Samba no pé e na vida: carnaval e ginga de passistas da escola de samba “Est. Primeira de Mangueira"

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFRJ

SAMBA NO PÉ E NA VIDA: CARNAVAL E GINGA DE PASSISTAS DA ESCOLA DE SAMBA “ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA”

SIMONE SAYURI TAKAHASHI TOJI

2006


UFRJ

Samba no pé e na vida: carnaval e ginga de passistas da Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira”

Simone Sayuri Takahashi Toji

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) Orientadora: Maria Laura Cavalcanti

Rio de Janeiro Maio de 2006


Samba no pé e na vida: carnaval e ginga de passistas da Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira” Simone Sayuri Takahashi Toji

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Aprovada por:

____________________________________ Presidente, Profª. Drª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti – IFCS/UFRJ

____________________________________ Prof. Dr. Gilberto Velho – Museu Nacional/UFRJ

____________________________________ Profª. Drª. Elsje Lagrou – IFCS/UFRJ

Rio de Janeiro Maio de 2006


Toji, Simone Sayuri Takahashi Samba no pé e na vida: carnaval e ginga de passistas da Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira” / Simone Sayuri Takahashi Toji - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2006. Viii, 115f: il. ; 29,7 cm. Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2006. Referências Bibliográficas: 1. Carnaval. 2. Passistas. 3. Escola de Samba. 4. Samba no pé. 5. Performance. I. Toji, Simone Sayuri Takahashi. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. III. Samba no pé e na vida: carnaval e ginga de passistas da Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira”.


Resumo SAMBA NO PÉ E NA VIDA: CARNAVAL E GINGA DE PASSISTAS DA ESCOLA DE SAMBA “ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA” Simone Sayuri Takahashi Toji Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

A investigação baseia-se em trabalho de campo realizado entre os anos de 2004 e 2005 junto a passistas da escola de samba “Estação Primeira de Mangueira”, na cidade do Rio de Janeiro. Examinando o surgimento da posição do passista dentro das agremiações carnavalescas e sua conseqüentemente transformação em carreira dentro do mundo do samba, o “samba no pé”, isto é, o conjunto gestual realizado por esses atores, é tomado como condutor da discussão. A partir da perspectiva das teorias sobre os ritos e da noção de performance, consideramos que o carnaval, os desfiles das escolas de samba, assim como o sambar dos passistas, são eventos de caráter múltiplo e polissêmico, que, ao criar essa sobrecarga de sentidos, intentam por estabelecer um campo de relacionamento entre os participantes, mais que estabelecer a compreensão entre eles, durante os festejos carnavalescos.

Palavras-chaves: carnaval, escola de samba, samba no pé, passista, performance. Rio de Janeiro Maio de 2006


Abstract SAMBA NO PÉ: CARNIVAL AND PERFORMANCE OF PASSISTAS FROM SAMBA SCHOOL “ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA” Simone Sayuri Takahashi Toji Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). The present piece of research results from a fieldwork developed in 2004 and 2005 from a close approach of the passistas of the samba school “Estação Primeira de Mangueira”, located in the city of Rio de Janeiro. Investigating the arisal of passista as a social position in the carnival groups and its consequent transformation as a carreer in samba domain, “samba no pé”, in other words, the gestual composition performed by them, is taken as guideline of the discussion. From the perspective of ritual theories and the notion of performance, we consider carnival, the samba school parades as well the way passistas do the samba as multiple and polissemic events which bring an overload of meanings. That profusion of meanings creates an interaction field between the participants during the carnival celebration rather than the purpose of understanding.

Key-words: carnival, samba school, samba no pé, passistas, performance.

Rio de Janeiro May - 2006


A meus pais E ao carnaval que me trouxe F.


Agradecimentos

Durante o período de realização dos estudos para o mestrado no Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) contei com bolsa de estudos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no primeiro ano de conclusão de créditos das disciplinas. Em seguida, foi-me concedida bolsa pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), que possibilitou a elaboração deste trabalho no ano seguinte de 2005. Agradeço o convívio, o diálogo e a contribuição dos professores do Programa de Pós-Graduação como Maria Laura Cavalcanti, Marco Antônio Gonçalves, Elsje Lagrou, Emerson Giumbelli, André Botelho, Beatriz Heredia e Regina Morel, dos quais aulas, palpites e questionamentos estão de alguma forma espalhados por toda esta investigação. Aos companheiros de descobertas e aflições acadêmicas, meus estimados amigos e colegas como Salvador Schavelson, Julia Polessa, Diego Araoz, Paulo Clemente, Milene Mizrahi, Ana Gabriela Dickstein, Luzimar Pereira, Daniel Silva, Marcos Aquino, Renato Redenschi, Vivian Paes, Samantha Brasil, André Demarchi que me apresentaram e viveram comigo cenas, experiências, constrangimentos e surpresas dessa cidade do Rio de Janeiro. Também sou grata às funcionárias da secretaria, Claudinha e Denise, que na medida do possível me auxiliaram nos trâmites necessários para cumprir os compromissos discentes dentro do programa. Um especial agradecimento à minha orientadora, Maria Laura Cavalcanti, que, com paciência e zelo, me acompanhou nesse trabalho desde o período de devaneios confusos até o empreendimento final aqui concretizado. Tenho profunda gratidão à paciência e respeito de meus pais e de meu irmão. Ao meu amigo César Augusto devo as nossas sempre estimulantes conversas. Ainda em São Paulo, quero deixar registrado aqui a dívida que este trabalho tem com Rosemaire de Almeida, a minha simplesmente Maire, amiga que se aventurou comigo durante o


“trabalho de campo” em pleno carnaval carioca de 2005. Sua companhia, observações e amizade ficam aqui incorporadas. Por último, mas com grande intensidade, quero agradecer os integrantes da “Estação Primeira de Mangueira” que participaram desse empreendimento acadêmico, mesmo sem entender direito onde tudo ia dar. À D. Chininha, reverencio sua gerência matrona na administração da escola de samba, que me abriu os caminhos para transitar por alguns espaços da agremiação. À Beth, coordenadora das atividades chamadas socioeducativas, que suportou minha insistente presença durante as aulas de passista promovidas dentro da quadra da escola, um voto de reconhecimento. Às alunas do curso de passista de 2004, brindo nossa convivência e tenho saudades daquelas tardes. Ao Saulo e à Adriana, um muitíssimo obrigado por fornecerem os contatos dos diversos integrantes que precisei procurar. Um agradecimento póstumo à Robson, que contribuiu com sua presença e depoimento como representante da ala da Bateria. E claro, os mais exaltados e devotos reconhecimentos aos passistas José Carlos, Celso, Índio, Matheus, Amanda, Patrícia, que junto comigo também são autores desse trabalho, fornecendo generosamente seu suor, emoções e histórias de vida. Porque sei que o anonimato não lhes interessa, agradeço publicamente suas contribuições e deixo, ao longo do trabalho, identificados abertamente seus relatos. A vocês, passistas, espero não tê-los decepcionados, pois mesmo que uma dissertação de mestrado não lhes dê a tão almejada popularidade, pelo menos fica registrada a nossa convivência.


Índice de quadros

Quadro 1 – Posição dos passistas dentro do sistema organizacional da Escola de Samba de “Mangueira”..........................................................................................................................18 Quadro 2 – Modelo de sucessão de alas num desfile de escola de samba............................19 Quadro 3 – Modelo de quadra da escola e posições durante o cortejo de Ensaio da Bateria...................................................................................................................................57 Quadro 4 – Posições espaciais da apresentação do Grupo-Show.........................................61 Quadro 5 – Posições dos componentes no ensaio preparativo para o desfile de carnaval....63 Quadro 6 – Relação dos eventos...........................................................................................65


Índice de figuras

Figura 1 – passista feminina sambando................................................................................75 Figura 2 – passista feminina com indumentária...................................................................91 Figura 3 – passista masculino com indumentária.................................................................91


Sumário 1. Introdução...........................................................................................................................Err o! Indicador não definido. 2. Lá vem o passista................................................................................................................Erro! Indicador não definido. 2.1 - O Carnaval e o passista dentro do desfile da escola de samba.. Erro! Indicador não definido. 2. 2 - A “Estação Primeira de Mangueira” – tradição e samba ......... Erro! Indicador não definido. 2.3 - O passista dentro da Escola de Samba de “Mangueira”............ Erro! Indicador não definido. 3. Ser e estar em campo.........................................................................................................Erro! Indicador não definido. 3.1 - Caleidoscópio de ser e estar ...................................... Erro! Indicador não definido. 4. Histórias e trajetórias.........................................................................................................Erro! Indicador não definido. 4.1 – A retórica da perda ................................................... Erro! Indicador não definido. 4.2 – Carreira de passista................................................... Erro! Indicador não definido. 4.2.1. Tornar-se passista ................................................ Erro! Indicador não definido. 4.2.2. Vocação, dom e samba ........................................ Erro! Indicador não definido. 4.2.3 – Esplendor e cinzas ............................................. Erro! Indicador não definido. 5. No movimento do samba..................................................................................................Erro! Indicador não definido. 5.1 – Primeiras lições – dança versus samba..................... Erro! Indicador não definido. 5.2 - Carnaval o ano inteiro ............................................... Erro! Indicador não definido. 5.2.1. Um Ensaio da Bateria .......................................... Erro! Indicador não definido. 5.2.2. Uma apresentação do Grupo-show – as “saídas” Erro! Indicador não definido. 5.2.3. Um Ensaio de rua ................................................ Erro! Indicador não definido. 5.2.4. Rumo à festa carnavalesca................................... Erro! Indicador não definido. 5.3 – A performance carnavalesca do passista .................. Erro! Indicador não definido. 5.3.1. Performance é multiplicidade.............................. Erro! Indicador não definido. 5.3.2. A dimensão posicional da performance do passista ............ Erro! Indicador não definido. 5.3.3. A dimensão emotiva ............................................ Erro! Indicador não definido.


5.3.4. A dimensão teatral ............................................... Erro! Indicador não definido. 5.3.5. Profusão de sentidos e enquadramento................ Erro! Indicador não definido. 5.3.6. A performance no samba como mediação de relacionamentos...Erro! Indicador não definido. 5.4. Uma canção como teste .............................................. Erro! Indicador não definido. 6. Considerações Finais.........................................................................................................Erro! Indicador não definido. Apêndice: Brasilidade do gesto...........................................................................................Erro! Indicador não definido. Bibliografia de referência....................................................................................................Erro! Indicador não definido.


“Eu não vim pra explicar, vim pra confundir.” (Abelardo Barbosa, mais conhecido como Chacrinha)

“Tô te explicando Prá te confundir Tô te confundindo Prá te esclarecer Tô iluminando Prá poder cegar Tô ficando cego Prá poder guiar (...) Com alegria prá poder chorar” (“Tô”, Elton Medeiros e Tom Zé em Estudando o Samba)


1. Introdução Sim, elas rebolam e desbundam no requebrado. Sim, eles embaralham as pernas e surpreendem nas acrobacias. Nos atuais desfiles do carnaval carioca, tem gente que os aguarda com ansiedade e reverência, e tem gente que nem os percebe passar na avenida. Os passistas das escolas de samba são esses foliões que brincam o carnaval de modo muito próprio, por meio do encantamento gestual do sambar. Encarregados de potencializar os significados do samba em seus corpos enquanto a agremiação carnavalesca atravessa a avenida Marquês de Sapucaí, os passistas são ao mesmo tempo mágicos ou invisíveis, estrelas ou coadjuvantes. Depende de quem os assiste. A investigação a seguir tem como centro a presença desses passistas de escola de samba.O Grêmio Recreativo e Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira” foi a organização escolhida para realização da pesquisa. Foi por meio da convivência e das conversas travadas com alguns de seus componentes que se chegou a uma noção do que significa o “samba no pé” dentro da festa carnavalesca. A despeito de algumas formulações do senso comum que apresentam o sambar como habilidade inerente de pessoas de cor ou moradores dos “morros” da cidade do Rio de Janeiro, as revelações trazidas por passistas e outros integrantes da agremiação carnavalesca escolhida vieram contradizer essas pré-noções. Mostram que a escola de samba e o samba no pé são espaços abertos, que permitem que qualquer um que os exalte branco ou preto, morador de morro ou da zona sul - possa participar, desde que respeitadas as diferentes contribuições possíveis e os processos de organização da escola. O sambar, por isso, não é privilégio de cor nem de raça, nem de classe social, mas é dos que têm “vocação”, como veremos adiante. Para alcançar essas noções sutis praticadas e colocadas em ação por quem samba, o trabalho escolheu deter-se primeiramente nas conversas e declarações extraídas junto a passistas, membros da diretoria da escola e de outras alas para colher as revelações que afloraram nos relatos. Por isso, os capítulos 1 e 3 se ancoram principalmente na análise e reflexão das entrevistas obtidas, pois a história de como eram os carnavais do passado e de como se


deram as trajetórias individuais de cada passista ajudaram a contextualizar melhor o que é o samba no pé. Já o capítulo 2 fará uma breve consideração a respeito das experiências que a pesquisadora teve durante a realização do trabalho de campo, posicionando a investigação e mostrando seus limites e alcance. O capítulo 4 se concentra na análise da apresentação gestual do passista, o samba, dentro do referencial teórico dos ritos e da performance. Há ainda um curto texto, colocado como apêndice, que deixa registrado a referência de brasilidade com que os passistas tratam sua dinâmica corporal. Mesmo que não incorporado à análise, deixo-o presente. Bom, vamos ao que interessa.


2. Lá vem o passista Mais uma vez o carnaval. Muito já se escreveu sobre o assunto, o carnaval e as escolas de samba cariocas carregam atualmente uma peculiaridade para quem se debruça no seu estudo: eles não são considerados um “problema social”1, mas são tratados como “deslumbramento social”. Existe então uma sensação de que sejam assuntos consolidados, cuja existência é garantida pelo seu apelo popular e festivo. Até o início do século XX, o samba foi tratado como coisa de marginais e criminosos, não era ainda um problema "social", mas era “caso de polícia” e sofreu muita perseguição. Atualmente, o carnaval e as escolas de samba são uma unanimidade em termos de festa social reconhecida e institucionalizada na cidade do Rio de Janeiro. Algumas pessoas podem até não gostar do evento, mas não o podem impedir de acontecer. Desse modo, o tema do carnaval, e mais precisamente das escolas de samba, tem uma longa trajetória enquanto assunto que produz "conhecimento". Cronistas e jornalistas, pesquisadores não-acadêmicos e acadêmicos da universidade fizeram muitas contribuições. Os chamados cronistas carnavalescos ou jornalistas têm uma tradição que se inicia no fim do século XIX. Os cronistas eram as pessoas encarregadas de trazer ao leitor de jornais os bastidores e acontecimentos das festas e grupos carnavalescos do Rio de Janeiro. Nomes como Vagalume2, Jota Efegê3 são exemplos de um estilo de narrar a vivência junto a sambistas da época. Mais adiante no tempo, vamos encontrar autores como Sérgio Cabral4 e Roberto Moura5, que vão atualizar tal herança, mas também não vão se restringir às páginas de jornal, vão escrever muitos livros a respeito. Interessante notar que, nos textos desses jornalistas, perpassa a preocupação da busca da autenticidade e das raízes do samba e da escola de samba. Com ênfases 1

Ver BOURDIEU, P; Chamboredon, JC e Passeron, JC. 1999. A Profissão de Sociólogo. Petrópolis, Rio de Janeiro; e LENOIR, Remi. 1996. “Objet sociologique et problème social”. In: Champagne et aliii. Initiation à la Pratique Sociologique. Paris, Dunod. 2 Ver GUIMARÃES, Francisco. 1933. Na Roda do Samba. Tipografia São Benedito, Rio de Janeiro, edição fac-símile pelo Instituto Moreira Salles, que é uma publicação dos textos que não puderam figurar nos jornais. 3 Ver EFEGÊ, Jota. 1982. Figuras e coisas do Carnaval Carioca. Rio de Janeiro, Funarte, no qual estão compiladas crônicas que vão da década de 50 a 60. 4 Ver CABRAL, Sérgio. 1974. As escolas de samba: o quê, quem, como e por quê. Fontana, Rio de Janeiro, série de entrevistas com personalidades famosas do mundo do samba como Cartola, Carlos Cachaça, além de uma tentativa de resgatar uma história das escolas de samba a partir de seus integrantes. 5 MOURA, Roberto M. 1996. Carnaval: da Redentora à Praça do Apocalipse. Rio, Zahar; 1983. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio, FUNARTE.


diferenciadas, acompanhando as diferentes épocas que viveram ou vivem, esse grupo de autores tem como pressuposto em seus trabalhos que o samba tem origem no morro e na sua gente simples e humilde. Além disso, seu enfoque se concentra na exaltação de grandes figuras e personalidades do mundo do samba, como se este fosse formado apenas de indivíduos dotados. Então, as principais preocupações dos jornalistas são a busca pelas origens e o foco nas individualidades. Ao que chamamos pesquisadores não-acadêmicos, referimo-nos principalmente aos “folcloristas”6. Pessoas preocupadas em registrar as inúmeras formas de expressão da cultura popular, esse movimento, se assim o podemos chamar, iniciou-se no começo do século XX, com nomes como Amadeu Amaral, Renato Almeida, Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga, entre muitos. No caso do samba e das escolas de samba cariocas, Edison Carneiro7 e Câmara Cascudo8 serão os autores que lhe dedicarão alguma atenção. Com estes, é enfatizado o caráter coletivo e anônimo do fazer samba. Se para os jornalistas "o samba vem do morro", para os folcloristas "o samba vem do povo", numa noção de povo idealizada9. Já os pesquisadores acadêmicos da universidade iniciam estudos sobre a festa e seus brincantes a partir da década de 1970. Há enfoques mais históricos10, acompanhando as origens européias da celebração e suas transformações no Brasil; há abordagens que privilegiam uma interpretação do carnaval enquanto modelo de reflexão sobre a sociedade brasileira11; e há os estudos que se voltam para o evento em si mesmo, tendo como unidade de análise o desfile ou as escolas de samba enquanto um todo organizado12. 6

Ver VILHENA, Luis Rodolfo.1997. Projeto e Missão – O movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora/FUNARTE e GONÇALVES, Renata. 2003. “Cronista, folcloristas e os ranchos carnavalescos: perspectivas sobre a cultura popular”. Rio de Janeiro, Revista Estudos Históricos, nº 32. 7 CARNEIRO, Edison. 1965. A Dinâmica do Folclore. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira;1974. Folguedos Tradicionais. Rio de janeiro, Ed. Conquista; 1957. Sabedoria Popular. Rio de janeiro, MEC/Instituto Nacional do Livro; 1962. Carta do Samba. Rio de Janeiro, MEC/Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. 8 CASCUDO, Câmara. 1998. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro, Global. 9 Para uma problematização das noções de “povo” e “cultura popular”, ver BURKE (1989 [1978]). 10 QUEIROZ, Maria Isaura P. 1992. Carnaval Brasileiro: o vivido e o mito. Brasiliense CUNHA, Maria Clementina. 1992. Ecos da Folia. São Paulo, Cia das Letra..; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras. Coleção Carioca, Secretaria Municipal de Cultura, Rio de Janeiro, 1994. 11 DA MATTA, Roberto. 1979. Carnavais, malandros e heróis – por uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro, Zahar. 12 GOLDWASSER, Maria Julia. 1975. O Palácio do Samba – Estudo Antropológico da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Rio de Janeiro, Zahar Editores; LEOPOLDI, José Sávio. 1978. Escola de


Nosso interesse de estudo, os passistas de uma escola de samba e seu gestual, filiase às pesquisas acadêmicas que tomam o carnaval e a escola de samba enquanto focos de análise em si, porém, concentra-se sobre uma das partes, sublinhando a vivência heterogênea dentro desse todo chamado escola de samba. Parte, por isso, de um grupo de seus atores, os passistas.

2.1 - O Carnaval e o passista dentro do desfile da escola de samba As escolas de samba surgiram no Rio de Janeiro no final da década de 1920, em meio às manifestações carnavalescas das Grandes Sociedades, dos Ranchos e dos Blocos. As Grandes Sociedades, organizadas pelas camadas mais abastadas, apresentavam-se com enredos de crítica social e política e deslumbravam a multidão com um desfile luxuoso de carros alegóricos. Os Ranchos (GONÇALVES, R: 2004) também eram dotados de enredo, mas possuíam elementos particulares como a porta-estandarte e uma orquestra de sopro e cordas, tendo participação principalmente das camadas médias urbanas. Já os Blocos levavam a parte mais humilde da população e eram formas mais livres de brincadeira. Havia também os Corsos, passeios de carros pelos foliões, e os Banhos de Mar, realizados com brincantes em algumas praias da cidade. Sobre a criação da primeira escola de samba, há consenso de que o Bloco Deixa Falar, criado em 1927 no bairro do Estácio, foi seu centro de formação. Seus participantes escolheram a denominação “escola de samba” em referência a uma Escola Normal próxima ao local de encontro dos sambistas, e estes passaram a se proclamar como “professores do samba”. Porém, tal Bloco nunca se apresentou autodenominando-se como uma escola de samba. Por isso, há controvérsias sobre quem seria a primeira escola de samba a surgir. Alguns afirmam que integrantes de Mangueira fizeram essa formação em 1928 (CABRAL: 1974); outros, que um grupo do bairro de Oswaldo Cruz foi pioneiro em 1932.

samba, ritual e sociedade. Petrópolis, Vozes; CAVALCANTI, Maria Laura. 1994. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.


Como afirma Cavalcanti (1994), nunca houve uma forma de escola de samba pronta e originária. Desde o início, elementos formais de outras manifestações como ranchos e grandes sociedades foram incorporados pelas escolas de samba, assim como a participação de diferentes camadas sociais. Ao longo da evolução das escolas, verifica-se uma permanente transformação, pois “sua vitalidade como fenômeno cultural reside na vasta rede de reciprocidade que elas souberam articular, em sua extraordinária capacidade de absorção de elementos e inovação” (op.cit: p.25). A criação do samba como gênero musical, assim aponta Vianna (1995), envolveu a participação não só de negros e mulatos das camadas menos favorecidas da cidade do Rio de Janeiro, mas também de intelectuais, políticos e elementos da elite social, que contribuíram para o processo de reconhecimento do estilo musical na sociedade mais ampla. O surgimento das escolas de samba é outro processo que se dá na interação do samba com outras formas de manifestação e com outras camadas da sociedade. Como testemunho desse processo de transformação contínua empreendida pelas escolas de samba, é preciso notar que a figura do passista não existia quando do surgimento dos primeiros desfiles das agremiações. A posição do passista na escola de samba é algo tanto histórico quanto social. Histórico, quando percebemos que nem sempre existiu como referência no carnaval. De divertimento dançante aleatório até consagrar-se como posição e termo socialmente compartilhado, a palavra passista se torna uma nova categoria dentro da organização da escola de samba, indicando mudanças das relações sociais no fazer e brincar carnavalesco. A posição do passista acompanha mudanças realizadas na organização dos desfiles das escolas de samba no decorrer dos tempos, por isso só pode ser definida em relação às outras partes da escola de samba e da relação desta com a sociedade mais ampla. Para vislumbrar esse processo, acabamos por recolher algumas pistas na bibliografia de samba e carnaval. O “bamba” ou a “cabrocha” são referências do passado, de sujeitos que demonstravam suas habilidades corporais num samba. Cronistas carnavalescos como Francisco Guimarães, o Vagalume, nos oferecem pistas da presença de dançarinos de samba. Escrevendo artigos em jornais e publicando livros já na década de trinta, ele descreve uma roda de samba num dos “morros” da cidade do Rio de Janeiro:


- Agora, vamos cantar um samba do partido alto. Vae vê, como estas nêgas mexe com as cadeiras [frase de um sambista, grifos do autor]: Como tu bóles, bóles, bóles - bóles (bis) Bóle mulata de cadeiras molles (bis) Samba do partido alto No Buraco tem dendê Canto, sapateado e salto Na roda é que eu quero vê. Como tu bóles, bóles, bóles - bóles (bis) Bóle mulata de cadeiras molles (bis) A cabrocha vale ouro Da nêga não desmereço A mulata é um thesouro A morena não tem preço. (...) Appareça quem fôr valente Quem fôr duro que se levante Na hora o páo come gente Que o Buraco se garante. (...) Agora o samba estava quente e no terreiro umas quarenta pessoas se 13 movimentavam [grifos do autor].

No trecho acima, a “nega”, a “cabrocha”, a “mulata”, a “morena” são a presença feminina responsável pela animação do samba por meio da dança, assim como o “valente”, alusão ao “malandro” e ao “bamba”, é a sua versão masculina:

Um baralho e um violão ou um cavaquinho, uma harmonica, um pandeiro, um réco-réco, um chocalho, uma cuica, chegam para garantir a zona... Os «cathedraticos» dos morros são respeitados e se fazem respeitar. São ageis nas pernas e por isso heróes na batucada. (...) Para ser «cathedratico» e chegar a empunhar o «bastão de leader», é preciso ser «bamba» mesmo de verdade... [grifos do autor]14

Edison Carneiro, um estudioso das manifestações populares, também oferece alguns escritos a respeito. Num artigo publicado em 196115, ele afirma que “em geral, o samba aplica-se à dança”16:

13

GUIMARÃES, Francisco. 1933. Na Roda do Samba. Tipografia São Benedito, Rio de Janeiro, edição facsímile pelo Instituto Moreira Salles, p. 260-261. 14 Idem, p. 169-170. 15 CARNEIRO, Edison. 1974 [1961].”Samba de umbigada”. In: Folguedos Tradicionais. Conquista, Rio de Janeiro. 16 Idem, p. 36.


Podemos distinguir, atualmente, dois tipos de dança – o samba e o partido alto, também chamado de pagode. Para o samba, serve a música popularesca que tem esse nome: Os passos do samba [de roda – versão baiana do fenômeno] perderam o nome na Guanabara, em vez de uma única pessoa dançar, habitualmente dançam em separado, um homem e uma mulher, que passam a vez a pessoas do mesmo sexo; o convite à dança já não é exatamente uma umbigada, mas o dançarino continua a executar uma verdadeira reverência, sambando, dizendo no pé, diante da pessoa escolhida, até tocar perna com perna... O partido alto que tanto delicia os veteranos do samba, não se executa para o grande público, nem exige a bateria das escolas. Ao som do reco-reco, prato e faca, chocalho, cavaquinho e de canções tradicionais, como na Bahia – um improvisa – um único dançarino, homem ou mulher, ocupa o centro da roda, passando a vez com uma umbigada simulada. [grifos do autor]. 17

Nas passagens textuais apresentadas, a dança no samba é descrita como algo espontâneo e não marcado exclusivamente pelo período carnavalesco. A dança acontece sempre acompanhando a música e a organização específica das rodas de samba. Porém, Carneiro aponta no mesmo artigo que o samba e o partido alto eram executados no contexto das escolas de samba18, isto é, que as mesmas pessoas que participavam das rodas de samba são as que organizavam os desfiles das escolas de samba durante o carnaval carioca. Uma primeira descrição da organização formal do desfile de escola de samba me foi rememorada por uma das personalidades mais antigas da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, Dona Chininha19, 61 anos, atual vice-presidente da agremiação.

Primeiro que nós não tínhamos esse número tão grande de componentes. Então, as alas eram alas masculinas. (...)Então, nessa ala masculina saíam normalmente 4 mulheres, tá. Mas era assim, era a rainha, as duas princesas e a madrinha. E as outras mulheres eram todas de baianas, entendeu. (...) Antigamente, não, antigamente você podia sair no máximo com 30 componentes [cada ala]. 20

Carneiro também descreve a estrutura de desfile de uma escola de samba em artigo publicado em 196921. Algumas alas que desfilam hoje em dia ainda não existiam, assim como não há nenhuma menção ao passista. 17

Idem, p. 49-50. CARNEIRO, Edison. Opus cit, p. 63-64. 19 D. Chininha é Eli Gonçalves da Silva, filha da celebrada D. Neuma e neta do primeiro presidente da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, Saturnino Gonçalves. 20 Entrevista concedida em 20 de julho de 2005. 21 CARNEIRO, Edison. 1974 [1969].”Desfiles e Cortejos”. In: Folguedos Tradicionais. Conquista, Rio de Janeiro 18


Ao desfilar, a escola-de-samba representa uma idéia ou acontecimento em marcha – o enredo. Todos os pormenores, das fantasias às alegorias, do samba que se canta à disposição dos figurantes, enquadram-se no enredo e dele dependem. (...) Logo atrás do abre-alas, faixa, tabuleta ou carro com que a escola ‘saúda o povo e pede passagem´, vem uma representação da diretoria, todos os seus membros trajados do mesmo modo (comissão de frente); as pastoras, que outrora faziam as evoluções da marcha das ginastas, a duas e a quatro de fundo; as baianas; a academia, o coro masculino, e a bateria. Em determinados pontos do cortejo rolam as carretas alegóricas. Entre as pastoras e a academia, o baliza e a porta-bandeira – às vezes há dois e mesmo três pares, convenientemente separados, nas escolas maiores – destacam-se do conjunto. E, ao longo do grupo em marcha, ou em pontos especiais dele, sambam as várias alas da escola [grifos do autor].22

Na apresentação atual do desfile das escolas de samba, não encontramos mais as pastoras23, a comissão de frente já não é formada mais pelos integrantes da diretoria da escola.

