destacam-se aqueles relacionados ao sistema prisional com 137 novos casos, 33 pedidos de auxílio para liberação de carteira de visitação expedida pela Secretária de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), 74 casos de homicídio de policial, 22 casos de violência policial, além de demanda social de 42 novos casos. Para atender à população em casos de denúncias, reclamações ou pedido de auxílio e acompanhamento, a CDDHC possui os canais de comunicação e atendimento por meio do portal <http://www.alerj.rj.gov.br> e pelo telefone (21) 2588-1555. Além disso,


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realiza atendimentos presenciais nos dias úteis, das 10h às 17h, na sala 307, na sede da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, localizada na Rua 1º de Março, no Palácio Tiradentes.

1.1. O PAPEL DA CDDHC As demandas sociais apresentadas junto à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj resultaram na realização de 15 audiências públicas, em 2015, organizadas e executadas pela CDDHC. Dentre as consequências concretas geradas a partir do debate coletivo nas audiências públicas estão a apresentação e aprovação de leis de autoria do presidente da CDDHC, deputado estadual Marcelo Freixo, que prevê a troca da revista íntima manual pela mecânica para pôr fim à revista vexatória e degradante de visitantes em unidades prisionais e no sistema socioeducativo; a obrigatoriedade do governo em construir uma escola para cada unidade do sistema socioeducativo erguida; o uso do nome social pela população transsexual; a realização das audiências de custódia para que os presos em flagrante sejam levados à presença do juiz em até 24h, para evitar detenções desnecessárias e maus tratos; criação de um programa de assistência de vítimas da violência. Além disso, a criação da Frente Parlamentar em Defesa e Fortalecimento da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, presidida por Marcelo Freixo. O ano de 2015 foi crítico no que diz respeito à segurança pública. Depois de um período de queda, o número de mortes decorrentes de intervenção policial, os antigos autos de resistência, voltou a crescer. Fato este que não por mera coincidência foi acompanhado de um grande número de homicídios de agentes policiais. A política de segurança pública do Rio de Janeiro, que segue baseada no confronto bélico, produziu vítimas em todos os campos sociais: temos a polícia que mais mata, mas também a que mais morre do mundo. Sendo assim, a Comissão de Direitos Humanos atendeu aos familiares vítimas de violência do Estado, inclusive de policiais assassinados. Em todos os casos, a Comissão viabilizou atendimento jurídico, psicológico e o acompanhamento da apuração dos crimes. Há o entendimento de que a lógica de guerra às drogas é um equívoco, já que está muito longe de atingir aos objetivos declarados. Países que no passado encamparam essa política já a abandonaram. Essa lógica não elimina o comércio ilegal de drogas e/ou o consumo. Pelo contrário, alimenta a violência, o tráfico de armas, a corrupção nos sistemas político e econômico. Essa é uma guerra em que não há vencedores e não para de produzir vítimas. A violência institucional e o processo de criminalização das favelas e espaços mais pobres da cidade se revelaram ainda mais presente na rotina da cidade em 2015. Os últimos meses do ano foram marcados pela repetição de cenas absurdas presentes na dura realidade da violência, como as de policiais militares simulando autos de resistência no Morro da Providência, assim como na morte de cinco jovens fuzilados em um carro por policiais militares em Costa Barros, com mais de 50 disparos. Em ambos os casos, policiais tentaram forjar a posse de armas junto do corpo das vítimas em uma tentativa de incriminá-las. A barbárie não pode ser a solução para a violência.


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O caso do Morro da Providência em que imagens revelaram policiais forjando um auto de resistência, com a vítima já morta, motivou a Alerj instaurar, no final de 2015, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Autos de Resistência e Mortes Decorrentes de Ação Policial no Rio de Janeiro. Um dos objetivos é entender as complexidades do problema para pensar em conjunto com a sociedade a criação de políticas públicas para superarmos essa brutalidade. É sabido que a responsabilidade não é só da polícia, é também do Ministério Público e do Poder Judiciário, que muitas vezes pedem o arquivamento dos casos ou adotam uma linha de investigação que responsabiliza a vítima. É um problema dramático que atinge as famílias mais pobres, negras e moradoras das favelas e periferias. Em dez anos, cerca de 10 mil pessoas foram mortas em operações policiais, muitas com sinais claros de execução. Essa tragédia atinge um setor muito específico da população: jovens, negros e moradores de favelas. Não se pode assistir ao massacre da juventude de maneira racional, a responsabilidade é de todas e todos. Não por acaso, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 2015, foi aprovado o projeto de lei de autoria do presidente da CDDHC, Marcelo Freixo, que proíbe o uso de algema durante o trabalho de parto da presa ou interna e durante o período de sua internação. Esta foi uma grande vitória na garantia da dignidade e direitos das mulheres. É um absurdo imaginar que uma mulher seja amarrada e algemada durante o parto. Nenhuma pena prevista à detenta garante esse tipo de punição. Neste mesmo dia, mais de 50 mil pessoas participaram do Festival Todo Mundo Tem Direitos, realizado pela CDDHC em conjunto com a Justiça Global e a Anistia Internacional. O recado foi dado: Os Direitos Humanos são o caminho para a construção da democracia que queremos. O Festival Todo Mundo Tem Direitos foi possível graças à construção e diálogo com diferentes coletivos urbanos de cultura, de defesa dos direitos humanos, de mídia e movimentos sociais, além da participação de centenas de artistas. Temas como Educação, Saúde, Moradia, Cultura, Vida, Terra e Território, Identidade de Gênero, Memória, Liberdade, foram pautados e celebrados em diversas rodas de conversa, intervenções, exposições e canções. O Festival foi uma estratégia criativa e inovadora de se chamar atenção para assuntos tão caros ao Estado e à democracia. Um papel fundamental da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.

CDDHC EM AÇÃO A CDDHC tomou as seguintes iniciativas, de maneira contínua em relação às violações de direitos humanos ocorridas durantes 2015: 1. Solicitação formal de informações sobre os procedimentos de apuração da Polícia Militar e Polícia Civil referente aos abusos de autoridade e ao uso indiscriminado da força por parte das forças de segurança; 2. Acolhimento de familiares; 3. Participação em fóruns e redes da sociedade civil para monitorar violações decorrentes da atuação institucional de órgãos do poder público; 4. Realização de audiências públicas.


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1.2. GRUPO DE REFLEXÃO E DISCUSSÃO SOBRE OS CASOS O deputado estadual Marcelo Freixo assumiu, em 2009, a presidência da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro com o objetivo e responsabilidade de formar uma equipe técnica capacitada para qualificar o funcionamento do órgão, de acordo com as regras internas. Na ocasião, havia na composição da assessoria do mandato do deputado um grupo específico de assessores e ativistas dos movimentos sociais com diferentes qualificações profissionais. Coube, então, a este grupo, assumir o atendimento e efetuar os encaminhamentos de atendimento da CDDHC. A equipe percebeu desde o início a necessidade de oferecer suporte psicológico no acolhimento dos atendimentos, visto que os casos envolviam tragédias pessoais e coletivas relacionadas ao não cumprimento das leis e violações dos direitos dos cidadãos. Por isso, em 2011, a CDDHC Alerj passou a dispor de um profissional da área da psicologia compondo a equipe técnica, contemplando os usuários com um olhar mais especializado e qualificando o atendimento da equipe. Tendo em vista que a Comissão atende uma extensa demanda, desde as mais simples: como a não confecção da carteirinha de visitante para o sistema prisional dentro do prazo estabelecido pela própria Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap). Às mais complexas: como violações praticadas por agentes públicos, desaparecimento de pessoas, famílias de policiais mortos, entre outros. Neste cenário, o acolhimento psicológico durante os atendimentos proporcionou à equipe um maior conhecimento sobre a rede de saúde mental. Desde o acionamento de serviços no âmbito estadual e municipal ao encaminhamento de casos para a avaliação de uma equipe técnica externa. Como consequência dessa percepção interna, em 2013, foi iniciado um grupo de reflexão dos casos atendidos pela Comissão, com o objetivo de gerar um olhar mais amplo e multidisciplinar no encaminhamento dos atendimentos. Atualmente, a equipe técnica do órgão é composta por profissionais das áreas de Serviço Social, Ciência Social, Direito e Psicologia. Os atendimentos são realizados e debatidos de forma espontânea dentro do grupo de reflexão, a partir da necessidade de quem atendeu caso a caso e da própria equipe. A dinâmica permite ao grupo se colocar em um lugar de constante aprendizado e troca de conhecimentos interpessoais. O que inicialmente se configurou como um espaço de estudo de casos e propostas de encaminhamentos, tornou-se também, com o decorrer dos encontros, um espaço de discussão de metodologia e planejamento. O efeito proporcionado pela construção desse espaço de escuta e de troca dentro da própria equipe é importante, visto que inclui não só a acolhida aos novos membros e a construção de soluções coletivas, mas principalmente ao viabilizar um melhor atendimento à população. Já que, a partir da identificação da complexidade dos casos, a solução é pensada de forma coletiva com base na experiência profissional inerente da multidisciplinaridade da equipe. Isto significa que a CDDHC se qualifica por uma metodologia de trabalho em que se insere uma equipe capacitada responsável pelos atendimentos e soluções das demandas cotidianas de seu trabalho, caso a caso.


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Além de garantir a formação de uma equipe multidisciplinar, a constante preocupação em melhor atender a população do Rio de Janeiro fez com a CDDHC da Alerj recorresse ao conhecimento tecnológico produzido pela Engenharia de Produção para otimizar os atendimentos. A partir dessa necessidade, uma parceria com o Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES) do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro foi formalizada e gerou, em 2015, importante contribuição no processo de sistematização e gerenciamento dos atendimentos.

1.3. O PAPEL DA ENGENHARIA NA AMPLIAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Por Celso Avellar* A engenharia é tradicionalmente conhecida como um campo do conhecimento distante das problemáticas sociais, por estar voltada principalmente para atender as demandas das grandes empresas. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, não é muito diferente, grande parte dos projetos de pesquisa estão voltados para demandas de corporações nacionais e internacionais, e pouco se vê trabalhos voltados para órgãos públicos, e muito menos para movimentos sociais, organizações comunitárias e grupos organizados de trabalhadores. Nesse contexto, em 2013 foi criado o Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES), dentro do Centro de Tecnologia da UFRJ, com o objetivo de pensar a engenharia e o desenvolvimento de tecnologias para estes públicos que não recebem o devido apoio da Universidade, principalmente no campo tecnológico. Este órgão articula diversos grupos que desenvolvem extensão universitária no campo tecnológico desde 1994. Desde a constituição de 1988, a extensão universitária virou parte do tripé acadêmico por lei: a universidade tem como objetivo desenvolver ensino, pesquisa e extensão. O ensino é conhecido por todos através dos cursos de graduação e pós-graduação. A pesquisa é a forma da universidade construir conhecimento novo e se materializa principalmente a partir das publicações em revistas e jornais acadêmicos. A extensão, como proposta por Paulo Freire, seria uma via de mão dupla: por um lado, seria uma forma da universidade devolver à sociedade parte desse conhecimento gerado; por outro, seria uma forma de construir conhecimento útil a partir das problemáticas de sua população (e não fechada em laboratórios, com discussão apenas entre acadêmicos e a partir de problemas pautados principalmente pelos EUA e Europa através de suas revistas “internacionais”). No caso da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (CDDHC/Alerj), o NIDES foi chamado para pensar propostas que ajudassem a comissão a ampliar seus trabalhos e acompanhar as demandas de forma mais ativa. Pela grande demanda que recebem de denúncias, e por ter uma equipe bastante reduzida, muitas vezes a comissão só conseguia acom-

*Pesquisador extensionista do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/NIDES/UFRJ) e Professor Colaborador do Departamento de Engenharia Eletrônica (DEL/POLI/UFRJ).


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panhar de forma mais ativa os casos mais emblemáticos. Nos casos menos críticos, a partir do primeiro atendimento eram feitos os procedimentos de encaminhamento (como envio de ofícios para órgãos públicos), porém, caso o órgão não respondesse na maioria das vezes, a Comissão só voltava a acompanhar quando o denunciante voltasse ou ligasse perguntando sobre seu caso. Dessa forma, fomos chamados para pensar como a engenharia poderia contribuir na organização do processo de atendimento, acompanhamento e sistematização das denúncias de violação de direitos humanos. Esse é um tipo de problema que no campo da engenharia de produção é considerado um sistema complexo, pois envolve diversas organizações, pessoas, interações, com uma diversidade de problemas que dificulta padronizações. Por exemplo, uma reclamação sobre negação na expedição de carteirinha para visitar um parente em um presídio, pode gerar diferentes encaminhamentos dependendo do motivo alegado pelo órgão público. E essa categoria de caso é apenas uma entre muitas outras diferentes (no momento que iniciamos o trabalho tinham mais de cinquenta categorias diferentes). Iniciamos o trabalho como acreditamos que deve ser toda atuação da engenharia, de forma dialógica, conhecendo a realidade que pretendemos atuar, estabelecendo uma relação de confiança com a organização e seus trabalhadores e trabalhadoras e vivenciando junto com eles sua rotina e suas dificuldades. Um dos elementos que percebemos que dificultava um atendimento mais proativo era o sistema de informação de cadastro de casos. Esse sistema tinha uma busca limitada, não possuía relatórios que permitia listar casos que necessitavam acompanhamento, além de muitas outras limitações. Aproveitando-se de uma disciplina chamada “Software Livre e Metodologias Participativas”, oferecida pelo Departamento de Engenharia Eletrônica (DEL/POLI/UFRJ), colocamos a melhoria desse sistema como trabalho final para um grupo de alunos. Durante o primeiro semestre de 2015, esse grupo de dez alunos fez diversas idas à Comissão, acompanhou alguns atendimentos, conversou com a equipe e foi modelando um novo sistema. Esse sistema foi sendo construído de forma interativa, validando ao longo do período as ideias que surgiam, e muitas dessas foram sendo implementadas pelo setor de informática da Alerj ao longo desse tempo. Além disso, muitos desses questionamentos provocaram reflexões na Comissão, que alterou alguns procedimentos de acompanhamento dos casos. Por fim, realizamos uma reunião entre o NIDES e a CDDHC em outubro de 2015 para avaliar essa parceria. Consideramos que ambos aprendemos e ganhamos muito nessa relação. Em função da grande demanda que a equipe de informática da Alerj vem tendo, ainda não foram implementadas todas as melhorias modeladas, porém desde a entrega do relatório final da turma, muitas delas já foram implantadas e a consultoria concretizada. Mesmo assim, percebeu-se uma maior facilidade para gerar de forma automatizada os dados quantitativos do presente relatório anual da Comissão, o sistema já avisa por e-mail a equipe sobre os casos que já deveriam ter resposta dos órgãos públicos oficiados, e está mais fácil encontrar através do sistema de busca casos por determinado campo ou palavra-chave. Assim, consideramos que cumprimos o que


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fomos demandados e esperamos prosseguir ajudando a CDDHC da Alerj sempre que precisarem.

1.4. OCUPA DIREITOS HUMANOS A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj acompanha e se manifesta sobre proposições e assuntos ligados aos direitos inerentes ao ser humano, tendo em vista o mínimo de condições à sua sobrevivência digna, ao exercício pleno de seus direitos e das garantias individuais e coletivas. Sob um aspecto macro, objetiva-se capacitar e empoderar a população acometida frequentemente por violações de direitos humanos. Desse modo, amplia-se o conceito de direitos humanos para além das violações inerentes à violência física urbana. Com base nesse princípio, em 2013, foi criada a atividade Ocupa Direitos Humanos. A ideia é atuar no esclarecimento da população sobre a garantia dos seus direitos para que de fato haja o exercício da cidadania. O Ocupa Direitos Humanos é uma ação, portanto, busca-se a solução dos casos juntos aos órgãos competentes de possíveis ausência ou violação de direitos. Nessa ação, a forma de atuação é baseada na busca de abertura de diálogo com lideranças e/ou pessoas de referência das comunidades onde vai ocorrer a atividade. Além disso, viabiliza-se encontros nos locais para a definição de estratégia coletiva, a partir das demandas comunitárias, de atuação e acolhimento da população. A última experiência ocorreu na comunidade do Caju, Zona Portuária do Rio de Janeiro no ano de 2015, com a presença da CDDHC Alerj junto com parceiros comunitários. Foi realizado atendimento à população local, recolhendo denúncias e esclarecendo qual a melhor maneira de obter soluções ou respostas do poder público para a violação de direitos enfrentadas na região. O tema será melhor descrito no capítulo 3 do presente relatório. Ao apresentar o papel da CDDHC, o capítulo seguinte, pretende abordar os temas inerentes à violação dos direitos das mulheres. A escolha temática se justifica pelo aumento da demanda relativa às mulheres no cotidiano do trabalho desenvolvido pela Comissão.



2. As mulheres e a violação de seus direitos humanos

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hierarquização das violações de direitos humanos é sempre arbitrária, já que é desumano hierarquizar a dor. Ainda assim, em uma tentativa de expressar minimamente o que representou a luta no âmbito do Rio de Janeiro em 2015, o relatório da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj optou por apresentar com destaque a atuação nas diversas violações dos direitos das mulheres. O objetivo não é dar conta da complexidade do tema, já que seria necessário um relatório completo sobre o assunto e uma equipe técnica organizada para tratar com prioridade as violações destinadas às mulheres. Desse modo, a abordagem do tema versará sobre as demandas encaminhadas diretamente à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj. A violência contra a mulher é noticiada cotidianamente nos principais meios de comunicação do Brasil e a sensação de que o número de casos está crescendo é comprovada pelo “Mapa da Violência de 2015: Homicídio de Mulheres”. O Brasil figura o 5º lugar na taxa de homicídio de mulheres (por 100 mil habitantes) na lista de 83 países. De acordo com o estudo, entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino cresceu 21%. Em uma década, passou de 3.937 para 4.762, dado que revela 13 assassinatos diários de mulheres. A população negra é a principal vítima. O número de homicídios de mulheres negras aumenta 1.864 vítimas, em 2003, para 2.875, em 2013. Um aumento de 54,2%. Já o assassinato de mulheres brancas cai de 1.747 vítimas, em 2003, para 1.576, em 2013. Uma queda de 9,8%. A faixa etária do feminicídio se concentra na juventude de 18 a 30 anos. Na contramão das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul, que aumentaram as taxas de feminicídio, o estudo revela uma queda do número de casos, entre 2003 e 2013, na região Sudeste de 13,9% e no Rio de Janeiro, especificamente, a taxa cai em 26,3%. Cabe ressaltar que entre 2006, ano da promulgação da lei Maria da Penha, e 2013, apenas o Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Rondônia e Pernambuco registraram quedas nas taxas de homicídios de mulheres. O 9º Dossiê Mulher 2014 revelou, a partir das ocorrências registradas nas delegacias policiais do Rio de Janeiro, que as principais vítimas de violência no estado são as mulheres. A violência sexual é apontada com o maior percentual de registros. Em 2013, das 6.501 vítimas, entre homens e mulheres, 4.871 mulheres foram estupradas (82,8%) e 556 mulheres sofreram tentativa de estupro (90,3%). O estudo demonstra ainda, além do predomínio da mulher como vítima de estupro, a violência por meio de ameaça e lesão corporal, e aponta como prováveis agressores seus companheiros ou pessoas do convívio familiar.


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Esses dados demonstram a necessidade de ações urgentes para barrar o aumento da violência contra a mulher. No âmbito penal, depois da Lei Maria da Pena de 2006, em março de 2015 foi sancionada a Lei do Feminicídio, que classifica como crime hediondo e agrava a pena de acordo com a vulnerabilidade da vítima (menor de idade, gestante, entre outras). As duas iniciativas recebem duras críticas de movimentos sociais, principalmente de mulheres, mas a ideia não é trazer à tona os questionamentos sobre estas leis. No entanto, é importante observar que as principais iniciativas ocorrem no campo da punição e não no campo da prevenção. Sendo assim, corre-se o risco da reprodução social da prática punitivista que, ao invés, de se investir em políticas públicas que deem conta da prevenção de futuros atos violentos, apela-se para o encarceramento em massa. A violência contra a mulher encontra maior visibilidade social quando se trata do feminicídio. Seja por conta da cobertura midiática em torno dos homicídios ou mesmo das políticas públicas destinadas a resolução do problema. No entanto, a violência institucional acaba por ser invisibilizada. Há diversas arbitrariedades contra as mulheres no âmbito dos Sistemas de Saúde e Penitenciário, além do Legislativo e repartições públicas que deveriam prezar pelo cumprimento das leis vigentes. Estes temas serão tratados nos itens seguintes.

2.1. DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES Quando a advogada Maíra Fernandes perdeu o filho de forma inesperada após um pré-natal absolutamente bem feito, imaginava que sua dor fosse única. Porém, descobriu que essa dor é compartilhada em corações de diferentes mulheres. Os dados do estado do Rio de Janeiro demonstram como a perda gestacional é mais frequente do que se imagina, o que justifica a formulação de políticas públicas com o objetivo de redução dessa realidade. Em 2014, foram registrados 20.242 casos de perda gestacional, a soma de abortos espontâneos e óbitos fetais. Ocorreram cerca de 2.300 mortes de bebês com mais de 750 gramas, e mais de 16.224 casos de aborto espontâneo durante a gravidez. Comparativamente, foram nascidos vivos 233.607 bebês. A estatística mostra que 20% das gestações no estado culminam em perda gestacional, sendo que esse número pode ser o dobro devido a subnotificações causadas por mulheres que não chegam a procurar unidades de saúde. “Quando perdi o Antônio eu achei que eu era a única no mundo a sofrer aquilo. Mas, por que isso aconteceu comigo e só comigo? Foi quando eu conheci o Do Luto à Luta, o grupo Mães de Anjo, vi que não, eu não era a única. Eu descobri que uma, em cada cinco gestações, não chega ao final, não tem o resultado vida que nós esperaríamos. É um número bastante significativo. E percebi também porque o tratamento que eu tinha recebido na clínica, um dos maiores hospitais do Rio de Janeiro, não era o tratamento que a maior parte das mulheres recebem”, afirmou Maíra na ocasião da audiência pública realizada pela CDDHC. A perda gestacional é um grande trauma para a mulher. Em muitos casos, o ambiente hospitalar é insensível à dor das mães e o atendimento se torna desumano no momento mais frágil da família. As mulheres são atendidas em um local voltado para


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celebrar a vida e a chegada de novos bebês, o que gera constrangimento à gestante que acabara de perder seu filho: algumas são parabenizadas erroneamente, logo em uma das situações mais sensíveis e delicadas da sua vida. Com o intuito de debater o tema, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj realizou, em 15 de outubro de 2015, uma audiência pública em conjunto com as Comissões de Defesa dos Direitos da Mulher e a de Assuntos da Criança, do Adolescente e do Idoso. A data escolhida é justamente o Dia Nacional para a Sensibilização da Perda Gestacional. A partir do encontro foi constatado o quão é invisível as violações dos direitos humanos da mulher que perdem seus bebês (antes ou logo após o nascer). O tratamento dado às famílias com perda gestacional nas redes de hospitais públicos e privados, por médicos e enfermeiros, não compete com a gravidade e a dor das mulheres. Na audiência, houve relatos de mulheres que saíram da sala de parto para enfermarias compartilhadas com mães e recém-nascidos. Há profissionais de saúde que de forma festiva as chamam de mamães mesmo depois delas descobrirem que não mais serão, assim como há casos em que mulheres receberam de presente bolsas com fraldas, roupinhas itens de higiene, o kit maternidade, ofertado em parte da rede pública de saúde. Também há ocorrência de casos de mulheres que têm negado o direito de olhar e segurar nos braços os filhos sem vida. São sedadas e ficam sem apoio psicológico, físico e afetivo. É retirado o seu direito ao momento de luto e, às vezes, sequer tomam conhecimento da necropsia de seus bebês. As mazelas da perda gestacional foram relatadas na audiência da CDDHC por mães de natimortos, ONGs como Do Luto à Luta, Grupo de Apoio a Mães de Anjos, Superando a Perda Gestacional, além de representantes das secretarias estadual e municipal de Saúde; do Conselho Estadual de Direitos da Mulher; de maternidades públicas, hospitais privados, e grupos feministas. Na ocasião, foi apontada a necessidade da promoção de uma assistência integral à mulher, que precisa ser vista como sujeito biopsicossocial, e não meramente como um útero. Por isso, a formação médica centrada no procedimento precisa evoluir para ser focada no usuário desde a residência médica à formação dos profissionais da área de enfermaria e técnicos de enfermagem. Como resultado prático da audiência da CDDHC Alerj foi criada uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para ampliar a licença maternidade das mães e concedê-la aos pais de natimortos. A PEC garante que o início da licença maternidade seja contado a partir da alta da UTI da criança recém-nascida, e também estabelece a licença de, no mínimo, 30 dias, e no máximo, de 90 dias, em caso de perda gestacional. Além disso, um grupo de trabalho foi criado para implementar no Estado do Rio o protocolo da Organização Mundial de Saúde (OMS).

2.2. PRECONCEITO IMPEDE O ATENDIMENTO DE GESTANTES COM HIV O atendimento às gestantes vivendo com HIV no estado do Rio de Janeiro também foi uma questão levantada na audiência pública que debateu a perda gestacional. Dessa


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forma, a Comissão de Defesa de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj realizou, em 27 de novembro de 2015, a audiência pública “Gestantes vivendo com HIV/Aids, direitos sexuais e reprodutivos”. A falta de capacitação de profissionais da rede pública municipal e estadual para combater o estigma presente no meio social do diagnóstico do HIV traz enormes prejuízos às gestantes no Sistema Único de Saúde. De acordo com o Protocolo para Prevenção de Transmissão Vertical de HIV do Ministério da Saúde, os serviços que hoje são considerados porta de entrada para o diagnóstico da infecção pelo HIV em gestantes no Sistema Único de Saúde são as Unidades básicas de Saúde, o Programa da Saúde da Família (Clínicas da Família no Rio) e os Centros de Testagem e Aconselhamento. Estes são responsáveis pela captação das gestantes para o pré-natal e realização de testagem para o HIV, mas há ainda relatos de mulheres que descobrem ter o vírus no momento do parto, o que evidencia que este item do protocolo não tem sido respeitado no Rio. O subsecretário de vigilância em Saúde, Alexandre Chieppe, acredita que o estigma social se configura como um obstáculo real à promoção de políticas públicas. Isto porque impede o diagnóstico, o tratamento, o acesso ao serviço de saúde, motiva o sub-diagnóstico, além de fomentar a ideia de que o tratamento se resuma ao acesso à medicação. Atualmente, 106 mil pessoas foram identificadas vivendo com HIV/Aids no Rio de janeiro, sendo 90% na região metropolitana. Um dos casos relatados pela pesquisadora da ENSP/FioCruz, Priscilla Soares, foi o de uma jovem de 27 anos que só descobriu sua condição de saúde após acordar na maternidade com o seio enfaixado. Ao ouvir o bebê chorar e se perceber impedida de amamentar, ela perguntou a uma enfermeira o que estava acontecendo. A resposta da profissional de saúde foi: “se você tivesse feito o pré-natal, você saberia o que têm”. Assustada, a jovem pegou a prancheta colada na cama e leu na lista de exames realizados pelo hospital a informação: “HIV positivo”. “A jovem não recebeu nenhum acolhimento médico e chorou sozinha sem saber como agir. A mulher com HIV/aids, não pode amamentar”, afirmou Priscilla. Ana Lúcia Pinheiro, ativista do Movimento Nacional de Cidadãs Posithivas, que vive desde 1992 com HIV, mostrou como cenário atual não se modificou muito ao longo dos anos. “Descobri que sou soropositiva porque pedi para o médico fazer o exame. Eu, que sempre ouvi da minha mãe que grávida não podia nem tomar dipirona, sai com uma bolsa de remédios do posto. Quando chegou o momento do parto, ao falar que era HIV positiva e que precisava de uma cesariana, vários lugares diziam que não tinha chegado a hora. Segui andando procurando atendimento e só consegui fazer o parto porque me calei ao perceber que estava sofrendo preconceito. Minha cirurgia foi sem anestesia porque não dava tempo. Eu sentia o médico me cortar”, contou emocionada Ana Lúcia. O filho de Ana Lúcia tem 23 anos e, apesar de não ter conseguido um parto em condições adequadas, não houve transmissão vertical – de mãe para o filho no momento do parto – do vírus HIV. Cerca de 65% dos casos de transmissão vertical do HIV ocorrem durante trabalho de parto ou no parto propriamente dito.


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Outro assunto abordado durante o encontro foi dificuldade financeira do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle que compromete o atendimento às pessoas que vivem com HIV/Aids. O hospital é a principal referência no atendimento e acolhimento feito a gestantes com HIV no Rio de Janeiro. Desde 2013, o deputado federal Jean Wyllys, tem apresentado emendas para destinação de verba à unidade. Já foram fechados 106 leitos e somente 20 cirurgias diárias de baixa complexidade são realizadas por conta da situação falta de financiamento público do Ministério da Educação (MEC). Atualmente, segundo o diretor da unidade, Fernando Ferry, o orçamento destinado é de R$ 22 milhões. Porém, o orçamento ideal é de R$ 60 milhões para o funcionamento pleno do hospital. Mediante ao exposto, como encaminhamento da audiência pública, Marcelo Freixo, presidente da CDDHC Alerj, propôs a apresentação de Projeto de Lei que prevê a implementação do Protocolo para Prevenção de Transmissão Vertical de HIV, e a formação de um grupo de trabalho para construção de propostas legislativas em todos os níveis para incorporação do Protocolo do Ministério da Saúde. Uma emenda parlamentar, já aprovada em primeira sessão, em favor da Secretária de Saúde, com vistas à capacitação de servidores no atendimento às gestantes com HIV/ aids, também foi apesentada à Alerj.

2.3. O ACIRRAMENTO DA CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES O processo de criminalização das mulheres ganhou contornos conservadores na política institucional em 2015. No âmbito da política nacional, houve apresentação do PL 5069, que dificulta o acesso ao aborto legal à mulher vítima de estupro. Já no estado do Rio de Janeiro, a Resolução N.° 5/2015 criou na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a “investigar e apurar os interesses em incentivar e financiar a prática do aborto no estado, o comércio de produtos e as clínicas que fazem o procedimento”, composta por seis deputados e uma deputada. A CPI foi criticada por diversos movimentos de mulheres que questionaram o fato de a CPI não ter analisado a quantidade de internações de mulheres na rede pública de saúde em decorrência de abortos espontâneos ou induzidos, ou de óbitos de mulheres causados pela falta de acesso a métodos abortivos mais seguros, gratuitos e legais. No dia 14 de outubro de 2015 foi lido o voto do relator, contendo os encaminhamentos propostos para a CPI. Uma das ações propostas encaminhadas à ANVISA busca inviabilizar e proibir a regularização e comercialização dos medicamentos Cytotec e Misoprostol por estabelecimentos farmacêuticos. Isso impactará os pacientes que fazem uso regular de tais medicamentos, tendo em vista que não são utilizados somente para a indução de abortamentos ou procedimentos considerados ilegais, mas para o tratamento de outras condições perfeitamente legais. O encaminhamento final do relatório propõe a apresentação de um Projeto de Lei que obriga funcionários de clínicas, hospitais e consultórios a comunicarem imedia-


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tamente às autoridades policiais os casos de ocorrência de aborto na rede de saúde pública estadual, mesmo os abortos espontâneos (em decorrência de causas naturais). O presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, deputado Marcelo Freixo, apresentou em conjunto com outros deputados, uma emenda para que fosse suprimida do relatório a indicação que prevê a elaboração de um Projeto de Lei (PL) que leva a maior penalização da prática do aborto. Uma vez que este sacrifica até os casos de aborto previstos em lei e os de aborto espontâneo, o que se configura em uma exposição degradante e tortura psicológica às mulheres que já estão fragilizadas.

2.3.1. ENTREVISTA: FERNANDA GARCIA

“O aborto é uma marca que a mulher carrega por toda vida, ela não faz isso feliz” Arquivo pessoal

Fernanda Garcia aposta na mobilização de mulheres para barrar iniciativas que violem o direito feminino sobre seu corpo e sua vida

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guerrida na luta pela descriminalização do aborto, Fernanda Garcia, de 20 anos, encontra na mãe, nordestina sangue-quente e pastora, os princípios para a defesa da saúde e vida da mulher. “Minha mãe teve câncer no útero há cinco anos e o SUS demorou mais de um ano para entregar o primeiro exame que diagnosticava o câncer. A polícia tem que ser acionada nesses casos em que a pessoa espera um ano para ter acesso a um exame que vai fazer a diferença entre a vida e a morte, e não quando uma mulher sofre um aborto para criminalizá-la em um momento difícil”, afirma. De acordo com Fernanda, a discussão sobre a saúde pú-


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blica é estratégica para a garantia dos direitos reprodutivos das mulheres. A jovem estudante de Comunicação, que vive na Cohab mas se identifica como moradora da Maré por sua militância local, descobriu-se feminista por essência, uma vez que, mesmo sem saber das discussões teóricas sobre o assunto, já criticava os abusos cometidos contra as mulheres. Fernanda foi uma das pessoas que participaram ativamente do processo de mobilização de rua e redes sociais contra os encaminhamentos propostos pela CPI do aborto. CDDHC: Fale um pouco sobre a mobilização de mulheres contra a CPI do Aborto. Fernanda: No final de 2015, por volta de outubro e novembro, chegou ao Meu Rio o conhecimento sobre a pauta da CPI do Aborto e o relatório que seria votado na Alerj. O Meu Rio trabalha com uma rede de mobilizações na cidade para a participação política da sociedade civil. Chegou essa pauta para que a gente fizesse alguma coisa para barrar esse relatório, tendo em vista que trazia muito retrocesso ao direito das mulheres. Estávamos presentes na votação do Relatório, mas infelizmente não conseguimos barrar a sua aprovação. O dia coincidiu com o primeiro ato da Primavera das Mulheres, que foi uma manifestação contra o Eduardo Cunha. Depois da aprovação, pensamos em estratégias para retirar do texto final as indicações de novos projetos de lei. CDDHC: Quais são os questionamentos pontuais contra o relatório da CPI do Aborto? Fernanda: O maior problema foi a inclusão de um projeto de lei que tenta criminalizar ainda mais o aborto. O projeto previa que todas as mulheres que dessem entrada no hospital em situação de aborto espontâneo ou induzido, a unidade de saúde teria que acionar a Polícia Militar. E a mulher seria interrogada diante da situação de aborto. Um absurdo completo. Porque o aborto nunca é uma situação confortável. E entendemos que a Polícia Militar do Rio de Janeiro não é preparada e não é sensível para lidar com essas circunstâncias. Não faz qualquer sentido. CDDHC: Quais foram as pessoas que vocês conseguiram mobilizar? Fernanda: Depois da aprovação do relatório, fizemos uma plataforma na internet chamada “Mulheres Mobilizadas” para que as pessoas indignadas com essa situação pudessem se inscrever para organizar atividades. Mais de 800 mulheres foram inscritas e um grupo de ação foi criado contra a CPI do Aborto. Pensamos em diversas táticas para pressionar os deputados a não aprovarem o projeto de lei que estava no relatório. Uma das táticas muito utilizada pelo Meu Rio é a ligação para os gabinetes e, a partir dos telefones dessas mulheres, foi criado um grupo no WhatsApp com uma ferramenta chamada Twillo para elas ligarem de graça para os gabinetes. E durante uma semana ligamos para todos os deputados e conversamos sobre todo o processo da CPI que não ouviu as mulheres. Além da CPI ter sido formada basicamente por homens, as mulheres não foram ouvidas. CDDHC: E como está esse processo? Fernanda: A Alerj entrou em recesso e o relatório não voltou para a pauta em 2015. Mas no início de 2016 foi proposta uma emenda ao relatório para retirar o projeto de lei, o que já representaria uma vitória. Então, estamos esperando que esta emenda seja aprovada.


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CDDHC: Quais são os próximos passos? Fernanda: A partir da CPI do Aborto acabamos criando uma comunidade muito grande de mulheres que querem fazer coisas por outras mulheres e querem continuar lutando na causa. O ano de 2015 foi bem recheado de manifestações e mobilizações em defesa dos direitos das mulheres, seja à cidade, à saúde entre outras coisas. Por isso, criamos o Circuito de Mulheres Mobilizadas que reúne pessoas da cidade inteira com ações em todos os territórios e já estamos pensando nas próximas táticas para a CPI do aborto, que é algo mais concreto, mas não encerra os temas da luta pela vida das mulheres. CDDHC: Como você vê o papel da Comissão de Direitos Humanos da Alerj no debate sobre o aborto? Fernanda: O papel da Comissão de Direitos Humanos foi muito importante, e talvez fundamental nessa articulação. Por dar uma pouco mais de voz para a gente que não tinha. Lidando com os parlamentares no dia-a-dia de uma forma mais articulada do que nós mulheres que somos da sociedade civil. Acredito que se não fosse essa articulação de todas as mulheres que fazem parte da Comissão e dos mandatos, a gente não conseguiria ter colocado esta emenda em pauta. CDDHC: Por que o aborto ainda é um tabu para a sociedade? Fernanda: Há um grande problema com a saúde pública em geral. E enquanto a saúde é um problema, o aborto vai ser um problema. As pessoas não conseguem entender que o aborto está totalmente relacionado à péssima qualidade da saúde pública. E ainda existe um debate muito fundamentalista e conservador com relação ao aborto. A religião está muito em cima desse tema e isso coopera para ser um tabu. É preciso entender que é uma questão de saúde pública e que a mulher tem o direito ao aborto seguro. Mesmo as mulheres que estão dentro das igrejas vão fazer o aborto se precisarem, nenhuma mulher deixa de abortar porque é proibido. Elas abortam porque, infelizmente, precisam abortar. É preciso compreender também que se um dia o aborto for legalizado ninguém vai sair por aí abortando. O aborto é uma marca que a mulher carrega por toda vida, ela não faz isso feliz.

2.4. MULHERES NO SISTEMA PRISIONAL

1. Disponível em http:// www.justica.gov.br/noticias/ estudo-traca-perfil-dapopulacao-penitenciariafeminina-no-brasil/relatorioinfopen-mulheres.pdf

Como afirmado anteriormente, a população carcerária fluminense é predominantemente masculina (89,5%). Mas o número de mulheres encarceradas também cresceu no Brasil. Entre 2000 e 2014, passou de 5.601 para 37.380 detentas, um aumento de 576% em 15 anos. Os dados integram o Infopen Mulheres1, levantamento nacional de informações penitenciárias do Ministério da Justiça. Em números absolutos, o Brasil teve, em 2014, a 5º maior população de mulheres encarceradas do mundo, ficando atrás dos Estados Unidos (205.400 mulheres presas), China (103.766), Rússia (53.304) e Tailândia (44.751). Das mulheres presas no país, 68% possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas. A maioria delas ocupam uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias,


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sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico. Neste sentido, as mulheres presas acabam ficando em segundo plano para o gestor do sistema, o que leva ao descaso histórico observado no que diz respeito às condições necessárias peculiares das mulheres nas unidades prisionais. Em diversas visitas aos presídios femininos, a CDDHC e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MECPT) puderam constatar a falta de material de higiene pessoal, especialmente absorventes, e a inexistência de ginecologistas nas unidades femininas. Há ainda o abandono destas mulheres pelos seus companheiros, o que implica na ausência de visitação e, consequentemente, do recebimento de itens de uso pessoal que normalmente são fornecidos pelos familiares. No Rio de Janeiro, as mulheres representam 10,5% da população carcerária. A equipe do MECPT esteve no Talavera Bruce, no Complexo de Gericinó, no dia 29 de setembro de 2015. A unidade tem capacidade para 299 mulheres, mas contava com 375. Havia 27 grávidas na penitenciária. Além da falta de assistência médica, elas reclamaram da má qualidade da alimentação. A última refeição é servida às 17h. Outras violações de direitos humanos foram constatadas, com destaque para o caso da interna Bárbara Oliveira de Souza, que no dia 11 de outubro deu à luz sozinha em uma cela de isolamento. As internas da unidade relatam que Bárbara passou a noite gritando e só foi atendida no dia seguinte. Segundo as presas, Bárbara deixou o pavilhão com o cordão umbilical pendurado e a placenta ainda dentro de seu útero. “É inadmissível não existir uma ginecologista no Talavera Bruce. Não dá para assistir isso. O desmonte da área de saúde dentro do sistema penitenciário é um absurdo. Não é de agora, ele é estrutural. O caso da Barbara veio a público, mas nos 27 anos que acompanho o sistema penitenciário, assisti há outros casos de presas grávidas parecidos. Não é um caso único”, criticou Marcelo Freixo, presidente da CDDHC Alerj. As condições sobre às quais as mulheres grávidas estão submetidas foi tema de audiência pública da CDDHC em parceria com a Comissão dos Direitos da Mulher, em 9 de novembro de 2015. Na ocasião, foi apresentada a pesquisa de Saúde Materno-Infantil nos Presídios, feito pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, entre fevereiro de 2012 a outubro de 2014. Uma das violências mais graves destacadas pelo estudo é o alto índice do uso de algemas durante o trabalho de parto. Das mulheres entrevistadas, 86% foram algemadas no pré-parto e 91,6% após o parto. “É uma violência direta a mulher que não pode ao menos segurar a criança, além de uma violência ao bebê. A mulher está presa, mas a criança é livre, é um cidadão livre que precisa do amparo materno”, ressaltou a pesquisadora, Maria do Carmo Leal. No Dia internacional dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro, a Alerj aprovou o Projeto de Lei 504/2015, de autoria de Marcelo Freixo e outros deputados, que proíbe o uso de algema durante o trabalho de parto da detenta, no Sistema Prisional, e da interna no Sistema Socioeducativo. A lei é um avanço na garantia dos direitos das mulheres, já que viabiliza o tratamento digno. O uso de algemas só será permitido em casos de resistência, possibilidade de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte da detenta ou de terceiros.


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O Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), emitiu nota técnica declarando apoio ao Projeto de Lei 504/2015. De acordo com o documento, a Resolução 3/2012, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), veda a utilização de algemas ou outros meios de contenção em presas parturientes no momento em que se encontram em procedimentos cirúrgico de parto ou em trabalho de parto natural e no período de repouso subsequente ao parto. A mesma medida já havia sido aprovada no Estado de São Paulo através do Decreto nº 57.783, que ressalta a consideração de que a presa em trabalho de parto não apresenta risco de fuga. Em 2013, o Estado de São Paulo foi condenado a indenizar uma presidiária que foi algemada pelos braços e pés antes, durante e após o parto. Na Audiência pública realizada pela CDDHC Alerj também foi encaminhado a criação de uma indicação legislativa para que, no âmbito no Tribunal de Justiça (TJ-RJ), seja implementado um dispositivo de audiência especial, a exemplo da audiência de custódia, em caso de descoberta de gestação no sistema prisional. Além da criação de um projeto de lei que prevê um campo no sistema de informática da Polícia Civil para inclusão de dados de eventuais gestação e condição de maternidade de mulheres com filhos pequenos, no auto de prisão em flagrante. O objetivo é disponibilizar esse dado ao juiz possibilitando, no momento das audiências de custódia, uma análise que permita à mulher a aguardar o julgamento em liberdade ou em prisão domiciliar.

2.4.1. MULHERES GRÁVIDAS PRESAS:

O cotidiano de sofrimento e risco de vida para mães e bebês *Por Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro

O 1. InfoPen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias 2014.

Brasil vive um grave processo de superencarceramento de sua população. Segundo dados do Infopen1, enquanto o crescimento da população brasileira é de 1,1 % ao ano, o aumento da população encarcerada no país é de 7 % ao ano. Vivemos nos últimos 20 anos, um crescimento de 136 % da população encarcerada no país, chegando a mais de 600 mil pessoas privadas de liberdade, em 2015. Atualmente, temos a quarta maior população prisional do mundo, e mantido esse patamar de crescimento, em 2018 ultrapassaremos a Rússia, assumindo o terceiro lugar no ranking.

2. Unidades mistas recebem presos de ambos os sexos e os separam por prédios, alas ou galerias, não sendo permitida a permanência na mesma cela, nem em atividades conjuntas. Não há unidades penitenciárias mistas no Estado do Rio de Janeiro.

A análise dos dados sobre a população carcerária no Brasil, evidencia um crescimento ainda maior do número de mulheres presas. Apesar de corresponderem a menos de 7 % da população prisional, o número de mulheres encarceradas nos últimos 15 anos sofreu um aumento superior a 500 %, mais que o dobro dos homens. Este crescimento vertiginoso jogou luz sobre a questão do encarceramento feminino, suas consequências sociais e suas formas de execução. Cabe lembrar que no país apenas 7 % das unidades prisionais é feminina, existindo ainda 17 % de estabelecimentos mistos.2


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O MEPCT/RJ3 escolheu, para seu relatório temático de 2015, abordar o tema das meninas, mulheres e a privação de liberdade4. No Rio de Janeiro, as mulheres correspondem a 10,5 % do total de pessoas presas, número acima da média nacional. No Rio de Janeiro existem cinco unidades femininas para o cumprimento em regime fechado5. A Penitenciária Talavera Bruce, localizada no Complexo Penitenciário de Gericinó, é a unidade de referência para mulheres grávidas, que ficam em celas separadas das demais, a Unidade Materno-Infantil, no mesmo complexo penitenciário, é onde ficam as mulheres presas com bebês até seis meses de vida. Urge dar visibilidade para a temática do encarceramento de mulheres no Brasil, em especial das que vivem o momento da gestação e do aleitamento materno. Todo processo maternal deve ser considerado em sua delicadeza, com monitoramento e cuidados de equipes especializadas para mãe e bebê. O momento da maternidade é pleno de complexidade, particularidades e intensidades subjetivas, que demandam sensibilidade aos variados afetos e necessidades experimentados durante a gestação e após o nascimento. Entendendo assim a maternidade, é possível afirmar que toda gestação vivida no sistema prisional causa grave sofrimento para mãe e bebê, configurando, portanto, uma gravidez de risco. De acordo com uma pesquisa divulgada em 2015 sobre mulheres em privação de liberdade no Estado do Rio de Janeiro, com foco nas mulheres grávidas e com filhos no cárcere, é possível identificar as principais características em comum das mulheres grávidas encarceradas no Estado do Rio de Janeiro:6 “Elas são negras (77 % negras/pardas), solteiras (82 %), tem entre 18 e 27 anos (78 % tem até 27 anos); com baixa escolaridade (75,6 % não possuem o ensino fundamental completo e 10% não são alfabetizadas). Metade delas estava trabalhando na época em que foi presa (85 % sem carteira assinada), a maioria era responsável pelo sustento do lar. Quase metade (46,3 %) afirmou estar sendo processada/ter sido condenada pelo crime de tráfico de drogas, sendo este o delito preponderante, seguido do crime de roubo. A grande maioria (70 %) é primária.” Nas diversas visitas que o MEPCT/RJ já fez à Penitenciária Talavera Bruce7 (PTB) foi possível constatar às péssimas condições de vida para as mulheres internas da unidade e como a assistência, de forma geral, prestada às mulheres grávidas têm mantido em risco as vidas de mães e bebês.8 Às mulheres grávidas presas na PTB não é garantida assistência pré-natal suficiente, descumprindo as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS)9. Além disso, as grávidas não recebem alimentação específica e não tem refeições diárias com a frequência suficiente para garantir uma gestação e um desenvolvimento saudável para ela e o bebê. No contato durante as visitas, são muitas as reclamações sobre a má qualidade da comida, da falta de materiais de higiene pessoal e para as celas, além dos maus tratos na unidade, humilhações e xingamentos.

3. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. 4. O relatório aborda a questões referentes às mulheres presas, às mulheres que visitam presos nas unidades e às mulheres travestis presas e às adolescentes cumprindo medida socioeducativa em meio fechado no Estado. 5. As unidades referidas são: Cadeia Pública Joaquim Ferreira Nelson Hungria, Presídio Nilza da Silva Santos, Penitenciária Talavera Bruce e Unidade Materno Infantil – Madre Tereza de Calcutá. 6. Mulheres e crianças encarceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro. 7. Para informações sobre esta e outras unidades femininas da SEAP/RJ ver Relatório Mulheres, meninas e privação de liberdade do MEPCT, 2015. 8. No dia 11 de outubro de 2015, uma presa que estava sozinha numa cela do isolamento da unidade deu à luz ao seu filho sem receber qualquer assistência. 9. Caderno da Atenção Básica, Número 32.


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Especialmente grave, são os relatos de violações cometidas pelo SOE10, que utiliza sistematicamente algemas em grávidas, mesmo quando encaminhadas ao Hospital ou Maternidade. A utilização de algemas, muitas vezes, é mantida durante o trabalho de parto, nos primeiros momentos após o parto e no retorno para a unidade. Às mulheres presas não é garantido o direito a um acompanhante na hora do parto, como determina a Lei do acompanhante.11 Segundo a pesquisa citada, entre as grávidas presas na Penitenciária Talavera Bruce, 70,9% respondem por crimes relacionados ao tráfico de drogas, índice superior, inclusive, a média nacional. A situação de encarceramento de gestantes e mães traz danos psicológicos e sociais que são potencializadas pelas precárias condições das prisões brasileiras. No entanto, apesar de prevista em legislação12, muitas vezes não tendo sido determinadas pelos juízes e juízas no Brasil a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para mulheres grávidas. Existem, portanto, contradições marcantes sobre a pertinência do atual modo de encarceramento das mulheres no Brasil, em especial para gestantes A apesar dos evidentes danos sociais e psicológicos causados pela prisão de uma mulher, especialmente as gestantes, as mulheres brasileiras têm ido “parar atrás das grades”, sem que se apresentem alternativas a pena de privação de liberdade.

BIBLIOGRAFIA BOITEUX, L, FERNANDES, M., PANCIERI, A. e CHERNICHARO, L. - Mulheres e crianças encarceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro – Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ. 2015. RJ. 10. Serviço de Operações Especiais da Secretaria de Administração Penitenciária, responsável pelo transporte de presos e presas. 11. Lei 11.108, de 07 de abril de 2005. Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pósparto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. 12. Como prevê o art. 318, IV, Código do Processo Penal. 13. Disponível em <http://www. forumseguranca.org.br/files/ files/MulheresInstituicoes Policias_final.pdf>

BRASIL - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. (INFOPEN – 2014) – Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) - Ministério da Justiça (MJ). ________ - Cadernos da Atenção Básica N.° 32 - MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Atenção Básica – Brasília 2012. ________ - Lei 11.108, de 07 de abril de 2005.

2.5. POLICIAIS MULHERES ASSEDIADAS SEXUALMENTE O assédio sexual é caracterizado por constrangimento e/ou uso da força. Ele é movido pela hierarquia, não só militar. É o que mostra os relatos presentes nas corregedorias das delegacias e quartéis. São tão frequentes que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e a Fundação Getúlio Vargas realizam pesquisa13 sobre o tema. Os dados revelaram que: 40% das entrevistadas disseram já ter sofrido assédio moral (74,5%) ou sexual (25,5%) no ambiente de trabalho.


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Em maior parte dos casos, quem assedia é um agente de hierarquia superior. O levantamento foi feito com mulheres das guardas municipais, pericia criminal, Corpo de Bombeiros e das Policias Civil, Militar e Federal. Tudo de forma anônima. Somente 11,8% das mulheres denunciam as ocorrências de abuso. Em 16 de novembro, as comissões de Direitos Humanos e de Segurança Pública da Alerj realizaram uma audiência pública para discutir o assédio sexual sofrido por policiais militares mulheres. O encontro foi motivado pela denúncia anônima feita por uma PM da Unidade de Polícia Pacificadora do Santa Marta, que acusou um sargento de tê-la assediado. Das 3.850 mulheres da PM, cerca de 750 trabalham em bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). No Santa Marta, há 16 mulheres, incluindo a comandante, tenente Tatiana Lima. Após a denúncia, outras cinco policiais mulheres prestaram depoimento na 8ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar. Duas delas confirmaram a agressão. Uma das PMs afirmou que tinha medo de denunciar o sargento por ele ser um superior hierárquico e responsável por supervisionar as atividades da tropa. De acordo com reportagem publicada pelo jornal Extra14, que teve acesso a um dos depoimentos, o policial assediador, remanejava as mulheres para poder ficar sozinho com elas na base. “Por várias vezes, quando estava escalada na tropa no policiamento ordinário, ele remanejava para a base na intenção de assediar, pois se privilegiaria do seu poder de manipulação”, informa parte do texto publicado pelo jornal. Na audiência realizada pela CDDHC na Alerj, o corregedor da PM, coronel Victor Yunes, não deu detalhes sobre o andamento do processo, mas afirmou estar em fase de conclusão. Yunes disse que a polícia não tolerará casos de assédio sexual e punirá os envolvidos. Também participou da audiência o presidente da Associação de Praças, Vanderlei Ribeiro. O presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, deputado estadual Marcelo Freixo, defendeu que crimes como este sejam tratados desde os cursos de formação de forma pedagógica, para preveni-los. O capítulo seguinte pretende abordar as violações e os impactos das transformações urbanas do Rio de Janeiro com vistas aos Jogos Olímpicos de 2016. A sessão também apresentará a violência e discriminação contra a população LGBTT, além da intolerância religiosa. O capítulo abordar temas relativos à juventude e a cultura do medo, e a mobilização pelo direito à livre circulação na cidade.

14. Disponível em <http://extra. globo.com/casos-de-policia/ corregedoria-da-pm-investigase-sargento-tentou-beijarforca-policiais-mulheres-daupp-santa-marta-17877402. html>.



3. Cidade e Região Metropolitana: Impactos sociais das obras olímpicas

N

os últimos 10 anos, o Rio de Janeiro tem sofrido com inúmeras transformações urbanas que refletem um novo processo de mercantilização da cidade. Bairros antes abandonados se convertem paulatinamente em áreas elitizadas. Esses espaços concentram parte significativa dos investimentos, além de tornarem-se cada vez mais caras e excludentes. Novas centralidades são criadas que, por sua vez, demonstram a progressiva descaracterização da paisagem urbana carioca em nome de uma imagem de cidade global. Sediar megaeventos esportivos está neste rol de ações da gestão pública que busca estruturar o Rio de Janeiro para os interesses econômicos, políticos e sociais, ligados à perspectiva do empreendedorismo neoliberal, produzindo reflexos dramáticos para populações locais. Dois impactos sociais ganham relevância em termos de violação de direitos humanos: despejos forçados e controle repressivo e discriminatório em nome da ordem pública. Este ano em relação aos despejos, casos antigos ganharam destaque, ou melhor, se mantiveram sofrendo os efeitos sociais das intervenções urbanas, apesar do processo de resistência: Vila Autódromo, na zona oeste, e Metrô-Mangueira, na zona norte. O Parque Olímpico em Jacarepaguá e o Estádio do Maracanã são dois exemplos do dito legado que, por enquanto, tem se revertido mais em conflitos no contexto urbano onde estão inseridos do que de fato uma herança positiva para as pessoas. Desde o anúncio da construção do Parque Olímpico, os moradores e moradoras de Vila Autódromo têm sofrido com os impactos das obras, além do assédio e a pressão para desocupação da área. Mesmo com o fato de grande parte das famílias dotarem de concessão de uso para fins de moradia, ou seja, a regularidade da posse em área denominada pelo Plano Diretor da cidade como uma Área Especial de Interesse Social (AEIS), a prefeitura do Rio de Janeiro se engajou em estratégias de desmobilização da resistência histórica da população local. Além disso, provocou a constituição de um ambiente urbano insalubre e precário, devido às inúmeras demolições inadequadas das casas das famílias que negociaram sua saída. De acordo com depoimentos de moradores à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj (CDDHC), essa situação tem favorecido a renúncia da posse da maioria das famílias que hoje já não mais residem em Vila Autódromo. No entanto, há ainda aqueles que se mantém resistentes, mesmo em condições adversas e com o aumento da pressão da prefeitura para que saiam da comunidade. Estes assinaram documentos registrando junto ao Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado que desejam ficar. O órgão atua na defesa jurídica dessas famílias. Infeliz-


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mente, houve o caso de uma liderança reconhecida da comunidade que se viu obrigada a negociar. Jane Nascimento morava em uma casa que estava na rota das obras de acesso ao Parque Olímpico e, por isso, aos poucos, as obras de drenagem avançaram o entorno de sua residência, impondo uma situação de risco e vulnerabilidade à sua família. Sem contar os escombros de casas demolidas e a construção de uma torre espelhada nas proximidades que compunham um cenário totalmente insalubre. A saída de Jane da Vila Autódromo ganha mais dramaticidade já que figura como uma das moradoras mais engajadas na resistência, vindo a se articular com outros movimentos de moradia e lideranças de favelas atingidas por processos de despejos, em função de obras ligadas aos megaeventos esportivos. É importante ressaltar, que algumas vezes em reunião com os moradores, a prefeitura declarou que garantiria a permanência das pessoas que desejam ficar no local. Inclusive, há um Plano Popular, construído em conjunto com a universidade, que já foi revisado pela situação atual com uma proposta de urbanização da área. Mas essas iniciativas têm sido ignoradas pelo poder público. O CCDHC tem acompanhado o caso, sobretudo por conta dos despejos violentos ocorridos com apoio da Guarda Municipal, com destaque para o ocorrido em junho quando sete pessoas ficaram feridas. Nesse episódio, houve uma autorização judicial para demolir dois imóveis, ignorando uma decisão judicial que suspendia a ação de imissão de posse, de acordo com a Defensoria Pública do Estado. Ademais, os serviços mais básicos à população, como o fornecimento de água e eletricidade, são sistematicamente cortados devido às obras do Parque Olímpico, assim como as árvores ao lado do terreno que protegiam a comunidade, radicalizando ainda mais o processo de precariedade na qual os moradores de Vila Autódromo estão submetidos a viver. O corte e a trituração das árvores centenárias foram permitidos pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente, em uma área próximo a Lagoa de Jacarepaguá que, por sua vez, está sob jurisdição do estado. Além disso, o corte de árvore é totalmente ilegal. No limite é possível a poda, mas nos seguintes casos: retirada de galhos que coloquem em risco a segurança das pessoas, eliminação de ramos doentes e adequação do desenvolvimento da planta a espaços, edificações e equipamentos urbanos do entorno, como postes e fios elétricos. Além de Vila Autódromo, a CDDHC acompanhou a situação da favela Metrô-Mangueira. Apesar de não terem viabilizado um estacionamento para a Copa do Mundo no terreno da favela, próximo ao Maracanã, esse ano houve um processo de despejos forçados e demolições de casas na área. Antes da Copa do Mundo, a comunidade havia praticamente desaparecido, restando algumas dezenas de famílias que resistiram ao processo violento de remoção. Em 2015, a justificativa foi abrir espaço para um polo automotivo e um centro comercial com lojas de autopeças e borracharias que já existem na região. Contudo, havia um acordo entre comerciantes e prefeitura que os imóveis só seriam demolidos após a construção do referido polo, em substituição às oficinas lá existentes, entretanto, em maio de 2015, houve a demolição ilegal do ferro velho local, por muitos considerado a alma da comunidade, pois permitia que muitas famílias tivessem alguma renda. Neste mesmo dia, oito casas foram demolidas. Algumas das famílias que perderam as casas não puderam nem retirar seus pertences


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das residências, uma vez que não houve prévia comunicação e, no momento da ação, encontravam-se nos seus respectivos trabalhos. Tais fatos geraram uma revolta na comunidade que passou a hostilizar os agentes da Secretaria de Ordem Pública. Imediatamente, estudantes da Uerj, que se encontravam em assembleia no Campus do Maracanã, se solidarizaram com os moradores e deliberaram o apoio à manifestação dos moradores, com os quais pretendiam bloquear a avenida Radial-Oeste e se dirigiram para a favela. Os estudantes foram recebidos pelo Grupamento de Operações Especiais da Guarda Municipal (Goe) com gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha. Diante da violência da Guarda Municipal, os estudantes buscaram proteção dentro do campus da UERJ, mas os seguranças os impediram de entrar. Com o uso de violência física e jatos de água, o Goe danificou a entrada do prédio e gerou um grande tumulto que potencializou a revolta de todos. O tumulto durou algumas horas na Uerj e outras tantas na favela, tendo a comunidade fechado a Radial Oeste, uma das vias mais importantes da zona norte do Rio. No dia seguinte, tratores e caminhões da Companhia de Limpeza Urbana do Rio (Comlurb) estiveram no local para recolher o entulho das demolições do dia anterior mas foram impedidos de entrar na comunidade. Os moradores entendiam que esta ação facilitaria o acesso de retroescavadeiras a outras residências, o que permitiria novas demolições em outras oportunidades. Os ânimos só voltaram à normalidade com a notícia de que o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública conseguira uma liminar proibindo a prefeitura de realizar novas demolições de residências no local. Outro impacto importante é o chamado Projeto de Revitalização da Marina da Glória. A CDDHC realizou uma audiência pública, em junho de 2015, para ouvir as denúncias da sociedade civil acerca das irregularidades do projeto. Foram convidados o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Superintendência de Patrimônio da União (SPU), a Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae), o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), a União das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no Brasil, a Secretaria Municipal de Conservação e a Br Marinas, empresa responsável pela concessão adquirida da MGX (compra de concessão considerada ilegal), do empresário Eike Batista; além de pessoas da sociedade civil organizada, a saber: Associação de Usuários da Marina da Glória (Assuma), Federação de Remo do Estado do Rio de Janeiro, Federação de Associações de Moradores do Rio de Janeiro (FAM-Rio) e Ocupa Marina. Todos da sociedade civil compareceram, e apenas Cedae e a SPU se apresentaram para a audiência. As motivações para a organização dessa audiência em 2015 se deu pela autorização por parte da Secretaria Municipal do Meio Ambiente autorizar o corte de 298 árvores do Parque do Flamengo nos arredores da Marina. No entanto, os problemas em torno do projeto não são recentes. Segundo a Assuma e a FAM-Rio, há pelo menos 10 anos lutam pela manutenção do espaço público do Parque, pela recuperação da área do bosque de piqueniques, ilegalmente fechada. Além disso, não há garantia da função náutica da Marina da Glória, ao invés disso, a proposta é a construção de um salão de exposições e festas como consta no novo projeto da Marina da Glória. A justificativa


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da prefeitura é adequar o espaço às competições de vela para as Olimpíadas, fato contestado pelas associações. Toda a Área do Parque do Flamengo é tombada pelo Iphan, incluindo toda a sua área marítima em até 100 metros da praia. Também é tombado pelo município, além de fazer parte do sítio declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco como Paisagem Cultural Urbana. O tombamento realizado em 1965 foi feito para garantir que a área se mantivesse totalmente pública, com fins de lazer de baixo impacto, não comercial, educacional e de recreação aberta à população, especialmente às crianças. Por isso, qualquer manutenção e ampliação de atividade comercial, de eventos e exploração privada de atividade e comércio náutico é ilegal. O projeto atual de revitalização foi aprovado em tempo recorde pelo Iphan, apesar de algumas recomendações que foram encaminhadas em novembro de 2014 à Secretaria Especial de Concessões e Parcerias Público Privadas (SECPAR) e não ao Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio. A Federação de Remo chama a atenção para o fechamento da rampa do Calabouço, uma área pública e patrimônio da União que não foi cedida a ninguém. O questionamento é justamente as motivações que há quase 10 anos impede o acesso público a essa importante rampa que garantiria minimamente ingresso livre a Baía de Guanabara e suporte às atividades náuticas populares, ou mesmo fomentar uma cultura náutica na população carioca. A SPU informou que há algumas décadas, no período da ditadura militar, foi concedido uma cessão por aforamento de um espaço equivalente a 105.890 m² que engloba a área da Marina e que com o projeto atual haverá uma redução para 84.000 m². Segundo o superintendente, não há como a SPU tratar do contrato de concessão da Marina da Glória, mas, em síntese, que se dispõe a discutir o caráter público da gleba referente ao Parque do Flamengo como um todo, incluso a rampa. Os convidados da sociedade civil sugeriram a formação de um grupo de trabalho para realização de um debate amplo sobre o parque e o papel da SPU. Outro aspecto que devemos destacar é o fato do projeto e suas obras causarem fortíssimo impacto ambiental nesta área, sem que houvesse qualquer Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ou Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV no âmbito municipal). O Inea não exigiu a realização de EIA-Rima do projeto de revitalização da Marina Glória e não ponderou a permissão do projeto interferir no espelho d´água da Baia de Guanabara que está fora no objeto de concessão do equipamento. O Inea foi oficiado pela CDDHC para dar esclarecimentos.

1. Tubulação para captar efluentes lançados em galerias de águas pluviais.

As obras que visam a melhorar a qualidade das águas da Marina da Glória, segundo a imprensa, foram iniciadas no início de outubro 2014. A Cedae é responsável pela construção de uma galeria de cintura1 para impedir o lançamento de esgoto sem tratamento na região. Os convidados da sociedade civil questionaram a presença evidente de esgoto nas águas da Marina, e que não é possível perceber qualquer tipo de obra sendo realizada. O contrato firmado entre a Cedae e o comitê organizador dos Jogos Olímpicos tem prazo de 12 meses. O acordo firmado é para que o local esteja preparado para as Olimpíadas. Na audiência, o representante da Cedae informou que estão fazendo uma captação de todas as saídas de água pluvial com uma estação a tempo


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seco para jogar diretamente ao interceptor oceânico, ligado ao emissário submarino de Ipanema. O custo da obra é de R$15 milhões com previsão de término para dezembro de 2015. Por essa razão, as intervenções não estavam concluídas em agosto 2015, mês do último evento-teste das Olimpíadas. No mesmo período da audiência, quando foi solicitado inúmeras informações via ofício às instituições ausentes, a FAM-Rio encaminhou uma Ação Civil Pública à Justiça Federal pedindo a anulação da licença do projeto pelo Iphan. Em julho, havia sido aprovada a suspensão das obras, mas logo depois foi revogada. Em setembro, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj (CDDHC) recebeu resposta do Iphan acerca do ofício onde (i) solicitou-se as justificativas de licença do projeto; e (ii) registrou-se o fato de que o Plano de Gestão do Parque do Flamengo havia sido elaborado com participação popular, o que não ocorreu na prática, conforme relato das organizações da sociedade civil presentes na audiência. Fica claro nos documentos enviados que o plano foi realizado primordialmente por consultoria já que o Iphan se restringiu a encaminhar o plano, o termo de referência para realização de um plano diretor. Sobre o corte das árvores, a CDDHC enviou uma petição ao Ministério Público do Estado solicitando vista dos autos, e como resposta foi informado de que se declinou a competência para o Ministério Público Federal. E as obras continuam seu curso. A Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos são os eventos que têm suscitado inúmeras intervenções urbanas, apresentadas como legado para os cariocas. Vimos que existem várias questões nebulosas em torno dos projetos, ao mesmo tempo que já são evidentes os impactos sociais, urbanos e ambientais em nome de uma cidade-global a todo custo. A CDDHC se manterá atenta aos processos ligados aos megaeventos, os seus resultados e o legado para a cidade e sua população.

3.1. O CAJU NO CONTEXTO DO PROJETO PORTO MARAVILHA A área portuária é um dos locais do Rio de Janeiro que tem mais sofrido com as transformações urbanas em curso por conta dos Megaeventos Esportivos. O Projeto Porto Maravilha é a intervenção mais emblemática que revela a pressão evidente para a viabilidade de um projeto de cidade que tem promovido inúmeras violações de direitos, sobretudo, o direito à cidade. As remoções não são os únicos efeitos negativos desse processo. O bairro do Caju é um exemplo que reflete a forma de inserção das pessoas que residem na região no Porto Maravilha, isto é, simplesmente desconsiderando-as. Entre as medidas em curso nos bairros, observou-se diversas ações e intervenções que se direcionam para atividades turísticas e corporativas. Segundo a proposta, a paisagem urbana se modificará radicalmente em razão, não só da derrubada da Perimetral, mas da presença de arranha-céus, Veículos Leves sobre Trilhos (VLT), teleférico e museus assinados por arquitetos famosos. Uma paisagem bem diferente da história dos bairros da zona portuária que sofrem as intervenções do Porto Maravilha. Bairros que possuem um acervo patrimonial material e imaterial de grande valor histórico


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2. Offshore são atividades realizadas por empresas petrolíferas de prospecção, perfuração e exploração. 3. Operações urbanas consorciadas é um instrumento do Estatuto da Cidade (lei 10257/2001) que permite intervenções sob a coordenação do poder público “com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área, transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”. É possível delimitar uma área para elaboração de um plano de ocupação, no qual estejam previstos aspectos tais como a implementação de infraestrutura, alterações de usos, densidades, etc. 4. Estatuto da cidade “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. É fruto da mobilização histórica do movimento de reforma urbana

para cidade, além de guardar memória urbana fundamental para a preservação das raízes da cultura carioca. Isto porque a história da cidade do Rio se inicia ali, desde a presença da monarquia, à história da escravidão e os diversos processos de resistência ao longo dos séculos. É uma área da cidade historicamente associada à presença dos negros, assim como ao “descartável”, à insalubridade, já que ali se depositavam o lixo, e os corpos dos africanos recém-chegados que não resistiam a viagem até o Brasil. Pode-se avaliar que o Projeto Porto Maravilha tem sido uma forma de apagar ou “esbranquiçar” essa história, bem como outras tentativas de intervenções que se sucederam nos séculos XIX e XX. A população do Caju corresponde a 40% da população da área portuária. Com a implantação da Av. Brasil nos anos 1940 e o cemitério, o bairro se encontra isolado do restante dos bairros da região. Também é margeado pela poluída Baía de Guanabara e pela ETE Alegria. Ainda possui casarios antigos e indústrias de cimento e naval em meio as casas das favelas. As atividades industriais e offshore2 contribuem para a grande circulação de caminhões carregados de contêineres. Segundo o Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio de Janeiro (CET-Rio), cerca de 650 caminhões circulam todos os dias pelo Caju. Em função desses fatores, o Caju é considerado um dos bairros mais poluídos da cidade do Rio de Janeiro. É importante ressaltar o desmantelamento da atividade pesqueira. Inúmeros fatores contribuem. Segundo os próprios pescadores, a falta de estrutura e apoio por parte do estado e do governo federal, poluição da Baía de Guanabara e redução crescente de trabalhadores favoreceram o desaparecimento da pesca no Caju. A alternativa às atividades pesqueiras têm sido o transporte de mercadorias no espelho d'água da baía.

no Brasil no sentido de garantir um marco regulatório para a política urbana a partir dos princípios do art. 182 2 183. 5. Na página eletrônica www. portomaravilha.com.br, o Porto Maravilha abrange o quadrilátero entre as avenidas Rio Branco, Presidente Vargas, Francisco Bicalho e Rodrigues Alves, nos bairros da Gamboa, Santo Cristo e Saúde, morros do Pinto, Conceição, Providência e Livramento e parte do Caju, São Cristóvão, Cidade Nova e Centro.

O Caju já foi um importante balneário real da cidade. Dificilmente conseguimos vislumbrar essa história, mas ainda é possível visitar o entorno da Casa de Banho Dom João VI quando no século XIX a área desfrutava de uma paisagem natural quase intocada. Hoje, é administrado pela COMLURB, mas o Museu da Limpeza Urbana no qual se tornou em 1996, encontra-se fechado. A falta de envolvimento e de participação efetiva da população na Operação Urbana Consorciada3 (OUC), que estrutura o Projeto Porto Maravilha, demonstram o descolamento dos princípios constitucionais relacionados à gestão democrática e as funções sociais da cidade e da propriedade (art. 182 2 183), e do Estatuto da Cidade4. Inclusive, a desconsideração do bairro do Caju5 da OUC atesta a visão fragmentada da área portuária e os objetivos de transformação urbana com foco na promoção de um processo paulatino de gentrificação. Ou seja, quando as mudanças urbanas em uma área empobrecida e precária, provocam valorização imobiliária, encarecimento do custo de vida e, consequentemente, mudanças do perfil social, já que a antiga população pobre não consegue, nesse contexto de gentrificação, se manter no bairro. A justificativa para a retirada do bairro foi os custos elevados para operação, um contrassenso, pois o Caju é o maior arrecadador de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do estado. Apesar desse cenário de abandono, o Caju arrecadou R$ 1,67 bilhão em 2010, o terceiro maior porto gerador de ICMS do país. Estimativas do governo do estado indi-


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cam que cerca de R$ 95 milhões teriam sido repassados ao governo municipal. Além disso, o município recebeu, conforme estimativas da Companhia Docas/RJ, cerca de R$ 250 milhões em Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Uma grande contradição tendo em vista as observações in loco da CDDHC em visita às favelas e ocupações do bairro. Um dos locais visitados pela CDDHC foi a ocupação do Hospital São Sebastião, fechado em 2008, o primeiro hospital de isolamento do Rio que era responsável pelo tratamento de doenças contagiosas, além de diversos outros tratamentos direcionados à população do Caju. Atualmente, há dezenas de famílias que ocupam os prédios dos fundos do hospital em condições extremamente precárias. Há lixo e ratos por toda a parte, ao mesmo tempo que há risco eminente devido à presença de lixo hospitalar e material contaminado. Ali falta tudo: abastecimento de água, esgotamento, coleta de lixo, etc. É uma área extremamente insalubre. Cabe ressaltar, que o prédio principal do século XIX (1890) havia sido ocupado por dezenas de famílias, conforme relato dos moradores de Vila dos Sonhos. Mas em 2013, a prefeitura despejou essas famílias oferecendo o aluguel social, deixando o prédio, que tem importância histórica para a cidade, em ruínas. A matéria do jornal O Globo de julho de 2012, “Governo inicia demolição de construções irregulares no Caju”6, revela que a EMOP (Empresa de Obras Públicas do Estado) estava prevendo construir no terreno, um conjunto do Minha Casa Mina Vida, por essa razão houve remoções na região. Os que se mantiveram, continuam vivendo em condições subumanas. Fica evidente os processos segregação e de injustiça ambiental numa região em que o foco é a constituição de uma política territorial (ou a ausência de uma) voltada à cadeia produtiva do petróleo e a expansão do porto, e não às pessoas que ali vivem. Inclusive, para o mercado imobiliário da região, a terra urbana ali tem valor bastante inferior aos outros bairros da área portuária, dado que mostra o quão precário é o bairro do Caju. Esse ano, foi iniciado a divulgação de um processo controverso e pouco transparente de elaboração do Plano de Habitação do Porto, em função de uma resolução do Ministério das Cidades. A Instrução Normativa nº33 vincula a liberação de recursos do FGTS para o Certificado de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) à elaboração de um plano de habitação. Os Cepacs são os títulos correspondentes ao estoque de potencial construtivo dos terrenos para além do permitido na região. Esse é um mecanismo de geração de receita para OUC previsto no Estatuto da Cidade, mas que no caso do Porto Maravilha, foram comprados pelo Caixa Econômica Federal com recursos do FGTS, assumindo assim os riscos de mercado da operação. Também no plano de habitação, o bairro do Caju foi excluído, mesmo com a necessidade urgente de medidas que melhorem as condições de moradia e redução do deficit habitacional no bairro. Como o Caju tem se caracterizado por um bairro à margem dos processos em curso na área portuária, apesar de sua centralidade em diversos aspectos, a CDDHC organizou a realização de um OCUPA DH, realizado no mês de julho de 2015.

6. Cf. COSTA, Ana Claudia. Governo inicia demolição de construções irregulares no Caju. O Globo, Rio de Janeiro, 3/7/2012. Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/ governo-inicia-demolicao-deconstrucoes-irregulares-nocaju-5380466#ixzz3rgL42NyV.


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3.1.1. OCUPA DIREITOS HUMANOS NO CAJU A CDDHC Alerj esteve no Complexo do Caju, em 20 de junho de 2015, para percorrer o bairro, colher relatos de violações de direitos humanos e atender a população. No total, foram realizados mais de 40 atendimentos, de 10h às 15h, que geraram 25 protocolos. Os principais problemas apresentados, em ordem de menções, foram relativos à Moradia, Segurança Pública, Saúde, Educação e Assistência Social. No quesito moradia, a maior parte das pessoas ouvidas solicitou inserção no programa Minha Casa, Minha Vida e cadastramento para receber o aluguel social. Sobre Segurança Pública, foram colhidos relatos sobre abuso de autoridade praticado por policial da UPP. Inclusive, há relatos de que policiais fazem vistoria nas casas com o argumento de que realizariam um levantamento para programas habitacionais, o que se configura como uma prática ilegal. Em Saúde, houve queixas sobre enchentes, falta de saneamento básico, problemas respiratórios provocados pela poluição causada pela grande circulação de caminhões e dificuldade para obter atendimento na rede de alta complexidade. A principal reclamação relativa à Educação é a falta de vagas nas escolas e creches locais. A falta de documentação se configura como uma das grandes dificuldades para a inserção em programas sociais, como o Bolsa Família. Segundo o Instituto Pereira Passos, cujo levantamento tomou como base o Censo Demográfico do IBGE de 2010, 16.117 pessoas vivem no Caju, que é formado por nove comunidades: Parque Alegria, Parque Vitória, Vila do Mexicano, Parque Boa Esperança, Parque da Conquista, Parque São Sebastião, Ladeira dos Funcionários, Parque Nossa Senhora da Penha, Quinta do Caju. Um dos locais mais precários é a Favela do 950, situada no Parque Conquista, onde famílias vivem em situação de pobreza extrema. Ela é formada por cerca de 80 bar­ racos de compensado construídos entre o muro da garagem da empresa de ônibus 1001 e um valão, onde não há acesso à água tratada e à rede de esgoto. A conexão à rede elétrica foi feita pelos próprios moradores de forma improvisada, o que acarreta riscos de curto-circuito e incêndios. As famílias ainda correm risco porque há um estande de tiros da polícia próximo ao local. Há diversos furos provocados pelos projéteis nas paredes. Parte da pista entre o valão e as casas cedeu, o que põe em risco a segurança dos moradores – há muitas crianças vivendo no local. Segundo a população, o afundamento ocorreu após uma retroescavadeira dragar o rio. Também houve queixas a respeito da presença de insetos e ratos. A situação também é preocupante na ocupação do antigo Instituto de Infectologia São Sebastião, onde dezenas de famílias sobrevivem em situação de risco, tanto devido ao lixo hospitalar acumulado no terreno abandonado, quanto pela precária estrutura dos imóveis, que apresentam infiltrações e vergalhões a mostra. Como há muito lixo no local, há infestação de ratos e mosquitos. Uma criança, inclusive, foi mordida por rato.


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A ocupação do instituto é uma das consequências dos graves problemas no acesso à moradia no Rio de Janeiro e no Caju. Muitas famílias migraram para este local com a promessa de que entrariam para o programa Minha Casa, Minha Vida. Muitos moradores da Favela do 950 e do Instituto de Infectologia São Sebastião sofrem com problemas de saúde.

3.1.2. ENTREVISTA: MARIA DE FÁTIMA DA SILVA

“Estamos à mercê de uma destruição psicológica” Leon Diniz Maria de Fátima denuncia o abando do Caju e critica o Porto Maravilha

H

á 43 anos vivendo no bairro do Caju, uma das lembranças mais antigas de Maria de Fátima da Silva, 52 anos, é a alegria dos dias em que a colônia de pescadores distribuía gratuitamente peixes para a população. Hoje, a colônia e as memórias foram engolidas pelas águas poluídas pelas empresas que atuam às margens do Caju. Não é só o mar que está sujo. Quem circula pelo Caju à noite e olha para os postes de iluminação vê a nuvem de sujeira que os moradores respiram todos os dias. Poluição provocada pela grande quantidade de caminhões e carretas que trafegam pelo bairro. Há muitos casos de crianças e idosos com graves problemas respiratórios. Maria de Fátima é presidente da Associação de Moradores do Parque São Sebastião. Um dos principais problemas da comunidade é o abastecimento de água. Ela é escura e chega com um cheiro ruim às casas, provocando doenças de pele e problemas gastrointestinais.


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Não são só as lembranças de dona Fátima e a colônia de pesca que estão sendo engolidas. Todas as oito comunidades do bairro do Caju estão sendo devoradas aos poucos pelo abandono do poder público. CDDHC: Quando a senhora veio morar no Caju e qual sua lembrança mais antiga? Maria de Fátima: Eu cheguei aqui com nove anos. Estou com 52. Na verdade, eu morava perto do Caju, lá para os lados dos bombeiros. Tinham 16 barracos e eu vim morar com minha avó. Fiquei ali até meus 12 anos. Aí minha mãe veio para o Rio, alugou um barraco e fomos morar juntas. Moramos no 950 (favela dentro do Caju). Vim para cá (Parque São Sebastião) com 15 anos e fiquei. Teve uma chuva aqui que não me sai da memória. Choveu gelo, muito gelo. E a gente que morava em barraco... Meu avô colocou a gente dentro do guarda-roupa. As telhas quebraram. O Caju alagou. Aliás, o Caju sempre alaga. Nós ficamos sem luz. Foi um caos. Lembro da colônia de pescadores. Nós ganhávamos peixe. Eles vinham com as cumbucas cheias de peixe e distribuíam para a gente. As coisas eram precárias, mas o Caju não tinha tanta poluição como agora. Tinha mais espaço, mais liberdade. Depois foi crescendo. Empresa para lá, empresa para cá. Elas foram destruindo o que tinha de mais rico no Caju: a colônia de pescadores. Isso aí foi a pior coisa que pode acontecer. CDDHC: Além da poluição, há problemas graves de saúde e saneamento básico no Caju. Maria de Fátima: O Caju cresceu na população. A gente sabe pelas eleições que só de eleitores temos 40 mil. Isso só quem votou. Tem muito mais gente. Existem oito comunidades aqui, elas cresceram para cima. Minha comunidade tem 12 mil habitantes, foi a primeira do Programa Favela Bairro. A demanda na época, há 20 anos, era de 7 mil habitantes. Agora são 12 mil. Esgoto e água são nossas dificuldades. O posto de saúde era bem precário, mas atendia a demanda. Agora, o responsável pelo posto conseguiu trazer mais coisas. Hoje temos sete equipes no Caju, mas, te pergunto, você acha que é louvável sete equipes para atender 60 mil habitantes? Precário, né? Sem contar que vem pessoas de outros lugares. Pediatra, ginecologista, ortopedista, dermatologista são coisas que fazem falta. CDDHC: Durante o Ocupa DH, um dos principais problemas mencionados pelos moradores é o abastecimento e a qualidade da água. Maria de Fátima: Há uns três anos tínhamos um morador aqui que ajudava a limpar a caixa d´água. Ele fazia essa limpeza, mas dizia que o reservatório precisava de manutenção porque estava com infiltração. Já veio equipe da Cedae aqui. Eles tiram foto, fazem levantamento, diz que vai fazer e acontecer... Eram duas bombas, mas só uma está funcionando. Então sobrecarrega. A água sai preta. Digo que está contaminada porque ali (em cima do reservatório) para cavalo, cachorro e quando chove a água empossa e infiltra. Essa água vai para dentro da cisterna. Ela está cheia de lodo, vem com um odor muito forte, insuportável. Tivemos problema de pele. Têm crianças e adultos afetados.