A

academia

consolidou-se

em

duas

alas,

a

da

Bateria

e

a

dos

Intérpretes/Compositores. Surgiram as alas dos Passistas e da Velha Guarda, e proliferou o número de alas de componentes. Figuras como as das Musas da Bateria foram alçadas. Com relação ao tema passista, a lembrança de Dona Chininha recorda que “passista é uma coisa que surgiu nos anos 50”. Pude encontrar também menção em notícia de jornal datada de janeiro de 197124, evidenciando a consolidação da palavra passista enquanto categoria socialmente compartilhada. Mas segundo relato de D. Chininha, até mais ou menos a década de 1980, os passistas vinham em duplas ou trios alojados no espaço entre duas alas do desfile de carnaval. No começo, os passistas eram pessoas de desenvoltura corporal escolhidas aleatoriamente entre os componentes da escola, mas em 1972, por iniciativa de Djalma Santos, presidente da bateria durante longos anos, foi criada uma ala que reunia os passistas com vistas à organização desses elementos dentro da escola de samba. Essa ala da escola de samba de Mangueira chamava-se “Vê Se Entende”. Porém, no 22

Idem, p. 111-112. Segundo D. Chininha, “Até hoje na Mangueira, a gente usa, a gente sabe que pastora é a mulher que desfila na escola. A passista, ela é pastora. Ela sai de passista, porque a função dela na escola é passista, mas ela não deixa de ser uma pastora da escola, entendeu. A porta-bandeira, a passista, a própria diretora, nós somos pastoras da escola, entendeu. (...) pastora são as mulheres, as mulheres que fazem parte da escola.” Entrevista realizada em 20 de julho de 2005. 24 Acervo do Museu do Folclore Edison Carneiro, F1722, 7 de janeiro de 1971, “Alfredo, o pandeirista infernal”. 23


desfile, os passistas continuavam saindo em duplas e trios, entremeando as alas. E, apesar de ser organizada por uma figura de destaque da ala da Bateria, a “Vê Se Entende” não estava vinculada a esta última. É a partir do final da década de 1980, com a consolidação dos desfiles de carnaval na “Passarela do Samba”25, que os passistas vão desfilar reunidos numa só ala, sendo organizados então pela comissão de carnaval da escola. Acompanhando esses relatos de integrantes de escola de samba, dois processos se conjugam simultaneamente à evolução da posição de passista: o aumento portentoso do número de componentes com a ênfase no apelo visual de fantasias e alegorias; e as mudanças realizadas no acompanhamento musical e seu ritmo.

Primeiro que nós não tínhamos esse número tão grande de componentes (...)Antigamente, não, antigamente você podia sair no máximo com 30 componentes. Então, tinha uma época que nós tínhamos assim, já teve época que nós temos aqui uma média de 70 alas. E aí era aquele monte, aquele montinho de alas e figurinos eram inúmeros. Em 72, 72 nós conseguimos juntar alas, nós passamos a juntar, entendeu. Até hoje, se você olhar no nosso roteiro da Mangueira, você vê um figurino com dois nomes de ala. Nós passamos a juntar. E com isso o que é que acontecia, uma ala não se dava bem com a outra, mas aí havia um regulamento, quem tivesse errado era punido com corte, afastado, entendeu. E hoje nós conseguimos chegar a um número de 26 alas. Mas nós já tivemos 73, acho, alas.(...) O enredo já existia, só que era assim. Eu acho que a princípio, eles faziam sambas, eu acho que não existia era o samba-enredo. Acho que o sambaenredo é que não existia. Eles escolhiam um samba bonito pro desfile. Depois passou a ter o enredo e o samba. E agora o lance, né, os carros alegóricos eram outra coisa, né, um negócio menor, mais prático. Agora, o negócio virou...até encareceu muito. Os carnavais também essa parte alegórica, né. Porque é muito dinheiro.26 As escolas de samba então surgiram com violão, cavaquinho, pandeiro, tamborim, com ritmo um pouco mais acelerado. E nesse ritmo um pouco acelerado, então, vinham as pastoras, imitando como eram os Ranchos. Porque os ranchos eram de sandálias e castanholas.(...) Então aboliram as castanholas, tiraram os instrumentos de sopro que tinha os ranchos. Ficaram só: tamborim, pandeiro, cavaquinho, violão, cavaquinho, bandolim e sandálias, isso era a Escola de samba, e um ritmo um pouco mais alterado. Agora não, agora é aquela zoada de surdo, caixa de guerra, e um samba maluco que não se entende nada, fantasia de luxo de não sei o quê, alas e mais alas de não sei o quê. Não tinha essas alas. (...) Mas era identificada quando chegava na Praça Onze pelo modo de tocar, pelo modo de cantar. Até hoje cada Escola tem um ritmo, uma melodia: se vê, se nota. Naquele tempo era mais difícil de se notar a diferença pelo ritmo, se notava era pela melodia, era uma coisa de mais importância, uma coisa mais bonita, não tenha dúvida.27

25

Para maiores detalhes, ver Memória do Carnaval, RIOTUR, 1991 e Cavalcanti (1994). D. Chininha, entrevista realizada em 20 de julho de 2005. 27 Cartola, Angenor de Oliveira, compositor da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira apud GOLDWASSER (1975: p.21). 26


A Bateria mudou. A Bateria tinha uma cadência. Agora a Bateria é tum-cum-tum (faz ritmo com boca). Realmente, tem que ficar só rebolando, rebolando, rebolando, que se for pegar pé mesmo, cadência, não dá tempo.28

Como fica evidenciado, a consolidação da posição do passista acompanhou o movimento de transformação das próprias escolas de samba. Se no passado a dança no samba era celebrada na figura da “cabrocha” e do “bamba” das rodas informais, quando passa a ter uma visibilidade especial dentro do desfile carnavalesco das escolas de samba, a dança virtuosística se consolida na figura dos passistas dentro das escolas. Por isso, o nome de um passista, quando apresentado como tal, está necessariamente vinculado a uma das agremiações, mesmo que tenha desfilado em várias delas, um passista não é passista por si só. Esse processo indica também a crescente especialização das posições dentro do desfile das escolas de samba no carnaval carioca, que está atrelado ao crescimento do número de integrantes - que hoje pode atingir a marca de cinco mil componentes -, à profissionalização e complexificação das atividades que passaram a envolver a preparação e a apresentação de um desfile de carnaval no Rio de Janeiro. A evolução da posição de passista também seguiu o desenvolvimento das relações entre as escolas de samba e a sociedade abrangente. O período de 1930 é tido como momento em que as escolas de samba ganham reconhecimento social, sendo oficializadas e recebendo subvenções governamentais já em 1935. Se a década de 1950 é lembrada como a época em que surgiu a figura do passista dentro da escola de samba, Cavalcanti (1994) aponta que também é a época em que “a ampliação de suas bases sociais [das escolas de samba] progrediu com a participação crescente das camadas médias, incluindo a presença de cenógrafos e artistas plásticos na produção do desfile” (op cit: p. 26). A intensificação da contribuição de diferentes camadas sociais dentro da escola de samba, produziu um efeito de crescente especialização de posições em seu interior.

28

Nanana da Mangueira, passista antiga da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira apud JESSOUROUN (2000), filme documentário.


2. 2 - A “Estação Primeira de Mangueira” – tradição e samba A escola de samba escolhida para a investigação foi o Grêmio Recreativo e Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira”. Fundada em 28 de abril de 1928 por figuras como Cartola e Carlos Cachaça (CABRAL: 1974), uniu diferentes grupos carnavalescos – blocos principalmente - presentes no complexo geográfico chamado “Morro da Mangueira”. Sua primeira sede foi instalada na travessa Saião Lobato, no Buraco Quente, localidade do conglomerado de Mangueira. Com a expansão da escola de samba, suas atividades foram ocupando diferentes e sucessivos espaços nas redondezas – quadra de uma antiga fábrica de cerâmica, o clube esportivo Garnier, a quadra “antiga” – até que fosse instalada definitivamente no atual local denominado “Palácio do Samba”29. Incrustada no “morro”, a Escola de Samba de “Mangueira” hoje em dia participa dos desfiles de carnaval no seleto Grupo Especial, que reúne a dezena de maiores escolas do Rio de Janeiro e é organizado pela Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA)30. Para os propósitos deste trabalho - os passistas e seu gestual - a “Mangueira” tem uma peculiaridade: é uma escola que reivindica o título de ser a escola mais “tradicional” do carnaval carioca. Essa postura faz parte de um “discurso” estratégico para construção da especificidade do lugar da “Mangueira” dentre as outras escolas de samba do Rio de Janeiro. Essa “tradição” é constituída reverenciando dois aspectos principais: a de ter protagonizado o início das escolas de samba no carnaval carioca, como pode ser verificado no próprio sítio eletrônico da agremiação – www.mangueira.com.br; e a de preservar em seu desfile a participação da “comunidade mangueirense”. Tanto um argumento quanto o outro podem muitas vezes estar imbricados, mas aqui foram separados para efeito de análise. Ter vivido ou saber que a “Mangueira” participou das origens das escolas de samba no Rio de Janeiro dá a seus integrantes o sentido de serem portadores de uma história, uma história construída de maneira não-oficial, de relatos orais, fazeres informais e reconhecimento de cada indivíduo com quem se compartilhou tal e tal momento. Ser detentora de uma história dentro do carnaval carioca permite que a escola de samba

29

Para uma evolução dos espaços utilizados pela escola de samba acompanhando a transformação de sua estrutura social, ver GOLDWASSER (1975). 30 Para maiores informações sobre o processo de criação da Liga e sua relação com o patronato carioca do jogo do bicho ver CAVALCANTI (1994) e (1999).


reivindique um saber específico, um saber de “como eram as coisas antigamente” e a autoridade de constatar que “tudo mudou”. Porém, possuir tal saber carnavalesco não lhe garante o privilégio de ditar como deve ser o futuro carnaval. Pelo contrário, o caráter competitivo dos desfiles, ao trazer a fagulha da inovação que pode garantir o campeonato de um dado ano, impõe às escolas de samba um ritmo de mudança imperativo. Por isso, em “Mangueira” é comum ouvir memorações queixosas de “um tempo de carnaval que não volta mais”. Mais adiante, irei problematizar essa “retórica da perda”31 no caso dos passistas da agremiação. O outro elemento que compõe a noção de “tradição” dentro da escola de samba de “Mangueira” é a idéia de “comunidade mangueirense”. D. Chininha nos esclarece que: ... a gente não fala comunidade só quem mora no morro. Comunidade mangueirense é todo aquele, aquela pessoa que gosta da escola. Tem muita gente que desfila na Mangueira e nunca morou em morro, mas que gostam, gostam de repente mais até do que um elemento que vive aqui, entendeu. Então a comunidade Mangueira que a gente fala não é quem mora propriamente no morro, entendeu. A gente considera da comunidade da Mangueira todas aquelas pessoas que participam ativamente da escola. Pesquisadora: Ativamente o que é? Chininha: Assim, um componente que nós temos, aquele componente que é assíduo, em todo ensaio ele tá aqui, qualquer festividade, qualquer evento ele está, entendeu. Então, esse faz parte, ele não mora aqui no morro, mas ele é comunidade 32 mangueirense.

Ao contrário do que comumente se veicula, os critérios de pertencimento a uma comunidade de escola de samba não são ser morador de “morro” ou ser negro, mas são a presença constante nos eventos realizados e o “gosto” por participar de qualquer coisa ligada ao grêmio recreativo. Porém, ao mesmo tempo que é abrangente, a categoria “comunidade mangueirense” não inclui os brilhantismos individuais de celebridades já consagradas fora do circuito do samba, por exemplo, os artistas de televisão. É preciso ser, de uma certa forma, anônimo. No cortejo carnavalesco da “Mangueira”, a participação da “comunidade” é sempre sublinhada. No carnaval de 2005, a escola gabou-se de ter elementos da “comunidade” 31

Tal expressão faz referência à obra de GONÇALVES, Reginaldo (2002 [1996]), que a utiliza para analisar os discursos de órgãos oficiais de patrimônio cultural no Brasil. Em nosso trabalho, utilizamo-na de maneira mais livre, fazendo referência aos relatos sobre o passado de integrantes da Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira”. 32 Entrevista realizada em 20 de julho de 2005.


presentes em todas as alas. Antes esses elementos ficavam restritos a algumas alas inteiras, as chamadas “Alas da Comunidade”. Também são considerados da “comunidade”, os componentes que detêm posições específicas dentro do desfile, as Baianas, os Ritmistas, os Compositores, os Mestres-Salas e Porta-Bandeiras, a Velha-Guarda e os Passistas. Participar como elemento da “comunidade” significa para o componente ganhar a fantasia e estar obrigatoriamente em todos os ensaios. Os “mangueirenses” gostam de reivindicar que “Mangueira não tem dono nem patrono”, isto é, que nenhuma figura do jogo do bicho ou do tráfico de drogas sustenta a agremiação. Porém, em meio à pesquisa vamos descobrindo algumas relações insuspeitas, como por exemplo, que o patrono da Ala da Bateria foi um importante comandante do jogo do bicho no morro de Mangueira. E um incidente chocante veio assustar o trabalho, o presidente da Bateria foi violentamente assassinado em dezembro de 200433. Os jornais levantaram que um dos motivos aventados para a causa do crime seria o resultado do concurso para escolha da Rainha da Bateria, já que a candidata indicada pelo comando do tráfico de drogas no complexo de Mangueira não havia sido a vencedora. Foi impactante ver sumir de uma hora para outra alguém com quem a pesquisadora começava a estreitar contato. Nossos informantes silenciaram sobre o episódio e a engrenagem que move a festa de carnaval não parou, porque o “show devia continuar” e assim foi. De fato, as forças informais do jogo do bicho ou da rede do tráfico de drogas locais não têm o poder preponderante que têm em outras agremiações ou setores da sociedade mais ampla, mas é impossível para as pessoas que participam da Escola de Samba de Mangueira não estarem expostas à elas. De tudo, fica a lição de que ao pesquisador nem tudo é permitido conhecer, e como bem coloca Cavalcanti (2003), às vezes é melhor para a pesquisa que assim o seja. No carnaval carioca, lidamos com pessoas e situações sensíveis devido o entrecruzamento de zonas lícitas e ilícitas que a festa carnavalesca coloca em movimento e que constantemente nos desafia enquanto investigadores e participantes da vida social. Mas voltando à questão da “autenticidade”, em linhas gerais, esses foram os ingredientes principais que fermentam a noção de “tradição” posta em movimento por 33

Jornal O Globo, 11 de dezembro de 2004, “Tráfico atravessa o samba”. Jornal do Brasil Online, 11 de dezembro de 2004, “O crematório do tráfico”.O Dia Online, 11 de dezembro de 2004, “Vestígios de execução”.


integrantes da “Mangueira” com que tivemos contato - passistas, pessoas da direção administrativa e da direção da bateria. Porém, existe ainda uma referência de “tradicionalismo” relacionado à Mangueira, não só por parte de seus componentes, mas também por parte de outras escolas de samba. Ao pesquisar os bastidores da Escola de Samba União da Ilha do Governador, no carnaval de 1984, Cavalcanti (1999) aponta que os integrantes dela consideravam estar num momento de transição entre dois modelos de conceber o desfile de carnaval. De um lado estaria o modelo estreado pela “Beija-Flor de Nilópolis” em 1976, confeccionado com “luxo” e relevo na suntuosidade visual. O outro modelo era representado pela “Mangueira”, que se mantinha no “esquema do bom, bonito e barato”, sem pomposidades , mas mantendo o espírito do “samba”. Os “ilhéus” queriam escolher um caminho próprio, de “evoluir sem descaracterizar”, que na sua concepção seria o de se utilizar do apelo “visual”, sem perder as qualidades do “samba”. De qualquer modo, um dos elementos reclamados em “Mangueira” para compor a “tradição” por meio da “comunidade mangueirense” é o samba no pé, a habilidade corporal que só quem é do mundo samba sabe fazer. A atitude mais emblemática disso é que, enquanto a maioria das escolas de samba convida celebridades do meio televisivo para serem madrinhas de suas baterias, a Mangueira insiste em colocar a presença feminina de sua “comunidade”. Considero que a escola de samba da Mangueira oferece um espaço privilegiado de observação do “samba no pé”, já que reivindica uma posição particular entre as escolas de samba cariocas por meio dele. Porém, isso não impossibilita de estender nossa reflexão para outras escolas, pois mesmo que os passistas dessas outras escolas possam não ser da “comunidade” da escola, como no caso das celebridades televisivas, qualquer pessoa que ocupe o posto de passista tem de, pelo menos, tentar se apresentar da mesma forma que os passistas na Mangueira, devido seu lugar dentro do desfile. Não é o pertencimento a uma comunidade real ou imaginária que determina o sambar do passista, mas é a posição dentro do desfile, de ter de mostrar o requebro e o sapateado que o samba exige. Além disso, atualmente qualquer escola de samba adota tal organização para o desfile, ou seja, todas as escolas de samba do Grupo Especial possuem Musas da Bateria e uma Ala de Passistas.


2.3 - O passista dentro da Escola de Samba de “Mangueira” Existem duas dimensões nas quais é possível posicionar o passista dentro de uma escola de samba, que são as duas faces de organização da mesma moeda que é o carnaval carioca. A primeira face é o aspecto da escola de samba enquanto grupo ordenado e estruturado permanentemente durante o ano; a outra, é sua apresentação episódica no desfile carnavalesco. Tanto uma quanto a outra estão intimamente relacionadas. Para Goldwasser (1975), “existe pois uma relação de necessidade entre a EscolaEmpresa e a Escola-Desfile em seus respectivos graus de estruturação: é da dramatização que se encena no Desfile que deriva o significado de toda prática efetuada no decurso do ano, enquanto na Escola-Empresa geram-se os recursos necessários à efetivação deste. É por isso que a evolução da escola se confunde tão de perto com a evolução do Desfile, como dois processos correlatos e simultâneos, ou como duas expressões manifestamente distintas da mesma realidade subjacente (op cit: p. 84)”. No sistema organizacional da “Mangueira”, Goldwasser (op cit) identifica como instâncias superiores da escola de samba a Diretoria, que cuida da parte administrativa, e a Comissão de Carnaval, responsável pela esfera artística voltada para o desfile. Sob os auspícios destas, reúnem-se a Ala dos Compositores, a Ala da Bateria e as Alas Reunidas. A Ala dos Compositores a da Bateria são consideradas como alas técnicas, nas quais o critério de pertencimento se baseia no domínio de um saber específico e existe, por isso, uma maior restrição para seu acesso. As Alas Reunidas abrigam as inúmeras alas e grupos de componentes, cujo critério de participação é menos restrito, pois o elo de relacionamento é somente a fantasia. Cada uma destas alas possui certa autonomia administrativa e financeira. O esquema geral descrito pela autora ainda é vivido na atualidade e, dentro dele, os passistas estão situados em duas posições: as Musas da Bateria – 1ª princesa, 2ª princesa, rainha – são ligadas à Ala da Bateria; e a Ala de Passistas é organizada pela Comissão de Carnaval, pois é um agrupamento particular, que comporta componentes com habilidade específica, mas não tem autonomia para se administrar.


Comissão de Carnaval (artístico - desfile)

Diretoria (administração)

Ala dos Passistas

Ala dos Compositores

Ala da Bateria

Alas Reunidas

Ritmistas

Musas da Bateria

Quadro 1 - Posição dos passistas dentro do sistema organizacional da Escola de Samba de “Mangueira”

Se dentro da organização formal da escola de samba, os passistas apresentam a formação indicada acima, no desfile carnavalesco esses mesmos passistas ganham uma posição ritual diversa. Para visualizar mais detalhadamente qual é atualmente a posição do passista dentro do desfile da escola de samba, explicamos que um desfile é construído com a sucessão de alas de integrantes. Cada ala é um grupo específico de foliões, que podem ser apenas de brincantes com a fantasia, mas também podem ter funções mais específicas, como a ala das Baianas, da Bateria ou dos Passistas. Cada escola escolhe como realizará a


sucessão de alas na avenida, porém é recorrente que se situe no centro do préstito a combinação: Rainha ou Musa da Bateria, seguida da Ala da Bateria, do carro de som e da Ala dos Passistas, enquanto as outras alas preenchem o começo e o fim do conjunto. Veja o desenho a seguir34: MestreSala e Musas Ala da Ala dos Comissão Alas da Alas Porta Bateria Passistas ... de frente ... Bandeira Bateria Principal Quadro 2 - Modelo de sucessão de alas num desfile de escola de samba

Os passistas que tento apreender são os homens e mulheres virtuoses do sambar que acabam por concentrar em si a tarefa de demonstrar o “samba no pé” num desfile de escola de samba. Hoje, podemos encontrá-los na ala que segue o pessoal da Bateria e também, com visibilidade privilegiada, nas Rainhas e Musas que vêm à frente de cada Ala de Bateria. As outras alas também desenvolvem movimentos dançantes ao som do sambaenredo. Afinal, carnaval só vale quando é bem pulado e brincado. O exemplo dos movimentos corporais da Ala das Baianas é bem particular, elas giram em torno de si, no sentido horário e anti-horário durante a marcha do desfile. Porém, podemos dizer que cada ala tem a sua “especialidade”: a ala das baianas reverencia a ancestralidade das “tias” e da antiga geração, a Velha Guarda preserva os antigos integrantes, os Mestres-salas e Portabandeiras estão encarregados de levar o pavilhão da escola, a Ala da Bateria tem de levar a batucada junto com os compositores e cantores, existem as alas que devem ajudar a levar o enredo encarnado nas fantasias e a Ala dos Passistas seria encarregada de mostrar com mais veemência o gingado do “samba no pé”. Como já insinuado anteriormente, Cavalcanti (1994) aponta que a tensão “visual” e “samba” é vital para o carnaval das escolas de samba. Sendo o “visual” referendado pela tendência de adoção de carros alegóricos suntuosos e fantasias deslumbrantes aos olhos; e o

34

O modelo apresentado se refere apenas aos conjuntos de pessoas integrantes de um desfile de escola de samba, excluindo a presença dos carros alegóricos.


“samba”, o aspecto mais participativo de cantar e dançar da festa. Tal tensão alinha as escolas de samba entre si,

(..) Assim, por exemplo, a escola de samba Estação Primeira de Mangueira produz de si mesma uma imagem identificada ao “samba” que alude à origem de formação das escolas, e defende, no contexto carnavalesco mais amplo, a idéia de uma “tradição” tão apreciada pelos estudiosos da cultura popular. No outro extremo, escolas como a Mocidade ou a Beija-Flor e seus simpatizantes, tomam o partido decidido do “moderno” e do gosto pela inovação.35

Ainda, seguindo ainda a autora, a tensão “visual” e “samba” também seria interna a cada agremiação carnavalesca, quer dizer, dentro da própria escola de samba há elementos que enfatizam o pólo do “visual” e outros que enfatizam o pólo do “samba”. No nosso caso, os passistas são as figuras que colocam em relevo o lado do “samba” dentro do desfile de uma escola de samba, porém, pretendemos mostrar neste trabalho que o “visual” também é constituinte do próprio sambar do passista.

35

CAVALCANTI (1999: p. 53)


3. Ser e estar em campo

Esboçada a trama que envolve o foco deste trabalho, os passistas da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, é a vez de trazer mais rente a convivência estabelecida junto deles. Inicio esta parte problematizando minha inserção de campo, porque o conjunto aqui apresentado é fundamentalmente a história desse relacionamento. 3.1 - Caleidoscópio de ser e estar Não sei se o meu “trabalho de campo” começou quando pisei na quadra da escola de samba ou se quando pisei na cidade do Rio de Janeiro. Vinda de outras paragens e tendo a fisionomia carregada pelos traços orientais de ascendentes japoneses, minha presença sempre foi indício de exterioridade em qualquer contexto. Num infinito jogo de espelhos, vários foram as denominações a mim imputadas, eu podia ser a estrangeira de alguma nação asiática, a turista, a paulista, a jornalista, moradora da zona sul, entre muitas. Em meio a essa babel de categorias, gostaria apenas de sublinhar que “tornar nativo” nunca me foi sinalizado como possibilidade, mesmo que ilusória. É por isso que anunciado meu interesse de estudo - as escolas de samba cariocas - muita gente “nativa” sentia-se à vontade para me introduzir no assunto, dado que o meu distanciamento “estava na cara”. Porque escola de samba, às vezes, parecia coisa de time de futebol, todos na cidade tinham sua preferência e sua torcida. Alguns colegas recomendaram a escolha de uma escola de samba que não fosse tão ligada aos “morros”, prezando pela minha segurança. Mas a escolha da “Mangueira” se deu sob critérios da representação do “samba no pé”, como já descrito anteriormente. Outras pessoas lamentavam a minha opção, pois a “Mangueira” era escola pra “turista”, não era mais “autêntica”. Além do que, consideravam que a eleição de tal assunto era mesmo só para pesquisadores “deslumbrados”, pois escola de samba já era coisa analiticamente surrada e outros assuntos mereciam ser estudados. À parte as considerações sobre a legitimidade do tema deste trabalho e da minha atuação como pesquisadora forasteira, tenho em vista que toda a minha estadia na cidade do Rio de Janeiro sempre colocou questões para pensar as escolas de samba. Relacionar-me com a cidade e as pessoas que moram nela me deram pistas ou choques para reelaborar continuamente minhas reflexões. Cavalcanti (1992) e Gonçalves (2004) apontam que a


festa carnavalesca é um momento de encontro das variadas camadas sociais e localidades da cidade, e considero que minha “experiência em campo”, de certa forma, acompanhou isso. De qualquer modo, a dispersão de referências que minha presença causa e causou também é válida para os integrantes da escola de samba com quem travei contato. Não houve uma inserção homogênea, cada agente da agremiação me atribuiu expectativas diferentes e a partir delas tive que negociar, de maneiras particulares, a minha presença e o objetivo de minha pesquisa. Por isso, não tenho uma história épica, nem um mecanismo detonador, que me desse o passe de aceitação para o “mundo dos passistas”. Foram várias as maneiras de lidar com e falar sobre os passistas e isso se reflete na pluralidade do material utilizado para a confecção deste trabalho. Talvez a particularidade de pesquisar uma festa realizada dentro da dinâmica urbana carioca reflita essa multiplicidade de interações. Como levanta Velho (1981), a problemática do meio urbano, entendida como reflexão sobre sociedades complexas, combina duas dimensões tangíveis, a divisão social do trabalho e a heterogeneidade cultural. Nesse arranjo, o indivíduo e os projetos individuais colocam-se como dinamizadores da dimensão social, e o jogo entre o subjetivo e o coletivo tece um campo de possibilidades pelo qual os indivíduos se orientam e se transformam através de suas trajetórias. Assim sendo, a heterogeneidade cultural permite construir redes de relações sociais variáveis e cada indivíduo se permite ser atravessar de inúmeros papéis sociais. Também Simmel (1967), por meio da atitude mental blasé, aponta para a convergência simultânea de estímulos sociais que o meio urbano exige de cada pessoa. Nesse sentido, a pesquisadora aqui também foi englobada por tal dinâmica, sendo investida de referências variadas por cada pessoa da escola de samba com quem se relacionou, conforme a posição, o interesse ou a motivação que o contato abriu para cada interlocutor. Isso transparece que a escola de samba também é em si uma organização múltipla e variada. Mas apresentando a experiência que tive junto dos passistas, iniciei visitas periódicas à quadra da Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira” a partir de maio de 2004. Apresentando-me à direção administrativa da escola no período de menor


atividade de preparação carnavalesca36 - que vai de março a julho – comecei o contato com passistas através de aulas dadas a garotas. As aulas de dança são ministradas por passistas que desfilam pela agremiação e foram nessas aulas que melhor pude acompanhar o desenvolvimento do trejeito corporal, aprendendo como os passistas-professores consideram as artes corporais do samba. Essas aulas fazem parte do projeto social da escola de samba37, no qual pessoas que moram no entorno têm acesso gratuito a atendimento médico (clínico-geral, psicólogo), cursos profissionalizantes (cabeleireiro, bijuterias, corte e costura, agente de turismo e muitos outros) e cursos sócio-educativos (de modelo, de balé clássico, etc), estando as aulas de passistas incluídas nesta última variante. Aliás, os cursos de caráter sócio-educativo são voltados em sua maioria para as crianças e jovens, que ao participarem deles também recebem todo mês uma cesta básica. Tudo isso ocorre nas instalações da quadra da Mangueira, no famoso “Palácio do Samba”, localizado na Avenida Visconde de Niterói e incrustado no complexo de morros da Mangueira. Envolta num ambiente de “projeto social” e considerada um elemento externo que pudesse contribuir para o “desenvolvimento da comunidade”, acabei brincando com esse papel que a direção administrativa me atribuía e junto com os professores das aulas de passista apresentamos um projeto de atividades para as alunas, como vem a seguir.