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Eu compro água. Mas e as pessoas que não têm dinheiro para comprar o pão de amanhã? Vai comprar também? E o gás para ferver a água? Estamos à mercê de uma destruição psicológica, de autoestima. É forte essa palavra? É. Mas infelizmente é a realidade. Você fica doente com diarreia. Dá problema no estômago da criança … A pessoa se desespera porque não tem dinheiro para a passagem para ir na UPA. E quando chega lá está cheio. CDDHC: Por que você acha que o Caju sofre com esse abandono? Maria de Fátima: Acho que é descaso, falta de respeito, amor. A maioria das pessoas veem aqui como o bairro do cemitério, das carretas, da violência. Infelizmente se tornou um bairro industrial e isso está matando a nossa essência e das pessoas que fizeram história aqui dentro, que construíram o Caju. Antes não tinha empresa e o Caju sobrevivia. Hoje vemos pessoas com problema de pulmão... Tudo isso aumentou, e ninguém faz nada. Aqui merecia uma clínica da família, decente. Fui para o Centro e demorei mais de duas horas para chegar lá. Imagina uma pessoa passando mal? Vai morrer no caminho. Uma coisa boa que aconteceu aqui foi a Vila Olímpica, mas ela não atende a demanda do bairro do Caju. Precisamos de mais. Nossos problemas são coisas normais. CDDHC: Qual sua opinião sobre o Ocupa Caju e as ações da Comissão de Direitos Humanos da Alerj no bairro? Maria de Fátima: Foi muito importante. Eu já tinha a curiosidade de entender melhor o trabalho de vocês. O morador de comunidade precisa conhecer seus direitos. Sempre gostei de trabalhar em cima disso. Quando vocês entraram aqui pensei que era uma boa oportunidade. Pensei: quando nós estivermos buscando os nossos direitos, eles vão nos apoiar. E eu não esperava que vocês voltassem. Alguns órgãos vêm aqui, uma vez só. Tenho mania de dizer que é curiosidade. Fazem uma visita e nunca mais voltam. É muito importante para a comunidade ser reconhecida, assistida, passar para vocês a nossa visão, a luta que temos aqui dentro. Uma luta contra um poder maior, prefeitura e governo. Eles poderiam aprender mais um pouco com vocês. Ouvir pelo menos. Sabemos que vocês não podem fazer muita coisa, mas quando vocês gritam são ouvidos. E nós? Talvez na hora, mas depois somos esquecidos. Só somos ouvidos quando tem violência na comunidade. Vem jornal e noticia... E depois acabou. E vocês são o canal. Vamos dizer que, de dez batalhas, vocês vençam quatro ou cinco, é uma grande vitória. E esse Porto Maravilha? Às vezes fico pensando. Se pudessem eles botavam um muro para nos separar. Por que o Caju não entrou no projeto se faz parte do porto? Eu sou leiga, não tenho entendimento. Só faço essa pergunta: por que nós ficamos fora?

3.1.3. INICIATIVAS DA CDDHC Após a análise das reivindicações e depoimentos colhidos, a CDDHC encaminhou ofícios para os seguintes órgãos: Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP), Ouvidoria geral das UPPs, Secretaria Municipal de Habitação (SMH), Secretaria Municipal de Educação (SME), Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), Companhia Estadual de Habitação (CEHAB), Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC), Secretaria Municipal de Obras (SMO), Fundação Instituto de


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Geotécnica (Geo-Rio), Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), Companhia Estadual de Águas e Esgoto (CEDAE) e Light – Serviços de Eletricidade S A. Destes 12 órgãos e empresas oficiadas, apenas a CPP, ouvidoria geral das UPPs, SME, COMLURB e Light responderam nossas indagações e denúncias. Em resposta ao Ofício 267.2015, a Light informou que os técnicos estiveram no Parque São Sebastião, mas foram informados pela direção da associação de moradores da comunidade que o endereço em questão não existiria, bem como os problemas apontados. Além disso, a Light explicou que não realizam vistorias em locais considerados de risco para os servidores públicos. Em suma, os cidadãos têm direitos básicos negados pelo próprio Estado que, apesar do discurso da retomada de território com as UPPs, não garante a prestação adequada dos serviços. O ofício enviado à Secretaria Municipal de Educação (SME) tratou da falta de vagas nas creches locais. A secretaria respondeu que, junto com o Instituto Pereira Passos, está produzindo o estudo “Georreferencial da cidade para a implementação de novas construções de equipamentos escolares, por intermédio do Programa Fábrica de Escolas do Amanhã”. A SME também informou que a pesquisa é baseada em “critérios como a área com déficit de salas de aula; infraestrutura social existente ou futura, acesso a transporte de massa e nível de violência; Regiões com terrenos próprios municipais; áreas mais pobres com baixa renda domiciliar; dentre outros aspectos”. Em resposta ao ofício 266.2015, referente à Favela do 950, a Defesa Civil informou que, em maio de 2015, vistoriou o local, onde as demandas expostas foram analisadas. O órgão explicou que está em contato com a Secretaria Municipal de Assistência Social e que os moradores pediram a interdição das casas. Cabe observar que a vistoria feita um mês antes dos atendimentos locais da CDDHC pouco modificou a vida daqueles moradores. Apenas o Centro de Referência de Assistência Social da região atendeu parte daquela população, e até o fechamento deste relatório, nenhuma daquelas pessoas obteve resposta em relação à moradia. Em ofício enviado à CPP e à Ouvidoria da UPP questionando as denúncias de que policiais militares entrariam nas casas sob a justificativa de que cadastrariam moradores para o programa Minha Casa, Minha Vida. A Polícia Militar informou que não tem competência institucional para realizar este tipo de tarefa. A major PM Joyce Albuquerque, comandante da UPP do Caju, afirmou que o Grupamento Tático de Polícia de Proximidade (GTPP) visita os locais para avaliar quais ações sociais podem ser implementadas nos locais. Os ofícios enviados à SMO, CEHAB e SMH não foram respondidos até o fechamento deste relatório. É importante registrarmos o descaso destas secretarias em relação aos problemas apresentados pela CDDHC. Estes órgãos são constantemente questionados pela Comissão, mas não costumam responder às solicitações, principalmente quando se trata de assuntos relativos a problemas habitacionais. O Ocupa Caju foi encerrado com atividades culturais na Casa de Banho, localizada na Praia do Caju, 385. O equipamento é um símbolo da luta dos moradores por melhorias


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no bairro. A casa foi comprada pelo príncipe regente Dom João VI após um médico lhe indicar o banho de mar para curar uma ferida na perna provocada pela picada de um carrapato. Atualmente, em oposição aos desejos da comunidade, na Casa de Banho funciona o Museu da Limpeza Urbana, vinculado à Comlurb. Os moradores do Caju reivindicam o espaço para a realização de atividades culturais e preservação da memória e história do bairro. Mesmo com tantas adversidades, não se pode deixar de mencionar o papel fundamental daqueles que dedicam a vida na luta diária pela garantia dos direitos das pessoas que vivem nestes locais. Para a realização do Ocupa Direitos Humanos no Caju, a CDDHC contou com o apoio de muitos moradores, líderes comunitários, ativistas culturais e militantes do bairro. É sabido que a institucionalidade e a burocracia nem sempre darão respostas imediatas, mas graças ao diálogo com população e organizações locais, a equipe da CDDHC tem construído uma maneira diferente de atuar em conjunto com a sociedade.

3.2. JUSTIÇA AMBIENTAL E SANEAMENTO NA REGIÃO DA BAÍA DE GUANABARA Por Ana Lucia Britto*

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om a realização dos Jogos Olímpicos de 2016, a questão da poluição da Baía de Guanabara reapareceu com força na mídia como um problema a ser enfrentado. O governo já assumiu que não conseguirá atender o objetivo assumido de chegar à cifra de 80% do esgoto tratado, conforme acertado no dossiê de candidatura apresentado ao COI. Atualmente, segundo dados do governo do estado cerca de 50% dos esgotos são tratados. Reconhecendo a importância do problema ambiental da poluição das águas da Baia, esse texto pretende examiná-lo sobre um outro prisma, isto é, examinar a questão do saneamento ambiental da região da Baía de Guanabara, pela perspectiva da Justiça Ambiental. O conceito de Justiça Ambiental surge nos anos 80 nos Estados Unidos, a partir de uma denúncia de grupos ambientalistas e minoria étnicas sobre a distribuição desigual da poluição, que afetava mais determinados grupos étnicos e categorias socais, isto é negros e pobres, sendo esta distribuição reconhecida como uma forma de injustiça ambiental. Esta denúncia dá forma ao Movimento de Justiça Ambiental, que estrutura formas de resistência e formas novas de produção de conhecimento, dando origem a pesquisas multidisciplinares sobre as condições de desigualdade ambiental no país (Acselrald, et al. 2009). Dentre as formas de desigualdade ambiental, ou de injustiça ambiental, estão aquelas relacionadas ao saneamento, envolvendo o acesso a um recurso ambiental fundamental, a água potável, e a um ambiente de vida com condições sanitárias adequadas. No

*Ana Lúcia Brito é professora associada do PROURB - UFRJ


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território que corresponde a Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara que abrange os municípios de Niterói, São Gonçalo, ltaboraí, Tanguá, Guapimirim, Magé, Duque de Caxias, Belford Roxo, Mesquita, São João de Meriti e Nilópolis e parcialmente os municípios de Maricá, Rio Bonito, Cachoeira de Macacu, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro o complexo quadro dos serviços de saneamento pode ser melhor caracterizado por duas dimensões de injustiça ambiental: (i) a permanência de um acesso precário aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, que afeta sobretudo os grupos mais vulneráveis, isto é, os pobres urbanos que vivem nas periferias e nas favelas; (ii) o surgimento possível de novas desigualdades sociais no acesso a esses serviços, geradas pelo impacto diferenciado dos custos dos mesmos sobre a renda familiar. No que concerne o acesso aos serviços de saneamento no território da Bacia da Baía de Guanabara essa injustiça ambiental é claramente evidenciada. Condomínios de classe média alta nos bairros da Barra da Tijuca e Recreio, que foram construídos a partir dos anos 80, não sofrem com a falta de água e não convivem com esgotos a céu aberto, mas esses problemas são frequentes nos bairros populares dos municípios da Baixada Fluminense e de São Gonçalo, ocupados na mesma época, ou mesmo antes. Nesses bairros existem problemas graves de frequência no abastecimento que se resume, usualmente a duas a três vezes por semana. O problema envolve tanto a disponibilidade de água tratada, que não é suficiente para atender a demanda da região da Baixada, nem municípios do leste metropolitano como São Gonçalo e Itaboraí, quanto da estrutura de reservação de distribuição de água, que daria maior segurança ao abastecimento, mas que nessas áreas também não é suficiente. A situação dos reservatórios de distribuição explica, em parte a intermitência no abastecimento e a necessidade constante de manobras de água. Em Belford Roxo, dos cinco reservatórios existentes apenas um encontra-se em funcionamento (CONEN, 2013). No município de Queimados existe apenas um reservatório para atender a população, localizado no centro do município. Do outro lado da Baía de Guanabara em São Gonçalo, considerando dados do Censo do IBGE de 2010, haveria no município quase 150.000 pessoas sem acesso aos serviços de água. Por outro lado, há irregularidades no abastecimento mesmo em áreas atendidas pelo sistema, também causadas por falta de reservatórios para regular a distribuição de água tratada. São Gonçalo possui sete reservatórios, mas segundo diagnóstico do Plano Municipal de Saneamento, “há décifit significativo de reservação no município de São Gonçalo, sendo o déficit maior que o volume de reservação existente” (ENCIBRA, 2014). Sem reservação adequada para a distribuição de água tratada, o abastecimento torna-se irregular em parte significativa do município. Em Itaboraí, o Censo do IBGE de 2010 indica um percentual de população atendida de apenas 27%; o Plano Municipal de Saneamento de 2014 indica 29% de população atendida pela CEDAE. Assim, medida que se garante o abastecimento às áreas nobres da região da Baía de Guanabara, e a companhia responsável pela gestão dos serviços, a CEDAE, garante que não faltará água durante os Jogos em 2016, mesmo porque as instalações olímpicas contarão com enormes cisternas, as áreas populares vivenciam há décadas problemas de abastecimento de água decorrentes da incompletude dos sistemas.


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No que concerne o esgotamento sanitário os indicadores são ainda mais precários. Os índices de atendimento com rede de esgotamento são inferiores à 50% em quase todos os municípios. As exceções são os municípios onde se concentra a população de maior renda, Rio de Janeiro e Niterói. Se a coleta do esgoto é precária na maior parte dos municípios, o tratamento do esgoto coletado é também extremamente insuficiente, estando acima de 50% somente nos municípios do Rio de Janeiro e de Niterói. Segundo Acselrad (2009) a produção da injustiça ambiental pode se dar pela execução de políticas ambientais (ou pela falta delas) direcionados às populações socialmente excluídas em termos de renda, habitação, condições sociais. Não se pode dizer que a região da Baia de Guanabara não tenha sido beneficiada por políticas, programas e investimentos voltados para ampliar os sistemas de saneamento, contudo a baixa efetividade dos investimentos nas áreas populares é flagrante. Desde o início dos anos 80 foram realizados programas para ampliar o acesso ao abastecimento de água na Baixada e em São Gonçalo, contudo sua efetividade é baixa, pois não foram instalados sistemas completos para a distribuição, e o volume de água produzido pelos dois macro sistemas que atendem a região, Guandu e Imunana Laranjal, não é suficiente para atender a demanda desses municípios. Dentre os programas, destaca-se o PDBG, Programa de Despoluição da Baia de Guanabara, lançado no início dos anos 1990, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Japan Bank for International Cooperation (JIBC), e contrapartida do governo do estado, previa um amplo conjunto de obras para atender as necessidades prioritárias nas áreas de esgotamento sanitário, abastecimento de água, coleta e destinação final de resíduos sólidos, drenagem, controle industrial e monitoramento ambiental. O plano contemplava ainda investimentos no aparelhamento e na capacitação de recursos humanos nos órgãos ambientais. No entanto, mais de 20 depois do início programa as estações de tratamento de esgoto (ETEs) construídas ainda funcionavam bem abaixo de sua capacidade. As duas localizadas na Baixada Fluminense, Pavuna e Sarapuí, operavam no início de 2015 com respectivamente 48% e 20% de capacidade; a ETE São Gonçalo com 18% da capacidade. Os baixos índices são decorrentes da não conclusão das redes coletoras, cuja maior parte do financiamento era de responsabilidade do governo estadual. Os recursos do JBIC foram destinados para financiar 100% das estações de tratamento de esgoto (ETEs) e 35% da implantação das redes coletoras de esgoto. Os demais 65% dos investimentos na rede coletora provinham da contrapartida do governo do estado do Rio de Janeiro. Como a contrapartida estadual não foi cumprida, as estações construídas passaram a operar abaixo de sua capacidade. A não conclusão dos coletores de esgoto, necessários para a coleta e o transporte de esgotos às ETEs, comprometeu os resultados do programa. Da mesma forma não foi feita a complementação dos sistemas de abastecimento de água, que dependiam também da contrapartida estadual. Foram construídas sub-adutoras e redes tronco e reservatórios, visando a setorização e a regularização da oferta de água na Baixada Fluminense. No entanto, devido a problemas no sistema de adução para a Baixada os reservatórios permanecem vazios e as redes instaladas não levam efetivamente água à população. Hoje o abastecimento da região se faz através de manobras no sistema, o que implica que determinadas áreas nunca têm um abas-


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tecimento contínuo. A solução passa necessariamente por uma ampliação do sistema de adução para Baixada. Observa-se, todavia, que ao longo do período de desenvolvimento do PDBG, e de impasses nos investimentos do governo do estado na Baixada Fluminense e em São Gonçalo, não houve descontinuidade nos investimentos para garantir acesso adequado aos serviços nas áreas de expansão urbana das camadas de mais alta renda, privilegiadas pelo mercado imobiliário, como Barra da Tijuca e Recreio, o que denota a produção da injustiça ambiental pela política pública. O governo do estado anunciou recentemente que serão realizadas obras para ampliar a capacidade de produção de água do sistema Guandu para levar mais água para a Baixada, e que a solução da coleta e tratamento de esgotos na região da Baía será realizado através de Parcerias Público Privadas, reproduzindo o modelo de concessão adotado pela prefeitura do Rio de Janeiro em 2011 para a região da AP5, concessão onerosa, onde o concessionário privado é obrigado a pagar pelo direito de outorga em favor do poder concedente. Dentre desse modelo adotado, o concessionário privado deverá assumir a implantação e operação dos sistemas de coleta e tratamento de esgotos e a gestão comercial dos serviços, se responsabilizando pela cobrança das tarifas de água. Essa alternativa precisa ser discutida pelo prisma da justiça ambiental. Como a gestão privada vai atender os usuários de baixa de renda? Existirá um modelo de tarifa social? Como serão tratados os usuários que não conseguirem arcar com os custos dos serviços. Vale lembrar que a tarifa será provavelmente acordada entre o concessionário privado e a CEDAE, que hoje a população do Rio de Janeiro paga a maior tarifa de água entre os estados da Região Sudeste, sendo o preço médio praticado é de R$ 3,16/m3 enquanto a média nacional é de R$2,62/m3; que as tarifas serão duplicadas em função da introdução da parte referente a coleta e tratamento de esgoto. Na perspectiva de uma gestão dos serviços socialmente justa é fundamental a discussão do impacto do valor das tarifas sobre a renda familiar. As experiências de concessão privada mostram que elas levam a um reforço na concepção de serviço como mercadoria, excluindo aqueles que não tem capacidade de pagar e aprofundando situações de injustiça ambiental. Será esse o cenário para o futuro da gestão do saneamento na região da Baía de Guanabara? A breve discussão aqui apresentada, subsidiada por um conjunto de trabalhos realizados no Laboratório de Águas Urbanas do PROURB-UFRJ, permite concluir que a injustiça ambiental caracteriza o acesso ao saneamento na Região da Baia de Guanabara e vem sendo reforçada pelas políticas públicas de saneamento implementadas; é necessário portanto repensar essa política pública e reconstruí-la com base na perspectiva dos direitos sociais e da justiça ambiental. Ações pautadas nessa perspectiva certamente serão benéficas para a despoluição desse patrimônio ambiental do Rio de Janeiro, objetivo ambicionado, mas até hoje não alcançado.

3.2.1. A REVITALIZAÇÃO DA MARINA DA GLÓRIA NÃO É PARA TODOS Com a aproximação das Olimpíadas de 2016, as intervenções nos equipamentos esportivos que serão utilizados nos Jogos e deixados como legado vem mostrando, mais uma


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vez, que a população não será a maior beneficiária. A verdade é que o discurso oficial de Cidade Olímpica construído pelas instâncias do governo municipal e estadual como uma cidade que avança na promoção dos direitos para a população carioca é uma falácia. Uma das maiores provas concretas é o fracasso da despoluição da Baía de Guanabara, mas não só. O fechamento de importantes Centros Esportivos como o Estádio Célio Barros, o parque aquático Júlio Delamare e Marina da Glória. Projetada originalmente por Amaro Machado para devolver o espírito náutico à cidade do Rio de Janeiro, a Marina da Glória, está a cada dia mais longe de cumprir esse destino. “Marina é lugar de barco, com destinação náutica. Mas há um desvio de finalidade. Esse espaço público vai ser transformado em um local fixo de eventos privados”, denunciou Luiz Goldfeld, usuário da Marina da Glória durante a audiência pública realizada, no dia 12 de junho de 2015, pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj sobre o tema. Na ocasião, foi revelado que a concessionária BR Marina está forçando os usuários a assinarem um contrato que dobra o valor já custeado e retira serviços como o abastecimento de água, luz e estacionamento. A BR Marinas, de acordo com os usuários da Marina da Glória, desembolsa mensalmente cerca de R$ 20 mil pela concessão do espaço público, mas detém 70% de seu faturamento com ações privadas como shows, eventos e área comercial. O edital de licitação da Marina da Glória prevê, no entanto, segurança náutica durante 24h com apoio aos usuários e turismo. Além da construção de uma escola de velas. O que se nota é que o projeto da BR Marinas ignora sua finalidade náutica e, além disso, pretende fechar a única rampa pública do Rio ao criar um deck para um restaurante sobre a rampa. “A Prefeitura não realizou um concurso público para o edital e não está preocupada com o legado náutico das olimpíadas”, afirmou Luiz Goldfeld. Entre os encaminhamentos acordados, na ocasião da audiência pública, está a realização de uma nova audiência conjunta com as Comissões de Direitos Humanos da Alerj e da Câmara dos Vereadores, além da convocação formal do Instituto Estadual de Ambiente (Inea) para explicações sobre o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) dessas construções na Marina da Glória.

LEGADO OLÍMPICO? De acordo com Sônia Rabello, da Federação das Associações dos Moradores do Município do Rio de Janeiro (FAM-Rio), o plano original do Parque do Flamengo é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mas o presidente do Iphan, no início do ano de 2015, autorizou o corte de centenas de árvores e não embargou as obras que o descaracteriza de sua finalidade educativa e náutica. Rabello também denunciou que a apropriação comercial da BR Marinas, que compreende mais de 10 mil metros quadrados, pertence a um cidadão estrangeiro que mora em Viena. Por isso, a FAM-Rio fez uma Ação Civil Pública que requer a nulidade do ato administrativo que permitiu o licenciamento pela Prefeitura das obras no Parque do Flamengo.


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“Não é de hoje que se sucateia o espaço público para privatizá-lo. E o Parque do Flamengo faz parte desse processo”, afirmou Marcelo Freixo ao encaminhar o envio de ofícios à Unesco e ao Iphan solicitando o plano de gestão da Marina da Glória; envio de pedido de informações ao Ministério Público sobre a ilegalidade no corte das árvores do Parque; ofício à Cedae para a disponibilização do projeto de esgotamento e abastecimento para os empreendimentos previstos pela BR Marinas; realização de audiência conjunta com o Tribunal de Justiça para ações comuns; além da solicitação à Prefeitura sobre o projeto para a Marina da Glória. A ausência do Inea na audiência pública foi questionada. Ao constarem a expansão ilegal da Marina da Glória, já que além da apropriação privada do espaço a BR Marinas inseriu grades em locais que dão acesso ao mar, a Federação de Remo do Estado fez diversas reivindicações. Entre elas está o embargo das obras até a construção da rampa pública do Calabouço. “Exigimos o respeito ao projeto original do arquiteto Amaro Machado e à lei que diz tratar-se de uma área pública não edificável. Reivindicamos a participação popular nas decisões do poder público por intermédio de um conselho gestor, afirmou Alessando Zelesco, da Federação de Remo do Estado. Ele garante que o projeto de revitalização da Marina da Glória não é para todos.

3.2.2. ENTREVISTA: ALESSANDRO ZELESCO

“Cidade Olímpica é um discurso fora da realidade” Leon Diniz

Ex-presidente da Federação de Remo do Estado do Rio de Janeiro e integrante do movimento SOS Estádio do Remo da Lagoa, Alessandro Zelesco contesta as intervenções urbanísticas promovidas na área e a privatização desses espaços públicos.

CDDHC: Quais são as consequências das intervenções urbanísticas que ocorrem atualmente na cidade do Rio de Janeiro para as práticas esportivas? Alessandro Zelesco: Eu vejo as intervenções na nossa cidade olímpica como uma hipocrisia, porque os equipamentos estão abandonados e não são usados para esportes. Me


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refiro diretamente do Estádio Célio de Barros, um estádio de atletismo que foi destruído para servir de estacionamento, do parque aquático Júlio Delamare, que foi fechado também e do Estádio de Remo da Lagoa7 que nós tínhamos, mas acabou. Até hoje o Brasil não tem um centro de treinamento de alto rendimento de práticas esportivas de vela e remo. Vamos receber uma Olimpíada e nossos atletas nunca utilizaram esses espaços, assim como possuem uma área de treinamento de alto rendimento e por quê? Porque foi privatizado há anos e hoje o que existe é um shopping e um complexo de cinema (empreendimento Lagoon)8 no lugar que vai receber as provas de remo e canoagem. Isso é um absurdo e uma hipocrisia. O discurso é de que estão construindo novos equipamentos (que depois dos jogos serão desmontados), dizem que alguns vão ficar como um legado, mas especificamente para o remo não vai haver legado algum das Olimpíadas, tal como não aconteceu com a realização do Jogos Pan-americanos no Rio. Até porque o governo do Estado já colocou no caderno da candidatura dos Jogos Olímpicos que tudo ali (Marina da Glória e Lagoa Rodrigo de Freitas) vai permanecer como está e continuará a ser administrado em sistema de concessão. Ou seja, sobre o poder de uma concessão privada, sendo explorada para outras atividades que não são esportivas numa área que é destinada ao esporte por Lei. O discurso de um Rio de Janeiro como Cidade Olímpica é um discurso fora da realidade. CDDHC: Qual foi a importância da audiência pública realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj para a visibilidade da privatização desses espaços de práticas esportivas? Alessandro Zelesco: A audiência pública foi especificamente sobre a Marina da Glória que sofre o mesmo processo do estádio de remo, que também é uma área que nunca poderia ter sido privatizada porque faz parte de um parque público tombado, que é o Parque do Flamengo, que é indivisível. Não dá para fazer um tratamento diferenciado entre o parque e a Marina da Glória. Para fazer as competições de vela ali não é preciso muita coisa, mas eles usam o discurso de que são necessárias altas intervenções para justificar contratos de expansões com empreiteiras, colando uma cortina de fumaça na realização de uma Olimpíada, quando na verdade não é necessário nada disso. Comecei a atuar na Marina da Glória em virtude dos projetos ilegais de expansão que avançam sobre a enseada até a rampa do calabouço, na qual o remo também estava instalado. Há mais de 10 anos, desde a época do Pan, os clubes de remos não conseguem colocar um barco na água, porque o acesso ao mar está fechado devido a projeto de expansões ilegais que não foram aprovados. Mas, mesmo assim, foram realizados e bloqueiam o acesso ao mar, impedindo os clubes de realizar a sua função social que é: promover o remo, fazer iniciação esportiva. Então, nossa participação e importância da audiência pública é quanto a defesa da área, pois existia ali uma rampa pública que foi destruída e tem que retornar, tem que ser reconstruída para devolver à população o acesso ao mar que é um direito básico elementar. CDDHC: O que existe atualmente no lugar da rampa pública? Alessandro Zelesco: Especificamente onde estava a rampa, eles construíram uma espécie de cisterna. Na verdade, uma pista interna entre a Glória e a área do Centro, próxima ao aeroporto Santos do Dumont e ao lado do Museu de Arte Moderna. Hoje essa cisterna já foi demolida, mas a rampa não foi reconstruída e até hoje permanece fechada. E por quê? Porque deixar aquela área aberta ao público prejudica futuros

7. Existe uma ação civil pública (ACP, processo nº 2003.001.054921-8) de autoria do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro contra o Estado do Rio de Janeiro, o Município do Rio de Janeiro e a Empresa Glen Entertainment Comércio Representações e Participações Ltda., com o pedido final de que seja declarada a nulidade da permissão de uso do Estádio de Remo da Lagoa e seus termos aditivos, ante a inexistência de licitação, condenandose a Glen a devolver a área do estádio ao patrimônio público independentemente de qualquer indenização. A Federação de Remo do Estado do Rio de Janeiro (FRERJ) é assistente do Ministério Público na ACP para desalojar a Glen da posse do Estádio de Remo da Lagoa. A empresa Glen já foi condenada, em primeira instância, a devolver o Estádio de Remo ao patrimônio público, mas recorreu da decisão. A empresa Glen nunca pagou nada pela ocupação do Estádio de Remo da Lagoa desde que recebeu a posse do Estado, em 1997, malgrado os termos do contrato que dispõe que a contraprestação pela permissão de uso correspondesse a 10% do faturamento obtido com a exploração do estádio no mês anterior. 8. A licença de obra concedida pela Secretaria de Municipal de Urbanismo em 06/04/2006 choca-se com as recomendações do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro para que o Município ‘anule as autorizações concedidas para implantação do Empreendimento Lagoon’ (recomendação do Inquérito Civil MA 1506, de 19/01/2005). As recomendações do Ministério Público nunca foram publicadas na imprensa. A


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projetos de expansão de interesse do setor privado. Todos os projetos que a Mariana da Glória apresentou iria ocupar toda a enseada da Glória, por isso, a estratégia é sempre a mesma: deslocar a área operacional de velas e lanchas, a área operacional da Marina, para aquela área em frente aos clubes do Calabouço, para liberar espaço e fazer centro de convenções, shoppings, locais voltados para o consumo. É por isso que sempre estão contra a permissão do acesso ao mar com uma rampa pública como era antes, fechando e destruindo essa rampa.

Câmara de Vereadores, por meio da Lei nº 4149/2005, tombou o Estádio de Remo da Lagoa, considerado exemplar referencial da arquitetura moderna brasileira. Estão preservadas as características arquitetônicas originais dos três blocos edificados e garante-se a participação de entidades desportivas e ligadas ao remo para consultoria técnica esportiva em todas as etapas do desenvolvimento do projeto de restauração e revitalização do imóvel. A lei do tombamento permite adaptações no conjunto edificado para adequações às funções esportivas e para atividades comerciais de suporte, de pequeno porte, desde que não haja perda da harmonia do projeto original. 9. Relatório Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro junho de 2014, disponível em <https:// comitepopulario.files. wordpress.com/2014/06/ dossiecomiterio2014_web.pdf>.

CDDHC: Qual a importância dessa luta para o direito ao acesso de práticas esportivas em espaços públicos? Alessandro Zelesco: É fundamental. Se você conversar ou consultar praticantes de esportes, não só de remo, mas de outras modalidades como canoa havaiana, de canoagem, adeptos do stand up paddle, vai perceber que a população carioca hoje não usufrui da Baía de Guanabara. Inclusive, na audiência pública, a esposa do Amaro Machado, que foi o arquiteto que projetou a Marina da Glória, ressaltou que o projeto original da Marina foi realizado para devolver a cultura náutica à população carioca. Permitir aos cariocas nos momentos de lazer terem acesso à Baía de Guanabara para usufruir e se apropriar desse bem público: a baía. E para isso acontecer precisa de quê? De acesso livre ao mar, seja pela Marina da Glória ou por rampas públicas. E não estamos falando de iates ou lanchões, estamos tratando de pequenos barcos que a população pode colocar em cima do carro, parar em um estacionamento perto, levar até a rampa e por duas ou três horas ter a prática esportiva e depois sair do mar pela rampa e voltar para casa. A importância desse acesso ao mar de forma pública sem interferência está aí: em promover e desenvolver essa cultura náutica da população e com isso a preservação ambiental, porque ao utilizar as águas da baía, a população se preocupa com a água, com o esgoto e lixo jogado e acumulado lá. Você leva a população a lutar pela preservação da qualidade dessa água. CDDHC: Como foi a experiência do movimento de Remo atuar e lutar junto com os outros coletivos de diferentes práticas esportivas no Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, diante dessa especulação imobiliária? Alessandro Zelesco: De suma importância. Aqui cabe ressaltar o papel do Comitê que congregou esses diversos movimentos: SOS Estádio de Remo, Ocupa Marina e tantos outros que defendem equipamentos esportivos como Parque Aquático Júlio Delamare, o Estádio de Atletismo Célio de Barros, e demais equipamentos que estão precarizados, terceirizados e privatizados. O papel do Comitê é fundamental porque unifica essas demandas de luta e as potencializa. Um exemplo é a produção do dossiê9 sobre os eventos esportivos, documento de fundamental importância que mostra as violações aos direitos humanos, ao direito à cidade e de todos nós. Mostra bem a falácia e a hipocrisia desse discurso de que aqui no Rio de Janeiro somos uma cidade olímpica quando temos equipamentos esportivos sendo privatizados, fechados e destruídos.

3.3. DIREITO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS Ao longo do primeiro semestre de 2015, a equipe técnica da CDDHC Alerj realizou diversos encontros entre representantes de comunidades tradicionais do Estado do Rio


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de Janeiro, movimentos sociais, membros da comunidade científica, de instituições engajadas no acesso à justiça e na tutela de direitos coletivos, como o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública. Dessas reuniões, surgiu a proposta de emenda à Constituição Estadual para incluir no documento dispositivo a respeito dos direitos das comunidades tradicionais, tratando do direito ao território, do acesso à saúde e à educação adequada e outros direitos fundamentais previstos em tratados internacionais de direitos humanos (PEC nº 14/2015). As especificidades de cada território e as diversas demandas coletivas ainda pendentes de solução indicaram a necessidade de realização de uma audiência pública que permitisse à CDDHC e a entidades governamentais conhecer a realidade das comunidades. Fruto do processo de construção da PEC 14/2015 e do esforço de mobilização dos diversos atores envolvidos, a CDDHC Alerj realizou em 24 de agosto de 2015, a audiência pública "Direitos dos povos e comunidades tradicionais do Estado do Rio de Janeiro". O encontro contou com a presença de mais de 50 (cinquenta) territórios e comunidades em todo o Estado, além de movimentos sociais, entidades de pesquisa, organizações não-governamentais e redes de militantes. Na audiência, foram ouvidos representantes de comunidade quilombolas, indígenas, caiçaras, pescadores artesanais e territórios atingidos por megaempreendimentos e pela especulação imobiliária. Foi também exposto o conteúdo da PEC nº 14/2015 e debatido o método para aprovação da PEC pelas comunidades tradicionais, baseado nos direitos de tais comunidades à consulta livre, prévia e informada, prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garante a participação política dos povos tradicionais e da qual o Brasil é signatário desde 2002. A partir da audiência, a CDDHC Alerj segue trabalhando em conjunto com o Núcleo de Defesa de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o Ministério Público Federal, o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra e Paraty (FDCT) e a Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ) para concretizar a consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais do Estado, ao mesmo tempo em que colhe demandas e denúncias de violações de direitos.

DILIGÊNCIA NA COMUNIDADE TRADICIONAL DE ZACARIAS, MARICÁ*

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m 25 de maio de 2015, o deputado estadual Flavio Serafini, membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, acompanhado de equipe técnica e assessores, visitou o território da comunidade tradicional pesqueira de Zacarias, no município de Maricá, atingida por megaempreendimento imobiliário em processo de licenciamento ambiental pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea).

*O relatório está disponível no seguinte link: http://www.flavioserafini. com.br/flavio-serafini-lancarelatorio-violacoes-de-direitoshumanos-na-comunidadetradicional-de-zacarias/


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A diligência foi realizada para apurar denúncias feitas por moradores, movimentos sociais e entidades de pesquisa envolvidas na proteção da restinga de Maricá e do território tradicional da comunidade de Zacarias, e contou com a presença de membros do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, do Ministério Público Federal, pesquisadores e movimentos sociais. As denúncias, em sua maior parte, diziam respeito à irregularidade e falta de transparência do processo de licenciamento ambiental conduzido pelo órgão estadual, bem como à presença de representantes e funcionários no território tradicional mesmo antes da emissão de qualquer licença, gerando nas famílias de pescadores sensação de controle, vigilância, assédio e intimidação para aceitar o empreendimento. Na oportunidade, os presentes colheram relatos do histórico do conflito e caminharam por parte do território ancestral da comunidade, na Barra de Maricá, para entender de que forma o empreendimento impactará a comunidade. A partir da diligência, a CDDHC Alerj produziu um relatório sobre as violações de direitos humanos na comunidade tradicional de Zacarias decorrente do licenciamento do megaempreendimento imobiliário “Fazenda São Bento da Lagoa”. Eis a conclusão do documento: “A diligência à comunidade tradicional de Zacarias deixou claro que há um estado de violação de direitos humanos e da legislação ambiental e urbanística causada pela empresa IDB Brasil Ltda. e pela omissão, conivência ou concordância do poder público estadual e municipal, que coloca a comunidade tradicional pesqueira em situação de vulnerabilidade, pressão e potencial violência, especialmente em razão da presença de representantes do empreendedor privado na comunidade”. O relatório apresenta ainda uma série de recomendações a órgãos públicos e entidades de fiscalização e defesa de direitos.

3.4. VIOLÊNCIA HOMO, LESBO, BI E TRANSFÓBICA A população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti e Transexual (LGBTTs) sente na pele o retrocesso político e social diante da falta de debates qualificados e de políticas pública a respeito dos seus direitos enquanto seres humanos que são. Do Congresso Nacional à vida cotidiana, observa-se a retirada de direitos que sequer foram reconhecidos integralmente. Além disso há o acirramento da violência que é invisível aos olhos da justiça uma vez que não dispõe de uma tipificação específica no código penal. Isso acarreta uma desumanização sistemática que leva à naturalização da discriminação, estigmatização e preconceitos direcionais à população LGBTTs.

10. Resolução 11 e 12 de 2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, da Secretaria de Direitos Humanos.

O reconhecimento da identidade de gênero é uma das ações iniciais para a garantia da dignidade da população LGBTT. Já há a garantia do direito ao nome social nos documentos de identidade, nas instituições de ensino e em boletins de ocorrência registrados por autoridades policiais; e nas escolas, o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada um10. Mas essas conquistas políticas, que foram pautadas diante da luta incansável dos movimentos, ainda carecem de efetividade na esfera social. Tanto que há episódios como o protagonizado pela transexual Lara Lincoln que, mesmo com o reconhecimento de seu nome social, foi impedida de utilizar o banheiro feminino durante a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).


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Em determinados lugares, essa realidade ganha contornos mais evidentes, como é o caso das favelas e bairros pobres periféricos. Ser LGBTT nos bairros elitizados, como os da Zona Sul, é uma experiência de maiores possibilidades, desde a denúncia até a mobilização de campanhas, criação de centros contra a homofobia ou de promoção da saúde, como tem sido denunciado por Gilmara Cunha da ONG Conexão G11, ativista LGBTT. Em função da presença do comércio ilegal de drogas e de milícias, as restrições se impõem de forma mais radical. Segundo o último relatório publicado pelo Governo de Estado do Rio de Janeiro através do Relatório de Atendimento – Centros de Cidadania LGBT 201312, 44% das denúncias ocorreram na Zona Norte do Rio de Janeiro, 30% na Zona Oeste e 11% no Centro, o mesmo percentual da Zona Sul. Esse relatório revela ainda que a capital do estado, principalmente na Baixada Fluminense e Região Serrana, concentra o maior índice de pessoas que usaram os serviços do centro de atendimento. De acordo com os dados nacionais da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a cada hora, um homossexual sofre algum tipo de violência no Brasil. Além disso, nos últimos quatro anos, o número de denúncias ligadas à homofobia cresceu 460%. São números alarmantes que demonstram a necessidade de avançar tanto no campo jurídico como político e social. A audiência pública “Violência contra a População LGBTT no Rio de Janeiro”, realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, em parceria com outras comissões, deliberou como foco do debate público os casos de transfobia ocorridos no estado do Rio de janeiro. Durante o encontro, foram expostos tanto as demandas em relação às agressões físicas, psicológicas e assassinatos das pessoas trans, como também a violência institucional de órgãos de saúde que permanecem com práticas discriminatórias em relação ao nome social e nos tratamentos ofertados aos usuários.

OS NÚMEROS DA DISCRIMINAÇÃO Com frequência, as pessoas relacionam a prostituição de rua às travestis, transexuais e transgêneros, porém, se esquecem de mencionam que a prostituição não é opção: trata-se de sobrevivência, resistência e autonomia do corpo em virtude do estigma à cultura transfóbica presente na sociedade, que resulta na ausência de oportunidades de trabalho formal. Segundo informações do grupo TransRevolução (RJ), 90% da população trans exercem a prostituição como atividade profissional na informalidade, sem condições de acessar direitos trabalhistas e seguridade social. Além disso, a mesma cultura que segrega, também desumaniza travestis, transexuais e transgêneros, pois o direito à vida lhes é negado.

11. O Grupo Conexão G, fundado em 2006, é uma organização da sociedade civil, se caracteriza de trabalhar com a minimização dos preconceitos vivida segmento LGBTT. Este projeto tem como foco as favelas do Rio de Janeiro, tem como objetivo desenvolver ações para a minimização dos preconceitos e de outras formas de violência.

Em 15 de maio de 2015, a audiência pública realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, em conjunto com as Comissões Especial pelo Cumprimento das Leis e de Segurança Pública, para debater a “Violência contra a População LGBTT no Rio de Janeiro” revelou dados alarmantes. Segundo levantamento da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, informados pelo delgado Fábio Cardoso, o número de homicídios na região, nos últimos três anos, subiu de forma gradual em cerca de 3% por ano. Índice na contramão de outras regiões no estado,

12. Relatório de Atendimento dos Centros de Cidadania LGBT 2013, disponível em <http:// www.riosemhomofobia. rj.gov.br/publicacao/ ver/17_relat%C3%B3rio-deatendimento-dos-centros-decidadania-lgbt---2013#sthash. zzbd26Ar.dpuf>.


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que se notabilizam pelo decréscimo de casos. Para se ter ideia, em 2014, a Baixada Fluminense teve 40% dos homicídios do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com levantamento do grupo TransRevolução (RJ), a expectativa de vida da população trans gira em torno de 30 anos, enquanto a média da população brasileira é 74,6 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais da metade das mortes por assassinatos de pessoas transexuais, travestis e transgêneros ocorrem no Brasil. Em 2013, foram 121 homicídios - incluindo apenas os dados noticiados e confirmados. Há subnotificação de casos em decorrência de diversos assassinatos da população trans serem informados erroneamente como “homem” ou “homossexual” em levantamentos de órgãos públicos. Esses dados também revelam que das cinco regiões do país, o Sudeste ocupa, com 38 casos, o 2º lugar com o maior número de assassinatos de travestis, transexuais e transgêneros. De acordo com informações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apenas 95 travestis, transexuais e transgêneros inscreveram-se para o Enem, utilizando o nome social, em 2014. No entanto, dados do Transrevolução (RJ), contabilizam 84 assassinatos desse mesmo contingente populacional no mesmo ano, revelando o abismo sobre a realidade da população trans, a ausência de acesso a direitos e o silenciamento de possíveis violações de direitos humanos. Por trás de toda travesti, transexual e transgênero há pessoas com uma vida própria, que cuidam de casa, têm um cotidiano como qualquer outro, com direito a trabalho, à educação, à cidade, transporte, saúde e igualdade social. Ou seja: com o direito ao exercício de sua cidadania respeitado. O cotidiano da ausência e violações de direitos veio à tona pelas vozes de representantes de quatro movimentos LGBTTs: Grupo Transrevolução; Conexão G; Frente Beijo na Praça; Grupo Transdiversidades GTN. Os relatos mostraram a distância entre políticas públicas e a realidade dos atendimentos em órgãos públicos, além da necessidade do avanço de ações imediatas que não só atendam a população LGBTT, mas construam de forma participativa e plural soluções para as demandas reais dos movimentos LGBTTs. Os depoimentos expuseram violações de direitos em atendimentos realizados dentro de unidades de atendimento de órgãos públicos ligados ao governo do estado, descumprimento de decretos e resoluções que garantem o uso do nome social, uso de banheiros públicos, agressões e ameaças de estupro em escolas e universidades. Além disso, houve relatos que deram conta da dificuldade de acesso e registro de denúncia de discriminação em delegacias, nos conselhos estaduais, incluindo práticas de violência institucional e forte repressão policial à população trans em decorrência da atividade de prostituição.

VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL A Resolução nº 12 publicada em 16 de janeiro de 2015, pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais,


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Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais em instituições, formulou orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização. Pela Resolução, em seu artigo 6º, escolas e universidades e qualquer outro tipo de rede de ensino “deve garantir o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito”, sem a necessidade de autorização de terceiros. Porém, Lara Lincoln Millanês Ricardo, de 29 anos, ativista da Frente Beijo na Praça, do Grupo Transrevolução e aluna do curso preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) direcionado para travestis, transexuais, transgêneros e outras pessoas em situação de vulnerabilidade social e preconceito de gênero, o Prepara Nem, não teve sua identidade de gênero respeitada na escola evangélica na qual cursava o ensino médio. Ao tentar utilizar o banheiro feminino, foi impedida. Um professor da instituição, contrário ao pleito da estudante, convocou uma reunião com toda a comunidade escolar para decidir sobre o seu direito. Como as situações de preconceito só cresceram a partir desse episódio, Lara resolveu registrar ocorrência contra a discriminação na 62ª Delegacia de Polícia de Imbariê, em Duque de Caxias. Mas, já na recepção da delegacia, ao apresentar a carteira de identidade com seu nome social, Lara foi alvo de um “sorriso debochado” da recepcionista. É importante lembrar que a mudança de nome em documentos de identidade civil só pode ser alterada no Brasil por decisão judicial. No entanto, o Decreto nº 43.065/2011 reconhece o direito ao uso do nome social, o modo como são reconhecidas e denominadas na sua comunidade, a travestis e transexuais na administração direta e indireta do estado do Rio de Janeiro. Pontua o referido decreto: “Art. 2º - Todos os registros do sistema de informação, cadastro, programas, projetos, ações, serviços, fichas, requerimentos, formulários, prontuários e congêneres da Administração Pública Estadual deverão conter o campo “Nome Social” em destaque, fazendo-se acompanhar do nome civil, que será utilizado apenas para fins internos administrativos. (...) A pessoa transexual ou travesti capaz poderá a qualquer tempo requerer inclusão do nome social nos registros dos sistemas de informação, cadastro, fichas, requerimentos, formulários, prontuários e congêneres”. O registro da ocorrência contra a discriminação transformou-se em uma verdadeira odisseia para Lara. Ao ser visualizada pelo inspetor de polícia, foi cumprimentada da seguinte forma: “Boa tarde meu camarada, qual é seu problema? ”. De acordo com Lara, após as ironias diante do desconhecimento por parte do agente do decreto que garante a utilização do nome social, o policial ainda tentou demovê-la da ideia de formalizar a denúncia. Não satisfeito com a série de arbitrariedades na abordagem, o agente a culpabilizou pela situação de discriminação da qual foi vítima. Depois de muito insistir com o inspetor, o caso foi levado ao delegado que autorizou o registro. Mas Lara ainda sofreria perseguição do inspetor por duas semanas através de ligações telefônicas. O Centro de Referência de Duque de Caxias, que auxiliou Lara no caso, a orientou denunciar à Corregedoria de Polícia. Mas por medo, Lara preferiu não apresentar a reclamação contra o agente. Após a denúncia do caso na delegacia, o professor que discriminou Lara na escola foi demitido. “Eu só queria um direito que é meu”, afirmou Lara.


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Indianara Siqueira, ativista do grupo TransRevolução, também destacou as falhas de acolhimento e atendimento dos Centros de Referência. De acordo com ela, a dificuldade de acesso já ocorre desde a portaria do Centro de Cidadania LGBT, localizado na Central do Brasil, que verifica o tipo de vestimenta das pessoas para autorizar a entrada. “Levei três meninos negros de chinelos para o Centro Estadual e a trans que está aqui presente. Mas eles foram impedidos de entrar por causa de suas roupas. Eu também já fui proibida de entrar lá, mas vi mulheres saindo com roupas mais curtas do que as minhas, e mais decotadas. Mas elas não foram proibidas de entrar”. Há problemas ainda no atendimento do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), um centro de referência na realização da cirurgia de transgenitalização. Segundo Indianara, o hospital além de estar fechado para inclusão de novos pacientes desde 2013, atende aos pacientes com um “processo transexualizador que não funciona e que é completamente transfóbico”. Na própria UERJ, responsável pelo Hupe, houve a fixação de cartazes com ameaças de estupro a transexuais homens que usassem o banheiro masculino. Em uma turma do curso de Letras, um professor usou conceitos religiosos para promover homofobia e transfobia em sala de aula. A forte repressão policial à prostituição, atividade de trabalho de 90% da população trans, também foi criticada. Sendo uma das populações mais marginalizadas e mais invisibilizadas, episódios de violência institucional e policial contra a população trans são recorrentes, de acordo com movimentos LGBTTs. Bruna Benevides, do grupo Transdiversidade GTN, destacou que a exclusão de travestis, transexuais e transgêneros é precoce e a falta de oportunidade no mercado formal de trabalho leva travestis, transexuais e transgêneros à prostituição como resistência. “Quando nós somos crianças, a nossa família tem vergonha da gente. Ela não quer dar satisfações para as vizinhas que têm um filho travesti ou transexual. Somos alijadas de casa, da escola, da sociedade. A gente tem que se virar com o que a gente tem, e, de fato, a única coisa que temos é o nosso corpo, porque nem o nosso nome nós temos o direito de tê-lo. Eu já fui despida de tudo: do meu nome, de escola, da família. O que me resta é o meu corpo. A única coisa que eu tenho para sobreviver é usá-lo”.


3.4.1. ENTREVISTA: THIAGO BASSI

Leon Diniz

“A igualdade de direitos deve ser a união de todas as letrinhas LGBTTs”

E

Thiago Bassi acredita que a mobilização da população LGBT dá visibilidade e fortalece a identidade de gênero

ssa é a opinião de Thiago Bassi, um dos ativistas do coletivo de mobilização Tem Local?13, que busca através de uma plataforma colaborativa mapear casos de lgbttfobia em território nacional. A proposta é combater o preconceito que desumaniza, principalmente porque as estatísticas produzidas atualmente por órgãos públicos são defasadas. De acordo com Bassi, em virtude do método de categorização aplicados por essas instituições, os casos de violações dos direitos das Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Trangêneros são subnotificados. Por isso, destaca os coletivos de mobilização de rua como uma nova experiência na luta por direitos e bandeiras LGBTT, por promover a visibilidade e o empoderamento da população LGBT, como as ações da Frente Beijo na Praça14.

13. O Tem Local? é uma ferramenta colaborativa que visa mapear a lgbttfobaias em todo o Brasil. Tem como proposta dar voz aos casos não registrados por medo, vergonha, impunidade ou por desconhecimento. Na ferramenta, indica-se no mapa o local onde ocorreu a agressão que pode ser realizada de forma anônima. Veja em <www. temlocal.com.br>.

CDDHC: Como são essas experiências de coletivos em mobilizações de rua contra lgbttfobias? Thiago Bassi: Normalmente, temos órgãos públicos e ONGS que não estão representando o movimento LGBTTs em sua base, porque eles deixam de ouvir a coletividade. Com isso, o movimento está se empoderando e agrupando em coletivos que escutam o que as ruas dizem. Ouvir os LGBTTs é importante, mas as ONGs se esqueceram disso. Há pouca credibilidade nesses tipos de entidades. Até o órgão estadual do Rio Sem Homofobia que teria essa atribuição, ouvir as ruas, não tem ouvido. A 3ª Conferência LGBTTs está seguindo o padrão do discurso oficial do governo nacional no formulário de inscrição, pondo identidade de gênero e orientação sexual para serem preenchidas juntas no mesmo campo. Eles não entendem que uma pessoa trans, por exemplo, pode ser bissexual, então ou eu visibilizo a minha transsexualidade ou a minha bisse-

14. A Frente Beijo na Praça é uma mobilização coletiva de ocupação LGBTTs de praças e ruas do Rio de Janeiro, promovendo o questionamento a casos de lgbttfobias a partir de intervenções públicas com um beijaço e outras atividades, como o organizado pela Frente na Praça São Salvador, entre outros, como o ocorrido em 27 de março de 2015, na Praça São Salvador, no qual foi realizado um beijaço: “se a violência não acabar, na praça eu vou beijar”.


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xualidade. Eles estão invisibilizando a sigla T ou a sigla B ou a sigla trasvesti, invisibilizando de fato essa população que fica marginalizada. O problema é a falta vontade de ouvir o que as ruas e os coletivos têm a dizer. CDDHC: Qual é o objetivo do projeto do Tem Local? Thiago Bassi: O Tem local? surgiu porque temos poucos relatórios que possam informar de fato o que acontece quando o tema é a lgbttfobias. Existe o Rio Sem Homofobia, mas os dados apresentados são completamente irrisórios referente às agressões lgbttfóbicas no Rio de Janeiro no ano passado. Ou seja, uma quantidade muito baixa de agredidos. Além disso, o órgão ainda chama de “homofobia” né? Então, na prática, não determina o que é transfobia. Ao fazer uma denúncia na delegacia, por exemplo, a pessoa é completamente ridicularizada, desrespeitada, não é ouvida e é um sacrilégio conseguir que o delegado coloque no registro de ocorrência que você foi vítima de homofobia. Além disso, travestis e transsexuais ainda são categorizados como homens sofrendo homofobia, só que não é homofobia é transfobia. Está na hora de rever esse formulário da polícia e mudá-lo apresentando um campo para transfobia. A identidade de gênero precisa ser respeitada. CDDHC: Como surgiu a mobilização de rua contra a transfobia em alguns locais do Rio de Janeiro? Thiago Bassi: As ruas estão se mobilizando e o Tem Local? nasce como uma ferramenta de denúncia que a partir dela as pessoas podem não só denunciar suas experiências como podem fazer denúncias sobre ato que aconteceram com outras pessoas. Nossa ideia é criar uma rede de coletivos parceiros que dentro do 'Tem local?' possam cadastrar denúncias no site sendo coletivos ou inclusive tendo algum fato ou ato de lgbttfobias próximo da região. A gente entra em contato com esse coletivo, para que possamos tomar alguma atitude ou fazer um ato de acolhimento para a pessoa que foi agredida ou até mesmo atos no local que ocorreu o preconceito, porque a gente sabe que hoje a homofobia agride, a transfobia mata, lesbofobia estupra e a bifobia invisibiliza. Qualquer preconceito tem que ser denunciado e eliminado. Tivemos a denúncia do caso do bar Durangos que foi transfóbico com a Indianara do grupo TransRevolução e mobilizamos um escracho. Tacamos purpurina no local, tivemos sangue falso jogado no chão, teve velas acendidas com porta-retratos e uma banda fúnebre tocou na frente do bar. CDDHC: Por que você está nessa luta pela lgbttfobias? Thiago Bassi: É uma faceta da personalidade da pessoa que tem tantas outras facetas que não é só LGBTTs. Mas só que a vertente LGBTTs é tão visível e é tão escrachado que se torna tão forte para sociedade. É objeto de desumanização da pessoa, e, a partir do momento em que uma característica se torna algo visto como objeto de ódio, isso tem que ser combatido. É o mesmo caso do racismo, da orientação sexual ou identidade de gênero da pessoa. Acho que quando você vê que uma pessoa é humilhada por outra por ser ou ter algo que não se enquadra no padrão cis heteronormativa, a principal luta é quebrar essa atitude praticada por conta da visão da sociedade, moldada em padrões morais estabelecidos de uma forma a humilhar, segregar. Esse tal padrão não pode existir, a moral tem que ser aberta a toda e qualquer tipo de formas independente do que a pessoa acredita que seja verdade. Não dá para impor a sua moral ao outro, porque a minha moral é diferente da sua. Acredito que se a gente pensar assim


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vai viver melhor e de forma mais coletiva e não individualista. A individualidade é segregadora. O coletivo tem que estar acima. CDDHC: Por que discutir identidade de gênero hoje no Brasil é uma forma de lutar e pautar os direitos humanos? Thiago Bassi: É porque hoje duas meninas andando de mãos dadas no meio da rua levam um soco na cara por estarem de mãos dadas. É porque quando você tem dois homens que se beijam do lado de um casal com um homem e uma mulher cis se beijando, o casal LGBTTs é motivo de chacota. Se eu andar de batom na rua, as pessoas olham e fazem piadinha. Há situações que fazem a pessoa se sentir inferior, desumanizado como pessoa. Nós temos que falar sobre isso. Criticar essa sociedade, expor essa mazela e essa imposição de moral, do que se acha certo ou não. Só assim vamos conseguir mudar essa realidade para que todos sejam encarados como humanos e não como gay, hétero, trans, cis gênero. É a partir disso que vamos conseguir respeitar os direitos de todos para que todos nós sejamos humanos e não categorizados, apesar de a categoria ser importante para empoderar a lutar em prol dos direitos, não podemos ser só uma categoria. Acho muito interessante quem fala: “ah você não precisa ser assumir gay”. É de fato não precisa, mas a partir do momento em que você não sai de dentro do seu armário você acaba desempoderando outras pessoas que estão lá gritando. Se manter na sua comodidade, não fortalece e não ajuda um movimento que está lá lutando por todos.

3.4.2. ENTREVISTA: GILMARA CUNHA

Leon Diniz

“Deixe-me existir”

Gilmara Cunha critica a falta de espaço para o debate sobre a população LGBT moradora de favela

E

sse é o pedido de Gilmara Cunha, 31 anos, moradora do conjunto de favelas da Maré e fundadora do Grupo Conexão G, que trabalha em prol da população LGBT de favelas. Se outras formas de ativismos têm mobilizado as ruas em prol dos direitos e visibilidade da população trans, na favela, o direito à vida, é ainda a


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principal bandeira de travestis e transexuais a ter que ser levantada. De acordo com Gilmara, a falta do desenvolvimento de políticas públicas e atendimento de órgãos governamentais para acolher a população LGBT de favelas, inclusive, em programas de atendimento LGBT, é uma realidade. Homenageada com a entrega da Medalha Tiradentes15, Gilmara Cunha, na audiência para debater o tema, apresentou uma carta com diversas reivindicações ao programa Rio Sem Homofobia e a Secretária de Assistência Social e Direitos Humanos. Para ela, é necessário primeiro retirar o véu da desumanização social em relação travestis e transexuais o cotidiano. Somente depois dessa visibilidade, será possível avançar em outros direitos. Confira a entrevista. CDDHC: Quais são só principais desafios do movimento LGBT? Gilmara Cunha: Pensando na perspectiva da população a qual eu represento, o maior desafio é a existência. Não desmereço as outras políticas que tem sido um avanço como a conquista do direito ao casamento e adoção, mas para essa população que está ainda à margem, é o direito à vida dentro da favela que é preciso ser garantido. O movimento LGBT é um movimento de classe média. Então, pouco se discute a questão da homossexualidade no espaço de favela, porque nem mesmo o movimento LGBT entende as dificuldades vividas por essa população. Eu quero respeito. Eu preciso existir nesse território e dentro dessa sociedade apesar dela a todo momento dizer que eu não presto ou que não devo existir, criando estereótipos negativos sobre a minha pessoa. Ser transexual, travestis, lésbica, gay, bissexual em espaços de favelas é você levantar todos os dias e falar assim: Hoje eu preciso me manter viva. É trabalhar, é buscar a escolaridade, pois hoje temos uma grande evasão nas escolas em relação a população LGBT, justamente por não ter um ambiente escolar de respeitabilidade. O pedido é que a todo momento essas grandes pastas governamentais olhem para essa população. Nós temos um programa no Rio de Janeiro: o Rio Sem Homofobia com um trabalho de oito anos que em nenhum momento criou políticas para a população LGBT de favelas. Isso é muito triste. Por isso, eu digo: deixe-me existir. Eu quero existir nessa sociedade. Eu quero existir enquanto pessoa e ser humano e não apenas por ser LGBT.

15. O autor da proposta da homenagem foi o deputado estadual Flavio Serafini, membro da CDDHC Alerj.

CDDHC: As pessoas LGBTs moradoras de favelas estão mais sujeitas a violência? Gilmara Cunha: Não tem como mensurar porque homofobia é homofobia e ponto. O que eu tenho dito é que as pessoas entendem homofobia só como agressão física, mas homofobia transcende isso. Nosso corpo fala. Então, se eu estou num espaço e as pessoas me olham de um jeito torto, ali está ocorrendo a homofobia. É claro que a população moradora de favela está mais sujeita a isso porque se eu sofro homofobia na favela, eu não vou poder denunciar. Primeiro, porque o Estado não se faz presente naquele espaço. Segundo, porque existe uma outra regra daquele território que impede essa população trans de poder acessar direitos. Então, o que fazer? Acho que precisamos primeiro garantir a presença do Estado nesse território para construir outro tipo de relação e não a existente, atualmente, em que estamos sempre à margem da sociedade. Sendo assim, é claro que se eu estiver na Avenida Vieira Souto, em


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Ipanema e se sofrer homofobia, a Lei vai ser acionada, vai me proteger, mas dentro da favela não. É muito difícil ser gay, lésbica, bissexual, travesti e transexual dentro do território de favela. CDDHC: Você enxerga alguma especificidade para as mulheres trans nesse cenário? Gilmara Cunha: Ele é bem opressor. Existe uma regra na favela: é aceito o gay, mas porque ele se veste como homem, é aceito a lésbica porque duas mulheres se beijando representa o fetiche masculino, mas quando você é uma travesti dentro das favelas o cenário é outro. A ausência do Estado nesse espaço faz com que as igrejas evangélicas se proliferem e vão criando dogmas introduzindo nesses indivíduos muito preconceito. Começa-se a criar nas favelas exércitos de Cristo. Então, quando você tem uma travesti que se veste completamente como mulher há uma discriminação muito forte. Expressam o pensamento: “Veja essa travesti não quer ser mulher? Ela só se identifica como mulher”. Não, ninguém quer ser mulher ou gerar um filho, mas as pessoas acreditam que a gente quer isso. Então, em se tratando da população favelada, a primeira demanda é garantir a vida. Depois disso, aí podemos pensar em conquistar outros espaços. CDDHC: Qual é o lugar da resistência e de articulação para essa população trans diante desse quadro de retrocesso no qual à vida precisa ainda ser preservada? Gilmara Cunha: Eu acredito que primeiramente é mobilizar essa população que não está mobilizada, porque não está articulada. A população LGBT de favelas está descrente, pois não consegue enxergar espaços de debates importante onde se possa construir uma política pública, então a população trans favela se retira. Inclusive, por conta do descrédito relaciona a questão eleitoral, porque as pessoas vêm aqui prometem, ganham voto e depois não fazem nada em toda favela. Não há um centro de referência LGBT ou uma política de acesso à escola ou canais governamentais que podem ser implantados e não são feitos nas favelas. Cria-se muita roda de conversa, de participação, mas efetivamente nada é construído. CDDHC: Como você enxerga o espaço de da audiência pública? Gilmara Cunha: Na audiência pública foi claro o descaso com a população LGBT de favelas. A secretária de Assistência Social disse que direitos temos, mas nós não podemos acessá-lo, porque foi isso que ela quis dizer no momento em que eu entrego uma carta com diversas demandas da população LGBT de favela, mas ela diz que não existia a demanda. Então, primeiramente o caminho de resistência é existir, se fortalecer para depois ocupar, porque quando nós nos sentimos seguras e as pessoas passarem a nos reconhecer como seres humanos, aí será possível ocupar espaços. É uma regressão. É muito triste e doloroso isso, mas é a verdade. Quando a gente tiver um olhar do indivíduo trans sem partir para a vitimização, quando formos vistos como qualquer outro ser humano que trabalhar, estudar, passa por problemas, aí teremos um avanço. Eu não tenho que me vitimar para sensibilizar o outro, esse alguém, para ser respeitado como sou. É por isso que você consegue avançar com a pauta gay, lésbica, bissexual, mas a da população trans não. Até os dados são invisibilizados.


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3.5. INTOLERÂNCIA RELIGIOSA Não sou eu que vivo no passado / é o passado que vive em mim. (Paulinho da Viola)

16. Diante da resistência das escolas em aplicar a Lei 10.639, o Ministério Público Federal instituiu um grupo de trabalho em Educação. Com o auxílio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), a estratégia é incluir questões sobre história da África e dos povos indígenas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Dessa forma, induzir as escolas a abordar o tema em seus currículos de forma voluntária ou sendo pressionadas pelos próprios alunos a fazê-lo. No último Enem, aplicado em outubro, seis questões versaram sobre o tema. O objetivo é ter cinco a oito questões relativas ao tema no Exame. 17. SANTOS, Milton. A era da inteligência baseada na máquina. In: TRINDADE, A. L.; SANTOS, Rafael dos (orgs.). Multiculturalismo: mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 18. Bem como o empoderamento e fortalecimento da cultura negra que pela campanha higienista pós período da abolição da escravidão, promoveu o apagamento das raízes africanas na formação da história do Brasil e do povo brasileiro a partir de um conteúdo de ensino eurocentrista.

O Rio de Janeiro assistiu, em 2015, uma das cenas mais lamentáveis de intolerância religiosa: uma menina de 11 anos foi alvo de uma pedrada na cabeça em um ponto de ônibus por estar com vestuário característico do candomblé. Em pleno século XXI, a menina Kayllane Campos teve como algozes e inquisidores dois homens que estavam na Vila da Penha, bairro popular da Zona Norte do Rio. Ao atirarem as pedras, os agressores insultavam o grupo de religiosos que estava com Kayllane. A mãe de santo Káthia Marinho, avó da menina, registrou o caso como lesão corporal e no artigo 20, da Lei 7716 (praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional) na 38º Delegacia de Polícia, em Irajá. O caso de Kayllane não é isolado. Em 21 de janeiro de 2000, a Ialorixá Gildásia dos Santos (Mãe Gilda), faleceu de infarto fulminante ao ver sua foto estampada na capa do Jornal Folha Universal, com o título: “Macumbeiros Charlatões lesam o bolso e a vida de clientes”. Em maio de 2012, em Goiás, Rafael de Araújo Teixeira, de 19 anos, que se dizia da "Igreja de Cristo", tentou quebrar a marretadas a imagem de uma santa católica que havia sido colocada pela prefeitura da cidade de Águas Lindas de Goiás na Avenida JK, na entrada do Jardim Brasília. No ano de 2012, em Manaus, representantes da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas precisaram se reunir com a direção de uma escola estadual devido a negativa de alunos evangélicos a fazer um trabalho escolar sobre a cultura africana. Os alunos se recusaram a fazer o trabalho com a justificativa de que a tarefa fazia apologia ao satanismo e ao homossexualismo, ideias que supostamente contrariam a crença deles. Por Lei 10.639/03, o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nos currículos do ensino fundamental e médio é obrigatório. Mas, 10 anos após a adoção da lei, seja por preconceito racial e religioso, seja pela falta de formação docente, muitas escolas ainda resistem a implementá-la em sala de aula16. A escola é um espaço de socialização e de instrução, aquisição de “conhecimentos”. A escola é a reprodutora de valores hegemônicos na sociedade. Tem a função de “treinar os diversos papéis sociais, cristalizá-los, e não refletir sobre a ideia de que eles são uma construção histórica, e como tal, passíveis de mudança” (Santos, 1999)17, formando os futuros quadros gestores da economia, da política, da cultura, da justiça, etc. É fato que a Lei 10.639/03 abriu caminhos para que a temática africana ganhasse visibilidade dentro do ambiente escolar, ampliasse a quantidade e a qualidade desses temas nos materiais didáticos, além de ter fomentado a oferta de linhas de pesquisas, especializações e cursos voltados para a história africana18. Mas, essa


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mesma visibilidade, também descortinou resistências e práticas intolerantes. De acordo com o Ministério Público Federal, durante o período de dez anos, foram identificados 93 autos extrajudiciais que versam sobre a não aplicação da lei em vários estados do país. Em 2010, a Relatoria do Direito Humano à Educação, ligada a Unesco, apurou denúncias de intolerância às religiões de matriz africana no ambiente escolar. Foram registrados casos de bullying, manifestações preconceituosas e impedimento de usar símbolos. Segundo o relatório da Unesco, a lei evidenciou a confusão entre o limite de uma prática religiosa e cultural. Desvelou também a máscara de outra questão: o racismo presente na sociedade brasileira direcionado à população negra.

CASOS NÃO SÃO ISOLADOS A intolerância religiosa também ocorre com praticantes de outras religiões como o islamismo. É o que mostra o pré-relatório sobre intolerância religiosa no Brasil elaborado pelo Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (CEPLIR)19, ligado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos20. O documento foi apresentado durante a audiência pública realizada e organizada pela CDDHC Alerj, em 18 de agosto de 2015. O estudo foi elaborado a partir de dez documentos produzidos entre 2004 e junho de 2015. Também foram selecionados casos obtidos em registros administrativos, narrativas, depoimentos, entrevistas, notícias e mídias impressa e virtual em todo âmbito do território nacional. Como o caso do Clube AABB Lagoa, no Rio de Janeiro. O clube foi o escolhido pela comunidade judaica para realização do evento Macabíadas (jogos olímpicos que reúnem clubes e colégios judaicos de todo o país). Em uma das dependências do clube onde havia um aparelho de televisão, um sócio descontente com a locação para a comunidade judaica, travou uma agressiva discussão com um grupo de crianças de São Paulo. Na discussão, ele proferiu ofensas de cunho antissemita contra as crianças, chamando elas diversas vezes de "judeus filhos da puta" e dizendo "eu sou muçulmano e odeio vocês!" e "vocês têm que morrer!". Uma semana após o assassinato do cartunista francês do periódico Charlie Hebdo, a professora de teatro Sarah Ghuraba, muçulmana de 27 anos, caminhava para a consulta médica quando levou uma pedrada na perna. Junto ao ataque físico veio o verbal: "muçulmana maldita!", disse o desconhecido, que a atacou somente por ser muçulmana e, logo em seguida, fugiu correndo. Ao relatar o caso no Facebook, para alertar outras muçulmanas para que tivessem cuidado, ela recebeu algumas mensagens solidárias, mas diversas outras ofensivas: "falaram que eu deveria ter levado um tijolo na cabeça e outros prometeram terminar o trabalho. É assustador. Será que uma muçulmana brasileira precisa morrer para entenderem que existe islamofobia no Brasil?", questionou.

19. A Ceplir recebeu em dois anos e meio quase mil denúncias de casos de intolerância religiosa. Os dados foram apresentados na audiência pública realizada no Rio de Janeiro pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, com a participação de 150 pessoas, em 18 de agosto de 2015. O encontro foi organizado conjuntamente com o Centro de Articulação de População Marginalizadas e reuniu representantes de diversas religiões. 20. Disponível em <http:// ceubrio.com.br/downloads/ relatorio-Intoleranciareligiosa-18-08-2015.pdf>.


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EVANGÉLICOS O pastor Marcos Amaral, da Igreja Presbiteriana, destacou que é importante identificar os agressores não só para que eles sejam responsabilizados, mas para mostrar à sociedade de quais segmentos evangélicos partem os atos de violência. De acordo com ele, a maioria dos evangélicos não concordam com a discriminação. Em geral, os crimes de intolerância religiosa contra religiões de matriz africanas são praticados por seguidores de igrejas pentecostais e neopentecostais. “Nós evangélicos lamentamos o que está acontecendo. Nós, evangélicos históricos, sabemos que a violência tem cara e endereço. São os segmentos pentecostais e neopentecostais, grupos televisivos que tem projeto de poder, interesses políticos e econômicos”, afirmou. A reverenda Lusmarina Campos Garcia, da Igreja Luterana e diretora do Conselho de Igrejas Cristãs do Rio de Janeiro, afirmou que aqueles que agridem pessoas em nome de Jesus não conhecem a verdadeira mensagem dos evangelhos. “Ou não estudou teologia ou estudou uma teologia engessada, baseada exclusivamente nos valores ocidentais, do homem branco e proprietário, que exclui índios, negros, mulheres e pessoas de diferentes orientações sexuais. Não percebem a complexidade do divino”, argumentou.

MUÇULMANOS A professora Denise Bonfim, que é muçulmana, lembrou quando foi ameaçada de morte por usar o véu. “A nossa vestimenta é a nossa identidade. Nunca imaginei sofrer intolerância em minha cidade, multicultural e multirreligiosa. Um homem numa moto passou por mim e falou que muçulmano bom é muçulmano morto. Tirei meu véu por um tempo por medo”, contou. Os casos de discriminação no Rio de Janeiro estão crescendo devido ao agravamento dos conflitos no Oriente Médio e à violência do Estado Islâmico. As principais vítimas são as mulheres, devido ao traje. Segundo Teresa Cosentino, à época, secretária estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, a pasta atendeu a 532 casos de intolerância religiosa em 2014. Na ocorrência de casos, há denúncias de preconceito com diversas religiões, mas cerca de 70% das vítimas são seguidoras de religiões afro brasileiras. Como encaminhamento da audiência pública sobre o tema, foi formado um grupo e trabalho para acompanhar os casos e denúncias e pensar em políticas públicas. O grupo passará a se reunir em 2016.


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3.5.1. ENTREVISTA: IVANIR DOS SANTOS

Leon Diniz

“A intolerância religiosa é uma ameaça à democracia”

Ivanir dos Santos critica o silêncio de setores progressistas com relação à intolerância religiosa

Segundo relatório do CEPLIR, até Junho de 2015, só no estado do Rio de Janeiro, foram registrados 39 casos de intolerância religiosa no disque 100, além de 90 casos a nível nacional. Em 2014, foram registrados 79 casos em todo o Brasil. A incidência de casos de preconceito e discriminação contra praticantes de religiões de matriz africana, dá a certeza a Ivanir dos Santos, que não só as agressões não são casos isolados, como o problema não é só uma questão individual. Trata-se de uma ameaça à democracia. “Talvez a indiferença seja um caso isolado, mas a violência não é. O problema da intolerância é muito maior do que as pessoas pensam, porque ela é um ataque à democracia”, afirmou ele na audiência pública em 18 de agosto de 2015. Nascido e criado na favela do Esqueleto21 até ser internado à força no antigo Juizado de Menores, o babalorixá Ivanir dos Santos, transformou a exclusão em força motriz para lutar em prol das populações marginalizadas. Filho de uma prostituta assassinada pela Invernada de Olaria, levado para a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), ele foi uma das primeiras lideranças negras do país a levantar a voz denunciar a ação de grupos de extermínio que matavam crianças em situação de rua. Atuou na defesa dos direitos humanos na Chacina da Candelária, Vigário Geral e ao lado das Mães de Acari. Ao longo da última década, participou da organização e coordenação das campanhas de combate ao racismo e da elaboração do Programa Nacional sobre Criança e Adolescente, Violência e Cidadania. Esteve à frente até 1999 da Subsecretaria Estadual de Direitos Humanos e Cidadania, comandando a equipe que elaborou o Plano Estadual

21. Onde hoje se localiza a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


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de Direitos Humanos. Junto com setores do Movimento Negro e de Mulheres, criou o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), no qual atua até hoje. Frente ao aumento das práticas de intolerância religiosa no país, participa da criação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa no Rio de Janeiro. Criou junto com diversos movimentos a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa que já está em sua 8ª edição. A 1ª Caminhada na Orla de Copacabana reuniu mais de 20 mil pessoas e foi um marco na cidade, possibilitando a abertura de fórum de diálogo Inter-religioso. CDDHC: Por que a caminhada pela liberdade religiosa é uma ação importante? Ivanir dos Santos : Porque desde a 1ª Caminhada de Intolerância Religiosa, em 2008, em Copacabana, essa ação surpreendeu a todos por conseguir aglutinar pessoas de diferentes religiões. Ninguém esperava que um tema como esse levaria os religiosos para as ruas. Principalmente, porque a caminhada sempre foi, em um primeiro momento, 99% com participantes de religiões de matriz africana. Depois, conseguimos articular com outros grupos religiosos, mas foram com as lideranças dessas outras religiões e não foram com adeptos delas massivamente. Com o tempo, houve adesão de populares. Hoje, o cenário que você vê na caminhada é ainda composta por uma maioria de praticantes de religiões de matriz africana, mas tem também a presença de cristãos, Hare Krishna, dos anglicanos, budistas, ciganos, muçulmanos, judeus. É uma ação cada vez mais é representativa. Na caminhada de 2015, se você olhasse para os lados, via até grupos que são discriminados dentro da sua própria religião participando. É o caso dos religiosos gays que desde a 2ª caminhada participam, porque que se sentem discriminados, mas no ano passado teve também os gays católicos. Até a turma que luta a favor da legalização do aborto participou da caminhada. Ou seja, é uma caminhada democrática. CDDHC: Quais são as raízes dessa intolerância? Ivanir dos Santos : O fundamento da intolerância tem a ver com a ignorância, preconceito e com o racismo. Se você observar, por trás da intolerância há uma motivação política e não religiosa, porque o religioso pensa diferente. Com a chegada de Jesus, Deus resume os mandamentos em dois: amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Ele mandou amar e não ter preconceito, porque Jesus congregava com todos: prostitutas, samaritanos, etc. O preconceito não é de Deus e sim do homem e do interesse do homem. Outra fundamentação mais moderna tem a ver com o mercado. Há igrejas neopentecostais aí que estão fazendo saquinho de sal grosso para descarrego, entre outras atividades que se assemelham as práticas que os umbandistas têm em seus rituais. Não é um movimento que tem a ver com bases religiosas e sim com a utilização da religião para um outro caminho, usando o mecanismo de demonizar os grupos que não tem essa identidade religiosa igual a deles. Daí, é claro que as religiões de matriz africana serão o maior alvo, porque você tem que baixar a autoestima dessas pessoas para elas terem vergonha do que são para, inclusive, ter o momento da conversão. O uso da intolerância no Brasil ocasionou uma base conservadora para fidelizar o voto a partir de uma posição conservadora. Isso não é religião, é política e econômica.


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CDDHC: Quais são as principais denúncias que chegam na comissão? Ivanir dos Santos : Desrespeito, briga com crianças nas escolas, confusões e desentendimentos entre vizinhos e até casos de invasão de templos chegando a agressão física. Isso sempre ocorreu, mas agora está tendo reação. Somos pacíficos. Reagimos indo a delegacia prestar ocorrência mesmo sabendo que muitas vezes você não consegue fazer o registro na delegacia. Isso acarreta a subnotificação, porque impede a instalação de inquérito para denúncia ao Ministério Público. E quando há delegados que levam o caso adiante, acabam sendo perseguidos por esses grupos de fanáticos. Na audiência pública, eles foram com uma camisa dizendo: Bíblia sim, Constituição não. Isso em um Estado laico. O fanatismo é perigoso para qualquer grupo social. Esses grupos têm um poder político nessa cidade e no Congresso. Tem também as outras instâncias. Estamos diante de um Estado que é laico, mas a pessoa vai ser funcionário público e não se insere nessa prerrogativa do Estado. Usa a sua religião como caminho para construir benefícios. Tem juiz julgando ações a partir das suas concepções religiosas, tem promotor que faz denúncia a partir da sua ordenação religiosa, tem delegado que atua também a partir da sua concepção religiosa. Tem prédio público que tem culto e missa. Certa vez, entrei na Alerj e tinha aviso no elevador: Dia tal, horário x, culto no lugar tal. Do outro lado tinha o aviso da missa do padre. Agora, se eu chegar lá e tentar colocar um aviso lá dizendo: quarta-feira, a tal hora, sessão com a vovó Maria Conga, eu não vou poder não, vai poder? E não pode mesmo, porque o Estado é laico, o problema é que na prática ele não é. Ou seja: o culto a algumas religiões é permitido dentro de um prédio do Estado laico, outros não. CDDHC: Quais são os principais locais de agressões a terreiros no Rio de Janeiro? Ivanir dos Santos : Em algumas comunidades, porque justamente temos essa contradição de traficantes se dizerem evangélicos algumas vezes aliados com maus pastores. Isso é real. E temos que olhar como isso também é feito dentro dos presídios. Ocorre mais em área de periferia, mas isso não quer dizer que não aconteça nos grandes centros. Já tivemos ocorrência no Catete, porta da Zona Sul. O que chama atenção é o silêncio de setores progressistas com relação a esse tema. Ou seja, isso não é uma preocupação ainda, não é vista como prioridade na pauta partidária, porque a intolerância religiosa não está na macropolítica. Ocorre com grupos minoritários, mas quando ocorrer com o grupo católico, quando uma santa é quebrada, aí o clamor é maior. É como se existisse um consenso na sociedade ou preconceito de que é com “macumbeiro” e preto pode. Aliás, por conta da intolerância religiosa, o único momento em que um branco se sente discriminado é quando ele é praticante de religião de matriz africana. Ele sai com seu fio de cota e entra no ônibus e de repente ouve um “tá amarrado”. Então, a caminhada a favor da liberdade religiosa é isto: você vê várias pessoas brancas da religião matriz africana que vão para rua, ele assina a cultura religiosa de um povo, de uma identidade, de uma cultura que é negra e é africana. CDDHC: Então, a Lei que adota o ensino da história e cultura africana nas escolas de ensino fundamental e médio como obrigatório é um caminho para combater a intolerância? Ivanir dos Santos: Sim. Inclusive, a lei que é federal, em nenhum momento fala de religião, mas de cultura. Porém, tem professor que quando fala a palavra África, o menino evangélico já sai resmungando que isso é macumba. Ora, África é o berço


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da civilização mundial. Mas observa o preconceito? Os que mais resistem à lei são os pentecostais e aí não é só a aplicação da lei na escola. Ocorre também com a capoeira que para ser exercida pelo pentecostal tem que ser sem atabaque. Ou seja: vão limpando os elementos da raiz africana. Perceba como essa intolerância parte de uma construção eurocêntrica de mundo. Por isso, penso que a lei é o maior instrumento de combate a intolerância religiosa, porque é uma lei que aborda a cultura. É preciso ter informação. CDDHC: Por que é tão importante denunciar e fazer o registro na delegacia a violação de intolerância religiosa? É uma forma de torna visível? Ivanir dos Santos: Não só para tornar visível, mas para tornar a intolerância uma denúncia, um fato concreto porque a polícia trabalha com estatística. O Estado também trabalha a partir de estatísticas. Por isso, não adianta só a gente sentir e reclamar. Tem que ir fazer o registro e se o delegado não quiser, force a barra. Sabemos que às vezes a intolerância religiosa é classificada com outro tipo de artigo. Há delegados que tipificam como desentendimento de vizinhos. É necessário pressionar para o registro seja realizado como prevê a intolerância religiosa. O operador do direito que recebe os casos às vezes pensa igualzinho a quem fez o ataque. Essa é uma questão. É igual ao racista que diz que não é racismo e que foi você quem não entendeu direito. Em vez de ele ouvir a sua queixa, ele tenta convencer a você que sua queixa está errada. Mas existe base legal para autuar a intolerância religiosa. Cabe ao poder público fazer um treinamento para preparar o agente. Ele tem que atender ao público e aplicar a lei e não sua compreensão religiosa. O grosso da intolerância está invisível, porque tem muita gente que sofre isso, mas não consegue achar nem o caminho da delegacia e da Comissão de Combate a intolerância religiosa, principalmente na Baixada Fluminense. CDDHC: Espaços como audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos são importantes por quê? Ivanir dos Santos: Boa parte dos deputados evangélicos fazem discurso que não são intolerantes, mas nenhum deles foram na audiência pública feita na Alerj. Não ouvem a comunidade para buscar uma solução. Mesmo assim a audiência pública tem seu papel e função, porque é um espaço de relação de poder. Debater o tema ali pode criar uma onda na sociedade. Não tenho a ilusão de que vamos conseguir da noite para o dia mudanças, mas discutir a intolerância nesse espaço é fundamental para ampliar o debate. O Estado se omite sobre esse tema não é à toa. Esses grupos construíram uma fonte de poder, uma bancada, ou seja, criou um lobby. O que as pessoas não percebem é que por trás da intolerância há posições e jogos políticos que são feitos.

3.6. A JUVENTUDE E A CULTURA DO MEDO A construção do medo no Rio de Janeiro é histórica. De acordo com a socióloga Vera Malaguti (2003), esse processo tem raízes na formação do Brasil a partir da difusão do medo, da insegurança e da desordem pública, porque serve para a aplicação de


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sistemas políticos de urbanização e policiamento como estratégias para “neutralizar e disciplinar” a população pobre. O fim da escravidão e a implantação da república, fenômenos ocasionados quase concomitantes, iniciaram essa construção do medo, uma vez que não romperam com a ideia elitista de ordenamento no país, formando uma cultura socioeconômica e política, como ressalta Vera Malaguti22. Malaguti argumenta que o medo branco da rebelião negra, da descida dos morros, aumenta com o fim da escravidão e da monarquia, que produz uma república excludente, intolerante e truculenta a partir de um projeto político autoritário. Uma cultura do medo criada por ser necessária para implantação de legislação e a execução de políticas públicas no espaço urbano, seja em infraestrutura ou na gestão de segurança na cidade, que privilegia a elite e a classe média, subjugando a massa pobre. Principalmente, no Rio de Janeiro – que sendo a capital simbólica do país – vitrine da massa negra, escrava, liberta que se transformou num gigantesco Zumbi a assombrar a civilização, criando estratégias de sobrevivências próprias na ausência de políticas públicas sociais, dos quilombos ao arrastão nas praias cariocas, ressalta Malaguti. Um medo forjado na síndrome do liberalismo oligárquico brasileiro, que funda a nossa República carregando dentro de si o princípio da desigualdade legítima que herdara da escravidão, que segue produzindo seletividade. Não é à toa que juventude pobre e negra é o perfil predominante das pessoas presas ou em medidas socioeducativas devido a atos ilícitos relacionados à desordem. A seletividade do sistema penal (polícia, judiciário) do Estado permite que a população pobre seja alvo do controle repressivo do Estado. As estratégias de criminalização da pobreza não estão somente em manter essa população à margem do Estado. Os bairros empobrecidos se configuram como o espaço aonde o alvo deve ser atingido no enfrentamento ao medo protagonizado pelo Estado em busca de ‘soluções’ para dissipar a sensação de insegurança. O medo molda cotidiano das grandes cidades, desde seus contornos arquitetônicos até o comportamento de seus habitantes. Trata-se de uma categoria de construção discursiva do social que se expressa como fio condutor de subjetividades. O medo é utilizado como ferramenta política de controle social, coerção e extermínio da população pobre por governos que, nos dias atuais, também utilizam os meios de comunicação comercial como braço estratégico para a aplicação dessa política. O sociólogo Barry Glassner23 denomina como “cultura do medo” todas as situações fabricadas por alarmistas, tendo como seus protagonistas: a mídia24, o mercado, a religião e a política. Dentre os medos “válidos”, aqueles que são necessários ao ser humano porque alertam sobre o perigo; e os disseminados por essa cultura: os medos “falsos ou exagerados”, Glassner classifica a mídia como um "arauto do medo". Isto porque fomenta a cultura do medo ao destacar crimes, enfatizar a violência, adulterar números, dados estatísticos, manipular a informação, dominar o noticiário, e principalmente, aproveitar-se dos amedrontados para comercializar o pânico como produto.

22. Malaguti, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 23. GLASSNER, Barry. The Culture of Fear. New York: Perseus Books Group Francis, 2003. 24. “Exceções há”, diz Glassner (2001), porém, a mídia está no centro do culto da cultura do medo.


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Consumir o medo como produto na cobertura policial exige fazer uma distribuição desse medo de maneira heterogênea no tecido social da cidade. A partir de certa representação da desordem urbana e da sensação de segurança criada pelas lentes da mídia, que fomenta a opinião pública, cada região ou bairro é classificado segundo determinados medos. Ainda que o risco projetado para certos lugares também seja válido para outros – e até isentos de alguns. São projeções de espacializações do medo que guardam a memória de violência. No entanto, uma mesma população e organização de sociedade pode ter diferentes memórias, o que pode nos levar a construção de vários "Rios do medo"25, mas também a formas criativas de estratégias de sobrevivência, luta e resistência. A cidade do Rio de janeiro está em uma disputa simbólica, mas também prática, a partir de ações de grupos que não recuam na defesa dos direitos humanos. Além disso, esses coletivos são capazes de fomentar uma gestão de cidade em que novas espacializações garantem uma memória de um Rio sem medo.

3.6.1. MOBILIZAÇÃO PELO DIREITO À CIDADE No final de setembro de 2015, veículos de comunicação de massa divulgaram imagens de furtos ocorridos nas areias da Zona Sul carioca, em final de semana de sol e praia lotada. A exemplo do que ocorreu na década de 1990, teve início uma ampla campanha de criminalização da juventude pobre da Zona Norte, com a disseminação de um sentimento de medo na elite econômica que rapidamente exigiu das políticas de segurança pública uma resposta. Neste contexto, as forças policiais adotaram um procedimento padrão aos finais de semana e feriados: parar linhas de ônibus que ligam a Zona Norte à orla da Zona Sul e levar os jovens, negros e pobres para a delegacia, com vistas à verificação de antecedentes criminais ou infracionais. Esta conduta evidencia uma política de segurança racista e discriminatória que, através do procedimento ilegal de prisão para averiguação, busca cercear cidadãos ao direito constitucional de ir e vir, além do direito ao lazer e ao uso do espaço público. Diante das inúmeras reportagens sobre as operações, bem como das declarações do secretário de Segurança Pública e do governador do Estado em que afirmavam, através de metáforas, que tais ações seriam mantidas e fortalecidas, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cdedica), impetrou um habeas corpus preventivo que buscava a decretação do óbvio: a determinação de todos os jovens serem tratados como inocentes até que se prove o contrário. 25. MATHEUS, Letícia Catarela. Narrativas do Medo: o jornalismo de sensações além do sensacionalismo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.

Quando a Vara da Infância e da Juventude do Rio concedeu liminar acatando o pedido da Defensoria, houve uma reação do governador e do secretário de Segurança Pública que, revoltados, atacaram tanto o Poder Judiciário, quanto a Defensoria Pública, na figura da defensora pública Eufrásia Maria das Virgens, coordenadora do


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Cdedica. A defensora chegou a receber ameaças de morte nas redes sociais. Implacável na defesa dos direitos humanos, Eufrásia Maria não recuou. Recebeu inúmeras manifestações de apoio, entre as quais a Medalha Tiradentes, maior comenda da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Uma iniciativa do mandato do deputado estadual Marcelo Freixo, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj. Coletivos e entidades de direitos humanos, além de diferentes movimentos sociais, também se organizaram para frear a barbárie institucionalizada. Entre eles, o coletivo de mídia independente Papo Reto, formado por cerca de 10 moradores do Complexo do Alemão. O Papo Reto organizou uma ação de comunicação de rua para protestar contra a tentativa de segregar a favela da cidade, criando o evento "Farofaço 2.0: Nós Vamos invadir NOSSA praia". Uma iniciativa na contramão dos eventos organizados por 'justiceiros', que incentivaram por meio das redes sociais agressões contra jovens negros que se dirigissem às praias da Zona Sul. O termo ou gíria “farofa” surgiu no Rio para designar de forma pejorativa e estereotipada o comportamento praiano do morador do subúrbio ou da favela em levar para a praia alimentos trazidos de casa, incluindo o clássico e barato frango com farofa. No Farofaço, os itens obrigatórios são, de acordo com os organizadores, frango, farofa, refrigerante, alegria e roupa de banho para curtir a praia. "O bagulho é curtir uma praia bolada em um domingão ensolarado de nossa cidade linda! É pra curtir a praia numa boa, estamos pedindo que tragam suas cangas, seus bronzeadores, protetores de sol, douradores de pelos, bola de futebol, seus isopores com cerveja e guaraná pra criançada, baldinho, piscinas de plástico pras crianças e pandeiro pro pagodão no fim de tarde, e um radinho pro pancadão!!!", descrevia o texto do evento. E concluía: "Também trabalhamos e pagamos impostos! Gostamos de praia! Gostamos tanto que queremos curtir a de Ramos e a de Ipanema também! Por isso vamos nos encontrar na Praça General Osório que é onde fica o ponto final do 483, 484 e fica próximo ao 455". A primeira versão do Farofaço foi realizada em dezembro de 2013. Com o processo do corte das linhas de ônibus que dão acesso direto da Zona Norte à Zona Sul e a criminalização de moradores de favelas, o Coletivo Papo Reto, organizou a segunda edição do Farofaço em 4 de outubro de 2015. O ato começou na estação do metrô de Ipanema e saiu em direção à praia do Arpoador e defendia o direito de ir e vir com cartazes como "morar longe não é crime" e "seu IPTU não paga a nossa praia". O Bloco da Associação de Amigos e Profissionais do Funk animou o trajeto até o mar, chamando a atenção de vários frequentadores da praia como camelôs, moradores da Baixada Fluminense e de outras periferias do Rio de Janeiro. A CDDHC Alerj também participou do ato e prestou auxílio aos organizadores. Thainã Medeiros, integrante do coletivo, museólogo e morador do Complexo, explica em entrevista a prática do grupo de disputar a cidade a partir de mobilizações de rua, da construção de narrativas como o Farofaço.


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3.6.2. ENTREVISTA: THAINÃ MEDEIROS

“A criminalização transforma ‘justiceiro’ em herói” Leon Diniz

Thainã Medeiros defende que o racismo culmina com um grupo de brancos retirando negros do ônibus com o argumento de que são criminosos

CDDHC: O que é o Farofaço? Thainã Medeiros: O Farofaço não deixa de ser um rolezinho com outra proposta. Ele é a tomada de um espaço que é negado pela população de uma outra forma. As abordagens feitas pela polícia são discriminatórias. Quem é que definiu que uma pessoa pobre, sem camisa, vinda da Zona Norte é uma criminosa em potencial? Isso não é política preventiva. Política de prevenção é investir em políticas públicas, não tirar o direito de ir à praia das pessoas. CDDHC: O Coletivo Papo Reto, organizador do Farofaço, sofreu ameaças dos justiceiros? Thainã Medeiros: Primeiro, esse fenômeno de justiceiros da Zona Sul correndo atrás de favelado na praia não é novo. Na década de 90 foram publicadas notícias de jornal sobre isso, à época dos primeiros arrastões na praia. Primeiro é preciso compreender que o termo arrastão é uma criação midiática, o que é o arrastão? É um grupo de jovens que cometem assalto e isso acontece na cidade inteira. Mas, ao fazer o recorte “praia” e identificar como algo que é muito perigoso, funciona para criminalizar uma parcela da população. Na década de 90, existia um grupo que era denominado “grupos de funkeiros levam o terror à praia”. Uma perspectiva contra os funkeiros, porque era início de um novo cenário funk e de um momento político-eleitoral importante, pois tínhamos uma candidata negra, ex-favelada disputando as eleições para a cidade. O recorte midiático dizia que essa galera da favela estava indo para as praias causar. Já naquele momento tinha grupos de lutadores de jiu-jitsu que faziam a segurança do bairro. E essa segurança era contra pobre, preto e favelado. Hoje isso só se


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repete. O exemplo mais claro foi o caso do Flamengo quando prenderam um menino no poste amarrado, porque ele roubou um celular. O roubo de um celular se tornou um crime mais grave do que o crime de tortura que aquele grupo de jovens fez. Então, essas ameaças de agora, não são feitas para a gente do Coletivo Papo Reto. Eram feitas a todos aqueles que iam à praia e que figuram o estereótipo. CDDHC: Como essas ameaças foram feitas? Thainã Medeiros: Eram postadas na página do evento criado no Facebook e diziam que a gente levaria tumulto para a praia, só que por outros comentários postados pela própria galera e a descrição do evento, mas se percebia que a proposta nunca foi essa. Queríamos simplesmente levar favelados para praia. O problema é que na cabeça de uma pessoa preconceituosa levar favelado à praia é fazer tumulto. Eu sempre tentava entender qual era a narrativa que existia ali. Uma narrativa bastante constante – por mais que a gente identifique o preconceito de classe e de cor, um racismo de classe – a narrativa que eles usam não é essa. Eles não falam vamos à praia pegar esse pessoal porque eles são pretos, eles dizem que só querem pegar os criminosos. Mas eles estão detendo as pessoas a partir de um recorte de classe e de cor. Então, só para deixar isso bastante claro, o racismo no Brasil está presente e é institucional. O racismo está em várias camadas de preconceitos que culmina num grupo de brancos parando ônibus e tirando os pretos para meter a porrada, mas com o argumento de que não estão batendo porque é preto e sim porque é criminoso. Se criminaliza um indivíduo antes de qualquer ação arbitrária e quem o criminalizou não é julgado por isso. A narrativa da criminalização não só dá o respaldo para quem comete a atrocidade em nome de uma suposta justiça, como ela o transforma em um herói. Não é à toa que eles se autointitulam os justiceiros. Justiceiros e heróis são termos que a milícia utiliza para se autodenominar. CDDHC: O corte das linhas de ônibus que ligam a Zona Norte à Zona Sul é uma ação política de segregação da cidade? Thainã Medeiros: Muitos argumentam que a redução das linhas de ônibus e a alteração dos itinerários é para beneficiar a cidade. Isso pode ocorrer desde que se crie outra rede de comunicação de transporte, que dê conta do volume de trânsito, sendo integrado para facilitar o acesso da população, mas não é isso que há no Rio de Janeiro. Divulgam opiniões de especialistas e apresentam estatísticas na tentativa de comprovar o argumento do benefício, sem levar em conta que vai dificultar a saída da Zona Norte, Zona Oeste e Baixada para o Centro e Zona Sul. O governo usa as estatísticas que lhe interessa, a verdade que lhe convêm. Há dados que mostram que mais de 90% dos assassinatos de jovens na cidade são de negros, mas essa estatística é ignorada. Agora, quando há dados para sustentar o corte das linhas de ônibus que dão acesso direto entre a favela e as praias, esses dados servem para justificar a tal política. Não é um jogo com a mentira, mas com a verdade que interessa e que não é a que contempla todos os cidadãos. Falam que o bilhete único vai dar conta, mas o valor que já era alto aumenta mais. Que cidade é essa que diz que vai integrar, mas cria só mecanismo para dificultar o acesso à ela? CDDHC: A partir desse cenário, como você acha que as entidades de direitos humanos podem atuar na disputa e preservação direito à cidade? Thainã Medeiros: Existem grupos organizados na cidade disputando essa narrativa, essa gestão da cidade. As comissões de direitos humanos desde o primeiro Farofaço


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vem colaborando e auxiliando o Coletivo Papo Reto na organização do evento. Disponibilizando advogados, orientando em questões de segurança, estando presente. Desde os primeiros dias de organização todas essas comissões se envolveram e a presença delas dão uma legitimidade ao que nós estamos fazendo. No segundo Farofaço, a Comissão chegou junto para fornecer seus recursos e orientações na construção da ação e ajudou muito, porque quando a gente cria um evento tomado pela raiva de que os nossos (moradores de favela e pobres) estão sendo espancados, a gente não percebe a dimensão que aquela ação pode tomar. Criamos um evento e, de repente, 6 mil pessoas estão confirmadas. A equipe da Comissão de Direitos Humanos mostrou que não tínhamos pensado em diversos detalhes de segurança dos participantes e dos próprios membros do Coletivo. Foi bastante importante para podermos atuar e fortalecer não só no ato, mas na construção desse tipo de eventos. CDDHC: Por que os participantes do Farofaço fincaram bandeiras nas áreas da praia do Arpoador? Thainã Medeiros: Foi um dos momentos da construção desse Farofaço: a criação de pequenas bandeiras com o nome de todas as favelas que nos lembramos no Arpoador, porque a saída da Zona Norte, da Zona Oeste, da Baixada para ir à praia na Zona Sul é uma conquista, porque não só as passagens das linhas de ônibus são caras, os meios de transporte na cidade são caros, como dentro desse trajeto, a gente pode ser parado pela polícia, por playboys, justiceiros, e até ali, no momento da praia, ainda podemos ser parados também. Por isso, chegar à praia é uma conquista e fincar a bandeira naquele espaço significa marcar a nossa presença. Foi importante as mulheres serem as protagonistas desse momento, pegarem no microfone, porque nossa memória afetiva de ir à praia fazendo Farofaço é com as nossas mães. Eram elas que nos levavam à praia com aquelas sacolas cheias de comida e bebida. Lá pelos 12 anos a gente já carregava as sacolas já com um pouquinho de vergonha, mas na hora da fome, íamos lá comer o frango que nossa mãe tinha levado. Além disso, se para chegarmos na praia é uma conquista pelo desafio, sair também é. É uma odisseia no termo claro da mitologia mesmo: de um cara que foi para guerra e demorou um tanto de anos para conquistar e depois para voltar. É isso que é ocupar o espaço da praia: não só chegar, mas é chegar, se manter e voltar para casa com segurança. O próximo capítulo expõe a situação de violência em que o Rio de Janeiro está submetido diante de uma suposta “guerra às drogas”, sobre a qual não há vencedores. O capítulo apresenta os casos emblemáticos de violações dos direitos de civis e militares e atuação da CDDHC nos atendimentos e encaminhamentos. Nesta sessão, há especial atenção às favelas do Alemão e Acari, esta última por apresentar um alto índice de execuções sumárias e também rememorar os 25 anos das Mães de Acari.


4. Segurança Pública: A barbárie não é solução

O

s números não deixam margem para dúvidas: a violência faz parte do cotidiano brasileiro. Segundo 9º Relatório do Fórum de Segurança Pública1, 59 mil pessoas foram vítimas de mortes violentas no país. Os dados revelam que na dinâmica da violência, a cada 3 horas uma pessoa foi morta pela polícia em 2014. Somadas todas as categorias de morte violentas, o Brasil teria uma taxa de 28,8 mortes para cada 100 mil habitantes. Essa taxa significa um patamar de 9,9% superior àquele alcançado apenas nos homicídios dolosos. Em média, 28,4% dos crimes violentos letais intencionais aconteceram nas capitais, incluindo as mortes por intervenção policial. Os dados do Fórum de Segurança Pública também revelam que o número de mortes decorrentes de intervenção policial representa 5% do total de mortes violentas intencionais. Entre 2010 e 2013, 1.275 pessoas foram assassinadas durante operações policiais na cidade do Rio de Janeiro. Isso significa que, a cada dois dias, houve um homicídio provocado pelas forças de segurança do Estado. Do total das vítimas, 99,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade.

RIO TEM A MAIOR TAXA GLOBAL Em 2014, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que em números absolutos, o Rio de Janeiro ocupa o 2º lugar nas estatísticas de casos de pessoas mortas pelas polícias, com 554 mortes. Quando essa taxa é dividida pelo contingente populacional, o Rio alcança o 1º lugar com o valor de 3,5 pessoas mortas para cada 100 mil habitantes. Em 15 anos, ocorreram 3.250 casos de homicídios decorrentes de intervenção policial, sendo a maior parte das ocorrências na capital. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), de janeiro a novembro de 2015, foram registradas 615 mortes decorrentes de ações policiais no Estado. Já no mesmo período em 2014, foram 480. Em 2013, 339. A principal conclusão dos estudos feitos sobre letalidade da ação policial ao longo dos anos é sempre a mesma. Mostra que execuções sumárias não resultaram em qualquer punição porque o Ministério Público não oferecia denúncia e o Judiciário acolhe o pedido de arquivamento do MP. A “conspiração do silêncio”, como é denominada pelo pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da UERJ, Ignácio Cano, só é desmontada a partir de duas situações: quando as vítimas são escandalosamente inocentes, por exemplo, no caso de crianças mortas por intervenção policial, como o Eduardo de Jesus, no Complexo do Alemão, em abril de 2015. Ou quando há evidências incontestáveis de que a versão oficial é sempre a mesma, como foi o caso do flagrante filmado com celulares por civis

1. Disponível em: http:// www.forumseguranca.org.br/ produtos/anuario-brasileirode-seguranca-publica/9oanuario-brasileiro-deseguranca-publica


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como recentemente aconteceu no Morro da Providência, pois é quando a ação policial é individualizada a partir da prova. A Polícia no Rio de Janeiro não conclui 83% das investigações de homicídios praticados por policiais. Cerca de 98% dos casos de auto de resistência são arquivados pelo Ministério Público. Segundo informações publicadas no relatório “Você matou meu filho”, da Anistia Internacional, das 220 investigações sobre homicídios decorrentes de ações policiais na cidade do Rio em 2011, 183 ainda não haviam sido concluídas até abril de 2015. O chefe da Polícia Civil, Fernando Veloso, reconheceu, durante audiência na CPI dos Autos de Resistência2 da Assembleia Legislativa, que a falta de investimentos em pessoal e tecnologia para investigar homicídios provocados por operações policiais resulta na falta de produção de informações qualificadas sobre o assunto.

CICLOS DE VIOLÊNCIA

2. A CPI de Autos de Resistência e Mortes decorrentes de Ações Policiais no Estado da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, teve sua criação publicada em diário oficial em 9 de outubro de 2015. A comissão é presidida pelo deputado estadual Rogério Lisboa e com relatoria de Marcelo Freixo. A proposta busca investigar o baixo índice de resolução nos casos de autos de resistência. 3. ZACCONE, Orlando. Acionistas do Nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: REVAN, 2007. A expressão “acionistas do nada” é uma denominação cunhada por Nils Chistie, na obra “A indústria do controle do crime” para conceituar a seletividade produzida pelo sistema de governos e jurídicos em relação às pessoas que são atingidas pela prática da conduta descrita como tráfico de substância entorpecente como algo irrefutável.

Se parte dos policiais são os autores de crimes responsáveis pelos altos índices de violência, uma preocupante parcela também é vítima. Até outubro de 2015, mais de 66 policiais foram mortos no Rio de Janeiro. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio é o estado campeão de mortes de agentes de segurança. Em 2014, foram 98 policiais assassinados, quase 25% dos 398 agentes mortos em todo o país. “A polícia que mata é a mesma polícia que morre. E nenhuma polícia no Brasil morre no nível da polícia do Rio de Janeiro. Nós temos ciclos de vingança que consistem em: criminosos executados pela polícia em serviço e, posteriormente, temos policiais executados por criminosos, principalmente quando estão de folga. A barbárie que vai é a mesma barbárie que volta e assim nós temos esses casos terríveis de policiais que são arrastados até a morte, como aconteceu recentemente no Rio de Janeiro. Portanto, os policiais não são os beneficiários deste sistema perverso e de falta do controle do uso da força. Eles são também vítimas dessa conspiração do silêncio”, destacou o sociólogo Ignácio Cano, na CPI de Autos de Resistência da Alerj. O “mata-mata” é a parte visível da violência fomentada por uma política de enfrentamento direto ao tráfico de drogas, promotora do princípio do bem e do mal como dispositivo da construção de realidade social. Isso se expressa na “guerra” dos bandidos contra os mocinhos, de vilões contra heróis, dos “acionistas do nada”3 contra os pacificadores, que torna todos reféns e vitimiza a população. Esse panorama histórico-social, somado aos consensos construídos discursivamente pela mídia, tem projetado um imaginário social de tensão e constante conflito no Brasil. Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase “Bandido bom é bandido morto”. Este percentual é maior para homens (52%); moradores da região Sul do país (54%); e autodeclarados brancos (53%). Por outro lado, 45% da população discordam dessa afirmação. E essa discordância é formada proporcionalmente mais por mulheres, au-


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todeclarados negros, jovens e moradores da região sudeste do país. Na média, considerando a margem de erro, há um empate entre os que concordam e os que discordam desta questão. Porém, se a tese “bandido bom é bandido morto” tem alcance social, a inclusão da pena de morte na Constituição Brasileira não tem a mesma receptividade. Ignácio Cano, em estudo realizado diretamente com policiais, identificou que 40% dos policiais também concordam com a prática do extermínio. David Garlland4 enfatiza que o processo de percepção do medo e da violência alterou a posição da classe média referente a questões judiciárias ou penais. Segundo ele, à medida que as pessoas se percebem como vítimas regulares de crimes, elas foram simultaneamente estimuladas a verem a si próprias como vítimas do governo total, das políticas de tributação e gasto, de programas previdenciários irresponsáveis, da inflação de sindicatos de trabalhadores e, nos EUA, de programas de ações afirmativas. Os direitos do estado do bem-estar foram considerados como políticas públicas que contrariariam os interesses da classe média “trabalhadora e decente” em favor de promover benefícios somente aos pobres urbanos indesejáveis e cada vez mais desordeiros. “Se as classes médias eram agora as vítimas, seus algozes eram uma subclasse indesejada, financiada por políticas previdenciárias equivocadas e protegida por profissionais do serviço social com interesses próprios e por elites liberais que não viviam no mundo real” (2008, p. 30). Essa posição política das classes médias foi alterada porque, em virtude da violência, de acordo com Garlland, o crime foi redramatizado. Sob a perspectiva, em que o bem deve exterminar o mal, matar os sujeitos “inimigos da paz da cidade” que toma corpo na figura do traficante de drogas, e consequentemente, das populações que moram no mesmo local ou próximo onde o inimigo se encontra: as favelas. A criminalização da pobreza, não está somente em manter essa população à margem do Estado, mas em "associar o local onde ela habita à origem do terror. A figura do traficante nessas localidades é o que permite que se exerça essa política do "mata-mata". Assim, de acordo com o delegado Orlando Zaccone (2007), legitima-se o uso das prerrogativas de controle social permanente com uma política de segurança fundamentada em zonas de guerra. Não se fala na ausência do Estado que falha em atender demandas sociais e em seu lugar de articulador simbólico e político. O medo molda o cotidiano das grandes cidades, desde seus contornos arquitetônicos até o comportamento de seus habitantes. Um medo válido de acordo com as estatísticas de segurança pública. Não podemos deixar a barbárie ser a solução para violência. Precisamos deslumbrar espaço para mudanças desse cenário de disputa pela legitimidade desse "mata-mata", inclusive, com condições para que novos padrões de atuação policial sejam construídos. A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj acredita que o trabalho da instituição não deve consistir em "enxugar gelo" e "limpar carvão" dos casos de violações de direitos que chegam à Comissão. Acolher as famílias vítimas de violência institucional, acompanhar as apurações dos crimes, fomentar soluções e pro-

4. GARLLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.


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mover o debate, procurando não só a solução de casos, mas essencialmente quanto instituição auxiliar na promoção de políticas públicas sociais. Até hoje, foram prestados atendimento a mais de 4 mil casos, sendo 809 casos atendidos somente em 2015. A seguir há destaque sobre alguns casos emblemáticos.

4.1. CASOS EMBLEMÁTICOS DE VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS FAVELA DA PALMEIRINHA: FEVEREIRO DE 2015 Três amigos Hebert, Chauan e Allan estavam em momento de diversão na rua andando de bicicleta e brincando de filmagem com o celular na esquina de casa na favela da Palmeirinha em Guadalupe. Quando dois deles correram atrás de um dos amigos que filmavam no momento em que policiais militares passavam de carro pela rua. Tiros acertaram o peito de Chauam Jambre Cezário, 17 anos, mas resistiu aos ferimentos. Já Allan de Souza Lima, de 15 anos, não teve a mesma sorte e morreu na hora. Todos os três jovens eram negros. No primeiro momento da ocorrência, policiais do 9º BPM (Rocha Miranda), autores dos disparos, justificaram o uso da força letal devido a um suposto tiroteio entre eles e os jovens. Porém, a entrega de um vídeo à Polícia Civil, posteriormente veiculado na mídia, pôs fim a versão dos policiais. Alan de Souza Lima gravou sua própria morte. Pelo celular, ele filmou um pouco antes de morrer toda ação. As imagens revelam que não ocorreu qualquer tiroteio e registrou a sua própria queda ao ser atingido. Em outro vídeo, no interior do carro da polícia, aparece um dos policiais projetando o corpo para fora da janela do carro e, 16 segundos depois, começam os disparos. Em uma imagem externa, é possível ver duas pessoas paradas na esquina e, posteriormente, elas aparecem feridas no chão. O policial pergunta porque elas correram. Um dos jovens, Chauam Jambre Cezário, responde: - A gente estava brincando, senhor. A equipe técnica da CDDHC Alerj esteve na casa de Josenildo Lobão, aposentado por invalidez, pai Hebert Lobão, um dos três jovens. Ele relatou que naquela noite estava deitado quando escutou os tiros, levantou da cama, percebendo que alguém tentava abrir a porta, mas ela estava trancada. Quando foi até a porta, viu o filho caído no chão pedindo socorro. Em seguida, segundo ele, chegou o caveirão com outros carros da polícia mandando ele entrar. Josenildo discutiu com o policial e se recusou a entrar ao informar que Allan era seu filho, que tinha teste para o time de futebol da divisão de base do Bangu naquela semana. Durante a conversa com os integrantes da Comissão, a mãe de Allan e um dos adolescentes que também estava na filmagem, informaram que estavam com muito medo, mas iriam à Delegacia de Marechal Hermes, pois haviam sido chamados para prestar depoimento. Em 3 de março, foi realizada um atendimento pessoal na Comissão – com a presença do deputado Marcelo Freixo, do defensor público do NUDEH, Daniel Lozoya, e de familiares dos três jovens. Josenildo Lobão contou que seu filho não foi ferido e es-


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tava vivo porque conseguiu se esconder dos policiais na casa de uma vizinha. Lobão afirmou que não saiu de perto dos meninos caídos, Allan e Chauam, para que “os policiais não implantassem provas falsas”. Apesar dos policiais terem apresentado armas na delegacia como se fossem dos meninos, elas não apareceram nas filmagens no local do crime. Ele também contou que os policiais demoraram para prestar socorro, e que os jovens só foram levados para o hospital no camburão da polícia porque um vizinho colocou Allan no carro e a prima de Chauam fez o mesmo. Ele foi mantido sob custódia enquanto estava no hospital e foi mantido preso alguns dias na 30ªDP por suposta troca de tiros com os policiais. À época, Josenildo Lobão também relatou que o filho Hebert estava com medo de ir à escola e de ficar sozinho em casa, porque o vídeo foi largamente divulgado na imprensa e seu rosto aparece claramente. Uma testemunha da ocorrência – não identificada por questões de segurança – que esteve no atendimento na Comissão de Direitos Humanos da Alerj afirmou que os jovens estavam brincando na rua, assim como outras crianças e que não havia confronto policial com bandidos no momento. “o carro de polícia chegou e os meninos correram porque estavam brincando”. Os primeiros dois tiros foram disparados de dentro da viatura e logo depois, quando Chauan e Allan já estavam caídos no chão, foram ouvidos mais dois tiros. Perguntada se se sentia ameaçada, a testemunha contou que no domingo após o fato ocorrido, viu um carro com vidro fumê entrando na comunidade – fato que achou estranho, porque não se pode entrar com vidros fechados no local por ordem do tráfico – e passou devagar até a entrada da favela. Mais tarde, quando saiu da igreja, disse que viu o mesmo carro atrás de um carro da polícia, passando devagar em frente à igreja de onde estava saindo. À época, ela relatou que sentia muito medo, que não sairia de casa e que pretendia se mudar o quanto antes. O defensor público do NUDEH se colocou à disposição dos familiares e da testemunha para dar apoio jurídico. Na ocasião, a CDDHC Alerj enviou um ofício para o 9º Batalhão pedindo averiguação do procedimento dos policiais. A CDDHC acompanha os seus desdobramentos.

MARÉ: FEVEREIRO DE 2015 Vitor Santiago Borges, de 29 anos, depois de assistir a um jogo de futebol, foi comemorar a vitória de seu time junto com quatro amigos num bar em Bonsucesso. Na madrugada, às 3h, retornava com o grupo de carro para o Conjunto de Favelas da Maré, onde mora. Na entrada da favela Salsa e Merengue, foi surpreendido por militares da Força de Pacificação5, que atiraram contra o automóvel. Vitor foi atingido no braço, pernas e no tórax. Ele teve a perna esquerda amputada. Um segundo passageiro do carro também foi atingido de raspão no braço. O veículo levava ainda um sargento da Aeronáutica lotado no estado do Amazonas e passava férias na Maré.

5. Em 30 de março de 2014, cerca de 2.700 militares das Forças Armadas do Brasil ocuparam a conjunto de favelas da Maré com 20 tanques de guerra e helicópteros blindados. A ação foi justificada como uma das fases da Pacificação da Maré para dar segurança à cidade durante a Copa do Mundo. Os militares mantiveram a Maré sitiada, já que neste período a comunidade esteve sob o regime de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), até junho de 2015.


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A Força de Pacificação afirmou, à época, que houve troca de tiros com os ocupantes do veículo, emitindo inclusive uma nota pública, justificando o uso letal da força com o argumento de que o carro estava indo de encontro aos militares. A CDDHC Alerj prestou atendimento à família e aos jovens. Foi dado assistência e orientação jurídica com encaminhamento pelo NUDEH da Defensoria Pública. Além disso, foi identificado a necessidade de Vitor Santiago Borges trocar de moradia devido a amputação da perna, visto que o local onde vive só dispunha de acesso via escadas. A equipe técnica da Comissão prestou auxílio para o atendimento no posto de saúde, solicitou o apoio psicológico e visita regular de assistência médica de enfermaria. Após visita domiciliar, a esquipe enviou ofício n° 269/2015, em julho de 2015, para a Secretária Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, solicitando o atendimento adequado e qualificado na rede de reabilitação para o jovem. Além disso, a CDDHC está intermediando o contato com a Rede Sarah, especializada no atendimento a pessoas com deficiência física.

COMPLEXO DO ALEMÃO: ABRIL DE 2015 Segundo relatos iniciais da mídia comunitárias do Complexo do Alemão publicizados pela Rio On Whatch6, entre os dias de 1º e 2 de abril de 2015, foram 24 horas de tiroteio que resultou na morte de quatro pessoas atingidas por projéteis de arma de fogo. De acordo com os dados do Instituto Raízes em Movimento, até abril de 2015, 22 pessoas tinham sido atingidas por balas somente no Complexo do Alemão, sendo 10 pessoas mortas e 12 feridas. Uma das vítimas fatais foi Elisabete Alves de Moura Francisco de 41 anos. Moradora da Rua 2, localizada na favela da Alvorada, Elisabete foi atingida por tiros de fuzil no pescoço e na boca, quando estava dentro de sua própria casa. Sua filha, Maynara de Moura Francisco, uma adolescente de 14 anos, ao tentar chegar até a mãe para socorrê-la, também foi atingida no braço. Socorrida por moradores, mãe e filha foram levadas para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, mas Elisabete, ao contrário da filha, não resistiu aos ferimentos e foi a óbito. Imagens perturbadoras dos últimos momentos de vida de Elisabete foram filmados por moradores. O vídeo mostra três homens carregando-a com o apoio de um lençol até o carro em busca de socorro até o hospital, deixando no caminho um rastro de sangue. Elisabete trabalhava como porteira de uma creche no alto do Complexo do Alemão. A ocorrência foi registrada na 45ª Delegacia de Polícia, localizada na estação de teleférico da Alvorada na região.

6. Disponível em <http:// rioonwatch.org.br/?p=13875>.

No mesmo dia, Rodrigo Farini, de 24 anos, foi fatalmente atingido na cabeça também na localidade da Alvorada, perto da casa de Elisabete. Imagens e vídeos de seu corpo estendido no chão foram amplamente compartilhados nas redes sociais. Horas depois, por volta das 20h30, moradores denunciaram por redes sociais que dois jovens foram torturados e executados pela Polícia Militar na Rua Canitar. Durante a madru-


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gada, policiais da Unidade de Polícia Pacificadora do Alemão registraram na 22ª DP (Penha) a morte de Mateus Gomes Lima, de 18 anos, uma das vítimas que teriam sido executadas por agentes policiais. Oficialmente, a noite de 1º de abril, terminou com duas mortes no Complexo do Alemão. Extraoficialmente, os moradores contabilizavam quatro mortes naquele dia. No dia seguinte, em 2 de abril, a CDDH Alerj foi ao Complexo do Alemão, na casa da moradora Elisabete Alves para prestar assistência à família e acompanhar o caso. Na ocasião, o delegado responsável pela Divisão de Homicídios chegou junto com o corpo técnico para realizar perícia no local. Maicon Alves, filho de Elisabete, relatou à Comissão que sua mãe estava cuidando do filho mais novo quando começou o tiroteio na Alvorada. Ela chegou a abrigá-lo, mas foi alvejada ao tentar fechar a porta. Na hora, os vizinhos começaram a gritar com os policiais dizendo que alguém tinha sido baleado dentro da casa. Imediatamente, tentaram socorrer Elizabete, mas ela não resistiu. Após o enterro, a Comissão prestou atendimento coletivo junto com outros órgãos públicos, como a Defensoria Pública. Foram realizados os seguintes procedimentos com o objetivo de dar suporte à família: acompanhamento do inquérito policial; busca por indenização; e encaminhamento para atendimento psicológico e social. Após alguns dias, Carlos Roberto, marido de Elisabete Alves, ligou para a CDDH Alerj, para informar que foi ameaçado por policiais que participaram da operação na qual Elisabete foi vítima. Imediatamente, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj encaminhou ofício nº 130/2015 para o Comando da Polícia Militar. Desde então, Carlos Roberto não relatou mais nenhuma situação de ameaça ou intimidação.

EDUARDO DE JESUS, 10 ANOS Morador da região do Areal, o menino foi atingido por tiros na tarde de quinta-feira, 2 de abril de 2015. Ele estava sentado na porta de casa esperando a irmã mais velha voltar da escola, segurando um celular branco na mão. Teresinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo, estava sentada no sofá de casa há poucos metros do menino e viu quando o filho já tombou morto no chão. Em um filme registrado por moradores, policiais armados com fuzil são acusados pela execução da criança. Eduardo foi a quarta vítima oficial da violência decorrente da política de enfrentamento ao tráfico de drogas no Complexo do Alemão, em dois dias consecutivos. À época, os moradores já conviviam há cerca de 90 dias seguidos com intensos tiroteios. No mesmo dia, a CDDH da Alerj estava no Complexo do Alemão, para prestar auxílio a família de Elisabete Alves, morta no dia anterior. Com mais esse assassinato, a Comissão foi procurada por lideranças da comunidade pedindo socorro e mediação do conflito. Imediatamente, foi realizado contato com todos os órgãos do Estado relacionados à Secretaria de Segurança Pública, incluindo o comandante da UPP da região. Em 3 de abril, a equipe técnica da CDDH Alerj foi à casa dos pais de Eduardo de Jesus, para oferecer suporte institucional e o acolhimento à família. Os pais do menino rela-


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taram as circunstâncias da ocorrência da morte do filho e, ainda muito abalados, informaram a pretensão de retornar para o Piauí, terra natal da família, local que a família escolheu para sepultar o corpo de Eduardo. Todos os contatos da CDDH Alerj foram repassados para a família que, atualmente, é acompanhada pela Defensoria Pública. Em 4 de abril, moradores organizaram um ato público e uma caminhada da região da Grota até a praça de Inhaúma, protestando contra a violência e os constantes tiroteios no Complexo Alemão. A CDDH Alerj acompanhou a caminhada dos moradores, a terceira manifestação realizada em 48 horas no Complexo do Alemão. Na ocasião, cerca de 50 motoqueiros ocuparam as ruas e percorreram por mais de uma hora o entorno da comunidade. Outros moradores vestiram branco, acenaram panos e soltaram balões pedindo paz. Os cartazes de protesto questionavam a política de Segurança Pública, criticavam a polícia e falavam do medo de morrer: “Tiro na cabeça não é despreparo”, “A favela pede paz”, “Merecemos viver sem medo de morrer”, “Poder público do Rio assassina criança”, “Menos bala, mais amor”. A mãe de Eduardo, Terezinha Maria de Jesus, participou da audiência pública realizada pela CDDHC Alerj, em 31 de agosto de 2016, sobre autos de resistência.

MORRO DO DENDÊ: MAIO DE 2015 Rio de janeiro, 19 de maio de 2015. Uma operação envolvendo 400 policiais civis, com o objetivo de cumprimento de mandados de busca e apreensão de máquinas caça-níqueis, terminou com dois jovens mortos no Morro do Dendê, na Ilha do Governador. Gilson da Silva dos Santos, de 12 anos e Wanderson Jesus Martins, de 23 anos, estavam na padaria por volta das 7h30, quando dois policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil entraram no local e dispararam contra eles dentro do banheiro. Em visita realizada pela CDDH Alerj à padaria, ainda foi possível observar os buracos dos tiros na porta e as marcas no chão dos disparados feitos do helicóptero da polícia que sobrevoou a área. Segundo relatos, os jovens foram mortos com tiros a queima roupa. No mesmo dia, também houve operação policial na Praia da Rosa. No atendimento realizado pela Comissão, a dona da padaria – sem identificação por razões de segurança – e mais duas testemunhas disseram que se sentiram ameaçadas. Eliane da Silva Simplício, mãe do menino Gilson Da Silva Santos, de 12 anos, afirmou que a polícia mexeu no local da morte do filho: “roubaram o celular do meu filho e apresentaram duas máquinas (de fazer pão)”. Ela também reclamou que a família não teve acesso ao local da morte, sendo impedida de chegar perto do corpo do filho. Já Wanderson de Jesus Martins, de 23 anos, também morto, tinha um filho de quatro anos. A mãe dele, Maria Aparecida Jesus de Mello, contou à Comissão que o filho trabalhava como empilhador de cargas. Os familiares e testemunhas prestaram depoimento na Divisão de Homicídios e foram acompanhados por um integrante da Comissão de Direitos Humanos. Em reunião com a chefia da Polícia Civil, o delegado Fernando Veloso se comprometeu a investigar de forma imparcial a morte dos jovens, pois havia indícios de execução. Estavam presentes na reunião, a delegada Patrícia Aguiar, os familiares, a Secretária de Assistência


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Social e Direitos Humanos e o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado, além da CDDH Alerj. A comissão viabilizou, junto à Divisão de Homicídios, os depoimentos de duas testemunhas do fato e o caso aguarda a reconstituição para a conclusão do inquérito. A Defensoria Pública também acompanha a família que ajuizou pedido de indenização do Estado.