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Para saber mais sobre o ciclo carnavalesco, ver LEOPOLDI (1978) e CAVALCANTI (1994). Sobre o processo da escola de samba expandir sua atuação para o campo de projetos sociais, ver GONÇALVES, Maria Alice Rezende. 2002. A Vila Olímpica da Verde e Rosa. Tese de Doutorado, IMS/UERJ.

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Atividade para as alunas do curso de passista da “Mangueira” Apresentação Esta proposta quer preencher a curiosidade das alunas do curso de dança sobre o que é ser passista na Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Para isso, o presente trabalho visa colocar a geraçãomirim de passistas em contato com pessoas consideradas importantes para o tema. 1. Objetivo Complementar a formação das alunas sobre a posição de passista dentro da escola de samba. 2. Justificativa Levantar a memória da comunidade e de pessoas ligadas à escola de samba sobre a vivência de passista e colocar a “nova geração” em contato com essa história. 3. Modo de fazer Trazer convidados a serem entrevistados pelos grupos de alunas do curso. As alunas estarão sempre acompanhadas de um responsável, que também as preparará para realizar as entrevistas. Pessoas a entrevistar (sugestão): presidente e vice-presidente da escola de samba / carnavalesco / passistas antigos e célebres / atual rainha da bateria / presidente da bateria / passistas atuais / (outras pessoas a serem incluídas). 4. Estrutura necessária → se alunas precisarem se deslocar até entrevistados : bilhetes de ônibus e autorização dos pais. → se alunas puderem receber entrevistados: espaço na quadra da “Mangueira”. · Material: papel e lápis 5. Cronograma --------------------

A atividade foi implementada nos meses de agosto e setembro de 2004. Arranjei um jeito de conhecer pessoas importantes para o tema passista na Mangueira ao mesmo tempo em que envolvi algumas pessoas da escola de samba com as minhas descobertas. Encontrei uma desculpa muito boa para falar com personalidades do assunto por meio das alunas,


pois foi através das perguntas delas que conheci um pouco da experiência de ser passista e de aprender a ser passista. Foram realizados encontros com cinco convidados da escola de samba: um passista masculino mais antigo, a primeira princesa da Bateria de 2004, o presidente da Bateria, a professora do curso – que também é passista da escola – e um dos mais antigos mestressalas da agremiação. A escolha dos nomes foi feita em conjunto com os professores do curso de passista. Nem todos os que foram convidados tiveram disponibilidade para participar das entrevistas, por isso a seleção realizada não foi a mais representativa, mas a melhor possível de ser executada. A cada encontro, um convidado por vez falou sobre sua experiência. Essas reuniões foram por mim registradas em fotos e pelo gravador de áudio. A dinâmica dos encontros foi feita do modo seguinte: primeiramente, eu e um dos professores do curso apresentávamos o convidado; após, passávamos a palavra às meninas. Assim, as perguntas ficaram a cargo das alunas. Se as questões não surgiam logo, eu ou o professor presente lançávamos alguma para aquecer. Às vezes, o próprio convidado já trazia algo para falar. O espaço de participação foi preferencialmente dado às aprendizespassistas, porém também aproveitei para colocar algumas perguntas que considerava importantes à pesquisa. O mais interessante foi ser surpreendida pelas perguntas que as alunas fizeram aos convidados, porque elas bagunçaram as noções que eu trazia comigo do que fosse samba, carnaval e passista. Uma questão como “Qual a diferença entre passista e mulata?” produziu um ruído que a investigação teve de refletir sobre a representação do que fosse mulata. Ou ainda “Você prefere a avenida ou o palco?” revelou que existem diferentes lugares de apresentação do passista de escola de samba. Era como se as alunas estivessem me ensinando quais eram as principais linhas de preocupação de um passista, que elas, como aspirantes, tinham certa familiaridade e queriam incorporar. Enquanto as perguntas delas pareciam corriqueiras aos entrevistados, à pesquisadora causaram intenso estranhamento. Talvez porque as meninas acabaram por ocupar o lugar indagador geralmente atribuído ao pesquisador ou jornalista, enquanto esta investigadora terminou encarregada de apenas criar o espaço propício de encontro e diálogo. E as alunas se mostraram entrevistadoras perspicazes, pois me abasteceram com depoimentos memoráveis e instigadores. Se a pesquisa permitiu o uso de uma certa observação participante, penso que as alunas foram participantes-observadoras apuradas.


Para a presente pesquisa, essa série de encontros estimulou re-elaborações de questões e também propiciou uma maior aproximação com os professores-passistas. Já para as meninas foi só um momento de descanso das exigentes aulas de dança. A partir de agosto, com o “aquecimento” das atividades relacionadas ao carnaval e a profusão de acontecimentos – escolha do samba-enredo, ensaios da Bateria na quadra, etc – acompanhei alguns eventos na quadra da escola que considero importantes para o tema passista: ensaios da Bateria no mês de outubro de 2004, uma apresentação do grupo de show da Mangueira na recepção de uma autoridade política em novembro, os ensaios gerais na Avenida Visconde de Niterói e o concurso para escolha da Rainha da Bateria para o carnaval 2005 em dezembro de 2004. Em fevereiro de 2005, tive a oportunidade de acompanhar a preparação de um passista da escola no dia do desfile da Mangueira, e assisti o cortejo enquanto espectadora na arquibancada do sambódromo. Após o carnaval, com a entrada do novo período de “retração” de 2005, realizei uma série de entrevistas individuais com alguns passistas. Também aqui uma certa clivagem se operou na maneira em que cada pesquisado se relacionou com a entrevista. Os passistas mais antigos, na faixa dos 40 e 50 anos, enxergaram na pesquisa a oportunidade de voltar a ser o foco das atenções, foco este que sentiam estar perdendo para as “novas gerações”. Por isso, “os mais antigos” se mostraram os mais disponíveis para um encontro com a pesquisadora, revivendo seus momentos de destaque durante as conversas e esperando estender tais glórias até o presente. Já os passistas mais novos, entre 16 e 26 anos, imersos no turbilhão de inúmeras apresentações e solicitações que a posição lhes abria, foram menos disponíveis à pesquisa e utilizaram o momento da entrevista como uma extensão de relatos tipicamente jornalísticos, repetindo frases de bom-tom e reverberando imagens que a mídia lança sobre o carnaval. Mas se os passistas mais antigos foram os que melhor produziram um discurso reflexivo sobre o que é ser passista, até devido sua posição crescentemente marginal de “velhos”, os passistas mais novos foram os que mostraram no fazer do seu dia-a-dia os impasses e disputas a que estão submetidos. Desse modo, a reflexão aqui desenvolvida baseia-se nesse mosaico de observação, participação, relatos, conversas e relacionamentos. Entre ser uma possível agente de “desenvolvimento da comunidade” ou ser a jornalista ou a escritora que divulgaria os


brilhantismos individuais, os integrantes da “Mangueira” tentaram desvendar o mistério da minha presença insistente entre eles, estabelecendo um jogo de reconhecimentos e estranhamentos, que foi sendo negociado no decorrer da pesquisa. O mesmo se dá inversamente, pois esta pesquisadora entrou em contato com inúmeras pessoas porque elas eram integrantes de uma escola de samba. Temos consciência de que elas não são apenas somente isso o tempo todo, elas também são mães e pais de famílias, são funcionários públicos ou estudantes, mas foram reunidas aqui neste trabalho porque têm algo a dizer e mostrar sobre o que é ser passista de carnaval. Como sinaliza Velho (1994), nas sociedades moderno-contemporâneas configura-se um maior número e diversidade de posições sociais e dimensões convergentes que constroem um campo de possibilidades. É nesse campo de possibilidades que os atores se movem, balizados diante de uma gama básica de alternativas e opções. Ao se pensar numa noção de metamorfose aplicada ao processo dinâmico das trajetórias individuais, é possível apreender “a diversidade de papéis e domínios [abrangido por cada personalidade social], associada à possibilidade de trânsito entre estes”, que “possibilitam e produzem identidades multifacetadas” (VELHO, 1994 : p. 79). Assim, pesquisar num ambiente de identidades múltiplas e sobrepostas é produzir conhecimento por meio de interações diversificadas dentro do campo de possibilidades que o relacionamento com integrantes de escola de samba permitiu.


4. Histórias e trajetórias 4.1 – A retórica da perda Logo iniciada a investigação, uma afirmação aflorava dos relatos de alguns entrevistados: a figura do passista estava sumindo dos desfiles de carnaval. Então foi uma época de ouro do samba, em que o espaço pro passista ficou muito fervoroso, tinha muito espaço pro passista. E a gente sabia, as pessoas iam pra avenida, pra ver quando ia passar o Boneco, vai passar o Gargalhada com a Rosemary. Criava uma expectativa, vai passar o Tijolo, da Portela, com a fulana de tal, vai passar o Vitamina, vai passar o Jerônimo, da Portela com a Nega Pelé. Então, criava-se uma expectativa em torno daqueles passistas. Hoje o que é que a gente tem? A gente tem grupos, né, o contingente das escolas de samba ficou muito grande, não é? E conclusão, a gente perdeu o espaço. Hoje o passista tem uma função dentro do desfile, que é o recuo da bateria e ele ocupar aquele espaço vazio no desfile. E é muito rápido. Você quer fazer um negócio, já vem uma ala atrás, já vem e você...E fico nervoso, eu falo, ai meu pai, que saudades do tempo de outrora, entendeu?38 Estamos com muito medo de acabar a ala de passista, é, de acabar. Teve um presidente da Mangueira (...) Eles queriam acabar a ala de passista, porque, na verdade, em alguns aspectos, eu concordo, por quê? Porque tem passistas que eles só aparecem só na hora de desfilar, no finalzinho, não comparecem à Mangueira. E o que gosta de aparecer, é brincadeira, vai lá pra se mostrar, pra ver televisão, sai empurrando todo o mundo quando vê uma câmara de televisão. E isso atrapalha o andamento da escola. A harmonia da escola fica prejudicada por causa dessas pessoas, entendeu. Então, eu fico com medo de...39

Segundo os passistas, esse processo começou no momento em que as escolas de samba passaram a acomodar cada vez mais a multidão de componentes nas suas alas, inchando o desfile de pessoas e impossibilitando a visão privilegiada da desenvoltura do passista. Além disso, na consolidação das regras para o julgamento dos desfiles das agremiações na avenida Marquês de Sapucaí, as alas das Baianas, da Bateria, o casal de Mestre-sala e Porta-bandeira se tornaram eles mesmos quesitos de julgamento, enquanto os passistas não foram assim contemplados. Os passistas influenciam, então, em três

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“Índio”, passista antigo de Mangueira, que ainda desfila, em entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista da escola em 13/08/04. 39 José Carlos Torres Cunha, passista antigo de Mangueira, ainda atuando, em entrevista concedida em 10/03/05.


quesitos40: harmonia, que é o entrosamento entre o ritmo do samba-enredo e o canto; evolução, que é a progressão da dança conforme o ritmo do samba e a cadência da Bateria; e conjunto, que é a forma geral e integrada com que a agremiação se apresenta. Mas, devido à característica de desenvolvimento individual do samba do passista, ele é visto sempre como empecilho para a escola alcançar máxima pontuação nos quesitos harmonia e conjunto, pois a apresentação virtuosística do samba no pé pode acarretar uma quebra na marcha geral do desfile e abrir clarões no meio da pista, fazendo com que a escola perca pontos. E marcaram notas pra conjunto. Aí, quer dizer, notas pra conjunto. Entre duas alas tinha um grupo de passistas, quer dizer, saía do conjunto. A ala andava, os passistas tava sambando aqui [atrasados], aí a ala tava andando, quer dizer, saía do conjunto. Aí, a ala de trás só andava, se os passistas andassem aqui. Se não andasse, a escola ia direto, aí criava um buraco. Aí, tiraram os passistas, pra poder, por causa desse conjunto. Conjunto e harmonia, porque você tem que fazer tudo que a escola manda. Você não pode mais sambar individual, fazer uma coreografia, você não 41 pode.

Atrelado a esse gradual “desaparecimento” dos passistas no desfile de carnaval, comenta-se também que o sambar está se perdendo. (...) Só que agora nem todo mundo, que aparece como passista aí, é passista. Eu não, eu gostava mais da...aquele lance, né, sou meia saudosista, né. Aquela passista que realmente samba no pé, sabe sambar, não é rebolar, rebolar não é a mesma coisa que sambar, é outra, né. (risadas) É completamente diferente. (...) Não precisa você... igual a gente vê muitas aí, elas acham que mostrando o corpo talvez resolva o problema. Não é isso não, tem que sambar. (...) Pesquisadora: Bom, você já falou que você gosta mais do jeito como era...saudosista, tal. Você acha que os passistas de hoje, eles ainda carregam essas coisas? Chininha: A maioria, não. Eles não sabem nem o que é (risadas). Sabem não, nenhum deles. Pesquisadora: E você acha que isso vai se perder ou vai virar outra coisa... Chininha: Não, vai ser isso que você tem visto. Não vai passar disto. Não tem como. Tem coisas que não voltam. A gente fica só na saudade, só. Não volta. A mesma coisa o desfile, como era antigamente não volta nunca mais. Até pelo 42 crescimento do carnaval. Fica só na vontade. 40

Para um detalhamento de todos os quesitos julgados durante o desfile de uma escola de samba do Grupo Especial, ver Manual do Julgador 2005, confeccionado pela Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA) 41 Celso Monteiro Pinto, 50 anos, passista antigo da Mangueira e ainda atuante, em entrevista concedida em 19/03/05. 42 D. Chininha, entrevista realizada em 20 de julho de 2005.


Eu acho que não vai mais voltar ao que era antes. Acho que daí pra frente vão criar, vão criar, vão criar e vão esquecer os passos do samba. Se não aparecer ninguém pra reviver os passos do samba. Porque o samba, o samba pé-cadeira-e-cadência 43 está morrendo.

Como já explicitado no início, afirma-se insistentemente que os “tempos de antigamente” da escola de samba não voltam mais. A história dos integrantes de “Mangueira” contribui para consolidar a história da agremiação e a construir uma suposta “tradição” do samba, permitindo à escola de samba reivindicar uma posição particular dentre as outras. E são sempre os relatos dos componentes mais antigos, que sentenciam a perda da “tradição” e do “samba autêntico”, porque os participantes mais jovens dificilmente consideram que não fazem samba “genuíno”. Os passistas mais velhos chegam a falar de seu estilo44 pessoal de sambar como um modelo consagrado, como no citado “samba pé-cadeira-e-cadência”, tentando normatizar passos e manobras corporais. Porém, quando se conversa com vários deles, é patente a ausência de uma classificação padrão dos gestos do samba, pois cada passista cria um nome particular para o movimento que executa. A exaltação do passado não se aplica somente aos passistas, mas a todas as posições dentro da escola de samba. É como se houvesse uma tensão entre as gerações de sambistas, quando a idade avança e os novos vão tomando os lugares de atenção dentro da escola de samba, os antigos se apegam a uma suposta “tradição” ou “autenticidade”, que teriam ajudado a construir e que não volta mais. Aos mais velhos, fica reservada a memória de seus dias no respeito que a agremiação lhes presta ao elegê-los nos principais cargos de direção ou inclui-los na Velha Guarda. É interessante notar o posicionamento relativo dos componentes das escolas de samba. Por exemplo, diante de uma escola de samba rival, antigos e novatos se vêem unidos e integrados. Mas se nos voltarmos para o interior da própria escola os grupos geracionais encontram-se tensionados.

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Nanana da Mangueira, passista antiga da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira apud JESSOUROUN (2000), filme documentário. 44 Mais adiante, quando apresentarmos a performance do passista, o estilo como elemento de diferenciação individual no sambar será melhor abordado.


Essa tensão entre as gerações de sambistas é reveladora da auto-consciência do fluxo histórico-temporal que perpassa a experiência de quem participa da escola de samba. Como bem o pensou Manheim (1982), O problema das gerações é importante (...) à compreensão da estrutura dos movimentos sociais e intelectuais. Sua importância prática torna-se evidente logo que se tenta obter uma compreensão exata do acelerado ritmo de mudança social...

(MANHEIM : 1982 , p. 67) Nessa direção, o descompasso entre os mais velhos e os mais novos, como fica caracterizado por essa retórica da perda de tradição, de autenticidade, de samba no pé aponta que os componentes da agremiação carnavalesca reconhecem o movimento intenso de transformação social que perpassa seu fazer, pois não é possível reviver ou manter o que se foi agora no presente ou no futuro da festa de carnaval. A tensão de gerações mostra uma concepção nativa de história progressiva e inexorável. Cabe aos integrantes antigos entesourar sua experiência carnavalesca e se tornar referência dela. Títulos como Baluarte da escola de samba e a criação da ala da Velha Guarda são exemplos desse desejo de ressignificar o passado na organização carnavalesca. Porém, ao mesmo tempo em que os mais velhos vão ocupando lugares de comando e destaque da escola de samba, não lhes é possível promover a manutenção da sua experiência no acontecimento do desfile. Fica aos integrantes mais jovens a incumbência de trazer consigo a mudança, mesmo que aos olhos dos mais velhos as modificações assim introduzidas contribuam apenas para desvalorizar o que consideram o “bom” samba. Porque nada pode voltar a ser igual ao que era antes, restando apenas lamentar a “perda”. Isso, é claro, está intimamente vinculado à dinâmica competitiva de apresentação das agremiações durante o carnaval e ao processo de intensa transformação social em que elas participam, pois a inovação é o que pode garantir o título de escola de samba campeã. A retórica da perda e conseqüentemente essa concepção de história progressiva no fazer carnavalesco também é reproduzida em outros âmbitos de reconhecimento social. Com relação aos passistas, a “morte” sempre anunciada do sambar pode ser encontrada já em 1969, em artigo45 que veicula a perda da “autenticidade” popular dos desfiles das 45

Jornal do Brasil. 15 de janeiro de 1969. “Quanto custa um carnaval”. Acervo da Biblioteca Amadeu Amaral, do Museu Edison Carneiro, no Rio de Janeiro.


escolas de samba devido a “invasão” das camadas médias sociais. O passista começava a ser afetado porque acabou “perdido” no meio de milhares de figurantes. Em 1978, Leopoldi também testemunhava. Nos moldes em que o carnaval das Escolas de Samba se desenvolve, o passista parece perder gradativamente importância do ponto de vista do conjunto da apresentação. A tendência ao gigantismo das Escolas aliada à preocupação dos artistas profissionais, contratados para elaborar o enredo, de compor um espetáculo cênico de grandes proporções tem dado proeminência aos conjuntos de componentes sobre os passistas isolados. Nas circunstâncias atuais, portanto, a ala vai-se definindo como a unidade sobre que a composição do enredo se estrutura, à medida que o passista, enquanto componente isolado, tende a uma posição secundária no desfile; apesar de ainda se observarem grupos de passistas em destaque no cortejo carnavalesco. Nesse sentido, não deixa de ser significativo o fato de não haver qualquer item – dentre os dez relacionados para o julgamento do desfile das Escolas – que se refira à apresentação de passistas, o que deve não só não estimular o sambista na apresentação de sua arte como provavelmente concorrer para que sua participação se marginalize no enredo das Escolas, nesse processo de transformação que as tem 46 envolvido.

Passamos o ano 2000 e, felizmente, os passistas ainda estão presentes nos desfiles carnavalescos da ‘Mangueira”; com algumas mudanças de apresentação no decorrer do tempo, como já vimos, mas ainda presentes. Além da tensão entre gerações, uma outra dimensão que se agrega na constituição do que chamamos de “retórica da perda” (GONÇALVES: 2002) dentro do mundo do samba é a tensão entre a predominância plástica e a predominância brincante do desfile de carnaval. Nesses últimos tempos, o passista sente-se atingido pela tendência de valorização do aspecto “luxuoso” no desfile, introduzido pela Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis em 1984, no qual predomina a aparência plástica e o destaque das fantasias e carros alegóricos elaborados. R: É, tem dificuldade, você não consegue ver, ninguém consegue mais ver o passista. Por isso que o carnaval está se transformando tanto, numa coisa tão programada, militarizada, tão cheio de regras e as coisas bonitas do samba, que são as mais simples, as letras, como ele falou, o samba de quadra, aquela coisa do pessoal ser ali do morro, de, sabe, essa coisa tradicional, antiga, está se desfazendo. João Carlos: O desfile técnico que começou a “Beija-Flor”, a “Beija-Flor” vem com desfile técnico já há bastante tempo, a “Mocidade”, a “Imperatriz”, eles 46

LEOPOLDI (1978), p. 70.


vêm ganhando o carnaval, com esse tal de desfile técnico. Desfile técnico, pra mim, é acabar com o samba, porque a gente vai marchando, aí acabou. Aí, vai ser que nem grandes sociedades...você, sabe, vai ali. Então, eu não acho legal. Acho legal o desfile...claro, que por causa dos quesitos, tudo mudou, tem a evolução, tudo bem, vamos acompanhar, mas tem coisas que não tem que mudar. Deixar o passista livre. Outra coisa é a roupa do passista, que é muito pesada, entendeu. Já é cansativo sambar, sambar 80 minutos indo pra lá, indo pra cá, porque dá mais de 80 47 minutos, porque a gente faz zigue-zague, entendeu. E ainda com roupa pesada...

Exemplar do que Cavalcanti (1994 e 1999) denominou tensão das categorias “visual” e “samba”, esse depoimento detalha de que maneira a atual ênfase nos elementos plásticos do desfile gera impacto sobre a performance do passista. O privilégio do sentido da visão no cortejo carnavalesco tende a levar o evento para o nível de espetáculo, criando uma clara divisão entre espectador e folião. O espectador é o que tem a vista do outro que brinca, e, por isso, tem uma posição que o possibilita ter um ponto-de-vista mais geral do desfile. Já o folião é o que brinca e desfila com espontaneidade, privilegiando a vivência da festa. A dinâmica do “visual”, ao evidenciar o plano geral, prefere o todo ordenado e coreografado. É o que nosso informante chamou de “desfile técnico”, que quando organiza os milhares de componentes no desfile, acaba por delimitar o ritmo individual conforme o ritmo coletivo, quase como numa “marcha”. Para um passista, cuja evolução coreográfica é particularmente individual e exigente de improvisos, isso é visto como um limitante de sua atuação. No carnaval de 2005, levantou-se a polêmica do uso de coreografia de passos marcados versus o samba48. Após o sucesso do carro alegórico da Escola de Samba Unidos da Tijuca no ano anterior, representando o DNA humano, as agremiações dividiam-se entre render-se à coreografia ou criticá-la. Os defensores da coreografia diziam que a evolução com passos marcados seria mais um elemento que ajuda a levar o enredo, pois “a coreografia dá unidade e conjunto à escola”49. Já os detratores defendiam que “a comunidade precisa se soltar na avenida”50 e a coreografia tira a espontaneidade e liberdade 47

José Carlos Torres Cunha, passista antigo de Mangueira, ainda atuante, e sua companheira na época, R., em entrevista concedida em 10/03/05. 48 Globo Online. 18 de janeiro de 2005. “O efeito DNA”; Globo Online. 18 de janeiro de 2005. “Chico Rei: quando a coreografia sufoca o samba”; Jornal O Dia. 22 de janeiro de 2005. “As coreografias da discórdia”. 49 Depoimento de Max Lopes, carnavalesco da Escola de Samba de “Mangueira” In: Jornal O Dia. 22 de janeiro de 2005. “As coreografias da discórdia”. 50 Depoimento de Renato Lage, carnavalesco da Escola de Samba “Salgueiro” In: idem.


de festa do componente. Interessante notar que a novidade trazida pela Unidos da Tijuca foi a composição de um carro alegórico com a coreografia de gestos humanos substituindo os ingredientes plásticos - isopor, resina, laminados e etc; mas a discussão levantada pela imprensa se referia também à utilização de coreografia pelas inúmeras alas de componentes que desfilavam no chão. Max Lopes, carnavalesco de “Mangueira” em 2005, declara: “Gosto muito de coreografias; sem elas, a escola fica parecendo com bloco de sujos”51. Para o passista mangueirense, isso significou a recomendação da diretoria de carnaval para que não evoluísse para os lados, nem pra trás, seguindo sempre em frente. Outro elemento que aponta para uma valorização do pólo “visual” em detrimento do pólo do “samba” é a recente exigência a partir do final dos anos 90 dos passistas vestirem fantasias do enredo. Celso: Eles mudaram isso, tem uns cinco anos atrás (...) A roupa do passista era individual, era separada, o passista fazia a roupa dele. Pesquisadora: Ah, é. Celso: É, a gente tinha esses passistas, esse grupo de passistas (...) mas o passista fazia a roupa dele. Aí, quer dizer, nós não fazíamos...passista não era figura de enredo. Agora, não, agora passista tem que ser figura de enredo. Pesquisadora: Tá, e isso até que a gente tava conversando, o carnavalesco pensa numa roupa que ás vezes não dá pra vocês fazerem o movimento... Celso: É, por causa da figura de enredo que nós somos. E eles não têm aquela criatividade, que o passista, ele tem que fazer uma roupa, que é uma roupa volumosa, que dá volume, que faz volume na perna, pra ele poder evoluir. Uma 52 roupa que prenda, o passista não dá pra se sair.

Se até pouco tempo atrás, o próprio passista confeccionava sua roupa de carnaval de modo a otimizar sua performance no desfile. Hoje em dia, a imposição do uso da fantasia para construção do enredo aparece pro passista como mais um empecilho para a liberdade de seus movimentos corporais. Porém, se os últimos tempos apontam para a perda gradativa da importância do passista no conjunto da agremiação, concordamos com Cavalcanti (1994) que as categorias “visual” e “samba” são universos sociais e simbólicos complementares, que compreendem o desenvolvimento das escolas de samba ao longo do tempo. E por isso, dificilmente a dimensão do “samba” e o sambar dos passistas podem desaparecer, porque são constituintes da própria forma com que o carnaval é incorporado pelas agremiações. 51 52

Depoimento de Max Lopes In: idem. Celso Monteiro Pinto, 50 anos, cit.


Transformam-se as maneiras com que o pólo “samba” se faz presente, mas permanece a tensão “visual” e “samba”. Se a apresentação dos passistas não é prestigiada como quesito de julgamento do desfile das escolas de samba, organizado pela LIESA, ela é incentivada em prêmios anuais conferidos por importantes órgãos da imprensa carioca53. E às vezes a multidão de foliões num desfile pode servir de contraponto à evolução do passista, realçando-a. Celso: Se você quer ganhar o Estandarte de Ouro, por exemplo, você tem que ter uma coisa que desenvolva, e que dê brilho, e que dê brilho, que chame a atenção. Que o passista é um palhaço. Que o passista é o centro de atenção da escola, é ali que a escola vai mostrar que tem samba no pé ou não. Dois mil não 54 sambam, mas um sambando naquele meio, ele chama a atenção de todos. É isso. Pesquisadora: E você não acha que as fantasias atrapalham a evolução, os carros alegóricos e as outras alas tiram a visibilidade do passista... Matheus: Não. Eu acho ...que passista tem que se diferenciar, entendeu. Isso eu acho que não. Eu acho a questão da fantasia assim, eu nunca desfilei com a fantasia leve, com uma fantasia boa. Assim, por exemplo, a minha de Estandarte, eu ganhei o Estandarte com uma fantasia de sandália, entendeu. Imagina, choveu antes e fica aquele negócio assim escorregando, meu pé pra frente, meu pé pra trás, meu pé pra frente, meu pé pra trás...e deu pra levar o Estandarte. Não, ele tem que se diferenciar, entendeu. ´Cê vê, a ala vem assim, ó, se movimentando, o passista 55 vem sambando!

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Uma maior atenção sobre as formas de premiação e reconhecimento social do passista no desfile carnavalesco será dada no item seguinte. 54 Celso Monteiro Pinto, 50 anos, cit. 55 Matheus Olivério da Silva Rego, 18 anos, passista jovem da Mangueira em entrevista realizada em 22/07/2005.