MORRO DE SÃO CARLOS: MAIO DE 2015 Os mototaxistas Ramon de Oliveira, de 23 anos, e Rodrigo Marques Lourenço, de 30 anos, em 15 de maio de 2015, foram encontrados mortos com perfuração de facas em um matagal no alto do Morro de São Carlos, no Estácio, de acordo com informações da Polícia Civil. Moradores acusaram policiais do Batalhão de Ações Especiais (BOPE) pela morte dos dois jovens, apesar de não terem relatado a ocorrência de tiroteios. A equipe técnica da Comissão da Alerj esteve no local e os moradores narraram diversos casos de abuso de policiais da UPP contra os motoqueiros. Procurado pelo órgão, o major da UPP, afirmou que não tinha conhecimento das mortes de Rodrigo Lourenço e Ramon Oliveira na localidade de São Carlos. A CDDHC da Alerj prestou atendimento às famílias dos jovens. Margarete de Moura de Oliveira, mãe de Rodrigo Marques Lourenço, contou à equipe técnica que todos os documentos dele foram levados após o assassinato. Ela citou a polícia ao falar sobre a perda do filho e forneceu o número da guia do Instituto Médico Legal. De acordo com a companheira da vítima, Rodrigo foi visto pela última vez com vida ao passar em frente ao salão em que ela trabalhava por volta das 21h, logo depois, ouviu um barulho de tiro abafado. Rodrigo Lourenço não retornou para casa. Segundo relatos dos moradores, três mototaxistas foram abordados à noite, por volta de 21h, sendo apenas um deles liberado. Após a abordagem, Ramon de Oliveira, de 23 anos, e Rodrigo Marques Lourenço, de 30 anos, foram encontrados mortos. Os moradores também contaram que junto ao corpo havia cápsulas de balas e que policiais do Bope estiveram no local antes da chegada da perícia da equipe técnica da Delegacia de Homicídios. As motos dos dois rapazes não foram entregues à família. A CDDH Alerj prestou os seguintes encaminhamentos: i) Atendimento psicológico para as famílias; ii) Indenização direta para as famílias com atendimento jurídico pela Defensoria Pública; iii) acompanhamento do inquérito na Delegacia de Homicídio.

ROCINHA: JUNHO DE 2015 Wesley Barbosa, de 13 anos, estava em casa quando foi baleado. Ao tentar socorrer o filho, Eduardo Barbosa foi impedido por um grupo de policias militares do Choque que se colocam à frente dele apontando uma arma para sua cabeça e obstruindo sua passagem. Mesmo sob ameaça, o pai do jovem conseguiu passar pelo bloqueio e levou


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Wesley até no Hospital Municipal Miguel Couto, em um carro particular – visto que nenhum dos policiais prestou socorro à vítima. Em decorrência da atuação da CDDHC Alerj na favela da Rocinha – em diversos outros casos documentados em relatório de anos anteriores, dentre eles: o caso do desaparecimento do morador Amarildo – a Comissão foi chamada para prestar assistência à família de Wesley. A equipe técnica foi à casa de Wesley e foi informada que o menino precisou passar por uma pequena cirurgia devido o tiro de raspão no rosto. Junto a líderes comunitários, a CDDHC esteve na 11ª Delegacia de Polícia, localizada de frente para a favela da Rocinha, em São Conrado. Após prestar assistência jurídica à família, a Comissão foi até ao Hospital Miguel Couto para averiguar o estado de saúde de Wesley Barbosa. Conversou com o setor de assistente social do hospital e após ser encaminhada até a direção do hospital, obteve o parecer médico parcial de atendimento do jovem. A equipe prestou atendimento à família de Wesley Barbosa até que ele tivesse alta do hospital. Também foi efetuado um atendimento coletivo à família na sede da CDDHC, no Centro do Rio. A equipe contínua acompanhando e prestando assistência ao jovem. Por conta desse caso e da recorrência de outras situações de risco à integridade física e psicológica dos moradores, foi realizada uma roda de conversa, em 6 de julho de 2015, entre o deputado estadual Marcelo Freixo, presidente da Comissão, representantes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da área, de diretores de escola, pais e demais moradores da Rocinha. O encontro aconteceu na quadra da Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha, situada na Rua 1. A principal queixa foi sobre intervenção policial realiza na Rocinha no mesmo horário de entrada e saída das escolas e creches. O encontro também contou com a presença da moradora da Fátima Silva, que teve o filho Hugo Leonardo assassinado por policiais da UPP em 2012. Ela expôs a todos a luta que trava para conseguir a responsabilização e reparação do Estado pela morte do filho junto com o Núcleo da Criança e Adolescente da Defensoria Pública.

MANGUINHOS: SETEMBRO DE 2015 Janaína Soares pede: “Meu filho, acorda! Meu filho, acorda!”. Um pouco antes de desmaiar no momento do enterro do filho Christian Soares Andrade, de 12 anos. Ele foi morto no momento em que jogava bola em um campo de futebol na comunidade de Manguinhos, durante troca de tiros entre traficantes e policiais da Coordenadoria de Operações Especiais (Core) da Polícia Civil e da Divisão de Homicídios, em 8 de setembro, em Manguinhos. A operação teve apoio da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Imagens exibidas pelo RJTV7 mostraram que após a morte do adolescente, moradores revoltados cercaram policiais militares aos gritos pedindo “justiça” e protestaram em algumas vias da região.

7. Disponível em <http:// globoplay.globo. com/v/4452763/>.

A CDDHC Alerj esteve presente em Manguinhos no mesmo dia da morte do menino de Christian de Andrade, e conseguiu conversar com a família por intermédio de um integrante do Fórum de Manguinhos, organização que atua pela defesa dos Direitos nesta comunidade. A família estava totalmente inconformada. A CDDHC Alerj ouviu


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relatos dos moradores que afirmaram que a troca de tiros foi entre agentes da polícia civil e de policiais lotados na UPP Manguinhos. Testemunhas também contaram que no momento do tiroteio, Cristian já tinha se abrigado para se proteger do tiroteio, mas saiu do abrigo para ajudar uma senhora que tinha caído no chão por conta da confusão. Foi nesse momento, de acordo com os moradores, que o adolescente foi baleado. A família do jovem tinha uma pequena pensão que servia almoço perto do local da ocorrência da morte do menino, mas parou de trabalhar por conta da fatalidade. A Comissão acompanhou a família em todo os momentos. Nenhum integrante da família tinha condições psicológicas de fazer qualquer tipo de reconhecimento do corpo do Christian. Passado o momento do sepultamento, foi efetuado um atendimento coletivo entre a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e a CDDHC Alerj, com a presença do presidente da Comissão, deputado Marcelo Freixo, em 10 de setembro de 2015. A família recebeu auxílio jurídico e psicológico e acompanhamento do caso junto a Divisão De Homicídios, tanto pela CDDHC como pela Defensoria Pública. Na ocasião, Marcelo Freixo, conversou com o delegado titular da Divisão de Homicídios, Rivaldo Barbosa, sobre as investigações. “Christian é mais uma vítima jovem que o Rio de Janeiro perde. Agora a família dele precisa ser preservada e cuidada, e é o que estamos fazendo agora. Pessoas importantes, que estavam na hora do crime, ainda vão depor. E nós, da Comissão, vamos cobrar passo a passo essas investigações”, afirmou Freixo. Atualmente, a família é acompanhada por psicólogos da Fiocruz e segue com acompanhamento da CDDHC Alerj e da Defensoria Pública. A Polícia Civil segue com as investigações sobre o crime na Divisão de Homicídios da capital.

COSTA BARROS: NOVEMBRO DE 2015 Amigos de infância, Roberto e Carlos Eduardo da Silva de Souza, 16 anos, Cleiton Correa de Souza, 18 anos, Wilton Esteves Domingos Junior, 20 anos e Wesley Castro Rodrigues, 25 anos, tinham passado a tarde juntos no Parque de Madureira. Na volta, eles foram surpreendidos e fuzilados por quatro policiais militares na Estrada João Paulo, na altura da Curva do Vinte, em Costa Barros, subúrbio do Rio de janeiro. De acordo com nota da perícia publicizada pela mídia, mais de 80 tiros foram disparados em direção ao carro. Todos os jovens mortos eram negros. Os policiais teriam tentado alterar a cena do crime. Três deles vão responder por homicídio doloso e fraude processual. A CDDHC Alerj acompanha os desdobramentos do caso.

ROCINHA: DEZEMBRO DE 2015 Uma jovem moradora da Rocinha denunciou ter sido estuprada por policiais do Bope na manhã de Natal, dia 25 de dezembro. O caso ganhou destaque nos meios de comunicação que reproduziram o relato da vítima que afirmou ter sido abordada por volta


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das 6h manhã quando voltava para casa. Na ocasião, durante a madrugada, houve um tiroteio entre policiais da UPP e homens que saíam da festa e um comerciante foi morto e outras cinco pessoas feridas, entre elas, dois PMs. Ao ver o homem baleado, de acordo com a jovem, os policiais indicariam outro caminho para que ela passasse. Segundo a vítima, eles a levaram para um beco, a agrediram com chutes, a colocaram de frente para uma parede e a violentaram. No sábado (26), ela fez um exame de corpo de delito de conjunção carnal e o laudo do Instituto Médico Legal (IML) confirmou sinais da violência. Ainda de acordo com o exame, ela tinha vários machucados. O delegado responsável pelo caso disse que a investigação é sigilosa e solicitou à PM a identificação dos policiais escalados para trabalhar naquele dia. A Polícia Civil pediu exames complementares e ouviu os dois PMs que são suspeitos de cometer o crime, mas negaram participação. A Corregedoria Interna da Polícia Militar informou que determinou que a 1ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar (1ªDPJM) instaurasse um Inquérito Policial Militar para aprofundar as investigações sobre este caso. A vítima que é uma paraibana, casada e tem um filho, foi atendida no dia 5 de janeiro de 2016 pela CDDHC com a presença do deputado Marcelo Freixo. A Comissão, além de encaminhar o atendimento psicológico, está acompanhando o caso.

FOGUETEIRO: DEZEMBRO DE 2015 A noite de Natal também foi violenta no Fogueteiro. De acordo com uma denúncia publicada no dia 26 de dezembro pelo Jornal O Dia, quatro jovens que voltavam de uma festa na comunidade Santo Amaro, no Catete, foram agredidos. A abordagem policial ganhou requintes de crueldade com o uso de uma faca quente, isqueiro, além de obrigação dos jovens ficarem nus na rua e praticar sexo oral entre eles. Enquanto isso, um dos PMs da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Coroa, Fallet e Fogueteiro os filmava. Os jovens torturados têm 13, 17, 20 e 23 anos de idade. Eles foram paradas em uma blitz pelos PMs porque estariam andando de moto sem capacete. Uma mulher também foi baleada nesta ação. Na ocasião, a Polícia Militar afastou e prendeu administrativamente oito policiais militares envolvidos. O presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, deputado Marcelo Freixo, recebeu, no dia 5 de janeiro de 2016, dois jovens e a mãe de um dos rapazes que foram torturados. O atendimento constatou que, além da tortura, os jovens tiveram objetos pessoais, como sandálias, bonés, celulares e dinheiro roubados pelos policiais. Um dos principais problemas encontrados na denúncia foi a não tipificação dos crimes cometidos pelos policiais no boletim de ocorrência, registrado na 6ª DP (Cidade Nova). O documento não incluiu o crime de tortura. A Polícia Civil classificou o caso como lesão corporal, o que não está correto. Também foram apontados os crimes de ameaça, constrangimento ilegal e furto. A Comissão encaminhou o caso para o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado e acompanha as investigações.


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4.2. ATENDIMENTO AOS POLICIAIS E SEUS FAMILIARES A CDDHC Alerj trabalha com demandas individuais e coletivas das mais diversas naturezas, desde que relacionada a área de Direitos Humanos. Essa Comissão, no intuito de desmistificar o falacioso discurso veiculado pelo senso comum e corroborado pela mídia comercial, de que “Direitos Humanos só defende bandido”, apresenta o trabalho sistemático que tem feito junto aos familiares dos policiais mortos no Rio de Janeiro. Além de atender e receber denúncias e as demandas de violações de direitos humanos sofridas por agentes policias, a Comissão também faz a busca dos contatos de policiais e/ou familiares vitimados para acolher e oferecer atendimento. É importante ressaltar que, as demandas absorvidas pela Comissão são encaminhadas de forma espontânea pelos indivíduos interessados e necessitados de auxílio, não sendo comum a busca a partir da própria CDDHC por esses contatos, já que há limitações estruturais e físicas para tal empreitada e atuação. Porém, ao compreender que a alta taxa de policiais mortos no Rio de Janeiro é a consequência de uma política de Segurança Pública voltada para o enfrentamento bélico e a lógica da guerra, sob a qual não há vencedores, a CDDHC Alerj percebeu a necessidade de ampliar a dinâmica de trabalho do atendimento. A ideia é garantir a preservação do direito humano a policiais e seus familiares, e mapear possíveis falhas do Estado. Assim, a CDDHC poderá apontar melhoria nas políticas públicas voltadas a esse público, produzindo um diagnóstico sobre a percepção da atividade do órgão junto aos trabalhadores da área de Segurança Pública.

HÁ QUE SE RESSALTAR OS SEGUINTES FATOS: 1. A insuficiência das estatísticas oficiais das polícias civil e militar do Estado do Rio de Janeiro. Somente em outubro de 2015, a Polícia Militar divulgou que nove PMs foram assassinados e 37 ficaram feridos entre os dias 1° de setembro e 2 de outubro. No total, de acordo com a imprensa, em 2015, 63 policiais foram mortos em serviço ou de folga, em razão ou não de sua função profissional. 2. A dificuldade na obtenção de contatos de familiares de policiais vítimas de violência. Em 2015, a Comissão entrou em contato diversas vezes com o Comando da Polícia Militar para esse fim, por vezes através de ofício. Contudo, a instituição não dispõe de um cadastro atualizado dos familiares dos policiais. Diversas vezes, o único número de contato existente no cadastro é o do policial morto. Dos policiais mortos no ano de 2015, a CDDHC Alerj conseguiu obter o contato e prestar atendimento a uma parcela dos familiares. 3. Inclusive, por vezes a CDDHC solicita à população que contribua para a obtenção de acesso a esses policiais e seus familiares, já que os meios oficiais nem sempre agem a contento. Já houve caso em que a Comissão enviou ofício solicitando o contato de familiares de um policial doente e hospitalizado. Depois de um tempo, o policial veio a óbito sem que a informação fosse prestada por meios oficiais. A obtenção dos con-


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tatos nas redes sociais também é dificultosa, pois esses casos atraem muita atenção midiática e os familiares são assediados por um grande número de pessoas. 4. Há também reticência dos familiares ao receber o atendimento da Comissão de Direitos Humanos da Alerj. Quando a equipe técnica obtém contatos de algum parente do policial e inicia o atendimento, os mesmos se mostram desconfiados. Acredita-se que isso se deve ao fato do desconhecimento sobre para que serve e para quem é a política de Direitos Humanos. Em geral, o atendimento da Comissão é realizado pela equipe técnica que entra em contato com a família, por meio de telefonema, e disponibiliza-se para o auxílio em todas as pendências existentes junto a instituições públicas. Dentre elas: encaminhamento ao atendimento jurídico e psicológico qualificados, auxílio e acompanhamento das investigações do caso, esclarecimento sobre os procedimentos que podem ser realizados. Quando os familiares aceitam o suporte da CDDHC Alerj, é marcado um atendimento presencial dos familiares com membros da Comissão e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (NUDEDH). 5. A Defensoria Pública possui o Núcleo de Atendimento da Polícia Militar, o qual já foi acionado pela CDDHC. Mas, geralmente, o atendimento acaba sendo feito pelo NUDEDH. Nesse primeiro atendimento, a equipe técnica explica todos os direitos que a família possui. A Defensoria se responsabiliza pelos trâmites jurídicos e a Comissão oferece e busca o atendimento psicológico – quando aceito pelos familiares. Há ainda o acompanhamento do inquérito aberto na Delegacia de Homicídios, incluindo seus desdobramentos. A CDDHC também acessa o setor da Polícia Militar responsável pela documentação e tramitação para fins de pensão dos dependentes do policial vitimado. Também é acionado a rede de saúde pública para o atendimento psicológico aos familiares através dos Postos de Saúde e/ou Clínicas da Família próximos da residência dos mesmos. Ao ter a permissão dos familiares, a CDDHC efetua o contato com o posto e/ou clínica para explicar a situação de violência à qual a família foi exposta. O profissional de atendimento à saúde mental – psicólogo – e/ou com o gerente do setor é acionado para viabilizar o encaminhamento verbal e oficial, com o agendamento prévio da família para uma avaliação profissional. 6. Em alguns casos, a PMERJ oferece atendimento psicológico para integrantes da família. Mas, o fato de muitas delas residirem em locais distantes do Hospital Geral da Polícia Militar, ocasiona a descontinuidade do tratamento. Por isso, a CDDHC prioriza viabilizar o tratamento de saúde e/ou terapêutico o mais próximo possível ao local de moradia dos usuários para garantir um procedimento adequado às suas reais necessidades. Levantamento realizado pela Comissão, tendo como fonte as notícias veiculadas na mídia, com comunicados da PMERJ e da Polícia Civil, constatou que até 29/10/2015, 63 Policiais foram mortos. Destes, 55 eram policiais militares, em sua maioria, lotados em Unidades de Polícia Pacificadora.


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7. Os acompanhamentos dos casos de policiais mortos e de familiares de policiais vítimas da violência evidenciaram uma série de violações de direitos. Tais como: a. Limitação por parte da PMERJ aos familiares destes policiais, com dificuldade de acolhimento real; b. Dificuldade na obtenção de acesso ao setor responsável pela concessão do direito às pensões, principalmente, nos casos em que a família precisa processar a PMERJ para ter o seu direito à pensão efetivado.

4.2.1. CASOS EMBLEMÁTICOS DE POLICIAIS Niterói, abril de 2015 O policial Irineu Ferreira de Lima Filho trabalhava há 32 anos na Polícia Militar, lotado no Hospital da PM, foi morto em uma troca de tiros em um ônibus em Niterói. Segundo a dona de casa Célia Arantes de Lima, de 53 anos, o marido estava a caminho da casa da irmã, onde comemoraria a Páscoa com a família quando aconteceu o tiroteio em abril de 2015. A equipe técnica da Comissão prestou atendimento para Célia Arantes, que encontrou dificuldades para regularizar a obtenção de pensão por morte. Com problemas sérios de saúde, Célia precisava garantir a continuação de atendimentos médicos no Hospital Geral da Polícia Militar (HGPM). Desse modo, a CDDHC Alerj entrou em contato com Chefe de Gabinete do Comando-Geral da PM, coronel Íbis Silva Pereira, para viabilizar o tratamento de Célia. O responsável pelo setor de benefícios foi acionado pelo próprio Íbis Silva para agilizar a emissão de autorização para continuidade do atendimento médico no HGPM, enquanto os entraves burocráticos relacionados à pensão de Célia são resolvidos.

NOVA IGUAÇU, SETEMBRO DE 2015 Casado e pai de um menino com 11 anos de idade, o policial Bruno Rodrigues Pereira, foi morto ao retornar da casa do irmão que morava em Nova Iguaçu. De acordo com informações publicadas na mídia, ao ser abordado por traficantes e identificado como policial, Bruno foi torturado – sendo amarrado e arrastado por um cavalo pelas ruas – e posteriormente assassinado. Bruno trabalhava na UPP do Morro da Formiga, na Tijuca, e seu caso é investigado pela Divisão de Homicídios. A Comissão prestou atendimento presencial à esposa do policial, Michelle Ignácio Pereira, à madrasta e ao amigo de Bruno, na sede do órgão em 30/09/2015. O defensor público do NUDEH, Fábio Amado, também participou do atendimento e informou que a Defensoria Pública estava à disposição da família para auxiliar nas documentações e transferências de bens. O presidente da Comissão de Direitos Humanos, deputado Marcelo Freixo, iniciou o atendimento com a explicação sobre os


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procedimentos e prestação de auxílio que cabia à Comissão. Além disso, sugeriu o atendimento psicológico à família, principalmente, para o filho de Bruno, Erick Daniel da Silva Pereira, de 11 anos. A viúva Michelle Pereira relatou que o filho Erick estava aéreo e com dificuldades para entrar em casa. Diante disso, a equipe técnica da CDDHC Alerj entrou em contato com o Centro Municipal de Saúde Nascimento Gurgel, na Pavuna, área de referência de moradia da família. O primeiro atendimento ao Érick ocorreu no dia 02/10, no centro de saúde. O jovem segue na terapia e os demais familiares continuam em contato com a Comissão. Michelle Pereira possui os números dos celulares de assessores e do defensor para acionar em caso de emergência.

4.2.2. AUDIÊNCIA PÚBLICA: CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS POLICIAIS Diante das inúmeras denúncias acerca da precarização das condições de trabalho de policiais, a CDDHC realizou, em parceria com a Comissão de Segurança Pública e Assuntos de Polícia, audiência pública sobre o tema com o intuito de apurar os fatos noticiados pelo Ministério Público, em 19 de maio de 2015. As polícias do Rio estão entre as que mais matam e morrem no mundo, e esta vulnerabilidade é ainda mais agravada pelas precárias condições de trabalho fornecidas pelo estado, tais como as estruturas físicas, bem como escalas de trabalho desumanas que implicam em ainda mais vulnerabilidade aos profissionais da Segurança Pública. Segundo o pesquisador Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência (LAV/ UERJ), os níveis de stress dos policiais militares do Rio encontram-se elevadíssimos, o que traz graves consequências para a política de segurança pública. Ao entrevistar 5 mil policiais, 20% do efetivo da região metropolitana do Rio de Janeiro, a pesquisa do LAV apontou que o elevado nível de estresse faz com que 52% destes policiais tenham constante insônia e que 7% pensem em acabar com a própria vida. De acordo com o levantamento, 35% dos policiais já atiraram em alguém e 8% já foram atingidos. “Os policiais mais estressados são os que usam mais a força. É nefasto para o policial e prejudicial para a sociedade”, afirmou Cano. A audiência pública reuniu o Diretor Administrativo da Polícia Civil, Fábio Brito, o Chefe de Gabinete do Comando Geral da Polícia Militar, Íbis Pereira, o Superintendente de Valorização Profissional da Secretaria de Segurança Pública, associações de policiais e familiares, além dos pesquisadores. A Secretaria de Segurança informou que estuda a implementação de ações previstas no Termo de Ajustamento de Conduta proposto pelo Ministério Público, mas que tais ações esbarram na falta de recursos financeiros do estado do Rio de Janeiro. Outro tema relevante tratado na audiência diz respeito ao auxílio às famílias de policiais mortos. Segundo Maria Rosalina Castilho, mãe da policial militar Alda Castilho, a assistência prestada pelo Estado é deficitária e lenta, acarretando danos de difícil reparação aos familiares, especialmente àqueles dependentes financeiramente.


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De acordo com o diretor de Administração e Finanças da Polícia Civil, Fábio Brito, mais do que questionar a escala de trabalho, deve-se pensar por que esta existe. É uma opção feita para incentivar que o policial tenha outra atividade remunerada. Além disso, é preciso problematizar o fato do policial não ter um plano de saúde, mas ter assistência funeral e seguro de vida. Ao final da audiência pública, o Deputado Estadual Marcelo Freixo, presidente da CDDHC, questionou a demora na revisão do regulamento disciplinar da PM: “Rever o regulamento disciplinar de 1983 e a escala de trabalho, previstos pelo Termo de Ajuste de Conduta, por exemplo, não geram custos”. De acordo com Freixo, tais iniciativas garantiriam uma qualidade às condições de trabalho dos profissionais da Segurança Pública.

4.3. SOBRE NOSSOS TÚMULOS NASCERÃO FLORES AMARELAS E MEDROSAS *Por Ibis Silva Pereira A guerra é um meio de despedaçar, ou de despejar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que de outra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiadas confortáveis e portanto, com o passar do tempo, inteligentes. George Orwell

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inston Smith observa a inscrição, enquanto sobe lentamente as escadas do prédio onde mora. “O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI”. Um cartaz pregado à parede do saguão exibe a legenda com o retrato imenso de um rosto onipresente, “uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte”. O herói de George Orwell (1984) trabalha no Ministério da Verdade de Oceania. Na distopia orwelliana existem ainda Lestásia e Eurásia. Os três superestados vivem em regime de conflito bélico ininterrupto. O partido que domina Oceania (o Ingsoc) tem três lemas: Guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força. Ao longo do romance, Winston descobrirá o sentido profundo daquele belicismo: manter intacta a estrutura da sociedade. Nessa que é uma das mais famosas metáforas sobre o poder, o escritor inglês criou a imagem perfeita de uma sociedade em permanente mobilização para o confronto. Oceania é um estado de exceção porque é um estado em guerra permanente. Uma sociedade oprimida pela ideia de segurança, erigida em valor absoluto, a engendrar “Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina”.8 Desde Thomas Hobbes tem sido quase um truísmo articular submissão ao medo. Nada é mais eficiente para a reprodução da ordem, sobretudo quando injusta. Na civilização industrial, em tempos de hegemonia das finanças e dos bancos, o medo é uma

*O coronel Íbis Silva Pereira é chefe de Gabinete do Comando-Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro 8. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003, p. 255.


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promessa. Insinua-se por toda parte, quase sempre ladeado por aquele outro afeto com o qual mantém estreita afinidade: o ódio. Apesar de se falar tanto em segurança, a precariedade é a marca do contemporâneo. Na fase atual do capitalismo, o destino da massa humana de excedentes é a lata de lixo da história. Descartam-se homens e mulheres com a mesma facilidade com a qual se lançam fora as mercadorias desatualizadas pelo ritmo frenético da produção. Na primazia absoluta e arrogante do econômico sobre o humano restam às agências de criminalização cumprir um desditoso papel: vigiar as vidas desperdiçadas, no governo da insegurança social. O crime não é um fenômeno natural. Uma análise crítica do exercício do poder punitivo é impensável desconsidera a dimensão política presente na seleção criminalizante; nos usos e abusos das agências de criminalização, essas instituições da ordem ou a serviço de uma certa ideia de ordem. E aqui, é forçoso reconhecer, não há grandes novidades entre nós. Nada de novo debaixo do sol, como no livro do Eclesiastes. Ao longo de sua história, o Brasil tem se comportado como uma máquina de produzir medo; um espantoso moinho de gastar gente, como dizia Darcy Ribeiro. Foi concebido, desde o século XVI, como uma empresa. Um empreendimento comercial com fome de gente. Num certo sentido Drummond acerta o alvo ao afirmar em Brejo das Almas: “Nenhum Brasil existe”. Afinal, países não podem ter donos. O Brasil tem. A desigualdade brasileira não é um acidente da economia, mas um projeto a serviço dos interesses de uma classe de malandros. Uma pilhagem secular, que a multidão das criaturas humanas reduzidas à condição de refugo favorece. Uma sociedade profundamente hierarquizada, talvez explique a impotência do Leviatã nacional em elevar a conservação da vida a critério de legitimação dos vínculos sociais. Nunca fomos weberianos no que se refere à administração do direito de punir. O poder punitivo doméstico, inerente à lógica da escravidão, sempre grassou e desgraçou entre nós, inviabilizando o exercício público do monopólio da força. Esse número assombroso de quase 60.000 brasileiros e brasileiras triturados apenas em 2014, sendo um a cada dez minutos, constitui a mais perfeita expressão do modo brutal como temos administrado conflitos sociais há séculos.

9. Os indicadores criminais foram extraídos do 9° relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: <http://www. forumseguranca.org.br>. Acesso em: 13 de dez. 2015

A cultura da brutalidade é inerente à sociedade baseada na escravidão, porque a brutalidade é a força exercida segundo o desejo de impressionar. É preciso aniquilar a vontade, antes mesmo que o outro se ponha em movimento. Princípio básico de qualquer guerra. A atualidade da escravidão é o nosso belicismo. Herança do escravismo a temperar nossas relações de classe. Um morto a cada dez minutos significa isso: uma sociedade que compõe parte dos seus dramas com base na força sem regras.9 Trata-se da manifestação cotidiana do poder punitivo doméstico, como à época das senzalas. As agências de controle social são afetadas pela perspectiva bélica. Em qualquer parte do mundo operam seletivamente. A produção legislativa é sempre maior que a capacidade operacional das instituições de criminalização secundárias, como as forças policiais, o Ministério Público, Poder Judiciário e sistema carcerário. Entre as inúmeras condutas incriminadas, a preferência do olhar repressor incide quase exclusivamente sobre os atos mais grosseiros, aqueles cometidos pelas classes subalternas, sobretudo porque há uma imagem pública do delinquente construída e alimentada todos os


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dias pela sociedade do espetáculo e essa imagem coincide com o retrato da vida em precariedade. Não é por acaso que as nossas cadeias estão cheias de negros e pobres. Os precarizados são também aqueles que não têm acesso positivo aos meios de comunicação, por isso suas condutas são mais facilmente destacadas pelos empresários morais de plantão. Qualquer política pública de segurança, digna de um estado democrático de direito, deve partir do enfrentamento da desigualdade social se quiser romper com a lógica da militarização. A militarização não é causa da guerra, mas seu efeito. Uma resposta ao conflito de classes que já está presente na sociedade. A necessidade de cuidar dos consumidores fracassados propicia o uso bélico das forças públicas. O único modo de desmilitarizar as agências de criminalização é desmontando os mecanismos de reprodução da desigualdade. Não é possível garantir direitos humanos num contexto de guerra. Tampouco promover a paz em meio à injustiça. A se acreditar nas lições de Norberto Bobbio, quando afirma que “sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos”10, ampliar a democracia é a melhor estratégia de prevenção do crime. Democracia ampliada significa assumir a redução da desigualdade como princípio e finalidade. Se continuamos com dificuldades na composição civilizada dos nossos conflitos; se temos tido dificuldades na construção de uma cultura de paz, é porque precisamos avançar ainda mais no sentido da igualdade. Igualdade de todos perante a lei não basta. Igualdade meramente formal pode se constituir, inclusive, num modo (muito inteligente, aliás) de transformar a ideia de igualdade em submissão. A violência brasileira é ancestral. Euclides da Cunha foi o primeiro a relacioná-la à exclusão. Se no final do século XIX matamos de uma só vez quase 30.000 sertanejos, hoje matamos o dobro. Apenas em 2014 morreram mais brasileiros e brasileiras que soldados norte-americanos em vinte anos de guerra do Vietnã. Foram registradas 58.487 mortes violentas; quase 50.000 estupros; se levarmos em consideração os estudos existentes sobre o tema, esse número deve representar 1/3 do total; ou seja, temos aproximadamente 150.000 estupros por ano no Brasil. As forças de segurança mataram um brasileiro a cada 3 horas. Por outro lado, morreram 398 policiais no mesmo período. Um policial por dia. No estado do Rio de Janeiro o cenário não é menos kafkiano. Nos últimos vinte anos a média de policiais militares mortos em serviço tem girado em torno de 27 assassinatos por ano.11 Foram mais de seiscentos policiais entre mortos e feridos nos últimos cinco anos. Uma tragédia humana, sob todos os pontos de vista. Uma tragédia que se amplia ao observarmos os indicadores das mortes provocadas pela intervenção policial: os chamados autos de resistência. Entre 2008 e outubro de 2015 a média anual foi a de 57 mortos por ano. Quase duas mortes por dia. E não é só: o total de pessoas presas impressiona igualmente. Apenas em outubro deste ano, as forças policiais do estado prenderam mais de 4200 pessoas.

10. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.1.

Toda essa violência é uma tradução. Ilustra um mal de fundo. Os policiais mortos, as vítimas de homicídio e aquelas decorrentes das intervenções policiais, bem como os apri-

11. Fonte: Estado-maior da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.


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sionados, quase todos pertencem a um mesmo grupo de condenados à vida: jovens negros, pobres e moradores da periferia. Basicamente. Significa dizer que há uma guerra sendo travada no tumbeiro; interminável, como no mundo descrito por Orwell, porque "[...] travada, pelos grupos dominantes, contra os seus próprios súditos, e o seu objetivo não é conquistar territórios [...], porém manter intacta a estrutura da sociedade".12 No século XIX, a visão dos horrores de um navio negreiro fez Castro Alves designar por irrisão o cenário medonho. "Dizei-me senhor Deus dos desgraçados, se eu deliro ou se é verdade, tanto horror perante os céus"13. A violência extrema confunde a racionalidade. No Brasil do século XXI a razão parece insensível ao massacre. Tal como faziam os donos do poder em Oceania, poderíamos adotar o dístico Irracionalidade é razão, a fim de justificar o nosso pouco caso para com os indicadores criminais; indiferença de mendigos fartos, no dizer do autor de Os Sertões a propósito de Canudos, aquela matança que inaugura a nossa experiência republicana. Consciências coisificadas. Embrutecidas. Séculos de escravidão, de torturas, de desrespeito pela condição humana, nos tornaram insensíveis à dor daqueles que consideramos inferiores. E nós policiais militares, somos considerados tão inferiores quanto aqueles contra os quais nos arremessam. Recrutados nos mesmos estratos sociais, seriamos a ralé do sistema de justiça criminal se isso existisse. Como o Brasil ainda não se deu ao trabalho de instituir um sistema de justiça criminal, a sua Polícia Militar é tratada como uma força que se conjura quando necessário, mais ou menos como uma fera indesejada e incômoda solta no quintal para a proteção dos donos da casa. A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro é uma instituição com graves problemas. Guerra demais e política de menos resultaram numa instituição em ruínas. Suas dificuldades são inúmeras. Complexas. Estendem-se de marcos regulatórios anacrônicos a um ineficiente modelo de governança. Em pleno século XXI, apresenta deficiências tecnológicas básicas que a impedem de desenvolver mecanismos adequados de controle, apesar de toda a modorrenta cantilena acerca da inteligência policial. Seus homens e mulheres se encontram submetidos, há mais de trinta anos, a um regime de trabalho afetado pela proximidade da morte como risco racional. Uma corporação mobilizada permanentemente para o embate, como a Oceania do romance, com todas as consequências produzidas pela tensão ética implícita na raiva existencial do inimigo.

12. ORWELL, George. 1984. Op. Cit., p. 192.

O moinho de gastar gente é impiedoso. Matamos muito e morremos aos borbotões, numa guerra à toa. Se me pedissem para resumir em uma única palavra o que é ser policial no Rio de Janeiro, eu escolheria a palavra sofrimento. Ser policial militar no Rio de Janeiro é um sofrimento inútil. Despejamos sobre as favelas um contingente de jovens, a maioria pobre e negra, para combater outros jovens igualmente pobres e negros, ao custo de muita infelicidade para todos. No asfalto somos invisíveis; vagamos de um lado para o outro acreditando que a presença de homens armados numa esquina possa manter imperturbável nossa bela ordem social.

13. ALVES, Castro. Navio Negreiro. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 283.

Uma ilusão dolorosa. Há um custo em tudo isso. O desamparo e a humilhação produzem ódio. Um dia a fatura chegará. É inevitável. Quando isso ocorrer pagaremos todos pelas consequências da nossa irrisão. Dividiremos a conta em frações distintas. É cla-


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ro: temos horror à igualdade. A conta será repartida com a mesma desigualdade com a qual temos convivido. De tudo ficará o medo. Onipresente. Depois disso acontecerá como nos versos de Carlos Drummond de Andrade: “morreremos [todos] de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”.14

4.4. NO COMPLEXO DO ALEMÃO, QUEM VAI À ESCOLA É A PACIFICAÇÃO Segundo levantamento feito pelo Instituto Raízes em Movimento, somente em 2014, 22 pessoas foram mortas no Complexo do Alemão15. Desse total, três eram policiais e 19 eram civis. Outras 58 pessoas foram feridas por armas de fogo, sendo 36 policiais e 22 moradores. Os dados expõem uma realidade diferente do discurso oficial do governo estadual sobre um espaço ocupado com bases de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). A sensação de segurança na região não é de paz e sim de um contínuo conflito armado, o que levou moradores a se manifestarem em redes sociais na internet com a hastag #SOSComplexodoAlemão. O Complexo do Alemão16 está há cinco anos pacificado com quatro bases de UPP. Uma das quatro bases das UPPs, a localizada na favela Nova Brasília, foi instalada no terreno da escola estadual Caic Theóphilo de Souza Pinto17, a 20 metros do edifício principal. Os dois prédios, o militar e o educativo, estão cravados de tiros de fuzil. A rotina dos estudantes inclui passar todos os dias diante dos policiais armados para entrar e sair das salas de aula. No dia 22 de abril de 2015, Marcelo Freixo e membros das comissões de Direitos Humanos e Educação da Alerj visitou o espaço educacional. Antes de a UPP existir na área do colégio, a escola tinha cerca de 1.400 alunos. Hoje, são apenas 700. Além da evasão escolar, a presença ostensiva policial provoca prejuízos pedagógicos que comprometem o processo de aprendizado e põem em risco a segurança de estudantes, funcionários e professores. Em novembro de 2014, o jornal O Dia publicou denúncia sobre o aumento da violência na região e a situação de vulnerabilidade que se encontravam o corpo docente e discente do colégio: "O muro do colégio serviu de escudo e, indignados, funcionários, que estavam dentro do prédio do colégio, fotografaram a ação. Pais de alunos, estudantes e professores dizem ser comum PMs usarem a parte interna do colégio para trocar tiros com quadrilhas. Afinal, a própria sede da UPP fica dentro do terreno da escola, conforme admitiu, em nota, a Secretaria de Estado de Educação (Seeduc)"18. Um aluno chegou a ficar na linha de tiro. Na imagem publicada pelo jornal, um policial aparece apontando a arma apoiado no muro da escola, a menos de quatro metros de uma sala de aula. A parede da sala da diretoria, por exemplo, é coberta com enfeites que servem para cobrir os buracos abertos pelos tiros de diferentes calibres. É ali que a diretora Tânia Mara trabalha todos os dias. Também é possível ver as marcas de tiros na parede principal e laterais do colégio. “A presença de uma base da UPP dentro de uma escola é absurda. Isso não pode existir. Uma escola não pode ser usada como base policial. É muito importante que a audiência seja realizada aqui, para que nós possamos discutir

14. ANDRADE, Carlos Drummond. Congresso internacional do medo. In: Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, p.125. 15. Oficialmente, o Complexo do Alemão é formado por 13 favelas: Morro da Esperança (conhecida como Pedra do Sapo), Morro do Alemão, Morro da Baiana, Morro do Adeus, Grota (conhecida como Joaquim Queiroz), Morro do Itararé (também conhecida como Alvorada), Reservatório de Ramos, Nova Brasília, Fazendinha, Casinhas, Morro das Palmeiras, Mineiros e Matinha. A base para a definição do número de favelas ocorreu em 2008 entre o poder público e as associações de moradores para as intervenções urbanísticas do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC das Comunidades. Ao todo, existem 12 associações de moradores, porém, uma delas acumula, na divisão geográfica territorial, a representação de duas favelas. 16. Atualmente, o Complexo do Alemão dá nome à 29ª Região Administrativa (RA) do município do Rio de Janeiro. As divisões administrativas da cidade do Rio de Janeiro se dividem nas Áreas de Planejamento (AP), que englobam as Regiões Administrativas (RA), compostas por bairros ou apenas um bairro como é o caso do Complexo do Alemão, considerado um bairro desde 1986, ou seja, há mais de 30 anos, por meio de decreto municipal. 17. O colégio Theóphilo de Souza Pinto foi criado como CAIC (Centro de Atendimento Integral à Criança) na gestão do Presidente Fernando Collor (1990-1992). Nos documentos oficiais, ele é chamado ora como CIEP, ora como CAIC. A partir de 1995, o projeto deixou de ser gerenciado


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pelo governo federal e ficou a cargo de governos estaduais e municipais. Os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública) nasceram durante a primeira gestão do governador Leonel Brizola (1983-1986), sob a orientação do Secretário de Educação Darcy Ribeiro por meio do denominado I Programa Especial de Educação. A partir disso, segundo depoimento colhido pela Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação Violação Dos Direitos Educativos da Comunidade do Complexo do Alemão, publicada em 2007, houve a desativação gradual da estrutura do Ciep pela Secretaria Estadual de Educação. “Antes, isso aqui era uma beleza. Tinha teatro, capoeira, dança... Os alunos não queriam ir embora daqui”. Informações disponíveis em <http://www.cedaps.org.br/ wp-content/uploads/2013/07/ 18. Notícia disponível em <http://odia.ig.com.br/noticia/ rio-de-janeiro/2014-09-17/ aluno-fica-na-linha-de-tirocom-upp-dentro-de-escolano-alemao.html>. Acesso em 29/12/2015. relatoriocompleto missaocomplexoalemao.pdf>. 19. O Coletivo Juntos pelo Complexo do Alemão é formado por 17 grupos e 12 associações de moradores. 20. Levando-se em conta o que vem sendo chamado na literatura internacional de “novos conflitos armados” ou de “violência armada”, a missão da Plataforma da Dhesca Brasil junto às escolas públicas do Complexo do Alemão, classificou em 2007, a vulnerabilidade das escolas da região como educação em situação de emergência. Em nível internacional, entende-se situação de emergência como sendo aquela resultante

esses problemas e muitos outros que os moradores do Alemão vivem”, afirmou Freixo durante a visita.