4.2 – Carreira de passista Para se entender em que medida é possível chamar de carreira a trajetória do passista dentro de uma escola de samba, é preciso retomar a consideração de que a atuação e organização de uma tal agremiação ultrapassa os poucos dias do calendário anualmente reservados ao carnaval. Como bem verificou Goldwasser (1975), “em cima do acontecimento intermitente do Desfile, se construiu uma estrutura estável e continuada e a Escola de Samba pôde emergir como um grupo social ordenado, fixado num espaço determinado e regulado por um padrão definido de relações sociais”56. O evento que justifica a existência da escola de samba e pelo qual ela anseia é o desfile carnavalesco, mas ao longo do ano, outros eventos como a pesquisa do enredo, os concursos da escolha do samba-enredo, da rainha da Bateria, os inúmeros ensaios, os preparativos no barracão fazem a organização e os vários integrantes encarregados de cada parte atuar interruptamente. Como já apresentado, uma escola de samba possui uma organização formal e outra para apresentação no desfile. As pessoas tornam-se participantes da agremiação de diversas maneiras, mas no geral as posições podem ser divididas em administrativas, técnicas e flutuantes. As posições administrativas se referem aos cargos de trato burocrático e de articulação com outros setores da sociedade mais ampla, ocupados por presidentes, vicepresidentes, secretários entre outros. As posições técnicas são as legitimadas por um “saber carnavalesco”, de recrutamento e aprendizado específicos, que podem ser vistas, por exemplo, nos compositores e ritmistas. Por posições flutuantes, faço menção às pessoas que participam esporadicamente, sem maior envolvimento com a escola, como os muitos que compram uma fantasia para desfilar só no dia de carnaval. Uma vez que a escola de samba institucionalizou-se enquanto organização perene, não mais como evento provisório dos dias de carnaval, foi possível uma apurada especialização de funções em seu seio, que possibilitou o desenvolvimento de carreiras, isto é, caminhos de certo modo recorrentes, para algumas das posições de seus componentes. Carreira será entendida aqui como processo de contínuo desenvolvimento do indivíduo (BECKER, 1977) no interior da organização de uma escola de samba. Enquanto 56

GOLDWASSER (1975), p. 10.


ciclo que acompanha o desenrolar da vida natural de uma pessoa – nascimento, crescimento, maturidade e morte - a carreira pode passar por fases de um ciclo social da vida (HUGUES, 1971), marcada muitas vezes por passagens de status de um estado a outro. Antes de detalhar como se desenvolve a carreira de passista, é preciso pontuar que ela se desenvolve na tensão entre o que chamaremos aqui de “mundo do trabalho da sociedade mais ampla” e o “mundo do samba”. Nenhum passista consegue viver exclusivamente de sua posição na escola de samba, pois em termos financeiros é uma atividade inconstante que não gera pecúnia necessária para suprir suas necessidades de vida. O passista não recebe remuneração permanente da escola de samba, apenas os que participam das apresentações do Grupo-show57 da agremiação recebem um pagamento, o “cachê”, conforme são solicitados. Por isso, todos os passistas com que tive contato sempre sustentavam uma outra ocupação com a qual se mantinham economicamente, eram também secretárias, motoristas, técnicos de televisão, entre outras. O status do mundo do trabalho na sociedade mais ampla é diferente do status do mundo do samba. Enquanto o primeiro pode ser caracterizado pela diferenciação de educação formal e provisão econômica, o segundo é guiado pela diferença na aquisição de um saber informal e a capacidade de expressão dele. Porque possuem características assim diferentes, existe, sim, uma tensão entre a dimensão do mundo do trabalho e a do mundo do samba, pois os passistas têm muitas histórias de noites passadas em samba e viagens de apresentação realizadas em prejuízo dos seus empregos. Porém, mesmo que as dimensões das ocupações sejam contrárias, elas estão relacionadas, pois a carreira de passista permite que ele seja recrutado pela sociedade mais ampla para ocupar postos como os de modelo, de figurante em obras cênicas, de professor(a) de dança, entre muitos, justamente devido a apresentação do passista na escola de samba. Dessa maneira, a demonstração de talento no mundo do samba pode ajudar a desenvolver o status no mundo do trabalho envolvente, criando uma colaboração entre eles.

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Mais adiante serão tratados os lugares e espaços diferenciados nos quais os passistas têm presença dentro da escola de samba.


Assim esclarecido, passo a descrever mais de perto como se desenvolve a carreira de passista dentro da escola de samba tendo por base a vivência e os depoimentos realizados junto de alguns deles.

4.2.1. Tornar-se passista Existe uma imagem difundida de que “quem samba já nasce sabendo”, que “samba é coisa que ‘tá no sangue”58, como se a habilidade de realizar os movimentos corporais do samba fosse um dom divino ou de raça. Muitas vezes, os próprios passistas repetem tais afirmações, mas se atentarmos para o relato de vida deles, percebemos que não é bem assim. Índio, que tem hoje 41 anos, nos conta que, desde os seis, freqüenta as quadras e desfiles de escolas e blocos carnavalescos. Seu pai, freqüentador de um bloco tradicional da zona norte, o Paraíso do Tuiuti, já o levava para desfilar como destaque mirim do citado grupo. Foi também o pai do passista quem, pela primeira vez, o apresentou à quadra da Mangueira ainda menino. Índio enfatiza que foi amor à primeira vista e que a partir daquele momento esperneava pro pai levá-lo à Mangueira. Suas primeiras experiências como passista tiveram início do seguinte modo: Aqui [na quadra da Escola de Samba da Mangueira] aconteceu o seguinte, tinha aqui o Afonso, que era o diretor de harmonia, né. Na época o presidente era o Seu Djalma Santos, né. E não podia... eu era pequenininho, e eu atrapalhava. Tinha uns ferros ali, passava por debaixo e ficava sambando na quadra. E o Afonso tinha uma varetinha, ele batia com aquilo na minha cabeça, “Já falei pra você não ficar aqui!”, e batia. Eu falei: “ Porra, como é que eu vou...”. Então ele dava um mole, aí, pum, ia de novo. E era essa agonia. Até que o Seu Djalma foi, “Mas, porra, deixa o menino sambar.” O presidente. Aí eu sambei. Aí o Seu Djalma falou assim: “Ó, ele vai sair na ‘Vê se Entende´ [uma ala da escola que concentrava os passistas]”. Eu saí naquela época com os passistas de ponta, daqui da Mangueira, que era o Moisés, né, o Milton. 59

Celso, 50 anos, teve uma trajetória diferente, vindo de família humilde e perdendo o pai quando era muito jovem, sua mãe aproveitava os eventos realizados na quadra da Mangueira para vender bebidas e lanches do lado de fora das festas. Celso, ainda criança, 58 59

Ver GIACOMINI (1992), cap. II – Aprendendo a ser mulata, 2.3. “Se você nasceu, já quer sambar”. Entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista em 13/08/04.


ajudava nas atividades de vendedora ambulante de sua mãe e só ouvia o samba tocar do lado de fora da quadra. Diz que começou a fazer uns sapateados pra ganhar uns trocados, pois quando dançava, lhe jogavam dinheiro pela sua apresentação. Começou dançando “por necessidade”, até que foi “tomando gosto”. (...)Eu levava as coisas da mamãe até o Garnier [clube esportivo onde a “Mangueira” realizou eventos provisoriamente nos anos 70], aí montava o churrasco dela, tomava conta de carro...quando dava duas horas da manhã eu entrava dentro da quadra [da escola de samba de Mangueira], aí ia sambar. Na época, que a gente sambava, eles faziam aquela roda de samba, a gente sambava e ganhava dinheiro, eles jogavam dinheiro pra gente pegar (...) você nunca se abaixava pra pegar o dinheiro na mão. Aí, dava outros passos, eu fazia outros passos, né, pra poder pegar o dinheiro. (...) Daí que me pegaram pra mascote da ala deles. Porque a Ala “Comigo Ninguém Pode”, a gente fazia a festa deles, todo sábado de carnaval, fazia a festa deles, lá no Rio Comprido. (...) E tinham panos que sobravam, aí, pegaram, falaram, né, “O pano que sobrar, vai ser do nosso mascote, a fantasia do nosso mascote”, que era eu. Aí, eu desfilava. Eu desfilei uns dez anos, uns dez a onze anos só de mascote. (...) Pesquisadora: E quando é que você sentiu que era um passista? Celso: Não foi eu, foi a própria escola, a própria Mangueira. Inclusive, eu tenho um diploma aí. Um diploma da Mangueira, cheio de assinaturas, eu tenho um diploma cheio de assinatura, não sei onde ele ta localizado agora. (...) Porque é assim, o pessoal da Mangueira, tá, viu eu sambando e “A gente elege você como passista”. 60

Já José Carlos, 52 anos, é um caso que coloca em questão a afirmação que “samba é coisa de gente negra” ou “samba é coisa de gente do morro”, pois José Carlos é uma figura branca e loura, que sempre morou na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Nascido em Recife, chegou à cidade aos 18 anos e começou a freqüentar inúmeras agremiações. Cheguei, aí fui na [escola de samba] Portela e tal, não gostei. Bom, não gostei... pra mim era o máximo porque era a primeira vez que eu tinha ido a uma escola de samba. (...) Aí, e eu não satisfeito porque eu tinha ido na Portela e a Portela ensaiava ali no “Mourisco” aqui em Botafogo. Eu não satisfeito, eu fui pro Portelão, lá em Madureira, que agora é Portelão, mas antes era uma quadra antiga. Aí, tudo bem, aí porque eu tinha aquela preocupação do morro, né. O morro, apesar de hoje tá muito mais violento, mas naquela época a malandragem era muito mais ferrenha. E aí, eu fui à Mangueira. Cheguei na Mangueira, pronto! Tô até hoje. R: Mas você foi como? Quem te convidou? João Carlos: Ninguém me convidou. R: Você inventou na sua cabeça de ir, de ir sozinho. João Carlos: É, ninguém me convidou, não. Pô, eu escutava samba da Mangueira, samba do Salgueiro, Portela, essas coisa. Quer dizer, a Portela porque era mais 60

Entrevista concedida em 19/03/05.


cômodo pra mim, porque eu morava em Botafogo e a Portela era ali no “Mourisco”, em Botafogo também. Pumba! Eu fui. Aií, no Portelão, muito mais longe, mas falaram assim pra mim...eu falei “Puxa, mas não tem mais coisa? (...) Isso em 70, 71. 71. Aí falaram, “Não, mas vai no Portelão, que o Portelão você vai ver a autêntica Portela, que aqui é coisa de zona sul, tem gringo, tem isso”. Eu já era loirinho, tinha cabelo, hein (e passa a mão na cabeça com cabelos loiros bem rentes). Hoje eu não tenho, mas na época eu tinha muito cabelo. E era loiro, eu me confundia com gringo também. Pronto. Fui, fui parar no Portelão. Na época, eu não tinha carro, fui pra lá de ônibus, bus (risada). Pumba! Fui pra lá. Aí achei um pouco melhor que lá no Mourisco, pelo ritmo, né, a coisa mais autêntica, mais tradicional. E tudo bem. Aí, passou tal. Passaram-se duas, três semanas, eu falei “Vou à Mangueira”. Aí eu tinha uns amigos, falando “Não, vamo pro Salgueiro, rapaz, Salgueiro tá não sei o quê, pá-pá-pá, pá pá-pá . E aí eu falei, “Não, vou pra Mangueira”. Isso, todos foram pro Salgueiro, e eu fui pra Mangueira. Todos, eram três, três colegas, acho. Aí eu fui pra Mangueira, cheguei na Mangueira e tô até hoje, não saí mais. E...engraçado que eu...eu, no primeiro ano que fui na Mangueira. Eu cheguei na Mangueira em 71, em meados de 71, logo depois do desfile, né. Pesquisadora: Você tinha visto o desfile? José Carlos: O desfile de 71, não. Mas como foi nos meados de 71, tipo, começando o samba, que era gostoso antigamente. (...) Então, eu chegava na Mangueira, aí eu ia todo sábado. Mas aí, isso antes da inauguração do Palácio do Samba, quando foi 72, inauguraram. (...) Aí a Mangueira só não tinha samba na terça-feira, depois que inaugurou o Palácio do Samba. Quarta, quinta, sexta, sábado domingo, segunda; terça era folga, eu ia todos esses dias (risadas). Todos os dias...eu fiquei assim... R: Ou melhor, todas as noites. José Carlos: Todas as noites, eu fiquei assim uns dois anos, três anos indo todas as noites. E aí pôxa, com aquele meu passinho, meio tímido, né, porque eu agora sou mais extrovertido, mas eu era meio recatadozinho, meio tímido. Aí eu começava a fazer ali uns passinhos. Aí no primeiro ano eu desfilei na Ala dos Seresteiros, no meu primeiro ano. R: Eles te convidaram? José Carlos: Não. Não de passista, de ala. Ala você não precisa... R: Mas foi iniciativa sua ou a Mangueira te chamou? José Carlos: Não, minha. Me chamou pra passista depois. R: Mas até então... José Carlos: Até então, não. Até então eu era um desconhecido, né. Eu sambava um pouquinho assim, mas, pôxa, mas via algum pretinho lá, sambando, aí comecei a ver o Índio, que é meu amigo até hoje. Aí ficava na minha todo tímido. Aí, em 73 também, a Mangueira foi, aí eu fui primeira vez campeão pela Mangueira, “Lendas do Abaeté”. [Começa a cantar] “Iaiá mandou ir à Bahia / no Abaeté para ver sua magia / sua lagoa, sua história sobrenatural / que a Mangueira traz pra esse carnaval / Janaína, nagô”, conhecidíssima aí. Eu desfilei em ala, aí saí, desfilei na Ala Hippie, que é do Paulinho Ramos (...) aí nós ganhamos, fomos pra Bahia com a Mangueira. Olha só, eu tava cheio de pose. Quando foi no ano seguinte, me chamaram para desfilar pra...me viram na quadra sambando, igual um capetinha... R: em que ano? José Carlos: 74. Aí eu comecei a desfilar de passista, aí era na Ala Vê Se Entende, uma ala que era do seu Djalma dos Santos, falecido, que era escrivão do bicho, do morro da Mangueira. O pai dele era escrivão do Zinho, que era o porta-voz, hoje tá meio doente...Bom, aí falou, “Você não quer desfilar de passista?” Aí eu falei “ Claro que eu queria”, e eu todo assim, né. Mas não tava com tanto nervosismo, já tava dois anos já na Mangueira, né. Aí eu fui, “Que que tem que faze?”, “Ua, cê


tem que sambar, ora!” (risada). Aí, pronto. Aí fui meio tímido no início, mas 61 depois, de lá pra cá foi uma coisa mais tranqüila.

José Carlos já desfila como passista pela Mangueira há mais de 30 anos. Nas experiências apresentadas dos passistas mais antigos da escola de samba em apreço, percebemos que eles não começaram a sambar querendo ser passista. Na realidade, em todos os casos, foi uma outra pessoa, sempre um integrante da escola, que os reconheceu como tal ( Aí o Seu Djalma falou assim: “Ó, ele vai sair na ‘Vê se Entende´” / Porque é assim, o pessoal da Mangueira, tá, viu eu sambando e “A gente elege você como passista” / Quando foi no ano seguinte, me chamaram para desfilar pra...me viram na quadra sambando, igual um capetinha...). Aqui é possível apreender que ninguém nasce passista, é sempre uma outra pessoa que investe o passista com esse título. Outra coisa que chama a atenção no depoimento dos nossos informantes é que todos eles tiveram uma relação anterior com o “mundo do samba” antes de se tornarem passistas, seja a família que já está envolvida com tal mundo, seja o trabalho ambulante que serve a essa dinâmica, seja o prazer de freqüentar a quadra de samba por dois anos. É preciso experimentar do samba e conviver no samba para poder ter uma posição dentro dele. No caso de Índio e Celso, eles se iniciaram na folia carnavalesca ainda crianças, como mascotes, numa época em que o pertencimento à escola de samba era acionado principalmente pelas alas. Zé Carlos, como iniciou contato com o “mundo do samba” já quase adulto e sem conhecidos influentes que o apresentassem, teve de comparecer assiduamente em todos os festejos da agremiação durante dois anos e desfilar no carnaval numa ala comum até ser reconhecido como integrante “mangueirense”. De modo diferente, os passistas mais jovens começaram a ganhar participação na escola de samba por meio do braço de organização infantil “Mangueira do Amanhã”. Aqui o contraste geracional entre integrantes antigos e novos é dado pela diferença de experiências na maneira de socialização no mundo do samba. Pesquisadora: Eh, o que é que você lembra de quando você começou a sambar? Da sua memória... Amanda: Ah, nesses ensaios da Mangueira do Amanhã... Pesquisadora: Ah é, você já freqüentava... 61

José Carlos e R., companheira dele na época, em entrevista concedida em 10/03/2005. Expresso aqui meu profundo agradecimento às intervenções de R., que como ficou patente, foram de extrema perspicácia.


Amanda: Isso. Eu tinha sete anos. Pesquisadora: Sete anos! Amanda: Eu colocava uma “sainha” [saiazinha] amarela, na época era lambada, né, que se usava. Aí eu colocava aquela sainha toda segunda-feira. Ainda é, hoje em dia ainda é nas segundas os ensaios. (...) Chegava na quadra, colocava a saia pra poder, poder ensaiar.62 (...)Mas aí, minha história com o samba, com a dança começou mesmo com doze anos de idade, que foi quando eu fui fazer um teste pra passista mirim na Mangueira do Amanhã. Que eu passei, né. Pesquisadora: Ta, mas antes de entrar pra Mangueira do Amanhã? Matheus: Fiz, fiz projeto [aulas do curso de passista] também. Passei no teste de passista, logo em seguida eu fui pro projeto, foi ao mesmo tempo.63

Fundada em 1987, a “Mangueira do Amanhã” reúne jovens e crianças em posições e alas correspondentes à estrutura de desfile da “Mangueira-mãe”. A escola de samba mirim está integrada com programas sócio-culturais e projetos educativos, como as aulas de passistas já mencionadas. E desde 1988 realiza desfiles completos com enredo voltado para a presença da sua dita “comunidade mirim”. Fantasias não são comercializadas como no desfile oficial e, aparentemente, crianças de fora da dinâmica da escola não participam. Cada vez mais, a escola de samba de “Mangueira” está organizando seus próprios quadros de componentes. Ela tem investido na formação de crianças e adolescentes nas posições mais técnicas do samba, como as aulas de Passistas, aulas de Bateria, aulas de Mestre-sala e Porta-bandeira. Em 2005, só puderem desfilar na ala de passistas da Mangueira do Amanhã, as alunas que frequentavam o curso de passista. E para as vagas na Ala de Passista da escola maior, a preferência tem sido dada para os participantes da escola de samba mirim. É, a gente procura preservar, até pra você não ficar precisando do elemento de fora, entendeu. Enquanto nós tivermos esse grupo aí, fazendo o curso de passista, aí elas vão pra Mangueira do Amanhã. Por exemplo, as duas meninas que foram rainha e princesa da Mangueira do Amanhã no ano passado ou retrasado,elas foram pra ala de passista na Mangueira. Então, essa...a Patrícia, a Claudiene, eh, várias dessas meninas que são da ala de passista da Mangueira hoje, elas foram da ala de passista da Mangueira do Amanhã. Então, nós não estamos precisando trazer passista de escola de samba nenhuma pra cá, porque nós temos as nossas. Nossas daqui, produzidas daqui. É a mesma coisa bateria, nós temos a bateria. É o maior sufoco que a gente sabe que a direção da bateria tem na hora de selecionar aqueles homens que têm que ir pro desfile, porque muita gente fica chorando. E não é ninguém que 62

Amanda de Almeida Matos, 22 anos, rainha da Bateria de 2005 em entrevista concedida em 12/07/2005. Matheus Olivério da Silva Rego, 18 anos, passista jovem da Mangueira em entrevista realizada em 22/07/2005.

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vem de outra escola pra enxertar a bateria da Mangueira, como acontece que nós sabemos que elementos da nossa bateria que vão enxertar a de outra, tá entendendo (...) Mas tem gente assim, querendo vir [participar da Ala de Passista]. Mas aí a gente dá preferência a quem? Às garotas nossa que vem às vezes da Mangueira do Amanhã, são essas é que vão pra vaga. Não adianta a gente abrir inscrição pra não dar problema, porque se você abrir, aí todo mundo quer, aí complica, melhor não 64 fazer.

Se no passado o recrutamento e a formação dos integrantes das posições mais técnicas eram realizados pelas diversas alas que compunham a escola de samba – Ala “Vê Se Entende”, Ala “Comigo Ninguém Pode” - , atualmente, os programas sócio-educativos e a agremiação mirim substituíram as antigas alas nessa função socializadora. Porém, ainda que muitos dos passistas jovens provenham desses projetos de educação empreendidos pela escola de samba, participar das aulas de passista não é caminho certo para ser considerado um passista da escola. É preciso ser chamado pelos responsáveis da Ala de Passista para participar dela. Foi comentado por alguns pesquisados a existência de um dia aberto de seleção prévia de novos passistas, mas fui informada pela atual comissão de carnaval que isso já não ocorre mais, confirmando a opção da escola de samba em recrutar os jovens que está formando. Na Ala de Passista, há as vagas permanentes, como a dos passistas mais antigos, que têm presença garantida no desfile de carnaval, devido o reconhecimento de sua habilidade e de sua história na escola de samba, mas há as vagas flutuantes, que são preenchidas por meio do recrutamento realizado pelo responsável da ala a cada ano, ligado à comissão de carnaval da escola. A Ala de Passista tem apenas cerca de 40 componentes, sendo a grande maioria formada de mulheres65. Se a convocação para integrar a Ala de Passista é o reconhecimento da habilidade do indivíduo, o convocado só se sente realmente como um passista após passar pela experiência de desfilar no carnaval na posição de passista. ...foi depois que eu acabei o desfile. Eu acabei o desfile, aí depois nós fomos tomar uma cervejinha, aí eu fui pra casa. Eu fui pra casa, aí eu fui pensando, assim com minha fantasia. Não era essa fantasia de hoje, não, essas coisas desse tamanho. Era um chapeuzinho de malandro, uma roupinha leve. Mas na época, eu quis chegar em 64 65

D. Chininha, 61 anos, atual vice-presidente, entrevista realizada em 20 de julho de 2005. Mais à frente será explorada a questão de gênero que perpassa a posição do passista.


casa com a roupa de passista pra todo mundo ver que eu era...(risadas). E aí é que “caiu a ficha” [dar tento de], “Puxa vida, eu desfilei!”. Primeiro falaram...que eu era magrinho, muito magrinho, “Você não vai conseguir, não. Cê não tem...Cê não vai conseguir.” Aí, quando eu cheguei em casa, “Gente, eu sou passista”, aí “caiu a ficha”, aí pronto. Nunca “tirei onda” [vangloriar-se], não, mas fiquei muito 66 orgulhoso.

Como um rito de passagem que acompanha a mudança de status, a festa carnavalesca realiza simbolicamente a chegada a uma nova posição para o integrante, marcando a experiência individual. Como bem coloca Turner (1974), os rituais de elevação de status transferem os indivíduos “de forma irreversível de uma posição inferior a outra superior, num sistema em que tais posições se encontrem institucionalizadas” (opus cit, p. 172). No caso, a transição efetuada foi sair de ser um componente comum para deter uma posição mais especializada que é a de passista de uma escola de samba. A participação no desfile carnavalesco é também o momento que confirma e reafirma o passista em sua posição, pois sem pisar a avenida nenhum deles pode ser assim considerado. Não adianta você fazer show em Paris, show não sei aonde e não desfila. Passista que é passista tem que ter um palco, e o palco é a avenida. É um palco definitivo que você nunca pode largar.´Cê pode andar em qualquer lugar, a emoção de sambar ali dentro [na avenida], não existe.67

4.2.2. Vocação, dom e samba "Samba não se aprende na escola, a gente nasce com o dom", que nós temos várias pessoas aqui na escola, que são nascidas e criadas na escola [de samba], faz parte e não tem nem ritmo, entendeu. Não sabem sambar e não adianta ensinar que não vai aprender. E tem pessoas que não tem nada a ver, nunca 68 participou e tem aquilo no sangue, é só chegar e mostrar, entendeu.

A aparente polarização entre “aprendizado” e “dom” no samba é recorrentemente recobrada pelos sambistas, às vezes como modo de valorizar seus saberes e habilidades, às vezes para reivindicar uma exclusividade. Apesar da insistente contraposição entre os termos, os relatos dos diversos passistas nos apontam que todos passaram por uma certa

66

José Carlos, 52 anos, em entrevista dada em 10/03/2005. Matheus Olivério da Silva Rego, 18 anos, cit. 68 D. Chininha, 61 anos, atual vice-presidente de “Mangueira”, cit. 67


formação, uns viveram um aprendizado informal, outros tiveram um aprendizado formal do sambar. Por aprendizado informal nos referimos à maneira de aprender através da própria experiência, de estar num local de samba, testar os movimentos em si mesmo e observar os passistas mais experientes e habilidosos. Esse modo vem misturado com a esfera do lazer, de aproveitar momentos de descontração com os amigos, ou do cotidiano, com os familiares ou afazeres de todo dia. Eu já cheguei lá [na quadra da escola de samba] sambando do meu jeito, né, do meu jeito, molequinho, seis anos. Aí comecei a sambar, aí teve um cara, esse cara ainda tá vivo, o Canário. Eu nunca vi ninguém sambar igual aquele cara, porque ele que me ensinou a fazer o peão, uma coisa que eu faço, eu guardo isso, já eu ainda consigo fazer. E o Canário que me ensinou muita coisa. Mas o gozado disso tudo, é que depois assim de um ano, eu já adorei a idéia de sambar, eu não parava sambar. Sambava em casa, no colégio, em tudo quanto era lugar eu sambava. (...) E o Canário...o Paulinho também lá do morro da Caixa D´Água, os caras sambavam pra caramba. (...) Aí achei que eu sambava, mas se eu sei algumas coisas, sim, eh, que eu guardo até hoje, eu devo ao Canário, porque o Canário, pra mim, foi meu grande mestre, foi meu grande mestre.69

Alguns estabelecem uma ligação frouxa de mestre e aprendiz, como no caso acima, mas isso não é recorrente, familiares e amigos podem fazer esse papel. Eu acho que isso é de berço realmente. Porque nunca ninguém me ensinou. Às vezes que minha mãe, que ela fala, “Ó, esse braço, tá muito rápido. Ih, você não tá rebolando na cintura, mexe mais esse quadril.”70

Já o aprendizado formal é alusivo a esse processo recente da escola de samba de “Mangueira” estruturar a formação de seus componentes nos projetos de caráter sócioeducativos e na organização de uma agremiação mirim. Por isso, o aprendizado formal do passista é aquele que se estabelece na cristalização da relação entre professores e alunos, como no já citado curso de passista. Nesse modo, são estipulados horários para o estudo, nos quais jovens e crianças têm a oportunidade de freqüentar aulas como alunas, ministradas por passistas jovens da escola de samba. Existem duas turmas, nas quais estão inscritas cerca de 70 crianças e adolescentes, que ficam sob a responsabilidade de dois 69

Índio, 41 anos, cit. Amanda Matos, 22 anos, em entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista em 05/08/2004, no ano em que ela era princesa da Bateria.

70


passistas-professores. Muitos dos passistas mais novos passaram por essa formação. Mas como já salientado, fazer o curso não é garantia de se tornar passista. (...)Mas aí, minha história com o samba, com a dança começou mesmo com doze anos de idade, que foi quando eu fui fazer um teste pra passista mirim na Mangueira do Amanhã. Que eu passei, né. Pesquisadora: Tá, mas antes de entrar pra Mangueira do Amanhã? Matheus: Fiz, fiz projeto também. Passei no teste de passista, logo em 71 seguida eu fui pro projeto, foi ao mesmo tempo.

Atualmente, os passistas podem fazer opção por um ou outro modo de aprendizado ou conjugar ambos. Enquanto o modo de aprendizado que chamamos informal se constitui numa relação mais pessoal entre as figuras de um mestre e seu aprendiz, o aprendizado formal se dá numa relação mais institucionalizada entre professor e aluno. De qualquer maneira, aprender a sambar é estabelecer relações com quem pode ensinar, pois a movimentação corporal é acionada como vivência junto a quem tem esse “conhecimento”. No modo de aprendizado informal, o aprendiz se desenvolve estabelecendo contato com passistas mais experientes, seja apenas observando ou recebendo dicas personalizadas, é por meio do olhar do outro que vai construindo o seu sambar. Já no aprendizado formal, apesar de estarem postas todas as condições para uma padronização dos movimentos corporais, é sintomático que os alunos aprendam a sambar sem um espelho no qual possam verificar por si sós como estão desenvolvendo seus gestos. É por meio do olhar do professor que eles apreendem a sambar, permitindo que a variação do movimento seja respeitada no corpo de cada um. Interessante notar que não é por meio de alguma história mítica que eles aprendem a ser passistas, nem um modelo padrão lhes é imposto, cada um deve realizar no corpo um sambar particular. Evidenciada a maneira pela qual se processa o aprendizado do passista, percebemos que nem uma ou outra forma de aprender se coloca em oposição à idéia de dom. Na verdade, qualquer modo de formação do passista está articulada à noção de dom do samba. Muitas vezes o dom do samba é dito como sendo exclusivo de traços raciais – a raça negra – e de traços sociais – morar no “morro”, essas são afirmações recorrentes. Porém, é possível apreender uma outra noção de dom nas conversas e práticas de muitos dos passistas. 71

Matheus Olivério da Silva Rego, 18 anos, cit.


Comecemos a busca pela pista que um deles nos dá: 72

Porque o passista, ele samba, ele tem como vocação mostrar o samba, sambar.

O uso da palavra “vocação” nos remete às considerações de Weber sobre a ética protestante73. Assim como este autor reflete sobre o processo de formação de uma consciência individual levada a cabo por esta ética religiosa junto à lógica do “espírito do capitalismo”, intentamos discutir o sentido de vocação sugerida por nosso informante dentro da formação de uma mentalidade individual dentro do mundo do samba. Vocação, como expresso por nosso pesquisado, tem o sentido de um plano de vida, algo exterior à sua vontade individual e de certa maneira reservada no seu caminho. Ela não pode ser escolhida ou simplesmente descartada, ela é inata, mas para ser manifesta, é preciso buscá-la. Assim, tem-se a vocação de sambar ou não, e como coloca D. Chininha, isso não dependeria de conviver numa escola de samba ( “Samba não se aprende na escola, a gente nasce com o dom”). Cada sambista, segundo a lógica do dom, deve encontrar sua vocação, ela não pode ser adquirida, apenas revelada e isso só pode ser feito por iniciativa do próprio. Pesquisadora: E como é que você descobre que tem o dom? Matheus: Descobre praticando.74

Assim, não existe uma receita única de como atingir a própria vocação. Ninguém pode determinar ao vocacionado quais são os passos que ele deve dar, porque cada um tem seu caminho, que é único. Por isso, é muito comum ouvirmos que “samba não tem professor, samba tem orientador”75. No aprendizado informal, isso é evidente, porque cada passista constrói sua experiência de sambar segundo sua disponibilidade, entremeada no seu cotidiano. Mas o aprendizado formal, apesar da cristalização da figura do professor nas aulas de passista, também segue o predicado da vocação. O professor de aulas não faz com que seus alunos copiem a sua movimentação, ele se preocupa em como o aprendiz pode 72

Matheus Olívério da Silva Rego, idem. WEBER, Max. (1967 [1904 e 1905]). 74 Matheus Olívério da Silva Rego, 18 anos, cit. 75 Mocinha, antiga porta-bandeira de “Mangueira”, que já não desfila mais na posição apud JESSOUROUN (2000), filme documentário. 73


desenvolver cada qual o seu samba. Mesmo porque, é interessante comentar que, numa aula na qual predominam 90% de meninas, uma das turmas do curso de passista é dirigida por um passista masculino, isto é, garotas aprendem com alguém do sexo oposto. Porque cada um tem o seu estilo, entendeu. Então, até isso eu procurei dar aos meus alunos, entendeu. Eu dou dicas, eu não posso transformar os meus alunos num Matheus, pra cada um procurar o seu estilo.76

O professor ou mestre só pode contribuir com sugestões ou conselhos, que podem ajudar a encontrar ou não a vocação. E como já assinalado por um deles, o vocacionado deve continuar empreendendo sua busca desenvolvendo um estilo próprio de movimentação corporal. Eu, de primeiro, eu tinha vergonha do...tinha um garoto na Mangueira, ele era o Zé Merulhinho, ele sambava muito, muito mesmo. Quando ele começava a sambar, até 1965, quando ele começava a sambar, eu saía. Eu saía da quadra. Quando ele saía, aí eu entrava, eu tinha vergonha de sambar com ele, porque ele sambava mais do que eu. Aí, em 78, teve um acidente com ele, né. Aí, eu peguei o estilo todo dele. Aí, depois o Miro, veio a falecer também, peguei o estilo do Miro. Aí, juntei um com o outro. Aí peguei um estilo um com o outro. Que o Zé Merulhinha, ele sambava com as pernas, ele trançava as pernas. E o Miro, não, ele era de pegar, sambava cadenciado, aí vira a perna pra lá, vira a perna pra cá, pro lado e pro outro. Aí, eu faço isso. Isso é o estilo...77

Se Weber nos ajudou a perseguir o sentido de vocação do passista enquanto processo de individuação muito particular ao mundo do samba, chega-se a um ponto no qual esse processo passa a ser relacional e coletivo a partir da idéia de dom. O dom do samba só é revelado (ou recebido – dom é dádiva) quando um outro integrante da escola de samba reconhece o aspirante como passista, pois se a vocação é uma experiência individual, a identificação do dom do samba é um ato público e compartilhado, como já discutido anteriormente. Por exemplo, cada escola procura nas crianças, nas passistas, na sua própria comunidade, isso [o dom], entendeu. (...) Procuram nas melhores o dom, pra depois..., né, “Essa é boa, gostei, joga pra cima”. Aí já tá na escola-mãe.78

76

Matheus Olívério da Silva Rego, 18 anos, cit., também é um dos professores no curso de passista. Celso Monteiro Pinto, 50 anos, cit. 78 Matheus Olívério da Silva Rego, 18 anos, cit. 77


Desse modo, o aprendizado, tanto informal quanto formal, segue a dinâmica da noção de dom com relação ao saber do samba. Como não existem marcas indiscutíveis que revelem com certeza quando se está trilhando a vocação, por vezes, características como a cor negra ou a situação precária de vida de morador de “morro” foram tidas como sinais potenciais. Mas como delineado, a “teoria nativa” abrange uma complexidade maior, possibilitando brancos e negros, moradores das comunidades e moradores da zona sul da cidade se aventurarem em busca de sua vocação dentro do mundo do samba.

4.2.3 – Esplendor e cinzas Ao passista confiante do seu dom resta seguir desenvolvendo seu estilo e ampliar cada vez mais o reconhecimento desse talento. Porém, o dom do samba não é algo concreto que se adquira e se conserve como uma insígnia ou amuleto. É “no pé” que quem samba deve provar sempre do que é capaz o seu dom. Por isso, os passistas passam toda a sua trajetória na busca constante dessas confirmações públicas, pois o dom também é algo que se perde se não for praticado pelo sambista e não for referendado por outros integrantes da escola de samba. Os prêmios concedidos durante os desfiles de carnaval são a maior mostra de reconhecimento público que um passista pode ansiar. Se, como já citado, os passistas não estão incluídos entre os quesitos de julgamento nos desfiles das escolas de samba, eles são condecorados anualmente com prêmios oferecidos por alguns jornais da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto os quesitos de julgamento criados pela LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro) enfatizam o caráter coletivo – harmonia, evolução, entre outros -, prêmios como o “Estandarte de Ouro”, promovido pelo Jornal “O Globo” desde 1972, e o troféu “Tamborim de Outro”, concedido pelo Jornal “O Dia” a partir da década de 90, enfatizam o caráter individual do fazer carnavalesco. Esses prêmios elegem um passista masculino e uma passista feminina que se destaquem no desfile de carnaval de cada ano, contemplando as individualidades. Para os passistas masculinos, os prêmios oferecidos pela imprensa são o maior reconhecimento que podem obter em suas carreiras. Já para as passistas femininas da escola de samba de “Mangueira”, o ápice da carreira está na possibilidade de ocupar os postos de


Musas da Bateria. Nem todas as escolas adotam para suas Baterias passistas da agremiação, muitas convidam personalidades famosas do meio televisivo. No caso de “Mangueira”, existe anualmente um concurso para eleição da Rainha, da Primeira Princesa e da Segunda Princesa. Estas têm a função de animar a frente da Ala da Bateria da escola de samba durante o desfile. Promovido pela ala citada, o concurso é uma festa grandiosa e disputada, existe um júri e as candidatas só podem ser pessoas anônimas, não precisam ser obrigatoriamente moradoras do morro de Mangueira, mas é aconselhável que tenham certa intimidade com a agremiação, já que muitos dos jurados pertencem a ela. Para as passistas femininas, tornar-se Rainha da Bateria é a realização máxima dentro da escola de samba. Essa dessimetria entre a apresentação de homens e mulheres passistas será mais bem tratada quando discutirmos a performance propriamente dita no próximo capítulo. Também pode acontecer de algum passista não se sentir contemplado dentro de uma escola de samba, o que o leva a querer desfilar em outra agremiação quando lhe é possível, buscando maior prestígio e visibilidade para sua carreira. E não é difícil encontrar na trajetória de cada um deles a participação em outro agrupamento carnavalesco diverso daquele que o consagrou. Muitas vezes, essas “escapadas” em agremiação alheia não são enfatizadas e quando se tenta conversar a respeito, os passistas preferem não se alongar muito ou “batem no peito e dizem que são ‘Mangueira’”. Porém, o trânsito de componentes marcados por alguma especialidade - passistas, ritmistas, mestres-salas, porta-bandeiras, etc - entre as várias escolas de samba é freqüente e recorrente. A carreira de passista depende totalmente da sua performance, e esta por sua vez é dependente do vigor físico do indivíduo. Por isso, é uma carreira que tende a atingir seu maior desenvolvimento durante a juventude e a maturidade física, declinando conforme o intenso envelhecimento da pessoa79. Então, o corpo ajuda bastante a você sambar na hora de você evoluir, porque eu vejo uns passistas mais gordinhos do que eu, não é que eu seja gordo, mas assim mais pesado, que eu imagino, assim, se ele fosse um pouco mais seco, ele ia fazer aquilo com mais rapidez ou sem cansar tanto. (...) E fica mais bonito, não é verdade? Dependendo da fantasia que seja o ano, se bota a barriga de fora, então, aquele passista com a barriga desse tamanho [imita uma grande barriga com a 80 mão], não é uma coisa esteticamente legal, né. E prejudica na hora de sambar.

79 80

Ver BECKER (1977), p. 256, sobre timing no desenvolvimento da carreira. José Carlos Torres, 52 anos, cit.


Assim como os esportistas, a carreira do passista se escora grandemente nas suas habilidades e aparência físicas e, com o avançar da idade, vai se tornando cada vez menos recompensadora. Conforme conversamos com diversos deles, a carreira pode terminar por volta dos 40 e 50 anos, “até quando as pernas agüentarem” ou “o corpo segurar o biquíni”. A partir daí, os passistas, tanto femininos quanto masculinos, passam a ocupar posições que lhes exige menos fôlego do corpo. R: Ele já ta treinando pra próxima, que ele vai virar ritmista. José Carlos: É, porque daqui a pouco a idade chega, então... 81 R: Aí, ele vai virar ritmista. Pesquisadora: E qual a sua perspectiva na vida, como é que é a carreira de passista, até quando vai? Matheus: Acho que até uns 40. Pesquisadora: Por quê? Matheus: Porque dá, ah, até quando tuas pernas agüentar, se agüentar até os 40... Pesquisadora: Se agüentar mais, vai mais também? Matheus: Vai mais. Pesquisadora: Mas e aí depois? Matheus: Aí o passista vira presidente de ala, vira velha guarda, vira uma coisa 82 assim.

Sem muito alarde ou qualquer cerimônia que marque essa passagem de status, o passista que envelhece procura se acomodar em outra posição dentro da escola de samba e guarda na memória histórias célebres de sua trajetória.

81 82

José Carlos Torres, 52 anos, e R., cit. Matheus Olívério da Silva Rego, 18 anos, cit.


5. No movimento do samba 5.1 – Primeiras lições – dança versus samba Comecei a investigação considerando as apresentações dos passistas da escola de samba de “Mangueira” enquanto dança de um estilo musical específico, o samba. Até a única obra encontrada com referência direta a eles83, do jornalista José Carlos Rego, também fazia menção à dinâmica corporal do passista enquanto “dança do samba”. Porém, no decorrer da pesquisa e das inúmeras conversas e entrevistas, fui percebendo que os passistas pouco usam o termo “dança”, eles normalmente dizem que o que fazem é samba. Não quer dizer que, quando nos referimos aos seus movimentos corporais como “dança”, eles não entendam, eles sabem que estamos falando do seu “samba”. Mas ao questionar a noção de dança que esta pesquisadora carregava, o significado específico do que fosse sambar para os passistas começou a polarizar com a idéia de dança. Problematizando o entendimento de arte e estética enquanto categorias universalmente válidas, Overing84 aponta que entre os Piaroa da bacia amazônica, a noção de beleza não se separa de outros âmbitos da vida como o contexto produtivo e tecnológico. Em tal concepção, a beleza e a criação não estão separados do fazer ordinário. Nessa mesma direção, os passistas também consideram o seu sambar como prática profundamente entrelaçada com seu viver e seu cotidiano. Sambar não é um momento de atingir o domínio do absoluto e metafísico; ao contrário, é ativar relações reais com pessoas concretas e até mesmo provocar rixas com alguma delas. Sambar também não é simplesmente um hobby, como exercício supérfluo de um estilo de vida, envolve todo o ser e estar da pessoa do passista porque pode trazer um prestígio que lhe muda o rumo da vida. Todo passista procura o momento de turning point, o ponto de virada em sua carreira, assim como proposto por Hugues (1971). Mais adiante isso ficará mais claro, quando passarmos a descrever a performance do passista. Assim, para evitar contaminar a investigação com pressupostos exteriores aos dos investigados, a utilização do termo dança será evitada para denominar os movimentos corporais dos passistas. Porque aplicar a noção de dança ao samba dos passistas pode dar a 83

REGO, José Carlos (1996). OVERING, Joanna et alli. 1996. “Aesthetics is a cross-cultural category”. In: Key Debates in Anthropology. Debate organizado na Universidade de Manchester em outubro de 1993.

84


entender que a apresentação deles é um momento separado de sua vida, sendo apenas um espetáculo de exceção que ocorre uma vez por ano durante os desfiles de carnaval. Mesmo que a noção de dança, enquanto arte refinada, possa valorizar o caráter de um fazer popular, às vezes considerado como fazer “grosseiro”, é preferível não utilizá-la para não correr o risco de atropelar a concepção sutil de nossos informantes. Mas como já evidenciado, os passistas não dizem que dançam, dizem que sambam. Quando conversam sobre o seu samba, sempre alinhavam relatos de períodos de sua vida e casos acontecidos. Quando samba, o passista não esquece sua vida de trabalho ou a vida amorosa na apresentação. Ao contrário, os passistas sempre misturam a vida com seus movimentos corporais e isso é o samba! Ali no desfile ou na quadra da escola de samba, os passistas levam junto as mágoas de um relacionamento amoroso, a briga com algum outro integrante ou a ambição de se tornar famoso e reconhecido. Esses estados não são marginais ao sambar, são constituinte dele. Por isso samba é a própria vida do passista. O mundo pra mim é samba. Braço, cabelo, cadeira, pensamento, tudo é samba. Tudo o que você acha que deve fazer, faz naquela hora.85

Mesmo porque, muitas vezes, sambar pode se tornar uma atividade que dê algum retorno financeiro. Queria ser passista, porque eu não sei fazer nada. Eu não sei jogar bola, não sei praticar esporte nenhum. Só sei sambar. E o samba pra mim era a vida, né. (...) E 86 era ali que eu tirava o meu dinheiro, que eu ganhava dinheiro com as pernas.

Além disso, existe uma diferenciação entre “dança” e “samba” feita pelos próprios pesquisados, que pode orientar a marcação de posição do passista com relação a outras posições na escola de samba. Passista samba, mestre-sala dança. Porque passista samba, mestre-sala não samba. Você pode até reparar na dança dos dois. Porque o passista, ele samba, ele tem como vocação mostrar o samba, sambar. O mestre-sala não, ele dança. O mestre-sala pode fazer uma aula de balé, entendeu, pode fazer uma aula de dança com algum especialista, com algum coreógrafo, mestre-sala pode montar uma 85

Nanana da Mangueira, passista antiga da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira apud JESSOUROUN (2000), filme documentário. 86 Celso Monteiro Pinto, passista, 50 anos, em entrevista concedida em 19/03/2005.


coreografia e se apresentar. Essa é a diferença, essa é a principal, entendeu. Ele mexe o braço, coisa e tal, é uma coisa mais elegante do que um passista. Perna, até isso, fazendo passo. E principal ele, ele não trabalha que nem passista, que é sozinho, ele trabalha com uma porta-bandeira do lado, ele tem que cortejar a porta87 bandeira e tem de proteger aquele pavilhão que é a bandeira da escola até o final.

Conforme Barth (1998 [1969]) já apontava com relação aos grupos chamados étnicos, a definição de posições entre componentes especializados dentro da escola de samba também acontece de modo contrastivo e opositivo. Entre integrantes de reconhecida virtuosismo corporal, os passistas fazem questão de diferenciar seu gestual diante dos mestres-sala e porta-bandeiras. Isso contribui para a criação de intensa heterogeneidade de posições na constituição da escola de samba enquanto conjunto que abraça inúmeras especialidades do brincar carnavalesco.

87

Matheus Olivério da Silva Rego, 18 anos, em entrevista realizada em 22/07/2005.


5.2 - Carnaval o ano inteiro Assim como o desenvolvimento de carreiras dentro da escola de samba foi possível graças à cristalização de uma estrutura relativamente estável e perene funcionando durante o ano todo, inúmeros acontecimentos e comemorações preenchem o calendário da agremiação, estendendo de uma certa maneira o sentido carnavalesco de sua atuação. Para DaMatta (1979) o carnaval é um dos ritos do calendário nacional que mobiliza sentimentos e pertencimentos da identidade brasileira, e, como aponta Cavalcanti (1994), o desfile carnavalesco é o fenômeno ritual condutor de todos os esforços de uma escola de samba. Por isso, todos os acontecimentos festivos realizados durante o ano pelos integrantes do grupo carnavalesco têm como direção e referência a realização do cortejo competitivo durante os dias momescos. No caso dos passistas, existem alguns eventos rituais, além do desfile, nos quais sua presença é requisitada ao longo do ano. São eles: os Ensaios da Bateria, as apresentações do Grupo-Show e os Ensaios de rua.

5.2.1. Um Ensaio da Bateria Os “Ensaios da Bateria” acontecem sempre aos sábados, começando a partir do mês de agosto e indo até dezembro. De agosto a outubro é realizado o concurso de sambaenredo a ser mostrado no carnaval do próximo ano, e, a cada sábado, acontece uma etapa eliminatória. Após a escolha do samba-enredo vencedor, os Ensaios da Bateria funcionam como momentos de fixação e compartilhamento do samba-enredo escolhido, que os componentes da Bateria executam repetidamente durante os sábados restantes de outubro a dezembro. Como apresentam Prass (1998) e Cunha (2001), a Bateria é a fonte rítmica da exibição de uma escola de samba. A formação completa da ala da Bateria só se dá na apresentação do desfile de carnaval. No caso da Escola de Samba de “Mangueira”, para o ano de 2005, seriam escolhidos 250 ritmistas para integrar o cortejo, mas em outros carnavais esse número já chegou a cerca de 350, já que o número total de pessoas que ensaiam com os instrumentos durante o ano sempre ultrapassa o número estipulado para o desfile. Mas se o desfile é a meta de todo ritmista, há eventos como os “ensaios de sábado”


nos quais apenas uma parte dos músicos comparecem. Neste caso, cerca de 100 componentes da ala da Bateria ajudam a promover a festa, que é aberta ao público por meio do pagamento de ingresso e ajuda a agremiação a arrecadar dinheiro. Durante o Ensaio da Bateria, um pequeno cortejo de integrantes da escola de samba apresenta-se no centro da quadra como transcrevo de minhas notas de campo a seguir. “Com a bateria da escola instalada massivamente no palanque que lhe é destinado, o samba-enredo do próximo carnaval batuca os corpos e a garganta dos presentes. A varanda dos compositores puxa a cantoria. Ao centro da quadra abre-se um clarão espacial para dar lugar ao pequeno cortejo da escola de samba. Abrindo o séqüito, vêm as Rainhas e Princesas da Bateria, sambando e volteando os braços no ar. Elas estão vestidas de um corpete rosa, composto também de uma saia curta bem rodada. Na cabeça vão com os cabelos presos sob tiaras prateadas e brilhantes. Nos pés, sandálias de salto alto leves. Ao peito, trazem a faixa com seu respectivo título e o nome da escola. Logo após, vem a presença dos ilustres da noite: um ator da Rede Globo, um renomado professor de dança88, ambos cantando com vontade e coreografando gestos conforme a letra sugeria (“coração” – mãos no tórax / “é aqui” indicadores das mãos apontando pro chão da quadra, etc). O presidente da escola também vem vestido em camisa branca e calça social simples. As celebridades estão vestidas de roupas brancas, calça e camiseta da escola; calça e regata. Em seguida algumas baianas vêm rodando, dedos pra cima e passos menos intensos. Nenhuma delas está vestida com todo o aparato de uma fantasia de baiana. Aliás, só dá pra identificá-las, se você sabe que elas são da Ala das Baianas. Esse grupo de pessoas, mais ou menos em fila, vai andando em círculos no meio da quadra, até que um casal de mestre-sala e porta-bandeira chega para se apresentar. Então, as pessoas do cortejo se colocam em volta do espaço, ficando o presidente da escola e os convidados ilustres numa ponta. Entra a porta-bandeira rodopiando o pavilhão verde-e-rosa, segurando o mastro com a mão direita. O mestre-sala vem sapateando ao redor, com leque nas mãos, cortejando, ora de joelhos, ora de pé, em rodopios, sua companheira. Nenhum dos dois está com suas fantasias, estão com roupas informais. Ela com uma saia rodada um pouco acima do joelho e uma blusa justa sem 88

Carlinhos de Jesus.


mangas; ele com camisa, calça e sapatos sociais. Após alguns momentos de dança, o casal leva a bandeira para que o presidente da escola a beije. Ao fazê-lo, este é aplaudido. O mesmo se dá com os convidados ilustres. Depois, a porta-bandeira e o mestre-sala, continuam a rodopiar e vão procurando na multidão outras pessoas da escola pra beijarem a bandeira. Após mais um pouco da demonstração da dança, o cortejo volta a circular no meio da quadra algumas voltas e depois sai.”

Estrutura do cortejo num Ensaio da Bateria cortejo – partes de alas se apresentam: Musas da Bateria, Passistas, Baianas, celebridades de fora da escola, autoridades da escola – desfile em círculos apresentação do pavilhão – dança do mestre-sala e porta-bandeira – rito de beijar a bandeira por pessoas consideradas importantes cortejo novamente – desfile em círculos e saída

bateria cantores cortejo Público em torno Posição das pessoas ilustres Quadro 3 - Modelo da quadra da escola e posições durante o cortejo num Ensaio da Bateria

É interessante notar que, nos Ensaios da Bateria, os integrantes do cortejo não se vestem de forma fantasiosa ou esplendorosa nessas ocasiões. Todos vão vestidos como se fossem pra uma ocasião importante, mas não caracterizados com fantasias carnavalescas.


Nenhum deles recebe pagamento pela participação, são convidados devido o reconhecimento de sua posição destacada dentro de suas alas específicas.

5.2.2. Uma apresentação do Grupo-show – as “saídas” A escola de samba de “Mangueira” chama de “Grupo-show” os integrantes do agrupamento que tem por finalidade realizar apresentações fora do espaço da agremiação, são as chamadas “saídas”. Sem data marcada, as “saídas” acontecem por solicitação de empresas, casas de espetáculos ou agentes do ramo do entretenimento no Brasil e no resto do mundo durante o ano inteiro. São apresentações de cunho abertamente comercial, nas quais a escola de samba e os integrantes recebem um pagamento, o “cachê”. Normalmente, são reunidos no “Grupo-show” componentes de reconhecida posição dentro do desfile de carnaval da escola. Porém, se o desfile fornece os membros que compõem o “Grupo-show”, estes também acabam estipulando pequenas diferenças entre uma apresentação no desfile carnavalesco ou no “Grupo-show”, que podem ser sintetizadas nas expressões, “avenida” e “palco”, respectivamente. Aluna: Qual a diferença entre palco e avenida? Amanda: É, avenida, eh, como é que eu posso te dizer. A avenida é ali, ou tudo ou nada, né. Você tem que entrar, você nem sente tuas pernas. Às vezes, você pode até ficar cansada, teu pé pode tá sangrando, como eu agüentei um salto fininho agulha, do início ao fim da avenida, sambando, me batendo toda, entendeu. E no palco, não. Palco, você tem que ter postura, você tem que fazer uma boa entrada, você tem que tá sempre bem, olhando pra frente, pros lados...chegar, chegando também. Mas não é aquela coisa como na avenida. Na avenida, cai a postura, levanta a postura, tu não tá nem aí, tu quer se bater toda, porque é um momento só. E palco, não, palco é sempre. Então, palco você tem que tá ...sempre com postura, olhando pros lados, chegar, chegando, com aquele gingado. E é essa a diferença. Patrícia: Na verdade, a responsabilidade maior... Amanda: É na avenida. Patrícia: Não fica na avenida, fica no palco. Na avenida, você... Amanda: É, na avenida, você bate e solta. Na avenida, por mais que seja responsabilidade, eu me solto toda, não quero nem saber se eu tô com postura, ou se eu tô sem postura. Eu rebolo, às vezes eu vou no chão, volto e....No palco, não. No palco, se eu vou no chão, “Ih, cadê a mulata? Cadê a postura?” A mulata tem


que tá sempre com postura, levantar a cabeça, pra você crescer. Ainda mais eu que 89 sou baixinha... Aluna: Qual é a diferença entre o palco e a avenida? Índio: É, existe uma diferença do palco pra avenida, sim. Entre aspas, né. Porque na realidade todos os dois são palco. Agora, você vai fazer um show, um show que requer um determinado tempo, né, um determinado tempo no palco, eh, ele é rápido. E ali você é mais profissional, né. É profissional porque o show, ele tem várias partes do show, que você tem de se enquadrar naquele espaço de tempo. O desfile, não. Você tem de sambar o tempo inteiro, ficar igual pinto no lixo, suado. A diferença é essa, né. O tempo do desfile é muito maior e o palco é uma coisa mais profissional, tá.90

Quem participa do Grupo-show considera essa atuação como tendo caráter mais “profissional”, enquanto o desfile no carnaval seria mais “espontâneo”. O termo profissional refere-se tanto ao fato de que se é gratificado com um pagamento, o “cachê”, tanto à idéia de que se deve seguir o programa de um espetáculo previamente concebido. Apesar de serem muito fluidas as diferenças entre ser profissional ou ser espontâneo, porque se você presenciar um Grupo-show em atividade, você vai ver as duas coisas misturadas juntas, as categorias “avenida” e “palco” são constantemente utilizadas pelos integrantes da escola de samba. Só que na categoria “palco”, a noção de espetáculo é abertamente reconhecida. A apresentação do Grupo-show que acompanhamos ocorreu inusitadamente na própria quadra da escola para receber uma autoridade política estrangeira. Apesar da quadra ser um “palco” aberto para os quatro cantos no desenho de uma arena, o Grupo-show estruturou sua atuação voltada para apreciação dos convidados, no desenho de um palco à la italiana, como vemos a seguir. “Primeiro, vem chegando a bateria, com um número reduzido de integrantes. Liderados por um mestre, de apito prateado silvando na boca. Os instrumentistas se colocam ao fundo da quadra, no chão, porém bem próximos do palanque no qual estão

89 89

Amanda Matos, 22 anos, em entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista em 05/08/2004, no ano em que ela era princesa da Bateria. Patrícia também participou da sessão por ser professora de uma das turmas das aulas de passista. 90 “Índio”, passista antigo de Mangueira, que ainda desfila, em entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista da escola em 13/08/04.


acostumados a se apresentar. Iniciam o toque conjuntamente com os cantores, estes situados na varanda lateral menor. A primeira música é “me leva que eu vou, sonho meu...” Então um mestre de cerimônias vai chamando as “amostras” de componentes. Chama a Ala das Baianas. As Baianas, umas seis, entram com suas enormes saias e ao preencherem o centro da quadra, começam a rodar no sentido horário e anti-horário. O apresentador chama agora o Mestre-sala e a Porta-bandeira pelo nome individual de cada um. Compareceram naquele dia mestre-sala e porta-bandeira principais da Mangueira. O casal entra, as Baianas abrem espaço e ficam ao redor. O Mestre-sala e a Portabandeira realizam sua dança volteada e levam a bandeira da escola para convidados e ilustres beijarem. Em seguida, são chamados os Destaques da escola, que são componentes com enormes fantasias e plumas espaçosas. Estes quase não dançam devido monumentalidade e peso de suas indumentárias. Por último, o mestre de cerimônia começa a chamar os Passistas. Convocados à quadra pelo nome individual, vêm em três levas. Primeiro, chegam três passistas femininas portando bandeiras do país homenageado. Chegam do fundo da quadra, sempre sapateando e movimentando os braços, dirigem-se à frente do convidado para cumprimentá-lo. Uma das passistas entrega a pequena bandeira de papel ao presidente estrangeiro e lhe aperta a mão, depois volta a sambar. Entra outra leva de passistas femininas, que apenas se apresentam aos olhos da comitiva e se colocam em meios às outras alas que permanecem no centro da quadra. A última leva de passistas vem com duas passistas femininas, entre elas a primeira princesa da bateria; e dois passistas masculinos, um antigo e outro mais novo. As meninas mostram sua graça e rebolado. Os meninos demonstram agilidade nos pés. Então os passistas vão se espalhando pelo espaço junto aos outros componentes, vão se relacionando com o público em volta, chamando com gestos de braços para sambar. As meninas-aprendizes são trazidas para o centro da quadra pelas passistas femininas e a apresentação é finalizada com uma evocação geral de todos participarem do samba, público e artistas.


O show, que inicia com a platéia sentada, vai se desenvolvendo num crescendo, até que os espectadores já estão em pé e sambando junto. Estando os passistas encarregados de expandir esse clima, levar a apresentação ao ápice, para ser finalizada com a integração entre público e apresentantes.”