AUDIÊNCIA COBRA FIM DA UPP EM ESCOLA Levando-se em conta as denúncias encaminhadas pela população, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj realizou em conjunto com organizações locais19, em 4 de maio de 2015, uma audiência pública no pátio do colégio estadual Caic Theóphilo de Souza Pinto20, no Complexo do Alemão. Um dos objetivos da audiência — não o único — foi apurar as denúncias e ouvir os moradores sobre a própria instalação da UPP no pátio da escola e os problemas que isso tem gerado. O local para audiência foi escolhido pela própria comunidade devido ao diagnóstico de vulnerabilidade e dificuldades do diálogo com a base da UPP, além de um cotidiano com episódios de ameaças dos agentes da polícia contra professores e estudantes. Diante dessa situação, ainda em fevereiro de 2015, foi entregue à Região Metropolitana III um dossiê21 organizado pelos professores e a direção do Caic Theóphilo de Souza Pinto. “Reunimos em um dossiê os problemas relativos à falta de infraestrutura, devido aos prejuízos causados pelas balas que atravessam as janelas e paredes da escola, e vídeos que mostram os alunos e professores sendo ameaçados. Estamos empenhados em retirar esse monstro do pátio da nossa escola. Isso é incompatível com o processo pedagógico. Ou a escola, ou a UPP”, reivindicou o professor Guilherme Moreira. No entanto, a secretária de Educação, Rosana Mendes, desconhecia o documento até aquela data (4/5/2015) e afirmou que iria “procurar saber para onde foi esse dossiê”, que ao chegar à Secretaria, teria acesso a ele. O grêmio estudantil não compareceu à audiência por considerar que o espaço não era neutro o suficiente para garantir sua segurança. Mas deixou uma carta em que afirma: “O nosso objetivo é restabelecer a paz no nosso ambiente de estudo, trazer de volta os projetos que perdemos para que a escola seja um território neutro, assim como foi há três anos atrás”. Além de encaminhar a retirada imediata da base da UPP do pátio da escola, Marcelo Freixo sugeriu a criação de um fórum permanente de diálogo composto pelas secretarias de Educação e a de Assistência Social e Direitos Humanos. “Não é possível que a polícia faça a mediação do conflito em que está diretamente inserida. São necessários outros espaços de diálogo com o poder público para pautar todos os problemas do Alemão”, disse. “Não há projeto pedagógico que suporte uma UPP no pátio da escola. Não é possível que os problemas do Alemão continuem sendo tratados como problemas de polícia. Não é possível que a polícia continue sendo o único instrumento presente para mediar um conflito do qual ela faz parte, no qual está presente. Vamos entregar à Secretaria de Segurança Pública e ao Governo todo o material desse encontro e dar 30 dias para que a UPP saia definitivamente”, afirmou Marcelo Freixo ao final da audiência.


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Na ocasião, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) acatou a decisão da audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, em encaminhar o fim da base da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no Colégio Caic Theóphilo de Souza Pinto. A determinação foi anunciada em nota pela CPP em 6 de maio de 2015. Mas, a secretaria de Segurança Pública não cumpriu a determinação. Ainda em relação à Educação, outro tema abordado diz respeito à concessão de um terreno da prefeitura para criação de um polo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ) no Alemão. Apesar da cessão ter sido publicada em diário oficial pela prefeitura, na segunda quinzena de abril, os moradores questionaram o fato do local estar comprometido para moradia popular. “Não adianta a prefeitura ceder um lugar para a universidade que já está comprometido para outro fim”, criticou Udson Freitas, membro do Juntos Pelo Alemão. Udson também questionou o processo de pacificação: “A Constituição garante o direito à dignidade humana, mas não temos esse direito. Eu ajudo a pagar o salário desses policiais e a munição que está matando meus amigos e meus vizinhos. As crianças na favela correm atrás de pipa, mas aqui ninguém corre porque pode levar um tiro pelas costas”.

COTIDIANO DE VIOLÊNCIA Meu filho era amado por todos. Ele só queria ter o direito de falar e ser ouvido. A UPP tem que ser reformulada com o objetivo de nos ajudar e não nos matar”, afirmou Denise Moares, mãe de Caio, 20 anos, morto há um ano no Alemão. “Será que vou continuar a apanhar por ser negro?”, questionou o escritor Zen Ferreira ao narrar a agressão sofrida, no último dia 6 de abril, durante uma abordagem do Bope no Complexo do Alemão. “Me deram um soco na cara. E só depois pegaram os meus documentos. Quando viram que não tinha nada a ver (com o tráfico), o policial me abraçou e pediu desculpas. Me senti envergonhado e hoje eu choro de vergonha. Peço justiça e respeito”, concluiu emocionado. O chefe do Gabinete do Comando-Geral da PM, coronel Ibis Silva Pereira, pediu desculpas ao que classificou de “excessos”. “Estamos empenhados em repensar o processo de pacificação. A polícia é vítima e vitimizadora nessa guerra contra as drogas. São máquinas de guerra que embrutece pessoas e desumaniza”, afirmou. O presidente da Comissão Especial de Inquérito (CPI) do Congresso Nacional, Reginaldo Lopes, que investiga a violência contra os jovens negros e pobres criticou a suposta guerra contra as drogas: “As taxas de elucidações de crimes não chegam a 8% e os presídios estão superlotados. Por isso, essa lógica errada de guerra às drogas é prejudicial à sociedade. Uma das ações da CPI está em torno do debate sobre o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que compartilha a responsabilidade sobre a Segurança Pública com o governo federal”, afirmou Lopes ao sugerir que todos as assembleias legislativas criem CPIs para tratar do homicídio de jovens negros. O encontro, que contou com a presença de lideranças locais e presidentes de associações, também teve a participação das deputadas federais Rosângela Gomes e Benedita da Silva; da deputada estadual Martha Rocha; da subsecretaria de Defesa

de catástrofes naturais ou das chamadas “emergências complexas”. As emergências complexas são situações de gravidade social geradas pelos seres humanos, estando entre elas, os “conflitos armados”. À época, foi apresentado um conjunto de recomendações reivindicando a aplicação imediata da legislação internacional de direitos humanos. O relatório foi entregue às autoridades públicas, às organizações comunitárias do Complexo do Alemão, às entidades da sociedade civil do Estado do Rio de Janeiro e do país; e encaminhado ao relator especial da ONU para o Direito Humano à Educação; à Comissão Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU para a tomada de medidas cabíveis, conforme previsto nos instrumentos internacionais de direitos humanos. 21. No dossiê, elaborado pelos 21 professores da escola, constam fotografias de todos os danos à infraestrutura da escola, mas também vídeos de ameaça a professor no exercício da sua profissão e a estudantes que estavam fazendo trabalho no pátio da escola, filmando a escola, realizado por policiais.


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e Direitos Humanos, Andréa Sepúlveda; e representante da secretaria de Educação, Rosana Mendes.

4.5. RELATÓRIO DE EXECUÇÕES SUMÁRIAS DA ANISTIA INTERNACIONAL O direito à vida é prerrogativa fundamental para a dignidade humana. Tanto que se configura como uma norma de direito internacional que não pode ser suspendida em nenhuma ocasião, mesmo em casos de emergência. O artigo 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assim como o artigo 6º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), prevê dentre as responsabilidades dos Estados a obrigatoriedade de garantir, proteger e preservar o direito à vida. Desde 1992, o Brasil é signatário de ambos os tratados internacionais, além de, a partir de 1998, ratificar a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Segundo dados do Informe da Anistia Internacional (2015/16), de 2010 a 2015, foram 2.474 pessoas mortas de forma violenta em homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro. Isso significa que nos dois últimos anos, a média diária foi de 1,7 ocorrências, o que na prática dá quase 2 pessoas mortas por intervenção policial a cada dois dias. Entre 2010 e 2013, das 1.275 pessoas que foram assassinadas durante operações policiais na cidade do Rio de Janeiro, 99,5% das vítimas eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade No Relatório “Você matou meu filho”22, publicado em 2015 pela Anistia Internacional, há destaque para as evidências encontradas de que pelos menos nove, dos 10 casos de homicídios decorrentes de intervenção policial em Acari, possuem fortes indícios de execuções extrajudiciais praticadas por policiais militares em serviço. “Em quatro casos, as vítimas já estavam feridas ou rendidas quando policiais usaram armas de fogo de forma intencional para executá-las. Em outros quatro casos, as vítimas foram baleadas e assassinadas sem nenhum aviso. Em um deles, a vítima estava fugindo da Polícia quando foi baleada e morta”, descreve o documento. A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj realizou, em 31 de março de 2015, uma audiência pública para a exposição dos resultados e propostas indicadas no relatório da Anistia Internacional que apresenta uma investigação exclusiva sobre execuções extrajudiciais, homicídios e outras violações de direitos humanos praticadas pela Polícia Militar. Na ocasião, o diretor-geral da Anistia Internacional, Átila Roque, criticou a prática ilimitada desse tipo de violação. “A ação policial vitimiza principalmente o pobre, o jovem negro. Esperamos que não seja um momento de reiteração de denúncias. Queremos avançar”, afirmou.

22. Disponível em <https:// anistia.org.br/wp-content/ uploads/2015/07/Vocematou-meu-filho_AnistiaInternacional-2015.pdf>.

O sociólogo Michel Misse, do Núcleo da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ, durante a audiência, chamou a atenção para o fato de que a taxa de esclarecimento de homicídios praticados por policiais é menor do que os comuns, o que é uma contradição, já que no caso policial se conhece a autoria. “Não se sabe informações básicas. Quantos PMs estão envolvidos em autos de resistência? Quantos têm cinco,


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dez, quinze autos de resistência? Qual o critério para avaliar qual a quantidade de autos de resistência aceitável para cada policial?”, questionou.

PRINCIPAIS PROPOSTAS DA ANISTIA INTERNACIONAL PARA ENFRENTAR O PROBLEMA: AO GOVERNO DO ESTADO 1) Todos os homicídios praticados por policiais, independentemente de serem caracterizados como autos de resistência ou não, devem ser investigados pela Divisão de Homicídios. O objetivo é concentrar as informações numa mesma unidade. Atualmente, os casos ficam com as unidades distritais, cuja taxa de resolução é mais baixa. O chefe de gabinete da Polícia Civil, Fernando Vilas Poucas, que compareceu à audiência, disse que a direção da instituição é favorável à medida, mas que precisa da nomeação de 750 policiais que foram aprovados em concurso. 2) Garantir a estrutura adequada em termos de equipamentos e pessoal para que a Divisão de Homicídios possa investigar todos os casos de forma eficiente. 3) Fortalecimento de programas de proteção às testemunhas, familiares das vítimas e defensores de Direitos Humanos. 4) A PM deve adotar e tornar público um protocolo que regulamente o uso da força para evitar abusos. O uso da força deve ser proporcional ao dano que se deseja evitar. No caso da força letal, ela só é legítima se for para salvar a própria vida ou a de outra pessoa. O documento deve ser baseado em dois protocolos produzidos pela ONU: o “Código de conduta para os funcionários responsáveis pela aplicação da Lei” e o “Princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da Lei ”. A PM também deve controlar o uso de armas de uso extremo como fuzis e metralhadoras automáticas. Seu uso em comunidades põe em risco a vida da população.

AO MINISTÉRIO PÚBLICO 1) Criação de uma força-tarefa que priorize a investigação dos autos de resistência. Segundo o relatório, em 2011, a Polícia Civil abriu 220 procedimentos administrativos. Até abril de 2015, 183 investigações ainda estavam em curso. Foi pedido o arquivamento de 12 casos, dos quais cinco por ausência de provas ou testemunhas. Houve apenas uma denúncia à Justiça. 2) O Ministério Público precisa cumprir seu papel constitucional de fiscalizar e controlar a atividade policial, monitorando o uso da força letal.


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À UNIÃO 1) Garantir a adequada implementação da Resolução 08/2008, que retira designações genéricas, como “auto de resistência” e “resistência seguida de morte”, de registros policiais. Isso permitirá que os homicídios decorrentes de intervenção policial sejam investigados de forma apropriada e que sejam assegurados o acesso à perícia oficial, a preservação da cena do crime e o envolvimento do Ministério Público. 2) Criar um programa nacional para reduzir a quantidade de homicídios.

AO CONGRESSO NACIONAL 1) Incorporar na legislação os padrões da ONU para o uso da força por parte dos agentes da Segurança Pública. 2) Aprovar legislação específica que estabeleça os parâmetros fundamentais para a criação, definição de competências e funcionamento das Ouvidorias Externas da Polícia em cada estado. As Ouvidorias Externas devem ser dotadas de autonomia orçamentária e funcional, estar encarregadas do controle da atuação do órgão policial e do cumprimento dos deveres de seus profissionais, além de ter poderes disciplinares.

4.5.1. ATÉ QUANDO, ACARI? “Porque você atirou em mim? Porque você fez isso? O que eu fiz pra você?”. Essas foram as palavras de Ana Júlia, uma menina de oito anos de idade, após ser baleada no peito por policiais civis no dia 14 de maio de 2015, durante uma incursão policial na favela de Acari. Ela voltava da escola junto com outras crianças que também foram alvejadas por estilhaços. Vanderley Cunha, mais conhecido como Deley de Acari, via aquela cena de maneira perplexa. Em setembro de 2015, disse à equipe da CDDHC, que após vários anos morando em Acari, jamais havia estado tão perto de uma cena de violência como aquela. A favela de Acari tem um histórico sangrento das ações policiais ou de grupos de extermínio. Há décadas sofre com operações policiais que resultam em execuções extrajudiciais e outras violações de direitos humanos. De acordo com o Informe da Anistia Internacional (2015/16), em 2014, foram mortas 584 pessoas no estado, mas somente a capital registrou 244 casos. A maior incidência aconteceu na Área Integrada de Segurança Pública (AISP) de número 41, com um total de 68 registros de “homicídios decorrentes de intervenção policial”. Destes, 10 casos ocorreram na favela de Acari, tendo um policial militar morto em serviço na área total. Nenhum em Acari. O desaparecimento forçado de 11 jovens em julho de 1990, caso conhecido como a Chacina de Acari, marcou a história da favela e do Rio de Janeiro. Após 25 anos dessa tragédia, a realidade e a rotina de violência sofrida por seus moradores pouco mudou.


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4.5.2. ENTREVISTA: GILMARA COUTINHO

“A polícia quase destruiu os sonhos da minha filha”

Gilmara Coutinho critica o Estado por não responsabilizar aqueles que balearam a sua filha Ana Júlia

G

ilmara Coutinho, de 41 anos, moradora há 40 anos da favela de Acari, estava em casa quando recebeu um telefonema dizendo que a filha Ana Júlia estava machucada. Segundo Gilmara, Ana Júlia estava saindo da escola acompanhada de outras três crianças e uma vizinha que segurava uma criança de colo, quando próximo ao Valão, na Praça Roberto Carlos, começou uma suposta troca de tiros. Havia uma incursão da polícia civil na região. Em determinado momento, o grupo sentiu vários tiros na direção deles. A vizinha se jogou no chão para se proteger e empurrou as crianças para atrás de uma árvore. Mesmo assim, Ana Júlia foi ferida. A vizinha começou a gritar e cerca de dez policiais civis, dentre eles o delegado e responsável pela operação, foram em direção ao grupo. Um deles pediu calma e afirmou que a polícia iria prestar socorro. Porém, eles cruzaram toda a favela até chegar à Avenida Brasil com Ana Julia ferida. Foi nesse momento que a menina entrou em desespero e gritou: “Por que você atirou em mim? Por que você fez isso? O que eu fiz pra você? Eu não quero morrer!”. CDDHC: Como foi o socorro prestado pela polícia? Gilmara: Os policiais balearam a minha filha e a fizeram ela andar por mais de 500 metros sangrando. Depois largou a Ana Júlia no Hospital de Acari e sumiram. Ela foi transferida para o Souza Aguiar e lá o atendimento foi adequado. Mas até hoje ninguém arcou com nada e está por isso mesmo. Minha filha tomou dois estilhaços nas pernas e um tiro no peito. A bala ainda não saiu e está alojada no pulmão.


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CDDHC: Você percebe no dia a dia mudança no comportamento de Ana por conta dessa violência? Gilmara: Ela mudou muito. Não é mais a mesma criança. Isso vai ficar marcado o resto da vida na cabeça dela e na minha. Ela está mais agitada, não é mais calma. Tem que fazer tratamento psicológico para não cair em depressão. Ela só tem oito anos. A pessoa que leva um tiro no peito não passa isso sem trauma. Ela tem sonhos e eles quase destruiriam com os sonhos dela. CDDHC: O que você espera do Estado? Gilmara: Só quero que o estado faça alguma coisa. Quero justiça. Porque eles não deram nenhuma assistência a minha filha até hoje. Não se responsabilizaram por nada: remédio, médico, tratamento. Não foram responsabilizados. Espero que eles arquem com as consequências do que fizeram. Estou entrando com uma ação contra o Estado, porque eles têm que tomar providências sobre essa violência. Eles não podem fazer isso, porque quem mora aqui é gente humana e mesmo que morasse bicho, eles não podiam chegar atirando. CDDHC: Ana Júlia foi a única criança machucada? Gilmara: Não teve outras crianças, mas as mães não quiseram dar queixa e ir na delegacia. Deixaram para lá. Como a minha filha foi baleada, eu não deixei barato. É uma covardia o que aconteceu. Era uma criança querendo chegar em casa, voltando da escola. O Estado tem que pagar por isso. CDDHC: Por que as outras mães não fizeram boletim de ocorrência? Gilmara: Foi por medo. Mãe tem medo. Eu tenho medo também, mas não tenho tanto assim não, porque minha filha não morreu. Então, eu não posso ter medo. Tenho que lutar por ela. Nem sei o que seria de mim se ela tivesse morrido. O que é ter um filho morto? Eu não quero saber.

4.5.3. MÃES DE ACARI: APÓS 25 ANOS, O MESMO CLAMOR POR JUSTIÇA A dor da perda de um filho que Gilmara Coutinho nem imagina sentir, há 25 anos faz parte da realidade sofrida das Mães de Acari. Em 26 de julho de 1990, onze jovens – dos quais sete eram menores de idade – a maioria moradores da favela de Acari, não voltaram para casa após irem se divertir com amigos em um sítio localizado em Suruí, no município de Magé, estado do Rio de Janeiro. Os jovens foram sequestrados por um grupo de seis homens que se identificaram como policiais e que queriam dinheiro e joias. Como o grupo não possuía dinheiro, foi levado para um local ainda desconhecido. Inicia-se a odisseia de sete mulheres em busca pelo paradeiro de seus filhos e da luta por justiça, surge o movimento Mães de Acari, que inspira outros coletivos de mães de vítimas da violência. Para encontrar os filhos, elas percorreram cemitérios clandestinos, escritórios, instâncias burocráticas, Delegacias de Polícia, presídios; conversaram com juízes, delegados, secretários de segurança, autoridades policiais, ministros. O livro “Mães de Acari: uma história de luta contra a impunidade”, denuncia que os responsáveis pelos desaparecimentos estariam ligados a um grupo de extermínio conhecido à época


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como “Cavalos Corredores”. Informação confirmada por vários testemunhos de moradores obtidos pela Anistia Internacional. A entidade conseguiu apurar que as pessoas que levaram os jovens haviam sido identificadas pelo Setor de Inteligência da Polícia Militar como policiais do 9º Batalhão da Polícia Militar, em Rocha Miranda, e como detetives do Departamento de Roubo de Carga da 39ª Delegacia de Polícia da Pavuna, ambos na cidade do Rio de Janeiro. A investigação indicava que os policiais militares envolvidos vinham extorquindo algumas das vítimas antes do seu desaparecimento forçado. Mesmo com a publicização das informações, as investigações não avançaram e ninguém foi punido. As Mães de Acari receberam apoio da Anistia Internacional, em 1992, após a denúncia de que policiais militares as ameaçaram. Mas, um ano depois, em 1993, Edméia da Silva Euzébio, mãe de Luiz Henrique, uma das mães mais indignadas e empenhadas na luta por justiça, junto com a cunhada Sheila Conceição, foi assassinada23. Elas sofreram uma emboscada no estacionamento do metrô Praça XI, em 1993, após visitarem um detento no presídio Hélio Gomes. Apesar do paradeiro dos jovens nunca ter sido descoberto, a investigação foi encerrada em 2010. Após 25 anos lutando por justiça, as famílias continuam desmanteladas e com saúde mental e física comprometidas. Nenhuma delas recebeu indenização, apoio estatal, ou mesmo o atestado de óbito dos filhos. Em outubro de 2012, Marilene Lima de Souza, mãe de Rosana de Souza Santos, faleceu em consequência de um tumor no cérebro. Em agosto de 2003, Vera Lúcia Flores Leite, mãe de Cristiane Souza Leite, faleceu devido a problemas de saúde. Ana Maria da Silva, mãe de Antônio Carlos da Silva, e Tereza de Souza Costa, mãe de Edson Souza, também estão doentes e não conseguem atendimento na rede pública de saúde. Os anos sem resposta sobre o crime e o paradeiro dos filhos marcam o corpo e o estado emocional das Mães de Acari. Unidas pela luta por justiça, Dona Teresa e Dona Ana continuam tentando encontrar os filhos, mas se dizem cansadas. E com razão. No total, nove governadores passaram pelo Estado do Rio de Janeiro em 25 anos da Chacina de Acari, mas nenhum foi capaz de dar um fim à impunidade. A indiferença do Estado em relação à chacina, vem enterrando todas as Mães de Acari.

4.5.4. ENTREVISTA: TEREZA DE SOUZA COSTA

“Dizem que crime prescreveu, mas a nossa dor não”

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cansaço da dona de casa Tereza de Souza Costa, de 65 anos, é visível. Segundo ela, não há mais lágrimas para chorar, mas ainda chora. Também passa mal da pressão alta ao se emocionar relatando a luta em busca de algum paradeiro do filho ao longo desses 25 anos. Quando Edson Souza, à época, com 17 anos,

23. Em 11 de julho de 2011, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, recebeu a denúncia do homicídio de Edméia. Sete pessoas estão sendo acusadas, a maioria delas policiais militares, incluindo o ex-comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar, então responsável pelo policiamento da região de Acari. Depois de 22 anos da morte de Edméia, o processo continuava na fase de instrução não havia sido encaminhado para o júri. Foi só em 2014, graças a um testemunho de que o assassinato da diarista havia sido planejado no gabinete do deputado Emir Laranjeira, que a Justiça do Rio de Janeiro encaminhou para julgamento os sete acusados pela morte de Edméia. O processo atualmente aguarda os recursos, mas a pressão deve continuar pela punição dos assassinos.


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desapareceu, Tereza teve que lidar com a sua dor, a do marido e também explicar ao filho caçula porque o irmão não voltava para casa. “Ele perguntava pelo Edson toda hora. Falava que iria sair para procurá-lo. E eu entrava em desespero”, descreve. O filho mais novo era portador de transtorno mental, um dia conseguiu sair de casa para procurar o irmão e foi atropelado. Morreu na hora. Há cerca de um ano, Dona Tereza mais uma vez enfrentou outro trauma. O marido sofreu um acidente e se feriu na perna. Ao procurar atendimento no Hospital de Acari e não receber um tratamento adequado, o marido diabético teve uma grave infecção na perna e foi necessário amputá-la. É Dona Tereza quem cuida do marido sozinha. Até hoje não recebeu qualquer reparação do Estado, seja um auxílio psicológico, financeiro ou justiça do Estado. Sua saúde emocional é delicada e a física também requer cuidados médicos. Quem ajuda Dona Tereza são seus vizinhos e Dona Ana, outra Mãe de Acari. Ela também está doente e precisa de atendimento médico e psicológico. No braço esquerdo, um grande caroço – do tamanho de uma bola de pingue-pongue – próximo ao punho causa dores insuportáveis. Também tem indicação para fazer um exame de mamografia, mas não consegue atendimento. Aguarda há meses uma vaga no Sistema de Nacional de Regulação de Saúde (SIGREG) do Datasus. As duas, Dona Ana e Dona Tereza, tornaram dor em amizade e continuam juntas lutando por justiça. Descrentes e cansadas, elas aceitaram conceder uma entrevista para a equipe técnica da CDDHC Alerj, em setembro de 2015. CDDHC: Como avalia a luta nesses 25 anos? Dona Tereza: Desde o começo, uma tentava proteger a outra. Mas eu estou cansada de tudo. De esperar por essa justiça que não vem, de dar entrevista. São 25 anos sem saber onde está meu filho. Eu só queria enterrar meu filho. Nem a certidão de óbito o Estado me dá. Hoje, vejo que a luta foi em vão. Cadê o resultado? Estou sozinha cuidando do meu velho. Só restou mesmo a saudade dos meus filhos e a saúde que já não temos. Eu quero justiça, mas ainda tenho muito medo. CDDHC: A senhora se sente desamparada? Dona Tereza: Sim. Agora mesmo me ligaram dizendo que tinham um carro preto me procurando lá na porta de casa. Não sei o que é. Não sei o que pode ser. Mas no meio do medo, eu retomo e cobro. O Estado tem que me dizer o que fez com meu filho. Tem que ser condenado pelo que aconteceu com meu filho. Mas até hoje eu tenho a sensação que meu menino vai entrar pela porta de casa. Falaram que o crime prescreveu, mas minha dor não. O estado tem que dar conta. Eu estou doente, será que não tem ninguém para me ajudar? Nem indenização, nem no bolso o Estado sentiu ou pagou pela dor do meu filho. Quero justiça! CDDHC: Dona Ana, como a senhora avalia tudo isso? Dona Ana: Só faltam jogar a pá de cal. Nossa saúde vai minguando. Eu sou muito mais nervosa. Sempre falavam que tinha um cemitério ali ou lá. E a gente nada de achar nossos filhos. A Edméia foi assassinada procurando o paradeiro deles e isso foi


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outro golpe. Não deixaram a gente achar eles para enterrar. Nem o atestado de óbito eu tenho. Dizem que o crime prescreveu e isso acabou com a gente. Acabou tudo. A gente não vai ter justiça. E todo mundo foi morrendo, só falta a gente. Mas a gente sobrevive dia a dia pelos meus outros filhos, meus netos, mas meus filhos todos mudaram depois disso. Somos nervosos. Todo mundo aqui demorou muito para reconstituir suas vidas e no fundo nunca foi igual. Eu como as outras estou ficando doente. Veja esse caroço aqui (apontou o braço). Eu não sei o que é e já tentei atendimento em tudo quanto é lugar e não consigo. O médico disse que pode ter outro no seio, mas não consigo fazer mamografia. A gente vai morrer e não vai ter solução. A gente vai morrer sem justiça! A entrevista com Dona Ana e Dona Tereza foi realizada pela equipe técnica da CDDHC Alerj em setembro de 2015. Desde então, a Comissão tenta viabilizar junto aos órgãos públicos do Estado atendimento psicológico e de saúde. O Instituto de Defesa dos Direitos Humanos junto com a Comissão também vem acompanhando o caso das Mães de Acari na Secretária de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro. O próximo capítulo abordará as situações de violações nos espaços de privação de liberdade, além da vitória relativa à lei que põe fim à revista íntima e vexatória nas unidades penitenciárias e do Degase. Há ainda uma reflexão sobre a privatização dos presídios e o retrocesso social representado pela redução da maioridade penal e encarceramento da juventude.



5. Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro

A

o longo dos anos, o relatório da CDDHC da Alerj trata sistematicamente da discussão sobre a política de superencarceramento levada a cabo pelo governo do Rio de Janeiro, com perversos reflexos nas políticas públicas de efetivação dos direitos humanos. No ano de 2015, não se observou reversão deste quadro. Pelo contrário: o número de prisões cresceu, bem como cresceu a população carcerária do estado, agravando ainda mais a crítica condição de superlotação dos presídios. Os dados do Ministério da Justiça1 mostram que, em 14 anos, a população carcerária brasileira aumentou mais de 160%, dez vezes mais que o crescimento da população. Segundo o levantamento, para cada 16 presos, existem só 10 vagas nos presídios. O Brasil já conta com mais de 600 mil pessoas presas. Destes, 39% estão em situação provisória, aguardando julgamento. Em todo o país, há um déficit de 244 mil vagas no sistema penitenciário e o quadro de superlotação atinge todos os 26 estados do país. Atualmente, existem cerca de 300 presos para cada cem mil habitantes no país. Isso significa que o Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, encontrando-se atrás apenas da Rússia, China e Estados Unidos. Mas é preciso observar que, enquanto nos três países a taxa de encarceramento caiu entre 2008 e 2014, no Brasil, a população prisional cresceu 33%. No entanto, esse superencarceramento não levou à diminuição da violência, porque é sabido que a causa da violência não está relacionada somente à aplicação de uma pena, mas a todo um contexto socioeconômico do país. Os crimes que mais encarceram no país são o tráfico de drogas, roubo e homicídios. O crescente número da população carcerária, as péssimas situações das unidades prisionais e a superlotação, bem como a onda de rebeliões nos presídios em diversas regiões do país em 2015, não foram suficientes para barrar a aprovação, com 320 votos a favor na Câmara dos deputados, da redução da maioridade penal para 16 anos. A proposta agora segue para o Senado, aonde passará por duas votações. Essa ação ocorre em um contexto em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), convoca o Brasil a dar explicações sobre a onda de violência e mortes no Complexo Prisional do Curado2, no Recife. O Rio de Janeiro possui um efetivo carcerário atual em torno de 43.300 presos, mas com capacidade para apenas 27.300. A superlotação chega a 53.6%. Basta entrarmos nas unidades prisionais do Rio para percebermos que o público-alvo do sistema penal é, em sua imensa maioria, de jovens de 18 a 29 anos (62%), negros (71,6%), com ensino fundamental incompleto (66%) e moradores das periferias. O recorte evidencia a política de criminalização da pobreza e da juventude negra e revela a real função dos presídios num contexto de política pública de segurança baseado na guerra às drogas: depósito de indesejáveis. Há uma clara opção pelo encarceramento dessa população.

1. Disponíveis em <http:// www.justica.gov.br/noticias/ mj-divulgara-novo-relatoriodo-infopen-nesta-terca-feira/ relatorio-depen-versao-web.pdf>. 2. Diversas entidades, entre elas a Pastoral Carcerária, o Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), a Justiça Global e a Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, denunciaram o Brasil à OEA. Em fevereiro de 2015, o grupo divulgou um dossiê sobre o caso com o objetivo de chamar atenção para a situação do Complexo. O documento traz 715 páginas, relatos de casos de violência, tortura, superlotação e falta de responsabilização dos funcionários envolvidos em abusos. O Complexo Prisional do Curado é um dos maiores presídios do país, com cerca de 7 mil detentos para 2.200 vagas.


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O ano de 2015 se configurou como um período de ameaças concretas aos direitos humanos dos internos no sistema prisional. No que tange ao enfrentamento à superlotação, há muito o que se avançar no diálogo institucional entre os poderes Legislativo, Executivo, Judiciário, e em especial o Ministério Público, uma vez que são os dois últimos órgãos os responsáveis pela manutenção das prisões cautelares por longos períodos. É flagrante a opção, em detrimento da aplicação de outras medidas alternativas, pela privação de liberdade durante o processo. A situação no Sistema Penitenciário é tão alarmante, inclusive no que diz respeito às condições das unidades prisionais e à situação das mulheres encarceradas, que a CDDHC Alerj realizou três audiências públicas sobre o assunto. Dos 809 novos atendimentos feitos pela equipe técnica da CDDHC, 194 atendimentos foram referentes ao sistema prisional. Desse modo, seguem breves relatos de alguns pontos críticos do sistema prisional fluminense que merecem destaque para que não voltem a ocorrer nos próximos anos, assim como de audiências públicas realizadas pela CDDHC, atendimentos efetuados e alguns avanços a partir da atuação da Comissão.

5.1. IMPACTOS DA CRISE HÍDRICA NO CÁRCERE As unidades prisionais do Rio de Janeiro apresentam quadros insatisfatórios de fornecimento de água aos seus internos. Algumas por problemas estruturais, tais como inadequação de reservatórios e castelos de água (potencializada pelo quadro de superlotação), outras por questões da rede de abastecimento de água da Cedae. Este último, é o caso do Complexo de Japeri, localizado em uma região com histórico de racionamento de água no verão. Não bastassem essas constatações, desde a metade de 2014, a região sudeste do Brasil enfrenta uma crise hídrica sem precedentes, que ameaça o abastecimento de água potável na região metropolitana do Rio. O quadro de escassez de água no estado, agrava a situação do abastecimento no sistema carcerário fluminense. Neste sentido, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT) observou, durante as visitas de monitoramento do Sistema Penitenciário, o agravamento da precariedade deste fornecimento. Situação que impacta não só a salubridade (limpeza do ambiente prisional), mas também a higiene pessoal dos presos, acarretando problemas de saúde. Especialmente, doenças dermatológicas, bem como torna o ambiente da unidade tenso com a crescente insatisfação de internos.

5.1.1. ALIMENTAÇÃO INADEQUADA Assim como o fornecimento de água aos presídios, atualmente, a alimentação oferecida pelo Estado aos internos do sistema prisional interfere diretamente no ambiente e na rotina do sistema penitenciário como um todo. A despeito da péssima qualidade


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das refeições fornecidas aos internos, o ano de 2015 apresentou um agravamento deste quadro, em razão da incapacidade de gestão financeira dos contratos existentes. A inadimplência do governo com os fornecedores terceirizados nas diversas áreas da administração pública estadual levou as empresas contratadas a racionar os alimentos oferecidos aos internos. Houve a substituição de alguns itens do almoço e jantar, como carne e frango, por ovo ou salsicha, bem como a interrupção do fornecimento de outras refeições, tais como o suco e pão do café da manhã e lanche da tarde. De acordo com a Promotoria de Tutela Coletiva do Sistema Prisional e Direitos Humanos, os atrasos nos pagamentos aos fornecedores de alimentação chegaram a sete meses em 2015. O que prejudica, inclusive, a cobrança do próprio contratante quanto à qualidade do produto oferecido, tornando a situação ainda mais delicada. A precarização da alimentação, somada ao racionamento do fornecimento de água, provocado pela crise hídrica pela qual a região sudeste passa, bem como à superlotação endêmica do sistema prisional fluminense, tornam as unidades prisionais do estado verdadeiros barris de pólvora, prestes a explodir.

5.2. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA O Sistema Prisional brasileiro possui cerca de 40% de detentos provisórios de uma população carcerária de mais de 600 mil pessoas. Vale reafirmar que o país figura o quarto lugar no ranking mundial daqueles que mais prendem. Recentemente, foi aprovada a lei 12.403/11, que permitiu ao Poder Judiciário a aplicação de medidas alternativas à prisão em casos de flagrante, mas esta lei não teve a eficácia esperada, sendo incapaz de alterar o quadro de aumento do encarceramento de pessoas que aguardam o julgamento. O excessivo número de presos provisórios no Brasil (em 2013, de 550 mil presos, 217 mil ainda aguardavam julgamento) é visto com um dos grandes obstáculos para a humanização do sistema prisional e, consequentemente, para a efetivação da Lei de Execuções Penais e o respeito à dignidade da pessoa presa. O Rio de Janeiro, por exemplo, dos 42 mil detentos, 15.200 são presos provisórios – o equivalente a 38%. Uma pesquisa realizada pela socióloga Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, mostra as graves consequências da banalização das prisões provisórias. Segundo o levantamento, apenas 37,5% dos 3.672 detentos presos em flagrante em 2011 foram sentenciados ao regime fechado ou semiaberto. Ou seja, a maioria das pessoas foram submetidas a condições mais graves ao longo do processo do que a determinada após a conclusão do julgamento. Diante deste quadro, inúmeras organizações da sociedade civil, além de juristas e defensores dos direitos humanos, se mobilizaram nos últimos dois anos para a efetivação das audiências de custódia no país. Um procedimento previsto no Pacto San José da Costa Rica, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil, mas que não era efetivada no processo penal do país. Tal fato evidencia o descumprimento das normativas internacionais pelo Estado brasileiro.


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Para além do enfrentamento ao superencarceramento, a audiência de custódia consiste na imediata apresentação do preso em flagrante a um juiz, com vistas à análise da necessidade de manutenção da prisão cautelar (antes do julgamento). Este procedimento permite uma maior eficácia às medidas cautelares, alternativas à prisão, uma forma de enfrentar o excesso de presos provisórios. Além disso, é uma estratégia de combate à tortura no ato da prisão, uma vez que, se o magistrado constatar lesões ou obtiver relato de tortura por parte do réu, poderá determinar ação investigativa do fato. Em 2015, a mobilização sobre o tema fez com que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) efetivasse, em parceria com o Supremo Tribunal Federal, um projeto piloto de audiências de custódia em São Paulo. Em setembro do mesmo ano, o Tribunal de Justiça do Rio implantou a audiência de custódia no estado. Um dos resultados efetivos da audiência pública realizada, em 13 de abril, pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj sobre o tema. Com a presença de representantes da Polícia Civil, da Defensoria Pública, do Tribunal de Justiça, do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, do Instituto de Defesa do Direitos de Defesa, do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos e da Associação pela Reforma Prisional, o encontro avaliou como emergente a implantação das audiências de custódia no estado. Na ocasião, os benefícios que a efetivação deste procedimento traria para o sistema de justiça criminal fluminense foi destacado por todas as instituições presentes. Fato este que levou ao presidente da CDDHC, Marcelo Freixo, à apresentação de Indicações Legislativas (55/2015) endereçadas aos Poderes Executivo e Judiciário, com o intuito de efetivação das audiências de custódia no estado do Rio de Janeiro. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro iniciou a prática das audiências de custódia em 18 de setembro de 2015. No entanto, o procedimento ainda está restrito à comarca da capital, mas há a previsão de expansão para todo o estado até 2017. Assim, a expectativa de se reduzir o número de presos provisórios no estado do Rio de Janeiro tornou-se algo mais factível. É sem dúvida uma vitória das mobilizações sociais para desacelerar a superlotação dos presídios e viabilizar a dignidade humana aos apenados.

5.3. PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS Ao priorizar uma política criminal de encarceramento de jovens em detrimento de políticas efetivas de garantia de direitos e inclusão, o Brasil se encarrega de uma crise aguda no Sistema Prisional. Diante disso, a solução imediata, aclamada por atores políticos conservadores, é o investimento em ações de diferentes governos que visam a transferência da tutela das pessoas sob sua custódia à iniciativa privada.


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Há dois modelos de privatização de prisões praticados no Brasil: cogestão e parceria público privada (PPP). As PPPs são o modelo mais debatido, mas as unidades em cogestão representam quase a totalidade dos contratos. Na cogestão, o estado como o responsável pela direção da unidade, da guarda e de escolta externa, enquanto a empresa privada assume toda a operacionalização da unidade, gerindo serviços de saúde, alimentação, limpeza, vigilância e escolta internas, além da manutenção das instalações. Pelos contratos de PPPs, as prisões são projetadas, construídas, financiadas, operadas e mantidas por companhias privadas por um longo período de tempo. No caso do Brasil, em regra, são 30 anos. As PPPs são, supostamente, mais lucrativas. É um equívoco estabelecer níveis de comparação entre as unidades privadas e as públicas. Isto porque os recursos investidos em cada uma delas são discrepantes, além da unidade privatizada não poder receber mais internos que a sua capacidade. Algo já previsto no dispositivo contratual privado, não à toa, as públicas estão sobrecarregas. Há que se observar ainda a falta de transparência na gestão e nos dados relativos às instituições privadas. De acordo com o relatório da Pastoral Carcerária Nacional3: “não é possível, por exemplo, saber quantas pessoas, no Brasil, estão presas nas unidades privatizadas”. No Rio de Janeiro, em 2015, após a exoneração do então Secretário de Administração Penitenciária (Seap), Cel. Cesar Rubens, e a nomeação do também Cel. Erir da Costa Filho, a Seap iniciou estudos para a viabilização de transferência da administração de uma penitenciária recém construída em Resende para a iniciativa privada, fato este confirmado pelo novo secretário em entrevista à TV Alerj. Por esta razão, e em busca de esclarecimentos, a CDDHC realizou uma audiência pública, em 5 novembro de 2015, em parceria com o Comitê Estadual para Prevenção e Combate à Tortura. O encontro contou com a presença de entidades da sociedade civil, Defensoria Pública, Ministério Público e representante da Seap. Na ocasião, o subsecretário da Seap, coronel Cid Souza Sá, informou o recuo da Secretaria no que tange à privatização do sistema. “Ele (Erir) determinou visitas a algumas unidades prisionais em outros estados, algumas unidades públicas, outras de cogestão e outras privatizas 100%. O único objetivo é conhecimento de alguma coisa que nós pudéssemos melhorar nas nossas unidades. Eu quero garantir cem por cento que no ambiente da secretaria não existe nenhum processo em andamento, nenhuma intenção de privatizar qualquer unidade prisional dentro do Estado”, afirmou Souza Sá. Como resultado da audiência, foi encaminhada a criação de uma Proposta de Emenda Constitucional para proibir a privatização das unidades prisionais e do Sistema Socioeducativo. Também participaram do encontro a socióloga Julita Lemgruber; o coordenador-geral do Comitê Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura; Maíra Fernandes, da OAB; Tiago Joffily, da Promotoria de Tutela Coletiva do Sistema Penitenciário e Direitos Humanos e Leonardo Rosa, defensor público no NUSPEN.

3. Disponível em <http:// carceraria.org.br/wpcontent/uploads/2014/09/ Relato%CC%81rio-sobreprivatizac%CC%A7o%CC% 83es.pdf>.