Bateria

Quadra

Passistas Destaques Mestre-sala/ Porta-

Sentido temporal da apresentação

bandeira Ala das Baianas convidados

Quadro 4 - Posições espaciais da apresentação do Grupo-show

Nas apresentações do Grupo-show, cada integrante se apresenta com a sua própria indumentária, o que quer dizer que cada fantasia ou roupa é de propriedade individual. Ao contrário do desfile, no qual as fantasias são dadas pela escola e têm temas transitórios, ligados apenas ao enredo de um dado ano. No caso dos passistas, essa indumentária mais “permanente”, que não acompanha a oscilação dos enredos dos desfiles de carnaval, tem o seguinte padrão:


1) Mulheres: coroa, biquíni superior, braçadeiras, punhos, tornozeleiras, biquíni inferior, sandálias de salto plataforma. É opcional o esplendor e a franja de lantejoulas. Além disso, há a maquiagem bem intensa e brilhosa; e o banho de purpurina sobre a pele do corpo à mostra. 2) Homens: chapéu panamá – muitas vezes com uma faixa nas cores da escola contornando o bojo - calça, camisa ou camiseta, que podem ser feitos de tecido brilhante e, por último, os sapatos de tipo social. Mais adiante essa indumentária será melhor apresentada e discutida. Então, a apresentação do Grupo-show é um modelo, que destaca as alas especiais do desfile uma escola de samba. Mesmo fazendo referência ao desfile que ocorre no carnaval, é uma apresentação sem enredo definido, como as que ocorrem durante os Ensaios de bateria. Porém, o Grupo-show prima pela caracterização brilhosa e pomposa das roupas, sendo muito mais “formal”, que um Ensaio de bateria, que acontece com vestimentas mais sóbrias.

5.2.3. Um Ensaio de rua Os “Ensaios de rua” têm lugar a partir da segunda quinzena do mês de novembro. São realizados fora da quadra da escola, na via pública que passa em frente à sede da escola, a avenida Visconde de Niterói. São realmente ensaios preparatórios para o desfile no sambódromo. É o primeiro momento em que os integrantes das diversas organizações da escola – administração, Bateria, alas – realmente se encontram todos juntos. Também é quando os moradores do complexo da Mangueira que não desfila pode apreciar mais interativamente um desfile. Pois no sambódromo, os altos preços cobrados, inviabilizam os menos endinheirados a assistir as escolas. No Ensaio de rua, todos que têm uma posição dentro do cortejo, deveriam em tese comparecer, seja os que ganharam a fantasia, sejam os que as compraram. Porém, nos Ensaios de ruas, a grande maioria dos presentes são os que participam permanentemente da organização da escola e os que ganharam a fantasia, que


são da “comunidade’. Normalmente, os que compram as fantasias aparecem mais nos ensaios da escola na Marquês de Sapucaí que se iniciam no mês de dezembro. Para o carnaval de 2005, cujo enredo fazia referência à produção de energia, a organização das diversas alas no Ensaio de rua estava distribuída, com placas anunciativas, da seguinte forma: número 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16

Posição no enredo Nebulosas do universo Positivo Negativo Energia hidrelétrica Elementos da água Água Duendes da terra Energia dos minerais Erosão da terra

17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30

Energia eólica Gás poluente Elementares do ar Proteção solar Elementares do sol Efeito estufa Biomassa Bio-homem e bionatureza Biolixo reciclagem Biogás Biodiesel

Industrialização Ventos de Heolo

Energia vital Energia vital

Posição técnica Baianas tradicionais Ala da comunidade Ala da comunidade Ala das baianinhas Ala dos Seresteiros e Ala Vem Comigo Ala Gatinhas e Gatões e Ala Vendaval Ala das crianças Ala dos Impossíveis e Ala Tropicana Ala da escola Mestre-Sala e Porta-Bandeira principais Musas da Bateria Ala da Bateria Carro de som Passistas Ala das Mimosas e Ala Depois Eu digo Ala dos Embaixadores e Ala das Baianas Granfinas Ala Carcará e Ala Comigo Ninguém Pode Ala Moana e Ala Panteras Ala Cheguei e Ala Brasinhas e Brasões Ala Opção e Ala Copacabana Ala Acauã e ala Amigos do Ala dos Aliados e Ala das Caprichosas Ala Au,Au,Au e ala Realidade Segundo Mestre-sala e Porta-bandeira Ala Nós Somos Assim e Ala Eles e Elas Ala da escola Ala da comunidade Velha-Guarda Grupo coreográfico de Regina Sauer Ala da comunidade

Quadro 5 – Posições dos componentes no ensaio preparativo para desfile de carnaval


Os passistas normalmente estão presentes em todos os Ensaios de rua, por serem uma ala muito seleta, pois têm um papel específico, o de apresentar o “samba no pé” da escola. Por isso, as fantasias deles são todas dadas pela escola. Nenhum passista paga por sua fantasia, mas todos devem representar a escola por meio de sua habilidade. Existem outras alas específicas da escola de samba, nos quais seus componentes não pagam por suas fantasias de desfile, como a Ala das Baianas, a da Bateria, a dos Compositores, as das crianças, a da Velha-Guarda. Pois nessas alas, que são cruciais para a apresentação da escola, não se pode “comprar” a entrada nelas, elas são determinadas pela vivência e participação dentro da agremiação. Para abrir o Ensaio, o presidente da escola faz um discurso pra levantar o ânimo dos presentes. Grita coisas do tipo “vamos ganhar”, “vamos dar tudo pela Mangueira nesse carnaval”. Todos aplaudem. O Ensaio se inicia, o carro de som carregando os cantores, a bateria ritmando o samba-enredo de 2005, e as alas começam a andar. Somente a comissão de frente não está presente. No total são 30 alas de desfile, organizadas segundo o quadro acima. Apenas alas de pessoas, sem os carros alegóricos. Bem no meio – no “coração” do cortejo – são posicionados respectivamente, o Mestre-sala e a Porta-bandeira principais, as Musas da Bateria, a Ala da Bateria em peso, o carro de som levando os cantores e, em seguida, a Ala dos Passistas. No Ensaio de rua, as pessoas vão todas vestidas informalmente, sem brilhos, mas com roupas folgadas e à vontade.

5.2.4. Rumo à festa carnavalesca É notório que todos esses eventos descritos – Ensaio da Bateria, Grupo-show, Ensaio de rua – têm como referência e sentido o Desfile carnavalesco. Mas podemos organizá-los segundo algumas características. Tanto o Ensaio da Bateria quanto as atuações do Gruposhow são apresentações sem enredo determinado, fazendo-se presentes alguns dos principais componentes técnicos da escola de samba, como Baianas, Passistas, Mestre-sala


e Porta-Bandeira. Já os Ensaios de rua e o próprio desfile carnavalesco, são eventos planejados segundo um enredo escolhido num dado ano. Uma outra divisão se estabelece na caracterização dos integrantes de cada evento, os ensaios da Bateria e de rua são realizados com roupas cotidianas, enquanto nas apresentações do Grupo-show e no Desfile carnavalesco o uso de fantasias – com suas particularidades em cada evento - é obrigatório. Sem fantasias

Com fantasias

Sem enredo

Ensaio da Bateria

Grupo-show

Com enredo

Ensaio de rua

Desfile de carnaval

Quadro 6 – Relação dos eventos Existe ainda a especificidade do Grupo-show, que estabelece relações contratuais para os seus integrantes, pois cada apresentação é realizada mediante um pagamento para seus participantes, o cachê. Já nos outros eventos, o convite e a presença de quem participa se dá em termos de prestígio, pois se não há ganhos financeiros com o comparecimento a uma dessas festas, há a possibilidade de obter “ganhos de prestígio”, já que será um momento de aumentar a visibilidade do componente. Além disso, esses acontecimentos também sublinham certas particularidades no modo de relacionamento de seus participantes. O cortejo no Ensaio da Bateria coloca a escola de samba diante de si, com integrantes exibindo o reconhecimento para com outros integrantes da própria agremiação, como no momento em que o casal de Mestre-sala e Porta-bandeira leva o pavilhão da escola para o presidente beijar. O Grupo-show é uma apresentação que coloca a escola de samba diante dos “outros”, isto é, das partes na sociedade mais ampla, consideradas exteriores ao conjunto, como turistas, casas de espetáculos, audiências de outros localidades. Já o Ensaio de rua exibe a escola de samba diante das outras escolas, preparando seus integrantes para a competição no desfile carnavalesco. Assim como Evans-Pritchard (1999 [1940]) nota que os grupos africanos nuer e dinka se associam ou se disputam dependendo da posição do interlocutor, e assim como Barth (1998 [1969]) aponta que os reconhecimentos e pertencimentos são


construções relacionais e contrastivas, os componentes das escolas de samba também colocam em movimento essa lógica por meio dos eventos que apresentam e participam. Mas concluindo, como o próprio nome diz – ensaios – os eventos descritos são preparatórios para o acontecimento-fim de toda escola de samba, o Desfile de carnaval (CAVALCANTI: 1994). É como se o calendário de um ano inteiro fosse assim direcionado e os inúmeros eventos realizassem, pouco a pouco, a mediação necessária e inexorável até o momento final da grande festa, quando corpos, vozes e emoções estarão prontos para comemorar o carnaval. Apesar das particularidades de cada evento, todos são uma maneira de presentificar um mesmo momento, a festa carnavalesca, que é vivida plenamente nos dias que antecedem a quaresma, mas se faz manifestar também durante todo o ano por meio dos sucessivos ensaios.


5.3 – A performance carnavalesca do passista

O meu samba se marcava na cadência dos seus passos “Quem te viu, quem te vê”, Chico Buarque

A partir daqui, iremos nos concentrar na atuação gestual dos passistas das escolas de samba e no que ela implica. Como exposto anteriormente, o desfile carnavalesco é a ocasião mais aguardada de qualquer sambista e é pensando nele que a exposição sobre a performance do passista será referenciada. Por que, assim como os eventos realizados ao longo do ano pela agremiação, a apresentação do passista sempre é guiada pelo acontecimento do carnaval. A avenida, eh, a avenida é o ponto culminante do sambista. (...) E a gente quando entra ali [na avenida] tem que dar tudo de mim, a gente tem que dar tudo por essas cores, por esse pavilhão. E essa coisa do prazer de sambar, essa coisa. Então acho que essa coisa do desfile na avenida é o ponto máximo que o sambista pode receber, aquelas luzes, aquelas pessoas, e todo o mundo esperando você, o grupo, a escola, aquele conjunto de gente, aquele conjunto de artistas, né. A gente é mais um artista no meio daquela multidão toda. Então é um momento especial pro 91 sambista.

Começamos por pontuar alguns elementos fundamentais para o sambar assim como os passistas o entendem. O primeiro é que ele só ocorre acompanhado da música, e na escola de samba, a música recorrente é o samba-enredo. Por isso, uma das habilidades que devem ser desenvolvidas é a de escutar a cadência do ritmo e saber coordenar os momentos diferentes de batidas do ritmo com momentos exatos para rebolar, para fazer uma pose, para soltar o samba do pé. Aluna: As passistas têm que ouvir o som da Bateria? Robson: É, ela tem que seguir o tom da Bateria e, tipo assim, ela tem que sambar em cima do ritmo que a Bateria tá tocando. Não adianta, por exemplo, se a bateria tá acelerada, a passista tem que acelerar. Se a Bateria tá lenta, a passista tem que ser lenta. Não adianta, tá, o inverso, que é um conjunto, a Bateria com a passista é um conjunto. É a mesma coisa, se você se tornar a rainha da Bateria, é

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“Índio”, passista antigo de Mangueira, que ainda desfila, em entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista da escola de samba em 13/08/04.


um conjunto. Ela tem que sambar em cima das convenções e no ritmo que a Bateria estiver tocando.92 A questão saber sambar é... um pezinho pra frente, outro pra trás. Mas o principal de saber sambar é você ter ritmo, escutar, deixar a música, o samba, entrar pelo 93 ouvido e não deixar ele sair pelo outro.

“Deixar o samba entrar por um ouvido e não deixar ele escapar pelo outro” é uma figura de expressão oportuna para evidenciar a amálgama necessária entre som e corpo. O corpo do passista não pode ser indiferente ao ritmo do samba, antes, deve retê-lo em si e transformar as batidas em movimento corporal. Por isso, os passistas têm um relacionamento muito íntimo com a Ala da Bateria, pois a atuação dela alimenta a própria presença do passista. É porque não tem a Bateria por perto, aí eu fico num tédio danado. (...) Eles posicionam os passistas, hoje, num determinado ponto do desfile. E pro passista sambar sem o som da Bateria, é a coisa mais difícil, né. O passista tem que ter aquele floreio do tamborim. Se isso tiver perto da gente, ninguém consegue parar. Agora, se você tá longe da Bateria, a coisa fica um pouco morna. (...) É diferente, o 94 passista tem que sentir o calor da Bateria, é importante pro passista evoluir.

“Sentir o calor da Bateria” significa falar da proximidade física necessária entre passistas e ritmistas, quanto mais perto da origem do som, mais estímulo há para o sambar. Outro pressuposto importante é de que não se samba somente para si, samba-se sempre com relação a um outro, seja um espectador ou um outro componente da escola de samba - outro passista, ritmista, etc. Assim, não se samba olhando para o chão ou para os próprios pés. Ao assistir as aulas do curso de passista, presenciei muitas vezes o professor condenar quem sambava de olhos para baixo. Isso, além de evidenciar imperícia, é descortês, deve-se ter a cabeça sempre levantada acompanhando o que está ao redor, pois o que “dá samba” é o jogo de improvisação entre o passista e o outro, entre o passista e a música. Desse modo, a movimentação corporal se realiza no diálogo com o ritmo musical e com a presença gestual de um outro. De que modo esses dois aspectos são vividos através 92

Robson Roque, 42 anos, na época presidente da Ala da Bateria, em entrevista obtida conjuntamente com as alunas do curso de passista em 12/08/2004. 93 Matheus Olivério da Silva Rego, 18 anos, cit. 94 Índio, cit.


dos gestos? Por exemplo, na dinâmica entre duas passistas, um rebolado simples desafia um rebolado que sobe-e-desce; entre um passista e uma espectadora, o sorriso de quem assiste é retribuído com um meneio de mão de quem samba; entre a atuação dos ritmistas e um passista, o “breque” da Bateria – uma pausa conjunta e temporária dos instrumentos produz uma paradinha bem posada. São infinitas as possibilidades de interação por meio do sambar e o samba do passista não requer um parceiro como no caso do casal de Mestre-sala e Porta-bandeira ou como na dança de salão, mas requer sempre um outro elemento que lhe sirva de contraponto. Além disso, vale lembrar que cada passista desenvolve um estilo próprio de sambar. Tudo depende de você fazer o melhor possível. Tanto é que eu tenho um estilo, o Zé Carlos tem outro estilo, o Índio tem outro estilo. (...) Agora, os três sambam juntos, os três sambam quase iguais, mas estilos diferentes. Os três, não, inclusive o Jofre. E cada um tem um estilo diferente, totalmente...um estilo diferente, mas tudo dentro do ritmo. Você não vê fora do ritmo, não vê alguém atrapalhar ou ultrapassar o ritmo, tudo cadenciado.95 Cada um tem um estilo. Cada um tem um estilo. A Mangueira agora ultimamente tá com passistas muito bons mesmo, entendeu. Cada um tem um estilo. Tem umas que sambam no miudinho, tem outras que sambam pra frente, outras que sambam pra trás, outras que têm tudo em conjunto. Samba, braço, depende, isso é...cada um tem um estilo. Tem uma que acham que, ah, ganhou o Estandarte de Ouro, que não samba nada. E tem gente que samba, e por isso, cada 96 um tem um estilo, cada um tem uma visão do samba.

Ter um estilo próprio para se apresentar significa o passista dominar um repertório de gestos e passos que lhe sirvam como possibilidades de interação com a música ou com um outro sujeito. Só que cada um faz a seleção que acha mais apropriada e inusitada para o momento. É muito importante que o passista desenvolva seu estilo de samba, mesmo porque ele não ensaia os movimentos que executará, pelo motivo de que tudo ocorre como improviso, dependendo da atuação dos músicos, dos outros componentes da escola e do público. Pesquisadora: Você ensaia, faz ensaio coreográfico? 95

Celso Monteiro Pinto, 50 anos, cit. Amanda Matos, 22 anos, em entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista em 05/08/2004, no ano em que ela era princesa da Bateria.

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Matheus: Não, não. Que nem, tem um show sábado, nem sambei, não fiz nada. Só separo a roupa que eu vou trabalhar. Mas não existe isso não, não tem 97 passista que ensaia. É coisa sua mesmo, coisa sua ...

Essa maneira de relacionamento performático junto com os outros elementos do desfile de carnaval é semelhante à técnica de composição musical do contraponto. Tomando o contraponto como maneira de combinar duas ou mais linhas melódicas individuais que, tocadas ao mesmo tempo, dão origem a um todo polifônico e integrado, o jogo gestual do passista revela essa simultaneidade, na qual cada batucada ritmada gera uma resposta corporal, ou cada movimento de um interlocutor produz outro contramovimento por parte de quem samba. Porém, ao contrário da obra musical clássica, a execução sambada do passista é uma performance aberta, que não tem uma partitura ou coreografia pré-estabelecida e necessita da atuação de algo exterior para detonar sua ação, não explicitando quem seria o sujeito e o contra-sujeito da apresentação carnavalesca. Além de aberta, tudo aponta também para um tipo de performance relacional do passista, não só no sentido de que ele samba sempre com relação a uma audiência, mas que os seus próprios movimentos corporais só se realizam com a presença de música – o samba-enredo – e de um outro com quem se possa “conversar”, pois sem esses elementos não é possível realizar a improvisação. Numa das entrevistas realizadas junto com as alunas do curso de passista, as meninas solicitaram à entrevistada, a Primeira Princesa da Bateria na época, que “demonstrasse” um pouco do seu “samba” ao final da sessão. A solicitada alegou que não podia atender o pedido porque não havia música, apesar de haver platéia. Sem hesitação, as alunas começaram a cantar e batucar em palmas ao redor da passista. Surpresa, a entrevistada pega pela mão algumas das aprendizes, dirige-se ao centro da roda formada e todas começam a sambar e a improvisar conjuntamente.

5.3.1. Performance é multiplicidade Precisando melhor como a idéia de performance será trabalhada aqui, gostaria de partir das discussões teóricas sobre o caráter múltiplo de um dado antropológico. Mauss, 97

Matheus Olívério da Silva Rego, 18 anos, cit.


em “As técnicas corporais”98, ao comentar as variadas maneiras dos indivíduos utilizaremse de seus corpos em cada sociedade particular, sugere que no empreendimento analítico dos fatos concernentes ao corpo é preciso adotar o ponto-de-vista do “homem total”, isto é, abarcar ao mesmo tempo as preocupações fisiológicas, psicológicas e sociológicas. Porque as feituras corporais são um daqueles campos nos quais convergem diferentes e múltiplas características do fazer e pensar humano. Sua noção de fato social total99, no qual um elemento expressa simultaneamente as esferas econômicas, sociais, psicológicas, cosmológicas, entre tantas também expressa a maneira como intentamos pensar a performance. Mas será o trabalho de Bateson, em Naven 100, que ajudará a compor o que se quer dizer com performance nesta investigação, pois na obra citada o autor passa por diferentes dimensões culturais, como a afetiva, a social e a do pensamento lógico para compreender os gestos cerimoniais dos Iatmul. Nesse sentido, tomo a apresentação gestual, a relação com uma certa audiência e a caracterização indumentária dos passistas de uma escola de samba durante o carnaval como performance. Considero essa atuação o locus no qual convergem diferentes planos da vivência desses atores. Isso quer dizer, que quando os passistas dançam, estão em jogo simultâneos aspectos da festa, presentificados por meio da movimentação do corpo e da apresentação estabelecida. Seguindo Bateson101, cultura é uma elaborada inter-relação de diferentes aspectos da experiência social. Uma amostra do comportamento humano, como os atos cerimoniais de nativos melanésios – ou uma apresentação de carnaval -, pode ser elemento relevante para indicar como esses variados aspectos da cultura estão articulados. No entanto, para que o pesquisador consiga apresentar essa multiplicidade, já que não é possível apreender a complexidade de um todo cultural num flash, é preciso começar por subdividir a descrição da cultura e delimitar esferas de relevância102. No caso dos passistas da escola de samba de “Mangueira”, proponho analisar sua performance a partir da eleição de três esferas de 98

MAUSS (1974 [1936]) MAUSS (1974 [1923-1924]). 100 BATESON (1967 [1936]). 101 Opus cit, p. 3. 102 Sobre a elaboração das esferas de relevância de uma cultura, ver comentário de Bateson em Naven, opus cit., p. 27. 99


relevância, aqui nomeadas como dimensões sociológica, emocional e teatral. Sublinho aqui, que essas não são categorias elaboradas pelos passistas, são instrumentos teóricos utilizados para otimizar a compreensão analítica, pois os passistas as vivenciam gestualmente todas juntas e ao mesmo tempo. Apesar da correlação com os planos desenhados na obra de Bateson, esclareço que não transpus diretamente suas formulações para o caso dos passistas, foi preciso partir de alguns outros pressupostos para abarcar o que a performance dos passistas sugere.

5.3.2. A dimensão sociológica da performance do passista Por dimensão sociológica chamo a preocupação que tem todo integrante da escola de samba com relação à sua posição na agremiação. Como já tratado antes, no caso dos passistas, o reconhecimento de sua posição é sempre dado por um outro integrante da escola e a confirmação e reafirmação precisa ser referendada toda vez que ele demonstre ter “samba no pé”, pois o prestígio da posição do passista não é algo fixo, que é recebido e mantido com garantia, pelo contrário, o prestígio pode ser perdido ou consolidado. Por isso, cada apresentação dos passistas é um momento de extrema competitividade entre eles, pois depende de cada um, por meio de um estilo de sambar, atrair as graças de quem tem o poder de eleição, os chefes da escola de samba e o público. É preciso atentar que um passista não disputa com qualquer e todo componente do agrupamento, ele só disputa com outros passistas, isto é, com pessoas que estejam em busca da mesma posição. Nunca um ritmista vai tomar o lugar de um passista numa apresentação, porque as posições são divididas em especialidades – os que contribuem com o ritmo, com o canto, com a dança – cada um respeitando a função específica do outro. Mas, dentro de uma mesma especialidade, a competição existe mesmo que velada. Isto quer dizer que as posições entre os diferentes grupos de componentes podem ser fixas, porém o prestígio dentro delas não é algo estamental. Pelo contrário, o prestígio dos que têm a mesma posição é algo que pode ser adquirido ou perdido dependendo de sua trajetória dentro do mundo do samba. A competição e rivalidade entre os passistas não são algo abertamente assumidas, muitas vezes são expressas de maneira emocional, em olhares mútuos de planejada


indiferença ou em comentários como “eu vi o passista que ganhou o Estandarte de Ouro, olha tem tanta gente que samba melhor do que aquele cara” ou “tem uma que acham que, ah, ganhou o Estandarte de Ouro, que não samba nada”. Apesar da briga camuflada, considero, assim como Simmel103, o conflito inerente às relações dentro da escola de samba enquanto um tipo de interação entre seus integrantes que constitui a própria existência da agremiação. A escola de samba enquanto um agrupamento social é formada tanto de forças de atração, que se direcionam em virtude de valores como união e harmonia, e de forças de repulsão, que se desenvolvem em direção ao conflito. Ao mesmo tempo que elementos de associação imperam, como a estrutura organizativa e a procura por um enredo unificador, elementos de dissociação, como a composição heterogênea das várias alas e as rivalidades latentes entre componentes fazem parte da mesma configuração social. Ao mesmo tempo, a competição entre os passistas é um modo conflitivo de integração na agremiação na medida em que a “luta” que se trava entre esses componentes exalta um dos valores fundamentais para a existência do grupo carnavalesco, o “samba no pé” como valor a ser constantemente buscado e presentificado. Assim, a rivalidade entre os passistas leva a uma competição constante e enfatiza o desenvolvimento de um estilo próprio de sambar. O samba é um espaço de constante desafio, que nasce do enfrentamento entre os sambistas da mesma especialidade. Porém, ao invés de ser um elemento desagregador da organização carnavalesca, a rivalidade é algo que impulsiona a criação, pois o que estimula a competição é justamente a inovação e o improviso criativo que consolida a esfera carnavalesca. Assim, a despeito das vaidades individuais, o professor das aulas de passista sublinha, “Respeitem o samba de cada uma”, porque num campo de competição é preciso que os contendores se preservem, já que a meta não é a eliminação do outro, mas o convencimento de um terceiro fora da disputa que decide a favor de um ou de outro. Outros autores já apontaram que o carnaval não é feito só de alegria, diversão e comunhão. É constitutivo do carnaval ser tensionado e penetrado de linhas de forças antagônicas, mas relacionadas. Leopoldi (1978) aponta que, ao mesmo tempo que o período carnavalesco possa ser considerado um momento de communitas, no qual passa a vigorar

103

SIMMEL, Georg. (1983). “A natureza sociológica do conflito” e “A competição”. In: Georg Simmel. Org. Evaristo de Moraes Filho, São Paulo. Ed. Ática.


uma certa igualdade entre os indivíduos e há um certo relaxamento das regras sociais, a dinâmica interna de uma escola de samba é feita de hierarquia na organização da agremiação – organização formal administrativa e organização carnavalesca, que cria uma dinâmica de pressões e contrapressões entre as várias partes da escola. Goldwasser (1975) salienta a tensão existente dentro da própria escola de samba entre a exigência de uma organização mais burocrática, consolidada na diretoria administrativa, e uma organização mais informal e flutuante, presentificada nas inúmeras alas de carnaval da agremiação, para que o desfile de carnaval seja possível. Mas voltando para a competição de prestígio entre os passistas, o elemento que se torna “medida” para o cálculo desse prestígio é o que chamo aqui de visibilidade. Por exemplo, o passista que mais chama a atenção na sua apresentação, ao ser bem sucedido na virtuosidade do seu samba, é sempre um passista que será bem considerado. Ao mesmo tempo, fica notório que a visibilidade não é um atributo homogêneo e contínuo, há visibilidades elogiosas e há as pejorativas. Um passista pode executar uma movimentação que não chama a atenção do público, enquanto na mesma cronometragem, um outro passista pode realizar manobras corporais que laça a atenção e a estima dos que o assistem. Este último foi o que obteve maior visibilidade e, de um certo modo, elevou um pouco mais o seu prestígio. Pois essa apresentação que arrebata platéias, pode levar ao reconhecimento por parte dos diretores da escola de samba que a presença de tal passista é essencial em qualquer evento que represente a escola, e o passista pode também ganhar outras atribuições administrativas – coordenar eventos, ser instrutor dos cursos dentro da quadra, etc – dentro da agremiação. Além, é claro de ser assim mais estimado entre todos. Por meio da apresentação, um passista também pode acabar sendo convidado por um espectador exterior à escola de samba, que o viu sambar, para participar de atividades fora dela. Desse modo, quando um passista samba, ele entra num campo de rivalidades para tentar conquistar maior visibilidade e, assim, modificar seu prestígio e possibilidades de trajetos sociais. A visibilidade é uma dinâmica que envolve a criatividade corporal de quem samba e a expectativa de quem assiste ou se movimenta junto, sendo assim obrigatoriamente uma interação. Porque, mesmo que apenas espectador, o olhar é solicitado o tempo todo a ser agente. O olhar é cumprimentado, é ironizado, é festejado por meio dos gestos recíprocos dos passistas e por causa disso participa da performance, constituindo-a e dialogando com


ela. Gell (1998) aponta o olhar como sentido de transações interpessoais, ao enfatizar o caráter “material” dessa dinâmica, pois olhar seria quase como tocar, e assim necessariamente seria interação. Ver e ser visto, então, implicaria o contato pelo olhar entre dois sujeitos, em que o passista não só vê o espectador, e o espectador não só vê o passista, mas também cada sujeito vê a si mesmo sendo visto pelo outro, alimentando uma incessante cadeia de ação e reação. Fica notório o quanto o sentido visual é constituinte do próprio sambar dos passistas. Assim como coloca Cavalcanti (1999), A categoria visual remete à dimensão espetacular das escolas, distingue entre ator e espectador, abrangendo basicamente os componentes plásticos de um desfile, em especial fantasias, adereços e alegorias. A categorias samba aproxima-se da idéia de festa, refere-se ao canto e à dança, enfatizando a união dos participantes em uma mesma experiência. Todos esses aspectos são coletivos e essencialmente carnavalescos. [grifos da autora]”104

Visual e samba, sendo processos sociais complementares, mas antagônicos, como já abordado anteriormente (cf. item “O passista dentro da Escola de Samba de Mangueira”), estão intimamente presentes na atuação do passista da escola de samba, fundindo espetáculo e festa, fantasias indumentárias e vivência pessoal. Gostaria de justificar a utilização da noção de visibilidade ao invés de visual, embora ambas apontem para uma mesma direção de sentido. A idéia de visibilidade opera dentro da categoria de visual, já que esta estabelece uma diferença entre espectador e brincante, mas enquanto a categoria visual aponta para a preponderância das relações plásticas do desfile carnavalesco fantasias, carros alegóricos -, a noção de visibilidade quer sublinhar o caráter de interrelacionamento entre o componente da escola de samba e seu público dentro dessa dinâmica. Indicativa da busca de prestígio por meio da visibilidade é a experiência obtida por meio da câmera fotográfica. Desde o início, a preocupação em como tratar de uma expressão corporal no suporte escrito que é uma dissertação sempre assombrou o trabalho. Era como se as palavras não fossem capazes de fazer jus ao que era mais precioso aos passistas: os movimentos corporais. O meio mais adequado para flagrar o que um passista mais preza fazer é o vídeo ou o cinema, mas, enquanto a convergência de mídias ainda não 104

CAVALCANTI, Maria Laura. (1999), p. 62-63.


é uma realidade efetiva na confecção de um trabalho no campo acadêmico, foi pensada uma possibilidade com a fotografia. A imagem fotográfica é um meio limitado à apresentação do movimento em si, porque é da sua natureza captar o momento e não a seqüência. Esses limites podem ser evidenciados na seguinte imagem:

Figura 1 - Passista feminina sambando – Simone Toji / 2004

Mas se a imagem fotográfica não pode apresentar o desenho dos movimentos corporais, pelo menos pode levantar indícios do que sejam os gestos executados pelos passistas. Foi com tal intuito que a câmera fotográfica foi escolhida para fazer parte do trabalho de campo. Porém, algo curioso acontecia todas as vezes que a máquina fotográfica se fazia presente. Fosse nas aulas de passista ou num evento promovido na quadra da escola de samba, toda vez que a lente direcionava seu foco sobre um passista ou aprendiz de passista, eles simplesmente paravam de sambar e se congelavam numa pose graciosa. Por mais que eu insistisse para que continuassem a sambar e fingissem que a câmera “não estava lá”, era quase automática a reação de paralisação dos movimentos quando um passista se via como alvo de atenção fotográfica.


Um dia combinei com o professor de fotografar as alunas durante sua aula. Assim que saquei o equipamento fotográfico, ele realizou uma dinâmica em que contava até três e nesse momento as meninas deveriam parar numa posição e eu deveria tirar as fotos. Era como se o professor estivesse ensinando a mim e às alunas qual o lugar (e o tempo) de cada um na hora da fotografia. E nas entrevistas individuais com os passistas, quando eu solicitava que sambassem para fazer o registro com a câmera, eles sempre me instruíam, “Olha, quando eu fizer X, aí você tira a foto.” No início, o “congelamento” dos movimentos dos passistas diante da câmera fotográfica me deixou incomodada, pois era como se as imagens estivessem sendo “maquiadas”, não registrando o caráter “espontâneo” da expressão. Atribuí isso ao hábito criado pelos inúmeros jornalistas fotográficos, que cristalizaram esse tipo de relação com os passistas visando criar imagens mais graciosas. Mais tarde entendi que, no fundo, era minha idéia de utilização da câmera fotográfica como “máquina de registro” que estava sendo questionado pelos passistas. Enquanto eu esperava que as fotos fossem simples captações de manifestações e que a existência da câmera não alterasse tais expressões, os passistas encaravam a lente fotográfica como um elemento ativo. Um elemento cuja presença mudava seu comportamento e participava da construção do que era ser passista. E de que maneira isso se dá? A lente, quase como a ampliação do olho humano, potencializa a presença do componente, ao permitir a reprodução de sua imagem e a reverberando em infinitas possibilidades, seja no álbum de fotos pessoais, seja em jornais ou revistas. Por meio da câmera fotográfica, vislumbrei o quanto a questão da visibilidade é imprescindível para os passistas, pois quanto maior o “acúmulo” e a “difusão” da imagem visual do seu “samba no pé”, maior será o seu prestígio. Por isso sua preocupação diante da máquina de tirar fotos. O aparelho de fotos funciona como um amplificador da imagem do passista, reverberando sua visibilidade. Assim, quando o passista congela-se numa pose diante da máquina fotográfica, ele está interagindo com um público virtual e potencializado, pois quanto maior a difusão da imagem do seu samba, maior o acréscimo no seu prestígio, e, conseqüentemente, suas possibilidades de reconhecimento social. Não é à toa que os


passistas são chamados muitas vezes de “exibidos” e “aparecidos”, sendo facilmente atraídos quando percebem a presença de uma câmera fotográfica ou de televisão. Mas voltando à apresentação, por último, cabe evidenciar que, quando samba, o passista aciona também indícios de relacionamento com quem esteja presente durante sua apresentação, seja pela dinâmica da visibilidade, seja evoluindo conjuntamente com seu interlocutor. A performance do passista possibilita a interação em dois modos: com conhecidos e com desconhecidos. É bom pontuar que, toda vez que o passista se apresenta, tanto pessoas conhecidas quanto desconhecidas, estão sempre presentes juntas e misturadas. Quando o passista cria uma dinâmica gestual com desconhecidos, isto é, se apresenta à frente da pessoa, reverencia com um gesto de mão ou samba junto a essa pessoa que também está sapateando, sua atuação pode se tornar uma tentativa de estabelecer um relacionamento momentâneo, uma maneira de conhecer o outro, que ainda lhe é estranho. Pode ser reverenciando ou chamando para participar junto da folia. Quando o passista se volta para realizar um improviso sambado com conhecidos, sua apresentação pode estar carregada de ironia. Se o passista tiver uma rixa pessoal com a pessoa, muito provavelmente ele vai se apresentar sorrindo, mas com demonstrações ambíguas de respeito e depreciação, pois os seus gestos irão estar imbuídos também do sentido que aquele relacionamento exterior possui entre os envolvidos. Essa característica de estabelecer interações, jocosas ou respeitosas, momentâneas ou permanentes, por meio do samba, é chamada pelos passistas como palhaçada. Que o passista é um palhaço. Que o passista é o centro de atenção da escola, é ali 105 que a escola vai mostrar que tem samba no pé ou não. E ele faz umas palhaçadas, que eu mando ele fazer as palhaçadas: “Olha, num deixa de fazer isso, não”. Porque é o diferencial do passista, aquela coisa 106 engraçada. Palhaçada são algumas coisas que o passista...que existe pra isso pra fazer brincadeiras. Por exemplo, eu tiro o chapéu com a mão, descer no chão, ser puxado pela gola da camisa, são coisinhas engraçadas que todo o mundo vê e ri, que é o nosso trabalho, entendeu. Ele tem que fazer, desce no chão, dá cambalhota...essas 107 são as palhaçadas, são passos diferenciados. 105

Celso, 50 anos, cit. Índio, cit, falando sobre o ensinamento do samba para seu filho. 107 Matheus, 18 anos, cit. 106


A “palhaçada” cria um vínculo performativo com quem está presente, assim como o palhaço no circo ou no teatro de rua improvisa a graça escolhendo entre os reunidos um interlocutor para suas brincadeiras108. Tanto passistas femininas quanto masculinos fazem uso desse recurso, que é criar momentos teatralizados com quem estiver presente. E normalmente são brincadeiras de cunho nada politicamente correto, que aponta sempre a deficiência do outro de maneira lúdica. Com os passistas, isso se dá de maneira mais sutil e mais rivalizada. Na apresentação para uma delegação estrangeira, pude presenciar as passistas femininas mostrando sua graça e rebolado, os masculinos demonstrando agilidade nos pés. Um passista mais antigo apresentou uma acrobacia com as pernas, em que quase deitou no chão, mas logo já se colocou em pé e voltou a sapatear. Um passista mais jovem aproveitou a presença das meninas e fez um dueto com uma delas. Com genialidade teatral, o mais jovem parou de dançar e olhou para a dança da passista feminina escolhida, ele colocou a mão no queixo e comprimiu os lábios, forçando uma expressão como se estivesse surpreso e reconhecendo na passista, “Uau, que mulher”. Depois o jovem voltou a sapatear, fez uma acrobacia com as pernas – que foi cruzar as pernas uma na outra, agachar o corpo com elas cruzadas, e ir girando o corpo, levantando e descruzando as pernas – e já em pé, levou a mão para cumprimentar o principal convidado estrangeiro. Isso roubou muitos risos e aplausos da comitiva, e para o passista mais jovem rendeu uma curta audiência junto ao grupo estrangeiro depois da apresentação. Nesse episódio, foi possível presenciar a disputa por visibilidade entre os passistas todos juntos atuando, o estabelecimento por parte de um deles de um relacionamento provisório com alguém do público e com outra passista por meio da utilização da palhaçada e, no final, o resultado de quem conseguiu maior prestígio naquele dia. A realização dessa palhaçada do jovem passista masculino envolveu acionar um curto dueto com a passista feminina, alguém conhecida dele, que ambiguamente foi desdenhada. Ambiguamente porque simultaneamente ali se finge como numa apresentação de teatro, mas também se deixa entrever intenções do convívio cotidiano da escola de samba. E de que modo isso de deu? A passista feminina era a Primeira Princesa da Bateria na época, que 108

Sobre a palhaçada, ver CARVALHO: 1997.


carregava a faixa com seu título e, de certa forma, apresentava uma ascendência um pouco mais privilegiada entre o grupo de passistas, o que lhe traz grande foco de rivalidade geral. O jovem passista masculino já havia me confidenciado anteriormente que não apreciava muito o estilo de sambar dela, porém, no momento da performance ele simulou um cortejo admirado da atuação dela. Ao fazer isso, o jovem aproveitou a visibilidade privilegiada da passista condecorada e a transferiu para sua apresentação, sendo muito bem sucedido, pois assim conseguiu arrancar risos e aplausos do público estrangeiro. De uma certa maneira, a Primeira Princesa da Bateria serviu de trampolim para alguém que não a admirava realmente, ao mesmo tempo em que foi realçada ao participar do par. Por sua vez, o mesmo passista aproveitou esse momento de ápice de reconhecimento do seu samba e estabeleceu contato com um membro da delegação estrangeira que, é claro, ele não conhecia. Cumprimentando o convidado durante sua atuação e arrancando a simpatia dos estrangeiros, o passista masculino utilizou de certa forma a sua performance para se aproximar de desconhecidos, sendo mais tarde convocado para compartilhar alguns momentos junto da comitiva estrangeira após a apresentação geral. Isso não quer dizer que um passista planeje como fará sua apresentação fazendo táticas ou estratégias de como ganhar maior visibilidade, tudo ocorre de modo espontâneo e improvisado, mesmo porque depende muito dos que estarão presentes. Desse modo, a busca por estabelecer relacionamentos diretos e de interlocução numa apresentação carnavalesca faz parte do movimento de disputa por reconhecimento e prestígio na vida do passista. Assim, vemos o caráter agonístico da performance relacional do passista da escola de samba e a constante preocupação de nossos pesquisados em abrir possibilidades sociais e econômicas por meio dela, porque sua performance não apenas “representa”, ela também afeta o rumo da sua vida não-carnavalesca se impressionar alguém que possa lhe oferecer uma outra oportunidade. A dimensão que chamamos sociológica enfatiza o aspecto da performance dos passistas enquanto processo social de interação. Assim como Gell (1998) considera que objetos de arte revelam a rede de relacionamentos envolvida num cenário social específico, entendo que a performance carnavalesca dos passistas também ativa relações sociais no contexto da escola de samba, estando prenhe de agência, pois os passistas tentam abrir possibilidades de trajetória por meio dela.


5.3.3. A dimensão emotiva Quem me vê sorrindo Pensa que estou alegre

O meu sorriso é por consolação Porque sei conter para ninguém ver O pranto do meu coração (...) Depois de derramado, ainda soluçando, Tornei-me alegre e estou cantando “Quem me vê sorrindo”, Cartola e Carlos Cachaça.

Vinculada à dimensão que nomeei sociológica, da maneira competitiva que se realiza a apresentação do passista em busca de reconhecimento social, está a dimensão que movimenta o aspecto emocional da performance. As emoções são consideradas pelos passistas como elemento imprescindível ao sambar, é até o momento propício para colocá-las em ação. Sambar é sentir com o corpo e, como em toda festa, a expressão das emoções não é apenas um detalhe, é o próprio âmago do carnaval. Os passistas das escolas de samba não fogem à regra e, enquanto foliões que potencializam os sentidos do corpo no desfile, seus movimentos corporais estão encharcados de emoções, pois sem estas o gesto não se torna completo. Não é possível compreender plenamente sua performance, assim como eles a desenvolvem, se não se incorpora esse aspecto. O passista investe corpo e sentimento de modo intenso e irrefreado. E num espaço de concentrada rivalidade, como ele concebe o mundo do sambar, não é nada difícil detectar sensibilidades “à flor da pele”. As emoções nos passistas não podem ser vistas apenas como expressão psicológica individual. A atmosfera carnavalesca é um momento coletivo no qual é permitido mostrar transbordamentos emocionais. A emoção insistentemente reivindicada num desfile ou num evento de samba é a alegria. Existe uma certa obrigação para que quem participe do momento festivo demonstre alegria. Como no dia em que alguns ritmistas da escola mirim


“Mangueira do Amanhã” estavam acompanhando a rainha da Bateria numa sessão solicitada por jornalistas. O garoto incumbido de tocar a cuíca, concentrado que estava em acertar o manejo do instrumento, acabou por franzir o cenho e apertar um bico na boca, numa expressão de esforço penoso e sofrido. O fotógrafo do jornal, enquadrando o conjunto de meninos junto da rainha da Bateria, incomodado, solta ao menino da cuíca: “Ô, moleque, tem que sorrir, é carnaval, não é tristeza, não.” O menino abalou-se um pouco, puxou os cantos da boca num sorriso quase postiço e o fotógrafo iniciou o registro. Mauss (1981 [1921]) enfatiza o caráter por vezes obrigatório da expressão dos sentimentos, enfatizando a força do plano social sobre o indivíduo. Porque existem momentos apropriados, assim como atores determinados para sua manifestação, os sentimentos funcionariam como signos e símbolos coletivos, pelos quais as pessoas mostram seus afetos porque outros compartilham do mesmo código e entendem o significado dele. Apesar desse caráter quase obrigatório da alegria presente na economia emotiva dos passistas, pois de fato ele é cobrado por isso - como o professor das aulas de passistas exige de suas alunas, “Sorriso, sorriso no rosto, alegria” -, não há uma adesão completa das emoções do passista a isso. Perpassa ainda por essa carga de alegria, um fluxo emotivo que chamo aqui de contrariedade. É indiscutível que o passista samba porque sente prazer e tem alegria nisso, além de ser solicitado constantemente a demonstrar essa satisfação, porém, junto dela comparece outra textura emotiva, que interfere na sua performance. O que chamamos contrariedade pode ser sentida no próprio corpo do passista, pois sambar, ao contrário do que possa parecer, cansa muito. É preciso superar o mal-estar dos músculos e se esforçar por esticar um sorriso. O corpo do passista procura ser a presença da alegria e da graça, por isso a exigência do sorriso permanente na boca e do pisar leve na ponta dos pés. O sambar não deve transparecer o cansaço, a respiração ofegante, nem o sofrimento das carnes. Enquanto a exterioridade pede uma aparência graciosa e elegante, podemos falar da referência a uma interioridade que está carregada de contrariedades. A situação socioeconômica precária de quem samba também pode se tornar elemento de contrariedade, a “vida dura”, de quem “rala” ou “batalha todo santo dia” serve como contraponto ao momento em que se deve demonstrar extrema alegria, não importa o fardo que se carregue. O mesmo também pode ser dito de uma desilusão amorosa ou de


dificuldades conjugais, o samba é o tempo de cantar e dançar essas mágoas de modo festivo. Mas para os passistas, a contrariedade é vivida mais intensamente nos momentos de clara competição como as seleções, seja para integrar o Grupo-show, o dia de escolha das Musas da Bateria, o dia de desfile que pode trazer o tão desejado prêmio de melhor do ano. A rivalidade em busca de prestígio impera e para os não-escolhidos, sobra a decepção, e para as mulheres mais incontidas, fica a choradeira. Veja como um deles explica a situação: Vida de passista é assim, uma hora é escolhido, outra não. Tem competição? Tem sim. Mas isso não quer dizer que um é melhor que o outro, cada um tem o seu lugar. O que um passista tem de fazer é mostrar o seu melhor, dar o seu melhor, o resto é resto. Quem foi escolhido hoje, ótimo, quem não foi tem que aprender que o mundo é assim. Eu não fico chorando na frente de quem não me 109 escolheu.

Existe, então a experiência da competição intensa e a possibilidade de sofrimento, porque nem todos podem ser premiados. Porém, um passista deve, apesar de todos e de tudo, ser a presença da alegria. Pode-se estar amargurado profundamente ou com raiva carregada, mas os gestos no samba de um passista devem transparecer graça e festa. Isso não quer dizer que, ao sorrir, ele não vivencie a alegria de seus movimentos. A particularidade é justamente o de viver ambas as emoções contrárias ao mesmo tempo, a alegria e a contrariedade juntas e tensionadas. Quero deixar claro que a relação entre as emoções de alegria e contrariedade não é a da primeira ser uma máscara exterior artificial que encobre um interior verdadeiro, mas que o passista vivencia ambas as emoções de forma autêntica e sentida. E é essa tensão de duas emoções quase opostas vividas simultaneamente que tempera os movimentos de dança do passista. Acho que todo mundo tem seus problemas, não adianta, “Pó, isso aqui não tá bom”, mas todo mundo tem os seus problemas, todo mundo...´cê vai viver buscando essa felicidade. Sorrir é fingir que tá com ela, então todo mundo finge. E todo mundo acha que é feliz. Então isso que é o principal. Achar que é feliz já tá bom, que você achando que é feliz, fica feliz e a pessoa que tá do seu lado, vai ficar feliz também.

109

Optei por não identificar alguns depoimentos para preservar os “sentimentos” dos que generosamente refletiram comigo uma coisa que é muito mais vivida que explicada.


A vida na concepção de quem samba é constituída necessariamente de contrariedades. O samba, como já citado, mistura vida e festa, mas exige que quem participe dele demonstre alegria e satisfação. O sorriso é o principal requisito dessa exigência coletiva e sorrir pode ser também fingir essa sensação. Só que ao executar o sorriso e representar a alegria em si, o sambista acaba por ser contagiado e sentir realmente esse júbilo juntamente com seu sentimento de contrariedade. E ao se fazer contente, quem samba pode tornar o outro feliz também. A contrariedade também é uma emoção constituída coletivamente, já que se presentifica quando a pessoa mantém relações de trabalho, relações amorosas ou relações dentro da escola de samba que não lhe satisfazem. Para melhor precisar o que alegria e contrariedade são para o passista na realização de sua performance, é preciso discutir pressupostos. Comumentemente, quando se fala em emoção, entende-se como um estado de espírito subjetivo do indivíduo, que por vezes pode ser reclamado como reduto da psicologia. Mauss110 contribuiu para um entendimento da expressão do sentimento enquanto coisa coletiva, porém enfatiza o caráter de obrigação que a manifestação emotiva exige, já que o sentimento enquanto criação coletiva da sociedade antecede a vontade do indivíduo. Essa idéia considera que o social se dá por meio do sentimento como um ente simbólico, pois as pessoas aprenderiam maneiras determinadas e momentos apropriados de expressar sua sensibilidade porque querem comunicar algo para as outras pessoas, que também compartilham do mesmo código sentimental. Porém, a experiência emocional da performance dos passistas não se adequa completamente a esse modelo de expressão das emoções. Existe, sim, uma pressão geral para que quem sambe seja tomado de alegria, mas como já descrevemos, a contrariedade concorrre conjuntamente embaralhando o entendimento dessa emoção de satisfação. Para que uma relação comunicativa seja bem sucedida é necessário que o termo de comunicação não seja dúbio e que os seus participantes partilhem de uma mesma norma biunívoca, com o mínimo de ruído possível. Traduzindo isso para a dimensão das emoções, seria necessário que o indivíduo, num local e tempo determinado, só pudesse sentir e expressar uma única emoção por vez, para que ficasse claro tanto para os outros a quem ele manifesta, quanto para ele mesmo qual é a 110

MAUSS (1981 [1921] ).


emoção atuante. Só que na atuação dos passistas, pelo menos dois fluxos de emoções perpassam o seu samba entrelaçadamente e tensionadamente, a alegria e a contrariedade ao mesmo tempo. A sua performance aponta para a vivência simultânea de múltiplas emoções. A tensão de emoções entre contrariedade e alegria pode ser pedagogicamente expressa na fala do professor do curso de passista às suas alunas: Não quero saber se vocês não gostam de mim. Quero todo mundo sambando com sorriso no rosto. ´Cês podem ´tá fulas [bravas] comigo, mas tem que sambar sorrindo. Tem que aproveitar, a melhor coisa disso é sambar com alegria na frente de quem faz a gente sofrer. Tem que sacanear com graça, mostrar a superioridade. 111 Não olhar pro chão.

Aqui a própria autoridade pedagógica instrui os aprendizes a subverterem seu domínio. Assim fica mais aparente o poder que a tensão entre as emoções – contrariedade/alegria – traz para o desenvolvimento dos movimentos corporais, pois torna a vivência ambígua. Você nunca vai ter certeza, ao assistir um passista, se ele está só sentindo alegria ou só fazendo desaforo. Se você tem uma rixa com ele, você não vai saber pelo samba dele se ele está lhe cumprimentando ou se está ironizando a você. Sente-se contrariedade por estar diante de um desafeto, ao mesmo tempo em que se sente alegria por vingar-se sambando na frente desse mesmo desafeto. A principal característica do samba do passista encontra-se aí, na tensão de viver entre os sentimentos de contrariedade e o de alegria criando ambigüidades de intenções e sentidos. A ambigüidade permite criar um espaço de suspensão e mantém a convivência num mundo cerradamente disputado. É também por meio dessa conjunção ambígua de emoções que é possível realizar a palhaçada, a interação performativa que, ao mesmo tempo que exalta, deprecia. Sem que isso leve a confrontos violentos, colocando os participantes em relacionamento lúdico. Se não é a comunicação e o sucesso da significação o que as emoções na performance do passista procuram, então o que é? Sugiro que as emoções levadas nos gestos do samba permitem a possibilidade de criar um campo de relacionamento provisório durante o comemorar carnavalesco. Com isso quero dizer que alegria e 111

Matheus Olivério, 18 anos.


contrariedade não são apenas intimamente sentidas e expressadas, elas levam o sambista a se relacionar com alguém, mas não por meio da comunicação, mas por meio de compartilhar a experiência momentânea do samba. Michelle Rosaldo (1986 [1980]) aponta que as noções de “conhecimento” e “paixão” dos Ilongot não só descreveriam atributos individuais do “coração”, mas também experiências, atividades e padrões de variadas formas de relacionamento social nativas. De modo que as conexões humanas entre os atores nos tempos de alegria, surpresa ou desilusão estariam organizadas, não por um esquema abstrato anterior, mas por um processo contínuo de cooperação, conflito e relação entre os envolvidos num mesmo mundo. Nessa direção, é possível compreender a declaração do passista que diz que sorrir é fingir que se é feliz, e que fingindo a pessoa vai se sentindo realmente feliz e acaba por tornar quem está próximo feliz. Pois assim a emoção de alegria se mostra como um processo a que se chega por meio do relacionamento entre os agentes durante a festa de carnaval. O mesmo se dá com a emoção de contrariedade, pois esta pode ser produzida por meio de relacionamentos conflituosamente velados, como a ironia sutil das palhaçadas. Precisando melhor, alegria e contrariedade são emoções que levam os participantes da festa carnavalesca a se relacionarem entre si. Enquanto a alegria guia-se por ampliar cada vez mais o compartilhamento jubiloso da experiência festiva, a contrariedade direciona-se a questionar essa propagação e possibilita estabelecer um comentário sarcástico ou zombeteiro, já que é possível “sacanear quem faz a gente sofrer”. O contraste e a simultaneidade da presença de ambas as emoções leva à ambigüidade da experiência do samba. Por isso, no samba o objetivo não se concentra na atitude de se fazer entender, mas de provocar interações temporárias e ambíguas com quem participe do carnaval, espectador ou folião, criando o que chamei de campo de relacionamentos. O estabelecimento desse campo de relacionamentos baseado na tensão das emoções faz parte da busca do passista por aumentar suas chances de visibilidade e, conseqüentemente, de seu prestígio. A performance relacional do passista mostra que não é só relacional no modo como desenvolve sua movimentação gestual, é relacional porque coloca em interação, mesmo que provisória, sujeitos integrantes do momento carnavalesco, porque emocionalmente sentida e disputada.


Assim como Bateson considera imprescindível incluir em sua análise o aspecto emocional da cerimônia naven e da sociedade Iatmul para compreender o tom de zombaria empreendido pelos nativos participantes do naven, também considero importante ter perpassado os sentidos emocionais do samba dos passistas para compreender a ambigüidade de sua atuação e o tom irônico possível de ser depreendido dela. A discussão da tensão simultânea de emoções contrárias (alegria / contrariedade) também pode nos remeter à noção de antagonismos em equilíbrio, criada por Gilberto Freyre112. Segundo Araújo (1994), a amálgama tensa mas balanceada seria o princípio que estruturaria as relações sociais dentro da sociedade escravocrata e patriarcal brasileira. Isto é, que os relacionamentos entre brancos e negros, senhores e escravos estariam marcados pela presença de elementos contrários, que não se desfazem completamente mesmo quando misturados, os diferentes se equilibrariam em infinitos antagonismos, construindo a idéia de uma sociedade extremamente híbrida, sincrética e não-homogeneizada. Por isso, ao mesmo tempo em que se exercia atos de atroz violência como mandar queimar escravas grávidas, também estaria presente a docilidade do cafuné da ama-de-leite, ao mesmo tempo que haveria o despotismo do senhorio, haveria a confraternização familiar com a casa-grande. Esse modo de juntar coisas diferentes e contrárias, sem diluí-las completamente, é chamada por Araújo de hybris. Interessante notar que num certo momento, este autor realiza uma comparação entre o ethos senhorial da casa-grande e um ethos carnavalesco inspirado em Bakhtin com relação aos excessos corporais apresentados tanto num quanto noutro, sendo que os antagonismos equilibrados na hybris, implicam em “deformação e relacionamento” (idem: 1994, p. 70). A aproximação entre a tensão de emoções contrárias encontradas numa manifestação de caráter popular e festiva e a noção de equilíbrio de antagonismos realizada por uma interpretação sobre a formação da nação brasileira só nos leva a indagar até que ponto esse princípio está espraiado sobre nossa sociedade e de que modo ele ainda se encontra atuante ou não.

112

FREYRE, Gilberto. 2002 [1930]. Casa-Grande e Senzala. Editora Record, São Paulo/Rio de Janeiro, 1ª edição, 1930; 45ª edição, 2001.