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5.4. ENTREVISTA: JOSÉ DE JESUS FILHO

“Não há vantagens na privatização de presídios” Arquivo pessoal

José de Jesus Filho revela que a privatização dos presídios favorece a falta de transparência com relação aos custos do Estado

O

advogado José de Jesus Filho coordenou a pesquisa “Prisões privatizadas no Brasil em debate”, realizada pela Pastoral Carcerária e publicada em 2014. A equipe inspecionou 23 unidades prisionais privatizadas em todo o país. Os pesquisadores observaram que a privatização não melhorou as péssimas condições do sistema penitenciário brasileiro. Em algumas unidades, os problemas foram agravados. O paranaense José de Jesus Filho ingressou na Pastoral Carcerária em dezembro de 2000, aos 26 anos. Ele participou das atividades da entidade até 2014, quando passou a atuar como voluntário do grupo. Nesta entrevista ele apresenta as principais conclusões da pesquisa. CDDHC: A Pastoral Carcerária inspecionou oito dos 23 estabelecimentos prisionais privatizados no Brasil. A entidade recomendou aos seis Estados visitados que retomem a gestão das penitenciárias. Por que privatizar o sistema não é solução? José Jesus Filho: A lógica da privatização é a maximização dos lucros e redução dos custos. O que nós temos assistido nesse processo de privatização é a baixa qualidade dos serviços de custódia, o confinamento excessivo dos presos e a restrição a direitos. CDDHC: Um argumento muito forte em defesa da privatização é a redução dos custos para o Estado. Entretanto, no modelo de gestão privada o Estado continua arcando com o financiamento. O que a Pastoral observou no quesito financeiro? José Jesus Filho: Não há vantagens na privatização. As unidades privatizadas consomem mais recursos que as públicas. Na verdade, elas retiram os recursos que antes


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eram destinados às unidades públicas para um número menor de presos. A principal motivação para a privatização não tem sido a redução de custos, mas sim realizar uma espécie de burla à lei de responsabilidade fiscal. Com a privatização, as despesas do governo com custeio não aparecem. CDDHC: Há transparência na gestão dos desses contratos? José Jesus Filho: A ausência de transparência é a regra. É isso que tem garantido contratos ou prorrogação de contratos sem licitação e a permanência da mesma empresa numa unidade por longos anos. Ao longo da sua execução, os contratos sofrem múltiplos aditamentos, o que aumenta a despesa originalmente prevista. Muitas vezes temos acesso ao contrato, mas não temos acesso aos aditamentos. Outro problema é que o Ministério Público não tem atuado para dar transparência a esses contratos. Nem sequer instaura investigação para apurar a sua lisura. CDDHC: O senhor apontou que nos sistemas estaduais onde existem unidades privatizadas e públicas, estas acabam sendo prejudicadas porque a maior parte dos recursos acaba sendo destinada às penitenciárias privadas. Por que essa diferença na destinação do dinheiro? José Jesus Filho: Eu desconfio que há corrupção nesse esquema. Em um dos estados que visitamos, havia oito unidades prisionais. Apenas uma era privatizada e abrigava 10% dos presos. No entanto, essa unidade recebia 40% dos recursos destinados às unidades. Essa unidade era mantida como modelo, enquanto as demais estavam sendo sucateadas. CDDHC: A Pastoral apontou que sob a justificativa de manter a disciplina e evitar fugas, as empresas acabam violando direitos fundamentais dos presos. Que violações são essas? José Jesus Filho: As principais violações estão relacionadas às privações a que submetem os presos: proibição de leitura de jornais, de revistas, de assistir programação televisiva livre – quando assistem, são programas religiosos – restrição de tempo de recreio. As revistas são humilhantes e, alguns lugares, os presos são algemados nos pés e nas mãos quando das visitas de seus familiares. A imposição de restrições torna mais fácil para as empresas administrarem a prisão, de modo que tudo funciona segundo a conveniência da empresa. CDDHC: Como os trabalhadores das unidades privatizadas não são concursados, há grande rotatividade. Quais os impactos dessa situação? Há preocupação com treinamento? José Jesus Filho: Esses agentes atuam em situação absolutamente precária e sem treinamento. Isso está na lógica do confinamento operado pelas empresas. Quanto menor o contato com os presos, melhor. As prisões privatizadas acabam se tornando espaços da indiferença. Nas entrevistas que fiz com agentes de unidades privatizadas, eles não têm muita noção do que estão fazendo no local e é difícil iniciar até mesmo uma conversa sobre os seus próprios direitos, quanto mais sobre os direitos dos presos. CDDHC: Por que a gestão do sistema prisional não pode estar submetida à lógica empresarial, de busca do lucro?


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José Jesus Filho: Não é só o lucro. É também a lógica da preservação dos interesses da empresa em desfavor dos interesses dos presos. O confinamento passa a ser a regra porque isso reduz as chances de fuga, de rebelião e também reduz os custos. Não é necessário ter funcionários qualificados porque o contato com os presos é mínimo. As empresas sabem muito bem que a melhor maneira de administrar uma prisão é o confinamento máximo. CDDHC: O senhor acredita que a privatização das unidades prisionais leva a um lobby político para, por exemplo, endurecer o código penal ou pressionar juízes a condenarem os réus a penas mais duras? Ela pode agravar o problema da superlotação e por consequência as violações de Direitos Humanos? José Jesus Filho: Não há evidências disso no Brasil. Corrupção de juízes para manter jovens nas prisões privatizadas ocorreu nos EUA, mas é difícil dizer que isso ocorrerá no Brasil. O que tem ocorrido é que as empresas privatizadas se aproveitaram do encarceramento em massa, mas não podemos dizer, ainda, que elas o causaram. CDDHC: Os presos são majoritariamente homens, jovens, negros, moradores das favelas e periferias com baixa escolaridade. Em sua opinião, qual o papel político e social que os presídios exercem hoje e qual deveria ser o papel do sistema penal? José Jesus Filho: A prisão, ao lado das execuções sumárias, tem sido a principal resposta à violência. A prisão tem cumprido um papel de incapacitação desses jovens e é possível dizer que tem funcionado com a política habitacional dos governos estaduais. Construir presídios e enchê-los de jovens, sem qualquer assistência, é muito mais barato que investir em políticas sociais. Eu não creio que as alternativas penais sejam a solução, pois elas entram na mesma lógica repressiva. Eu creio que o investimento em políticas sociais: educação, saúde, renda mínima, cotas nas universidades e nos serviços públicos são a única via para superar o sistema penal. CDDHC: Numa sociedade de forte caráter racista, que confunde justiça com vingança, temos a sensação de que os presídios não estão em crise, mas funcionam muito bem. O senhor concorda com isso? José Jesus Filho: Eu concordo. Acho que é falsa a ideia da falência do sistema prisional. Nunca se apostou tanto nele como resposta aos problemas de desigualdade social e como mecanismo de segregação social. CDDHC: O que fazer para superarmos as graves violações de Direitos Humanos no sistema prisional? José Jesus Filho: Eu creio que a superação está no investimento em políticas sociais para redução das desigualdades. O enfrentamento à criminalidade de rua, furtos, roubos, pequeno tráfico, está mais relacionado aos ministérios e secretarias de desenvolvimento social e não ao sistema de justiça penal. Insisto em dizer que furto e roubo não é um problema criminal, é um problema social e seu enfrentamento deveria ser tirado das secretarias de segurança e passado à coordenação do ministério de desenvolvimento social. CDDHC: No Rio, cerca de 40% dos detentos ainda não foram julgados. Qual sua avaliação sobre o problema da grande quantidade de presos provisórios? José Jesus Filho: A situação dos presos provisórios, a maioria presa em flagrante,


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é uma evidência de que o sistema de justiça não funciona e de que a Polícia Militar alcançou a primazia na questão penal. Pessoas presas em flagrante são geralmente aqueles que praticam crimes patrimoniais e que mantêm permanente contato com policiais militares. Crimes do colarinho branco, que dependem de investigação e coordenação das instâncias repressoras, não são adequadamente processados e as polícias não estão preparadas para, e não querem, enfrentar esse tipo de crime. CDDHC: O senhor começou a atuar na Pastoral Carcerária e a visitar presídios no ano 2000. O que mudou desde então na realidade das unidades prisionais e nas políticas públicas para o setor? José Jesus Filho: Na época nós lutávamos contra a tortura, as prisões ilegais e o péssimo tratamento. Hoje nós lutamos contra o encarceramento em massa e a transformação da pena em negócio, com a privatização e as tornozeleiras eletrônicas. É triste, mas nem nós mesmos conseguimos individualizar a defesa dos direitos, de lutar contra a tortura ou o direito individual de cada preso, pois estamos dedicando nosso tempo a novos problemas, que são supra individuais e que nós não nos preparamos para enfrentar. CDDHC: As tornozeleiras eletrônicas têm sido a alternativa para o encarceramento. Qual a sua opinião sobre elas? José Jesus Filho: Elas são as novas prisões eletrônicas e estão servindo, não como alternativa à prisão, mas como alternativa à liberdade, ou seja, aquelas pessoas que antes recebiam liberdade provisórias ou simplesmente eram ignoradas pelo sistema de justiça, agora estão sendo submetidas a vigilância eletrônica. A expansão do sistema punitivo é algo assombroso e a existência de novas tecnologias tem permitido um novo espaço para o lucro.

5.5. O DIREITO A VISITAR E SER VISITADO – CARTEIRINHA O fortalecimento dos vínculos familiares e afetivos é fundamental para o processo de ressocialização da pessoa privada de liberdade. E a visita ao apenado é garantida como um direito previsto no artigo 41, X, da Lei de Execuções Penais. A constituição do Estado do Rio de Janeiro, no artigo 27, também garante o direito de visita dos presos. Além disso, é importante ressaltar que, a Constituição Federal no artigo 5º, XLV, CF, observa que a pena não deve extrapolar a pessoa do condenado. No entanto, a prática se revela diferente. Familiares dos presos recebem igual tratamento degradante durante a visitas, seja através da revista vexatória ou através da suspensão do fornecimento da “carteira de visita pessoa amiga”. A suspensão do documento de forma arbitrária pelos inspetores penitenciários, se configura como uma violação ao direito de visita do preso e a extensão da punição ao seu familiar, ferindo a Constituição. Para uma pessoa ter acesso e exercer o direito de visita junto ao sistema penitenciário é necessário possuir a "Carteira de Visitante". A emissão do documento se dá nos locais de credenciamento de visitantes ou com agendamento prévio, como indica site Seap. Ocorre que, durante o ano de 2015, a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj recebeu uma série de denúncias de violação ao direito à visita. No


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total, foram 33 denúncias registradas junto ao sistema da CDDHC. Na maior parte dos atendimentos, os casos se caracterizam pela suspensão da carteira de visitação com a justificativa de que seria publicada uma nova resolução, com outras regras para garantir a visita. Porém, essa suposta alteração não foi publicada pela Secretária de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro, o que demonstra um verdadeiro descaso ao direito do apenado e de seus familiares. Em um dos casos acompanhados pela CDDHC, a companheira de um interno, enquanto se encontrava na unidade após a visita, foi buscar um vidro de neosoro que havia deixado ao lado da lixeira do banheiro. Ao comentar com as outras mulheres da fila que haviam roubado o remédio dela, um agente que escutou a conversa ordenou que fosse recolhida a carteira de visitação dela. Ao se recusar a entregar o documento, o agente caracterizou a reação como desacato a autoridade. Após o ocorrido, a senhora do caso teve sua carteirinha cancelada pelo prazo de um ano. Essa história ilustra bem o fato de inspetores penitenciários se utilizar da suspensão do acesso à visita como recurso de punição. A ausência de regulamentação sobre a visita torna obscuro os procedimentos restritivos ao exercício do direito de familiares e presos. Esse fato demonstra uma opção política da gestão da Administração Penitenciária do Rio de Janeiro em dificultar o pleno direto à visitação. Diante do quadro crítico de violação de direitos dos internos e de suas famílias, foi organizado uma manifestação na porta do prédio da Central do Brasil, onde funciona a sede da Seap. Em razão do protesto, uma comissão de manifestante foi recebida pela direção da Secretaria que se comprometeu em normatizar o procedimento de emissão das carteiras de visitantes, através da Portaria 584, publicada em 23/10/2015. Todavia, a portaria não regulamentou a emissão de carteira para a pessoa amiga, que continua suspensa, sem previsão de alteração deste quadro.

A CDDHC TOMOU AS SEGUINTES MEDIDAS SOBRE OS CASOS EM QUESTÃO: 1. Atendimento e esclarecimento quanto ao fornecimento da Carteira de Visita da Seap. 2. Encaminhamento dos casos individuais referentes às carteiras de visitação para Coordenação da Secretaria de Administração Penitenciária, bem como junto ao Núcleo do Sistema Penitenciário e Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública. 3. Encaminhamento coletivo dos casos de suspensão da Carteira da pessoa amiga da Seap para o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura do Estado do Rio de Janeiro.

5.6.1. AGORA É LEI: FIM DA REVISTA ÍNTIMA VEXATÓRIA O resultado concreto da luta intransigente dos movimentos de direitos humanos e dos familiares das pessoas privadas de liberdade foi, em 26 de maio de 2015, a sanção


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da lei que põe fim à revista íntima vexatória no estado do Rio de Janeiro. De autoria de Marcelo Freixo, em conjunto com o então presidente da Alerj, a Lei Estadual 7010/2015 substitui a revista degradante pela mecânica – que já acontece em presídios federais e em São Paulo (estado com a maior população carcerária do Brasil) aeroportos, bancos e consulados. Realizada através de detectores de metal e scanners corporais, a revista mecânica, além de garantir a dignidade dos visitantes, é mais eficiente do que o procedimento manual. Qualquer objeto escondido no corpo é detectado pelo equipamento. O Conselho Nacional de Política Criminal Penitenciária editou, em 2014, uma resolução recomendando o fim da revista íntima em todos os presídios do país, mas isso ainda é uma realidade de pouco estados. A revista envolve o desnudamento parcial ou total, introdução de objetos nas cavidades corporais, uso de cães ou animais farejadores e a prática de agachamento ou saltos. Situações que submetem a dignidade humana e violam a integridade física, moral e psicológica, principalmente, das mulheres, mães e filhas dos apenados. “A família tem um papel decisivo no processo de ressocialização do detento. Não são poucos os familiares que deixam de visitar seus entes queridos porque não conseguem passar por aquela situação. É uma agressão absurda as pessoas ficarem nuas, se agacharem. Estou falando de pessoas de idade, jovens, crianças que se submetem a uma revista vexatória. A nova lei vai fazer com que a revista, antes precária e humilhante, tenha mais qualidade e seja até mais rigorosa, ao mesmo tempo em que garante a dignidade das pessoas”, afirmou Marcelo Freixo. A lei é válida tanto para o Sistema Penitenciário quanto para o Sistema Socioeducativo. Para dar viabilidade financeira à lei, no dia 21 de maio de 2015, a Alerj doou R$ 19 milhões ao Sistema Penitenciário para a compra de 33 scanners corporais para impedir a entrada de armas ou drogas nas prisões. Esta é uma vitória da sociedade civil, movimentos, entidades e dos familiares de presos – principalmente as mulheres, que se mobilizaram e nunca desistiram da luta pela dignidade humana. Não é natural que o Estado seja o violador de direitos, não se pode estender a pena à família das pessoas privadas de liberdade. Revista íntima vexatória, nunca mais.

5.7. SISTEMA SOCIOEDUCATIVO NO RIO DE JANEIRO O Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro gerido pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) enfrenta problemas semelhantes aos do Sistema Penitenciário. Seria inaceitável aventar algum nível de comparação entre duas instituições uma vez que teriam finalidades diferentes, a primeira socioeducativa e a segunda prisional. No entanto, além de se configurarem como sistemas de privação de liberdade em diferentes aspectos, sofrem com a superlotação e com as péssimas condições de assistência. O estado possui nove unidades que estão superlotadas – são 1.521 internos para 1.019 vagas. A capital dispõe de seis unidades e as demais encontram-se em cidades como Belford Roxo, Volta Redonda e Campos dos Goytacazes.


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Em média, todos os dias, 25 jovens foram encaminhados ao Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral, (CENSE-CGA), unidade responsável pela internação. A capacidade da unidade é de abrigar 64 jovens, mas convive com cerca de 250 internos. A superlotação é evidente. “Daqui a pouco eles vão virar morcego, vão ter que dormir em pé. A gente está no fio da navalha”, afirmou o diretor do Degase, Alexandre Azevedo, em audiência pública realizada, no dia 4 de novembro de 2015, pela Comissão de Direitos Humanos da Alerj. O sistema está à beira de um colapso por conta da demanda crescente. Em 2010, foram 2.806 jovens apreendidos; em 2014, 8.380; e em 2015, mais de 10 mil crianças e adolescentes. Essa realidade representa um aumento de 400% do encarceramento de adolescentes no Rio de Janeiro. Há uma óbvia opção pela política de reclusão, em vez da garantia de direitos.

5.7.1. JUVENTUDE PRIVADA DE LIBERDADE O crescente número de jovens apreendidos já havia sido denunciado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. O problema foi intensificado após o Rio de Janeiro ser escolhido para sediar grandes eventos, como o Rio+20, Jornada Mundial da Juventude, a Copa do Mundo e Jogos Olímpicos. Esse fato revela que, na prática, os megaeventos contribuem para a higienização do espaço urbano da cidade. Em conversas com servidores do Degase, verificou-se que, entre junho e julho de 2014, as audiências judiciais de adolescentes internados foram suspensas. Ou seja, jovens foram encarcerados antes mesmo do primeiro encontro com os juízes. Quando um adolescente é internado em uma unidade do sistema socioeducativo, um processo de exclusão anterior ao cometimento do ato infracional é consolidado. Um exemplo desse processo de negação da cidadania é que 95% dos adolescentes do sistema sequer completaram o ensino fundamental, e nenhum deles o Ensino Médio, segundo dados divulgados pelo próprio Degase. Cerca de 80% dos adolescentes que cometem atos infracionais têm entre 11 e 18 anos. A maioria dos jovens cumprem medidas socioeducativas devido ao crime de tráfico de drogas. Mais de 40% deles praticaram algum tipo de roubo ou furto, mas apenas 5% foram apreendidos com alguma arma letal. A lógica da cultura do encarceramento que mantém o funcionamento do sistema precisa ser invertida. O pressuposto deve ser a garantia de direitos e a promoção da cidadania dos jovens que já se encontram em situação de violações de direitos: à educação, acolhimento familiar, saúde, alimentação, moradia, entre outros. O ano de 2015 demandou esforços e articulações dos diferentes atores da garantia de direitos de crianças e adolescentes. Por isso, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca-RJ) conjuntamente com a Coordenadoria de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (Cdedica), além do Ministério Público (através do CAOP-Infância e Juventude), promoveram encontros com diferentes instituições e coletivos para debater os proble-


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mas e buscar soluções. No total, foram realizados 13 encontros com a participação de representantes do Sindicato dos Servidores do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (SindDegase), o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, o Conselho Regional de Serviço Social, o Conselho Regional de Psicologia, conselheiros tutelares, e a equipe técnica da CDDHC Alerj. A proposta inicial seria o enfrentamento à violência no Degase a partir das ocorrências de homicídios cometidos e sofridos por adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, incluindo casos de tortura e maus tratos praticados por servidores. No decorrer das reuniões, o grupo observou que a violência presente no cotidiano das unidades é consequência de diversos fatores que ultrapassam os limites de um olhar simplista da relação servidor e adolescente. Ampliou-se o debate em função das constatações identificadas, tais como: a) Aumento acentuado das apreensões de adolescentes provocando superlotações das unidades de internações e semiliberdades. b) Condições insalubres das unidades, constatando-se a precariedade dos serviços de manutenção. c) Dificuldade do poder executivo estadual em estabelecer com representantes do Executivo municipal diálogo para o atendimento das medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade, entre outros). d) Demora do Executivo estadual em aprovar o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo. Cabe ressaltar que o Cedca condiciona a aprovação vinculada à desativação do Educandário Santo Expedito, a partir de um planejamento envolvendo o Poder Executivo, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública. e) Alto índice de adolescentes oriundos de comarcas do interior e opção pela internação em detrimento das medidas em meio aberto.

5.7.2. AUDIÊNCIAS PÚBLICAS DA COMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS Diante das constatações já mencionadas e das péssimas condições de trabalho às quais os servidores do Degase são submetidos – eles não têm acesso a telefone, internet e treinamento adequado –, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj organizou duas audiências públicas sobre a situação do Degase em 2015. A primeira ocorreu, em 31 de março de 2015, com a participação do diretor geral, Alexandre Azevedo; o presidente do Sindicato dos agentes, João Luiz Rodrigues; e representantes da Defensoria Pública, do Ministério Público, do Tribunal de Justiça, do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente, do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, bem como de movimentos de familiares de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas.


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Os problemas tratados no encontro se materializam em diversas denúncias de violações. São elas: torturas, espancamentos, falta de acesso à educação, saúde e convívio familiar, e superlotação. Problemas que acarretam rebeliões em função da indignação dos internos. Em 24 de março, houve uma rebelião no Educandário Santo Expedito, em Bangu. A unidade abrigava 310 jovens, apesar de ter capacidade para apenas 90. Em setembro de 2014, ocorreu o mesmo na unidade de Volta Redonda, onde 160 adolescentes viviam em um local onde cabem 90. O Titular da Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas de Família, Infância e Juventude e Idoso, à época, o desembargador Siro Darlan, destacou que membros do Poder Judiciário eram os responsáveis pelo encarceramento excessivo de adolescentes, medida que deveria ser uma exceção. Parte das prisões de adolescentes realizadas pelo Estado ocorre de forma arbitrária e ilegal. “A privação de liberdade é excepcional, deve ser provisória. Mas a quantidade de jovens que estão ingressando em unidades socioeducativas demonstra como a situação análoga ao tráfico de drogas tem servido como justificativa para o encarceramento, ainda que não haja ameaça à vida”, denuncia Eufrásia Maria Souza das Virgens, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública (Cdedica). Desta forma, foi acordado nos encontros que todas as instituições presentes empenhariam seus esforços para o enfrentamento à superlotação, buscando diálogo com as Promotorias e Varas da Infância e da Juventude do interior do estado com vistas à efetivação das medidas socioeducativas de meio aberto. Uma alternativa ao encarceramento excessivo observado nas comarcas do interior do estado. Em 4 de novembro foi realizada a segunda audiência da CDDHC Alerj para debater a superlotação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) a partir da aplicação excessiva da medida socioeducativa da internação no Estado do Rio de Janeiro. “A superlotação nas unidades do Degase passa a impressão de que é natural e inevitável, mas não é. Isso é uma questão humana e é política. Temos que garantir a audiência de custódia que não é uma prerrogativa que serve somente para o sistema penal, pode ser usada no Degase. Sinceramente o que ocorre ali é cárcere. Ficamos nos policiando na hora de utilizar as palavras e, por isso, usamos uma série de palavras politicamente corretas. Mas mentimos para nós mesmos. Quando falamos que são unidades socioeducativas, mentimos. Criamos um subterfúgio teórico e gramatical que é enganoso. É cárcere – e dos piores”, afirmou Marcelo Freixo. Segundo relatório apresentado pelo Degase, dos 7.815 internos atualmente, apenas 4 concluíram o ensino médio. A baixa escolaridade dos adolescentes traz conse­ quên­cias, inclusive, na oferta de cursos profissionalizantes da Faetec, mesmo com o rebaixamento do nível de pré-requisitos para parte dos cursos. Há um conflito entre o sistema de módulos da Secretária de Educação Estadual disponibilizada para os jovens e o modelo seriado do sistema de ensino municipal. Diversos adolescentes saíram das unidades sem a declaração indicativa da série na escola de ensino fun-


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damental e médio que devem cursar. Além disso, há uma má infraestrutura nas unidades de regime semiaberto e gargalos burocráticos de políticas públicas voltadas aos adolescentes, dentre elas, o oferecimento do bilhete do Rio Card, além de número reduzido de agentes. A partir da realização dessas duas audiências, cabe ressaltar que foram levantadas as seguintes propostas: • Projeto de Lei que concede incentivos fiscais aos Municípios que aceitem sediar Unidades de Internação. Esta medida atenderá ao Estatuto da Criança e do Adolescente e ao SINASE que exigem o cumprimento da medida socioeducativa próximo aos familiares e comunidade de origem. • Indicação Legislativa propondo envio de Plano de Cargos Carreiras e Salários dos servidores do Degase pelo Poder Executivo. • Implantação do Dossiê Criança pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) com informações de ocorrências envolvendo crianças e adolescentes.

5.7.3. O RETROCESSO DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL No ano em que se deveria comemorar o jubileu de prata do Estatuto da Criança e do Adolescente, 25 anos de existência, uma onda conservadora no Brasil culminou na aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. A PEC ainda precisa da aprovação do Senado para ser promulgada. Pela proposta aprovada, em casos de crimes de homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e crimes hediondos, como o estupro, os jovens de 16 e 17 anos terão que cumprir a pena em estabelecimento penal separado dos menores de 16 e maiores de 18. Após completar 18 anos, eles irão para presídios comuns. A PEC da Maioridade Penal foi aprovada sob protestos de deputados contrários à mudança constitucional, visto que o texto foi alterado após ser rejeitado pelo plenário no dia anterior. Porém, após uma manobra regimental do presidente do Congresso, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o tema foi posto em nova votação e acabou aprovado. Diversos manifestantes e ativistas de defesa dos direitos humanos contrários à redução da maioridade penal foram impedidos de ocupar o plenário e as galerias do Congresso para acompanhar a votação. A resistência à PEC iniciou-se de forma criativa no Rio de Janeiro. O “Amanhecer contra a redução” surgiu como um movimento espontâneo da juventude carioca que travou uma campanha acirrada contra a redução da maioridade. O “Amanhecer” contagiou os jovens de diversos estados brasileiros que realizaram ações simultâneas de ocupação dos espaços públicos da cidade com diversas imagens simbólicas do universo juvenil. Muitas pipas coloridas enfeitaram as redes sociais, praças, ruas e o céu do Brasil com as mensagens “Voa, juventude”, “Mais escola, menos cadeia”,


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“Redução não é solução”, entre outras. Inspirada na campanha “No a la baja”, que impediu a redução da idade penal no Uruguai, a ação contou com a participação da sociedade civil, movimentos sociais e organizações que lutam pela deslegitimação da aprovação da PEC da redução da maioridade penal. Tornar todas as crianças e adolescentes deste país sujeitos de direitos nunca foi admitido por setores conservadores brasileiros. “O Estatuto é uma lei muito avançada para a sociedade brasileira”, argumentavam seus opositores, ainda quando se construíam as propostas que levariam à regulamentação do artigo 227 da Constituição Federal, que daria origem à Lei 8069 de 1990 que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca). Adolescentes são, comprovadamente, mais vítimas do que autores de atos violentos: 36,5% são vítimas de homicídios e menos de 0,01% são acusados de homicídios, como aponta o Mapa da Violência 2006/2012. Nas unidades do Degase destinadas à internação e acolhimento provisório, quatro adolescentes foram assassinados em 2015. Cabe registrar que todos tinham menos de 16 anos, cumpriam a primeira internação, e compartilhavam celas com adolescentes acusados de homicídios e já haviam completado 18 anos. Tais fatos contrariam o estabelecido no Eca no que se refere à separação por faixa etária, compleição física e gravidade do ato infracional. É importante ressaltar a necessidade da implementação, pelos municípios, do atendimento em meio aberto através dos Centros de Referencias de Assistência Social. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Lei 12.594/2012) estimula, no seu artigo VI, a execução das medidas em meio aberto. As medidas de prestações de serviços à comunidade e de liberdade assistida, previstas no Estatuto, deveriam ser executadas pelos municípios com o objetivo de prevenir a aplicação das medidas privativas de liberdade.


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5.8. ENTREVISTA: RAPHAEL CALAZANS

“Temos na verdade a própria militarização dos direitos humanos”

Raphael Calazans critica a redução da maioridade penal porque acredita que há uma contradição por essência no Estado uma vez que só garante o acesso à alimentação, saúde e educação ao jovem quando este perde a sua liberdade

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aphael Calazans é jovem, negro, morador de favela e universitário. Estuda Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas também é agente educador do Degase há três anos. Aprendeu que a função do agente é ser o principal ator da ressocialização de crianças e jovens em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas. Porém, na prática, convive e faz parte de um sistema que viola os direitos humanos de adolescentes e servidores públicos, com baixa qualidade de assistência aos direitos fundamentais. CDDHC: Qual é a função do agente socioeducativo? Calazans: Pelo que preconiza a lei, a gente é o trabalhador de ponta no processo em que o Departamento é desafiado a fazer o trabalho de ressocializar. Cabe ao agente as atividades como o transporte do adolescente, a escolta, o zelo pela integridade física e pela alimentação. Ele é o profissional que está no contato direto, ligando o objeto fim da instituição, que é o adolescente em conflito com a lei, e à função, do ponto de vista do ideal, que preconiza o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Senasi). Ele é um dos atores mais importante dentro do processo de ressocialização. Acontece que o próprio atendimento atribuído a ele tem limitações. O Degase é bastante complexo e essas limitações e contradições aparecem no dia a dia na relação do agente com o adolescente, e vice-versa. O agente é um fator estratégico fundamental, pois é ele quem carrega o piano, é o ator principal do sistema. CDDHC: Os agentes socioeducativos têm um plano de cargos e salários? Em que condições os direitos dos agentes são garantidos? Calazans: A categoria tem se mobilizado mais recentemente. O plano de cargos e salários é uma bandeira histórica que estava congelada há muito tempo e agora voltou. A ideia é ter um plano que, de quatro em quatro anos, o funcionário progrida fazendo


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curso de capacitação. Porém, o que pesa no dia a dia e o que a categoria mais reivindica são condições para sua existência, de trabalho adequado. Não adianta colocar três agentes para disputar com 200 adolescentes. A categoria reivindica melhorias salariais porque são legítimas e necessárias, os salários estão defasados. Mas são por condições de trabalho que passam pela questão da preservação da vida do agente e também dos adolescentes. Cada vez mais há servidores com afastamento na psiquiatria. Se há trabalhadores adoecidos, como eles vão ressocializar os jovens? Atualmente, o Degase não serve sequer para as pessoas que trabalham nele. CDDHC: A mediação entre o agente e os adolescentes passa por essa relação tensa? Calazans: A questão do ódio, de manter o controle e a ordem ali vai virando um caldeirão que ferve em algum momento. Imagine um moleque que a vida toda teve a sua mediação com o mundo a partir da violência. Ele só passa a existir socialmente, ser visibilizado, a partir do ato de violência. Quando o agente coloca isso como um desafio para o Degase, que tem a missão de ressocializar, percebe que está à frente dessa realidade para transformá-la. É preciso perceber que esse adolescente é um sujeito de direitos, como ter acesso à escola, saúde, de ser gente, de ser humano. Quando há essa consciência, isso cria um cenário desesperador de condição de vida para aquele adolescente e para o agente. Mas a superlotação e as condições insalubres, aliadas aos péssimos salários e condições de trabalho do agente, fazem com que tudo de errado seja contínuo no Degase. CDDHC: Há uma militarização do Degase com velhas práticas de violações? Calazans: Bom, o diretor do Degase é um policial militar. Acho que isso é uma contradição. Um órgão que está na educação ter como diretor geral um policial militar. Da mesma forma que os muros são altos e tem viatura específica. A militarização perpassa o Degase, porque está em tudo na vida, é a política segurança do Rio de Janeiro. Uma cidade que tem um investimento pesado em segurança pública, como a compra de equipamentos como o Caveirão, fortalece os aparelhos repressivos do Estado. A cidade responde à questão social com mais polícia. As políticas públicas passa pelo aval da Segurança e esse é o grande nó. Temos, na verdade, a própria militarização dos direitos humanos. CDDHC: Como os Direitos Humanos estão militarizados? Calazans: Se observar, por exemplo, o direito de manifestação cultural, que é um direito humano, está militarizado porque é a polícia quem decide se o seu evento pode ou não acontecer dentro da favela. É preciso pedir permissão à polícia. No Complexo do Alemão temos o Centro de Referência e Assistência Social (Cras) ao lado de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Há na prática uma tensão, o acesso das pessoas a essa localidade é dificultado por causa da UPP naquele espaço. Ou seja, o Degase está militarizado porque a política pública do Rio de Janeiro é militarizada. Ao abrir o jornal e comparar o orçamento do Estado destinado à Segurança Pública em relação às verbas destinadas para o setor da Saúde ou Educação, perceberá uma enorme diferença. A verba para segurança pública é bem maior. Está claro qual é a política pública do Rio.


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CDDHC: Como você vê a redução da maioridade penal? Calazans: Se eu fosse pensar no meu umbigo, diria que seria ótimo, porque Degase ficaria vazio, já que os jovens seriam mandados direto para o Sistema Prisional. Os meninos estariam enquadrados na maioridade penal e eu trabalharia no plantão com meia dúzia de adolescentes. Só que é mais complexa a questão do ato infracional. Os moleques que chegam ao Degase se cobram, se xingam e se matam porque desde que nasceram viram isso dentro das casas deles e foram tratados assim. A mãe com dependência química, o pai que não existe, a avó que era velha e diabética é quem saía da cama para sustentar mais de sete bocas em casa. O moleque cai na rua e é porrada. Ele aprende na porrada a roubar e matar, a se drogar, e a sociedade responde tudo isso com o encarceramento. É necessário encarcerar o cara para dar acesso aos direitos? É isso que o Estado faz, porque é isso que o Degase faz. Pega o menino e coloca dentro de uma instituição fechada para que tenha acesso à saúde, alimentação e educação. Uma enorme contradição. Ou seja: por que esse moleque não está aqui fora tendo esse acesso, usando os direitos, as políticas públicas sociais? Porque está tudo militarizado. CDDHC: Quer dizer que há um ciclo de violações? Calazans: A maioria das crianças e adolescentes atendidos pelo Degase e centros são seres institucionalizados. Vão para o abrigo, depois para o Degase e depois para o Seap, isso, se não morrer no meio do caminho. Essa é a trajetória de grande parte deles. Então, o problema não está no acesso à política pública, mas em que tipo de política pública se destina a essas pessoas. Não é um problema de assistência do Estado, mas a qualidade desse serviço. É sintomático o Degase está superlotado com um número de reincidência enorme de um público que está desde o início sendo assistido pelo Estado. O garoto desde pequeno só vai comer direito no Degase, porque ele não come na rua ou em casa. A vida dele é Degase e rua, rua e Degase, porque o limite da assistência prestada pelo Estado é que ele conclua a sua jornada fúnebre de abrigo, Degase e Seap, e se nesse meio do caminho ele não morrer, vai ser rechaçado socialmente. O Estado cria seu monstro para ele próprio matar no fim. No próximo item, a nossa conclusão versará sobre o processo histórico e social que justifica a criação, no âmbito da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, da “Subcomissão da Verdade nos Tempos de Democracia Mães de Acari”.



6. Conclusão Subcomissão da Verdade dos Tempos da Democracia: Mães de Acari

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m dezembro de 2014, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj foi procurada pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos no intuito de iniciar um processo de construção de uma nova etapa da Justiça de Transição no Brasil. A ideia é, para além das revelações das atrocidades praticadas pelo Estado brasileiro no período da ditadura civil militar, aprofundar os estudos sobre a violência de Estado no período pós Constituição de 1988. Busca-se revelar a permanência autoritária do Estado brasileiro relacionando-as com as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes deste Estado. De maneira geral, os desfechos das ditaduras militares na América Latina, em meados da década de 1980, têm em comum o fim do milagre econômico, o aumento das desigualdades sociais, a desvalorização das moedas nacionais e a crise econômica proveniente do crash do final da década de 1970. Tal conjuntura permitiu que, apesar da grande e violenta repressão e do consequente esfacelamento das organizações de esquerda, a população voltasse às ruas exigindo o retorno dos direitos políticos e a garantia dos direitos sociais. Apesar disso, em regra, o continente latino-americano foi marcado por uma transição conduzida pelos próprios militares, que impuseram leis de autoanistia como condição sine qua non para o restabelecimento do Estado Democrático. Esse panorama sofre uma reviravolta a partir da ratificação do Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana de Direitos Humanos, nos anos de 1980, com o consequente reconhecimento da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do tratamento do crime de tortura como de lesa-humanidade, portanto imprescritível e inafiançável. É de suma importância destacar as condenações sofridas pelos Estados latino-americanos em razão da omissão em apurar, processar e punir os crimes cometidos nos períodos ditatoriais em processos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, forçando a adequação do direito nacional à Convenção. Desta forma, a tendência observada no continente foi de instauração de uma Justiça de Transição tardia, proporcionando um reencontro com o passado, garantindo os direitos à verdade, à memória, reescrevendo a recente história latino-americana e fortalecendo o Estado Democrático de Direito.


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Flávia Piovesan (2010, p. 104) constata que a experiência de transição brasileira é um processo aberto e incompleto. Até 2010 apenas o direito à reparação foi contemplado, nos termos da Lei 9140/95, que estabelece o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos no regime militar. Ainda há diversos arquivos mantidos em sigilo e as instituições não foram reestruturadas forma a adequá-las à ordem democrática. Para a Piovesan, o direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva, traduzindo o anseio civilizatório do conhecimento dos graves fatos históricos atentatórios aos direitos humanos. O resgate histórico teria como propósito assegurar o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição das práticas negadoras de direitos. É dever do Estado assegurar o direito à verdade em prol do direito da vítima e de seus familiares – garantindo o direito ao luto – e em prol do direito da sociedade à construção da memória e identidade coletivas. É importante ressaltar a atualidade da discussão acerca da garantia do direito à memória, não podendo ser compreendida como uma luta do passado, pelo passado, mas como uma demanda atual sobre fatos que ocorreram no passado, estendendo seus efeitos até o presente e, quiçá, ao futuro. Compreender que espécie de violações foi praticada pelo Estado no passado subsidia o questionamento acerca da atual política de Segurança Pública, que continua matando, torturando e forjando flagrantes e resistências às prisões. A garantia do direito à memória e à verdade caracteriza-se, portanto, como uma tentativa de conclusão do processo de redemocratização do Brasil, respondendo aos questionamentos concernentes à restituição da verdade jurídica e solucionando as circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos frutos do período ditatorial. Diante deste contexto, o que hoje se coloca como grande questão a ser respondida pelos movimentos sociais que discutem a violência de estado contemporânea é: passados quase 27 anos da conclusão dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, e reconhecendo que este processo foi conduzido pelas elites política e econômica que deram sustentação ao regime ditatorial, como podemos nos contentar apenas com a revelação das violações de direitos humanos anteriores à Constituição de 1988 se a tortura, execuções, desaparecimentos forçados e criminalização da luta social ainda encontram-se presentes e não são devidamente esclarecidos na atualidade brasileira? Para melhor compreendermos a questão acima, podemos citar, a título de exemplo, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade que recomendou ao Estado brasileiro a desmilitarização das instituições policiais. Segundo a CNV, a existência de polícias militarizadas contribui para propagação de violências no presente, perpetuando práticas autoritárias de agentes estatais. Estudos recentes sobre o período da ditadura militar revelaram inúmeras características do funcionamento do Estado naquele momento que, em muito, se assemelham a esta estrutura policial criticada pelos movimentos sociais. Tais semelhanças tor-


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naram-se mais evidentes com a repercussão dos trabalhos das diversas comissões da verdade (nacional, estaduais, entre outras) que se criaram nos últimos anos em todo o Brasil. Neste sentido, reconhecida a herança autoritária presente no modelo de Segurança Pública praticado no período democrático, faz-se necessária a reforma de todo este modelo, a começar pela estrutura militarizada, sem deixarmos que esta bandeira torne superficial a compreensão das consequências que este modelo hoje apresenta. Em outras palavras: é visível que o Brasil, no que tange à justiça de transição, conseguiu avançar sensivelmente nos eixos reparação, memória e verdade, mas é evidente que deixamos a desejar no que diz respeito à justiça e reformas institucionais. E é neste último eixo que pretendemos nos aprofundar ao longo dos próximos três anos. O discurso oficial de término da ditadura e redemocratização integral do Estado brasileiro ao longo da década de 80, culminando na promulgação da Constituição em 1988, mascara o legado autoritário que nos acompanha. Poucas foram as medidas posteriores à Constituição Federal de 1988 que enfrentaram tal legado. Faltou compreender que uma sociedade democrática não se faz apenas com eleições periódicas, mas também com participação direta e controle social das instituições de segurança. Uma breve e superficial comparação entre os dados da segurança pública no pós 1988 com os do período ditatorial revela uma semelhança assustadora nas práticas de tortura, extermínio e desaparecimento sistemático de corpos. Michel Misse1 apontou que, de 2001 a 2011, a polícia do Rio de Janeiro matou mais de 10 mil pessoas, número superior a qualquer outra instituição policial no mundo e maior que aqueles observados sob a égide do regime militar. Batemos recordes também no quesito desaparecimentos: segundo o Instituto de Segurança Pública, o Rio registra cerca de 6 mil desaparecimentos por ano. Sem contar a tortura, praticada diuturnamente pela polícia ou agentes dos sistemas prisional ou socioeducativo, ou as chamadas milícias, que em muito se assemelham com os grupos de extermínio que atuavam já nos anos 80, revelando-se uma expressão moderna de outro processo que tem início ainda nos anos de chumbo. Desta forma, a sistematicidade da violência de Estado contra, principalmente, a população pobre e negra evidencia que, passados quase 27 anos da redemocratização do Estado brasileiro, o legado da ditadura permanece nas estruturas policiais e militares, e nas políticas criminais. Está claro que, para determinados segmentos sociais, o estado de exceção nunca deixou de existir, permitindo que se afirme haver em curso processos muito bem estruturados de repressão e criminalização da pobreza em pleno regime democrático. Em razão do decurso de tempo desde o término da ditadura militar e as inúmeras violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado desde então e que não foram esclarecidas, acreditamos que o eixo reformas institucionais da justiça de transição só poderá ser de fato atendido caso haja um esforço do Estado em apurar e responsabilizar aqueles que perpetuaram as práticas autoritárias. Uma vez que se es-

1. “Desaparecidos da Democracia”. Disponível em <http://of.org.br/noticiasanalises/10-mil-mortes-em-10anos/>


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tabeleça os vínculos entre o atual modelo de segurança pública militarizada e aquele dos anos de chumbo, se poderá promover transformações efetivas nas políticas criminais levadas a cabo pelo Estado brasileiro. Neste sentido, em agosto de 2015, criou-se, no âmbito da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, a Subcomissão da Verdade dos Tempos da Democracia Mães de Acari, em homenagem àquelas mulheres que transformaram o luto da perda e do desaparecimento de seus filhos em uma luta de vida. As Mães de Acari se tornaram exemplo para que vários familiares de vítimas do Estado brasileiro da década de 1990 em diante se organizassem e rompessem o silêncio quanto às graves violações de direitos humanos. Violações estas que continuam a ser praticadas pelas agências estatais, especialmente nas favelas, contra a população negra e pobre. O trabalho a ser desenvolvido pela Subcomissão da Verdade dos Tempos da Democracia Mães de Acari buscará revelar como esta estrutura estatal contribui para a perpetuação das violações de direitos humanos. Busca-se, a partir destas conclusões, elaborar recomendações que efetivem as necessárias reformas institucionais que permitam enfrentar, efetivamente, os crimes de Estado praticados na contemporaneidade.


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