5.3.4. A dimensão teatral Chamo de teatral a maneira como a performance dos passistas brinca com um certo imaginário do mundo do samba, porque sua apresentação sublinha a presença das figuras da mulata, para as mulheres, e do malandro, para os homens. Aqui uma elaboração de gênero é conscientemente trabalhada para a realização do samba, guiando os gestos entre concepções do que seja o feminino e o masculino. Porém, ao mesmo tempo em que a mulata e o malandro tornam-se esses referenciais de gênero na apresentação do passista, não existe um modelo único e autônomo aos quais os passistas devem aderir. Eles pouco sistematizam isso, eles o vivenciam em opiniões de que um bom passista masculino “tem que ser charmoso, simpático, extrovertido”113, “tem que ter um chapeuzinho de malandro”114; ou a passista feminina “precisa manter o corpo, usar biquíni”115 e ás vezes se considera como “passista-mulata”116. Além disso, a idéia do que possa ser uma mulata pode ir do juízo mais agressivo, como a de ser uma mulher “puta” (ou prostituta), ao juízo mais dócil, a mulher graciosa e dengosa. O mesmo se dá com relação ao malandro, que pode ser referido como o que burla as regras estabelecidas e é violento até como o apaixonado que gosta de viver a vida e se divertir. Essa pulverização nos sentidos que o feminino e o masculino podem apresentar por meio das idéias de mulata ou de malandro deve-se principalmente à noção de que cada passista deve desenvolver um estilo próprio. Estilo, como elaborado pelos pesquisados (cf. discussão sobre a vocação e o dom), tem o sentido de possibilidade de criação individual e particularizador entre os componentes da mesma posição. Assim, os atributos femininos ou masculinos também podem ser utilizados para contribuir na composição pessoal do passista e podemos ouvir, então, que “fulana é uma mulata mais moleca” ou que “aquele passista tem um jeito mais elegante”. Pois, sambar é essencialmente ter uma perspectiva, às vezes se é vitorioso com ela, às vezes não. Como já visto, o que determina o sucesso ou fracasso de um estilo de sambar é a eleição do público no momento da apresentação. Num momento, um jeito de dançar pode agradar mais determinada audiência, mas nem isso é consenso,

113

Matheus Olivério, 18 anos, cit. José Carlos, 52 anos, cit. 115 Amanda Matos, 22 anos, cit. 116 Amanda Matos, idem. 114


pois os próprios espectadores podem se dividir por um estilo ou outro. Assim, cada um que samba deve realizar uma variação própria do que entende ser mulata ou malandro. Gell117 ajuda a problematizar essa acepção de estilo ao considerar que estilo não faz referência apenas a obras individuais de certos autores, mas é a relação com que essas obras mantêm com o todo constituído pelo restante de obras relevantes. Estilo é o que possibilita que uma obra esteja relacionada a um certo âmbito de pertencimento. Isso não quer dizer que todas as obras de um certo domínio devam apresentar uma mesma feição, é justamente a variação individual de cada obra no conjunto que permite colocar em ação o estilo. Porque as obras de arte não fazem seu trabalho cognitivo isoladamente, “they function because they co-operate synergically with one another, and the basis of their synergic action is style.”118 No caso dos passistas das escolas de samba, pode-se dizer que o estilo particular de cada um contribui para constituir uma acepção mais geral do que seja sambar, pois as inúmeras variações de mulatas e malandros, ao se colocarem em relação e em disputa, circunscrevem o domínio do gênero no samba no pé. Por isso, mesmo enfatizando o aspecto individualizador do estilo, esse passista com estilo só pode constituir-se enquanto singularidade quando em relação com o estilo de outro passista. Como não há um modelo padrão estabelecido do que deve ser uma mulata ou um malandro, o resultado é a criação do que Gell chamou de “rede de relações transformacionais” (tradução nossa) na dinâmica gestual do passista. Isso quer dizer que essa rede de transformações no modo de sambar de homens e de mulheres não tem um centro exemplar no qual cada gênero de passistas possa se espelhar e assim cada qual adota e transforma os atributos como melhor lhe couber. Além disso, durante sua carreira, cada passista vai transformando seu próprio modo de sambar por estar em relação com outros passistas e por estar num contexto de extrema rivalidade e competição. Isso é, ele é passista sempre individual, ele tem que ser...passista individual, ele tem que ter criatividade. Todos os passistas são criativos. Aí ter que fazer sempre criatividade, sempre inventar, sempre inovar, cada ano que passa, ele tem que fazer uma coisa diferente, pra poder ele fazer uma criatividade pra ele mesmo. Porque passista ele é copiado [observado]. Eu, às vezes, tô aqui sentado aqui, você tá sambando ali, eu tô te copiando [observando].119

117

GELL, Alfred. 1998. “Style and culture”. In: Art and Agency. Oxford, Clarendon Press. Idem, p.163. 119 Celso Pinto, 50 anos, cit. 118


Neste depoimento, “copiar” está sendo utilizado mais no sentido de observar, assim como também “filmar” também é empregado nesse entendimento. Mas é revelador que um passista sinta-se sempre pressionado a inovar no seu samba e realize isso a partir da observação do samba de um outro passista, tentando sempre diferenciar-se do outro, seja para que o outro não consiga imitá-lo, seja para que o outro não o suplante. A elaboração individual contribui para a formação de um campo coletivo do que seja sambar, pois a disputa só é possível entre participantes que se reconheçam como diferenciais de um mesmo âmbito. Constatada a variação do feminino na passista-mulher e do masculino no passistahomem enquanto constituinte do estilo no sambar, é notório verificar também que dificilmente uma mulata irá emprestar atributos do malandro para compor seu estilo. As mulheres devem se cercar do universo feminino da mulata e os homens do universo masculino do malandro. Há uma composição de gênero marcadamente contrastivo entre os passistas. É possível apreender essa diferenciação de gênero mulata-feminino/malandromasculino no modo como os passistas pensam sua performance, a partir dos próprios gestos, como explica um deles. Primeiro, as mulheres sambam com as pernas elevadas, pra ela mostrar aquelas lindas coxas, e ponta de pé, tá. O homem, não, pé todo no chão. Primeiro, ela só tem passos delas em pé, o que quero dizer com isso? Elas cruzam, elas chutam pro alto, mas elas não podem pular, elas não podem descer no chão que nem os homens. Em segundo lugar, ela tem o grande diferencial entre elas e os homens, que é aquela rebolada clássica, elas podem jogar o bumbum pra frente, o bumbum pra trás, são coisas que são delas só. E os homens só têm coisas deles, só.120

Se mulheres devem sambar na ponta dos pés e rebolar muito, elas não devem pular nem colocar a mão no chão para enfatizar sensualidade. Os homens sambam com o pé inteiro no chão, até mesmo com os calcanhares, podem executar malabarismos ao solo, mas não devem rebolar, sublinhando agilidade e destreza. Perturbador dessa classificação de gênero por meio dos movimentos corporais são os homens que “sambam como as mulheres”, isto é, rebolam muito e quase não realizam manobras corporais de solo. Estes são vistos com desconfiança tanto pelos passistas que 120

Matheus Olivério, 18 anos, cit.


“dançam como homem” quanto pelas passistas femininas, pois são elementos que desfiguram a personagem do malandro e não podem chegar a ser mulata. Os passistasmalandros desdenham esses homens que desenvolvem o sambar como as mulheres, culpando-os pela fuga de talentos masculinos da Ala de Passistas, pois muitos rapazes bons de samba prefeririam seguir na Ala da Bateria para não serem chamados de “gays” (homossexuais). Apesar de bagunçar as convenções de gênero, esses passistas “afeminados” não são impedidos de desfilar na escola de samba, já que são em número muito pequeno. Porém, eles não são muito festejados enquanto talentos do samba no pé. Com relação às mulheres, não presenciei nenhuma que adotasse atributos gestuais considerados masculinos na sua apresentação. A divisão entre o feminino e o masculino também se reflete na indumentária característica dos passistas. Os homens vestem camisa e calça mais formais e o mais importante para eles é portar um chapéu e pisar com sapatos de solado. Pesquisadora: E pra você qual é a roupa do passista? Matheus: Chapéu panamá, um terno branco, uma calça, uma calça de linho...ah, se todo o ano eu desfilasse assim era vinte Estandarte (risada), tô brincando...e o meu 121 sapato.

As mulheres vestem-se com biquínis decorados e adornos brilhosos na cabeça, braços e pernas, equilibrando-se sobre um par de sapatos muito altos. A vestimenta feminina consiste em coroa, um tipo de adorno à cabeça, biquíni superior, braçadeiras, punhos, tornozeleiras, biquíni inferior, sandálias de salto plataforma. São opcionais o esplendor – um acessório confeccionado de plumas - e a franja de lantejoulas, amarrada ao quadril por cima do biquíni inferior. Além disso, há a maquiagem bem intensa e brilhosa; e o banho de purpurina sobre a pele do corpo à mostra. (INSERIR FOTOS) Enquanto as mulheres primam pela superexposição da pele e do corpo, os homens são marcados pela discrição nas roupas. Essa caracterização indumentária não é seguida durante os desfiles das escolas de samba, pois os passistas passaram a vestir as fantasias de enredo (cf. trecho sobre a “retórica da perda”), mas são usadas principalmente durante as apresentações do Grupo-show. 121

Matheus Olivério, 18 anos.


Porém, o contraste de gênero criado pelas elaborações da mulata e do malandro mostra uma parte do desfile de carnaval que não se guia pela inversão, porque o travestimento não é exaltado, apesar de estar camuflado na presença dos passistas “afeminados”. O que se reitera no samba dos passistas é a relação contrastiva entre o masculino e o feminino no contexto carnavalesco, pois o malandro não se confunde com a mulata. O que chamo aqui de mulata e malandro são personagens que ajudam a pensar a performance, extraídas das variadas indicações dadas pelos passistas. Como fica sugerido pela prática, mulata e malandro são os personagens que os passistas incorporam para brincar a festa carnavalesca. Porém, eles não vivem essa caracterização como se ela fosse uma máscara, algo que não lhes faça parte da vida e de sua personalidade ou que possa ser descartada tão logo termine o carnaval. Cada qual deve realizar em si a mulata ou o malandro necessários para o sucesso de ser considerado um bom passista, mas isso não se restringe apenas ao momento de apresentação, é sempre uma coisa que se mistura à vida pessoal, no sentido de que manter um corpo torneado, aparência e vestes alinhadas exige dedicação cotidiana e investimento financeiro permanente. Mesmo porque a cristalização de uma carreira dentro da escola de samba permite o desenvolvimento continuado do que é ser passista. Insisto na utilização do termo personagem em referência ao processo dramático dos atores das artes cênicas que, para encenar acabam por vezes empregando meios muito íntimos e pessoais para compor sua atuação. Ao contrário das noções de máscara e caricatura, que sinalizam processos mais despregados do foro íntimo. Ainda sobre a indumentária, existe de certa forma uma oposição entre a indumentária considerada ideal do passista - que busca presentificar a mulata e o malandro – e a fantasia do desfile de carnaval. Como já comentado, até um tempo atrás, os próprios passistas confeccionavam suas roupas de desfile, conforme os personagens da mulata e do malandro. Nesses últimos anos, os passistas foram obrigados a se tornar “figuras de enredo” e também sair com fantasias estipuladas pelo carnavalesco. Essa fantasia é sempre vista de maneira negativa pelo passista. Ao acompanhar a preparação para o desfile de um passista, foi interessante descobrir que um componente da escola, na maioria das vezes não sabe do que trata a sua


fantasia, como ela contribui para a construção do enredo. Mesmo porque o integrante só recebe a fantasia alguns dias antes do desfile, devido o segredo em que é envolta a preparação de cada escola de samba concorrente. O que um desfilante experimenta quando veste a fantasia não é a sensação de se tornar um personagem do enredo, mas ver se todo o aparato indumentário não atrapalha sua movimentação e seu conforto de pessoa que quer cantar e pular no desfile. No caso do passista que acompanhamos, a fantasia que fora confeccionada para a Ala dos Passistas tinha calças de abas largas e rígidas, o que dificultava a movimentação das pernas. Isso gerou algumas críticas ao carnavalesco, que não teria se preocupado com a especificidade da Ala dos Passistas, que é ter a liberdade de evoluir no samba. O passista se sente desconfortável com a fantasia de desfile não só porque ela lhe restringe os movimentos corporais, mas porque ela se sobrepõe à indumentária de mulata e malandro, que ele considera a “autêntica”. O que acontece atualmente é que a performance do passista num desfile carnavalesco não pode mais contar com a caracterização via roupas e acessórios, agora ela se concentra no gestual. A fantasia hoje se torna mais um elemento de contrariedade dentro da dimensão emocional da performance, um obstáculo que deve ser superado mostrando a graça e a agilidade dos movimentos corporais, apesar de tudo. Mais uma vez isso cria ambigüidade, pois o passista vestido com uma fantasia desenhada pelo carnavalesco - que enfatiza o conjunto, pois todos os passistas irão vestir uma fantasia idêntica – pode tanto parecer um simples componente de ala ou pode surpreender com passos acrobáticos. Mas se hoje é no “samba no pé” que se concentra a apresentação duma possível referência à mulata e ao malandro, gostaria de apontar algumas particularidades da prática dos passistas em relação a cada personagem. Começando pela noção de mulata, há menção de que exista diferença entre ser passista e ser mulata, acompanhando a distinção entre avenida e palco. Aluna: Qual a diferença da passista pra mulata? Amanda: Passista é passista. Passista, depende da passista, porque tem passista que só samba igual uma louca. Samba, samba, samba, a Bateria tá lá, não faz um passo e samba igual uma maluca. Mulata, não, mulata é aquele jogo de braço, aquela cintura, aquele carão [expressão de alegria e desenvoltura], aquela postura, sabe. Uma coisa mais assim, mais pra frente. Passista, não, depende da


passista. Tem passista que é mulata, passista-mulata, aquela meia maluca, e tem a passista que é doida, só samba, não escuta nem a paradinha da bateria. Aluna: Você é qual? Amanda: Ah, eu sou uma passista-mulata, é porque eu tenho uma noção em palco. E eu junto tudo, eu junto carão, ih... Aquela “Quem plantar a paz...”, aí eu junto com a mão de porta-bandeira, ih, eu sei que eu viro a baiana, eu faço até a 122 coreografia.

Se é possível para as mulheres classificarem a “avenida” – o desfile de carnaval da escola de samba - como espaço particular do passista; e o “palco” - apresentações em casa de espetáculos ou no Grupo-show - como espaço da mulata123, é paradoxal constatar que qualquer passista feminina com quem se converse, sempre se considere uma mulata também, nunca apenas passista. Por isso, considero a mulata um personagem que toda passista feminina busca sempre presentificar na sua performance. Outra menção que às vezes pode ser inferida pelo termo mulata é a referência de raça e cor. Mulata, então, seria a miscigenação de branco com negro. Seria de se esperar que só mulheres “de cor” pudessem ser chamadas de mulatas. Porém não é bem assim que as coisas acontecem. Pesquisadora: E assim, isso que você me explicou que uma mulata tem que ter postura, né, tem que saber o momento certo, tem a ver com a cor, então? Amanda: Não, não tem a ver. Mas até tem duas mulatas agora que fazem show com a gente [no Grupo-show]...nós falamos mulatas porque, no caso elas são passistas, né, elas são claras! São assim quase loiras. E quando anuncia é como mulata, mais uma mulata. As pessoas ficam assim...”Uma loira?” Mas uma mulata, mais pelo título. Pesquisadora: Você acha que isso de ser mulata tá muito mais no jeito dela do que... Amanda: Na cor. Mas hoje em dia é...mas a maioria mesmo são negras, a maioria. Tem até algumas surgindo, algumas branquinhas, amarelinhas claras, mas a maioria mesmo são negras. A maioria. Pesquisadora: E você vê alguma diferença no samba das mais claras ou.... Amanda: Sabe, cada um tem seu estilo. Depende. Às vezes te agrada, às vezes não. Isso depende. Às vezes me agrada, isso depende. Tem até, tem uma que eu vi sambando, ela é até loira, ela samba bem. Mas ela não é nem daqui da Mangueira. Não sei nem onde que eu vi, foi numa escola de samba que eu vi. Falei “Caramba!”, ela até chamava atenção, porque uma loira sambando daquele jeito, 124 sambando igual passista mesmo.

122

Amanda Matos, 22 anos, cit, entrevista obtida com a ajuda das alunas do curso de passista. Sobre a caracterização da mulata enquanto uma profissão em casa de espetáculos cariocas, ver GIACOMINI (1992). 124 Amanda Matos, 22 anos, que pode ser considerada uma passista negra, cit, entrevista em 12/07/05. 123


Apesar de uma certa contradição na declaração, nessa conversa fica mais evidente que o que as passistas femininas consideram como mulata não é referente exclusivamente à cor da pele, mas é principalmente sobre o gestual, é o “samba no pé” que determina ser ou não uma mulata, é o jeito no corpo, porque “mulata é aquele jogo de braço, aquela cintura, aquele carão, aquela postura”. Mais uma vez somos colocados frente a mais outra ambigüidade, de passistas femininas chamadas de mulatas, mas que não são mulatas no sentido usual do termo, são brancas. Se recobrarmos o sistema de classificação racial brasileiro como concebido por Oracy Nogueira por meio da noção de preconceito de marca, este autor sugere que as situações raciais no Brasil são guiadas pelo critério da aparência racial, isto é, se os indivíduos apresentam os traços físicos, a fisionomia do grupo estigmatizado125. No caso brasileiro, o critério de discriminação racial sendo o fenótipo permite que alguns indivíduos, tendo ascendentes de cor mas não aparentando traços considerados de negros, possam ser considerados como brancos. Levando isso em conta, a apropriação performática que os passistas fazem da mulata parece embaralhar essa classificação, pois mulata não seria um modo de classificação racial, mas um modo de classificação cultural por meio do gesto. A noção de mulata como atuada pelos passistas não se refere a uma aparência de raça, pois passistas com aparência branca e loira são consideradas mulatas. 126 Com relação à noção de malandro dos passistas masculinos, esta também não parece se prender a uma determinação de cor. (...) passista é aquele cara que ginga, e ginga vem da malandragem...

127

Pesquisadora: E de toda sua experiência assim, o que você acha que é preciso ter pra ser um passista? Quais são as coisas importantes que... Celso: É, elegância, andamento, postura... Isso, elegância, postura e muito 128 samba no pé.

125

NOGUEIRA, Nogueira. 1985 [1957]. “Preconceito de marca e preconceito racial de origem”. In: Tanto preto quanto branco. São Paulo, TA Queiroz Editor. 126 Para o desfile de carnaval de 2006, uma Rainha da Bateria loira foi eleita dentro da Escola de Samba de “Mangueira”. 127 José Carlos Torres, 52 anos, passista branco, cit. 128 Celso Monteiro Pinto, 50 anos, passista negro, cit.


O que é sempre ressaltado aqui é que ser passista e caracterizar o malandro depende primordialmente do gestual, da “ginga”, da “elegância”, da “postura” e, claro, do “samba no pé”. Os passistas masculinos não diferenciam muito “palco” de “avenida”, enquanto locais de apresentação que privilegiem a atuação do passista ou do malandro, como no caso das mulheres, muitas vezes, eles os consideram quase como sinônimos. Aluna: Qual é a diferença entre o palco e a avenida? Índio: É, existe uma diferença do palco pra avenida, sim. Entre aspas, né. Porque 129 na realidade todos os dois são palco. É o principal palco, principal palco é a avenida.

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Levando em conta essas particularidades de usos e abusos da concepção da mulata e do malandro enquanto personagens para viver a festa carnavalesca, gostaria de arriscar um palpite para a escolha inconsciente dessas figuras na performance do passista. Considero que, ao colocarem em movimento a alusão a tais personagens, os passistas estejam sublinhando ainda mais as qualidades de ambigüidade de sua atuação. Segundo Antônio Cândido131, refletindo sobre o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, a malandragem consistiria num “balanceio caprichoso entre ordem e desordem”132. A ordem sendo referida como o mundo das alianças legítimas, das carreiras, da gente de posição definida; enquanto a desordem seria as relações ilegítimas e instáveis na sociedade brasileira do início do século XIX, de homens de posição que se engraçam por ciganas e padres encontrados semi-nus junto de mulheres duvidosas. Todos os personagens do texto literário transitam entre os pólos do lícito e do ilícito, e o mérito de Almeida foi ter construído uma obra que revelasse o elemento organizador da sociedade daquele tempo, o jogo dialético da ordem e da desordem. Assim, podendo atribuir ao trabalho o título de romance malandro, já que o plano da ordem se alimentaria necessariamente do da desordem e vice-versa, não sendo dois planos estanques sem entrelaçamentos. 129

Índio, cit. Matheus Olivério, 18 anos, cit. 131 CANDIDO, Antônio (1993). 132 Idem, op cit, p. 44. 130


Se Cândido refere-se ao malandro enquanto princípio estruturador das relações da sociedade brasileira de uma dada época, encontramos trabalhos que tomam o malandro enquanto figura histórica e agente simbólico. Matos (1982) assinala: Articulando signos de dois mundos [o oficial e o não-oficial] e não pertencendo inteiramente a nenhum, o malandro se caracteriza, em todas as instâncias, pela dialogia e pela ambigüidade, o que faz com que ele nunca se estratifique numa posição definitiva. (...) ele se dirige para uma autodefinição que todavia permanece incompleta, e que também nunca é estaticamente formulada no samba.133

Essas referências são suficientes para os propósitos do nosso trabalho para indicar o entendimento do termo malandro como elemento que transita sempre entre dois mundos, o oficial e não-oficial, a ordem e a desordem, sem nunca se fixar num ponto determinado. E seu caráter ambíguo sempre presente. A ambigüidade também pode ser encontrada na personagem da mulata. Nina Rodrigues134 pensa o assunto em termos raciais, a mulata seria um tipo de mestiço, um híbrido racial entre brancos e negros. Gilberto Freyre135, de um ponto de vista culturalista, enxerga a mulata não só como resultado da miscigenação corporal, mas também da convergência entre o mundo dos senhores de engenho e o mundo dos escravos. Florestan Fernandes136 assinala a posição paradoxal do mestiço e do mulato, de estar dividido entre carregar as mazelas da ordem social escravista e tentar adotar a dinâmica da ordem social competitiva incipiente. Desse modo, o mulato e a mulata também foram pensados enquanto elementos ambíguos, que não pertencem totalmente nem a um ou a outro domínio, seja o de brancos ou de negros, seja o de senhores ou dos escravos, seja o sistema escravista ou o sistema de competição moderno. Além do mais, a mulata e o malandro já são referências consolidadas no imaginário popular urbano carioca. Com raízes no processo de modernização da belle époque do Rio de Janeiro, em fins do século XIX e começo do XX, tais figuras já se faziam sentir no teatro

133

MATOS, Claudia (1982), p. 59. RODRIGUES, Nina. (1976 [1890 a 1905]). 135 FREYRE, Gilberto. (2002 [1930]). 136 FERNANDES, Florestan. (1965). 134


de revista ou variedade (LOPES: 2000) e na música popular (OLIVEN, 2000), sendo agora ressignificadas pelo sambar dos passistas das escolas de samba. Esclareço que não aprofundarei nenhuma discussão sobre as questões da mulata e do malandro na sociedade brasileira porque cada uma delas mereceria uma pesquisa independente, tão vasto e problemático ser o assunto. Mas retornando aos passistas da escola de samba, parece muito oportuno à performance destes sambistas a presentificação dos personagens da mulata e do malandro, não só porque são representações carregadas do significado da ambigüidade na formação da sociedade brasileira, como também brincar com os pressupostos que essas noções carregam, apresentando mulatas brancas e malandros com postura. E assim carnavalizando tudo. Por isso mulata e malandro, para os passistas, são referências que se autorizam, ao mesmo que se subvertem, colocando em interação elementos outros por meio do sambar e tornando tudo embaralhado e ambíguo. A dimensão teatral, então, se refere à maneira pela qual a performance dos passistas se apropria das figuras da mulata para as mulheres e do malandro para os homens. A indumentária e principalmente o gestual desenvolvido pelos passistas são abertamente inspirados para concretizar esses personagens no corpo e na vivência dos sambistas. Existe uma leitura própria do que sejam esses personagens, ao mesmo tempo que a “incorporação” da mulata ou do malandro oscila entre a adesão inconsciente e o distanciamento refletido. Porém, isso permite ao passista se relacionar com platéias cada vez mais amplas e anônimas, pois o malandro e a mulata são imagens compartilhadas no imaginário nacional brasileiro. Além disso, o uso criativo disso pode ser bem-sucedido na luta por visibilidade, ao estabelecer uma relação de certa familiaridade com um público cada vez mais espectador.

5.3.5. Profusão de sentidos e enquadramento Ao apontar que a performance relacional do passista de escola de samba apresenta as três dimensões explicitadas - sociológica, emotiva e teatral – todas ao mesmo tempo, não quer dizer que todo mundo deva observar todos esses aspectos toda vez que estiver diante de um deles. O que quero dizer com isso é que, como insisti em transparecer, a atuação do


passista não se fecha em si, ela é dialógica, necessita da interlocução com outros elementos e por isso seu sentido é aberto. Matos (1982), pesquisando o “discurso malandro” em letras de samba saídas entre 1930 e 1954, nos oferece um relato muito apropriado, com um sambista renomado, para o que quero explicitar. Na conversa que tive com Moreira da Silva, pedi-lhe um esclarecimento sobre algo que me deixara intrigada num samba que ele havia gravado. Tratava-se de um verso improvisado no breque final, que dizia: “Ôi já me disseram até que eu virava lobisomem”.Como a ligação do tal lobisomem com o resto do samba era obscura, embora imperceptível, perguntei-lhe: - Mas afinal, Moreira, o que você quis dizer com essa história de lobisomem? - Nada, ora. É pra rimar, compreende? (cantando:) “Até mudei meu nome... Oi já me disseram até que virava lobisomem...” Rima e cabe bem no tamanho da frase. - Mas, Moreira, se você pôs essa palavra e não uma outra qualquer, é porque tem alguma coisa a ver. Tem uma ligação com o resto, nem que você não perceba, que seja inconsciente. E o velho Morengueira, com um risinho de gozação: - Bom, ligação lá isso deve ter mesmo. Mas isso... é o seu trabalho! Ou 137 não é?

O “breque” nas músicas de samba é um momento em que os instrumentos param e o cantor improvisa versos no meio da canção. Como os passistas, que improvisam movimentos corporais quando sambam, o cantor de samba joga inúmeras referências na sua apresentação. Como claramente evidenciado pelo sambista, a “ligação” do que é exposto com o provável sentido que o dito tem, é “trabalho” de quem está interagindo com o samba. No caso do passista, quando ele samba, coloca em jogo na sua apresentação pelo menos três dimensões ao mesmo tempo – a sociológica, a emotiva e a teatral. Não é possível precisar em que momento cada uma delas acontece no sambar, porque elas estão mescladas uma à outra e influenciam-se entre si. Por isso mesmo, o sambar se coloca como algo extremamente ambíguo. É como se as várias dimensões, ao estarem presentes todas juntas na performance do passista, criassem um ponto com sobrecarga de intenções flutuantes que não são fixadas por quem samba. Pelo contrário, o passista deve ser uma pletora dessas intenções de sentido imbuídas no seu samba. Talvez, quem deva determinar o sentido seja o outro para o qual ele samba – o rival, outro passista, outro componente da 137

MATOS, Claudia (1982), p. 219.


escola de samba, o espectador, a letra da música, etc. Desse modo, esse enquadramento está à disposição do outro com o qual o passista estabelece relação. O Carnaval é um desses eventos sociais brasileiros que, segundo DaMatta (1979), acontece no domínio do extraordinário, contrastivamente ao mundo cotidiano, mas diferentemente das catástrofes naturais, como terremotos ou pragas, a festa carnavalesca é algo previsto e ansiado pelas pessoas. Por isso, esse autor considera o carnaval como rito no qual elementos diversos podem ser dramatizados e ganhar novos significados sociais, porque por meio da dramatização as sociedades tomam consciência das coisas de um outro modo. No ritual carnavalesco, a teatralização dos gestos, roupas e espaços ou melhor dizendo, a performance do rito levada pelos sujeitos e grupos brincantes, sofreria de um “sobre-simbolismo”. Isto é, símbolos e referências variados seriam colocados justapostos e simultaneamente de modo a inflacionar seus sentidos. O caso da fantasia é exemplar, pois nela há a soma do papel imaginário, expresso na indumentária, com os papéis reais do fantasiado. Assim, uma das principais características da performance do desfile carnavalesco das escolas de samba é a de ser polissêmica. Ainda dentro dos estudos rituais, Turner (1967), ao tratar dos ritos dos grupos africanos Ndembu, propõe pensar em termos de símbolo ritual - tradução livre de ritual symbol. Para ele, o símbolo seria a menor unidade de ritual que ainda retém as propriedades específicas do comportamento ritual e que, de maneira geral, tipifica ou representa algo pela propriedade de possuir qualidades análogas ou pela associação de fato ou de pensamento com alguma coisa. Para o presente trabalho, interessa resgatar as propriedades de referência – reference - e de condensação – condensation - constituintes dos símbolos rituais. Emprestadas de Sapir, a noção de símbolo referencial diz respeito a eventos predominantemente cognitivos usados conscientemente como instrumentos de sentido, como discursos, bandeiras, etc, referindo-se principalmente a fatos conhecidos. Já a noção de símbolo de condensação se define como possuindo uma forte qualidade emocional, cujas raízes se encontram principalmente no domínio inconsciente. Para Turner, os símbolos rituais são ao mesmo tempo referenciais e de condensação, sendo que cada símbolo ritual é sempre multireferencial. Essa justaposição e até interpenetração de qualidades opostas que constituem os símbolos rituais incorporariam as contradições da própria vida social


humana. Assim, a performance de um ritual estaria prenhe de sentidos variados e por vezes até contraditórios na sua realização. Nessa chave da multiplicidade, simultaneidade e da explosão de sentidos o carnaval nos é revelado por meio do sambar dos passistas de escola de samba. Se DaMatta (1974), Goldwasser (1975), Leopoldi (1978) e Cavalcanti (1994) nos permitem apreender o desfile carnavalesco das escolas de samba enquanto rito, a noção de performance construída aqui para refletir sobre a dinâmica corporal no samba também está vinculada a essa discussão. Bateson (1972) ajuda a pensar a questão do enquadramento. Para este autor, a comunicação humana se dá em diferentes níveis de abstração. Existe o nível denotativo, no qual o sentido do que está sendo dito é mais explícito, como na frase “O gato está no tapete”. Mas quando a própria linguagem se torna o foco da mensagem, como em “A palavra gato se refere a certa classe de objetos”, estamos no nível metalinguístico da comunicação. Bateson aponta ainda o nível de comunicação metacomunicativo, na qual o sujeito do discurso é a relação que se estabelece entre os envolvidos, como na mensagem “Isto é uma brincadeira”. O que define qual nível de abstração está sendo explorado na comunicação é a relação de enquadramento exercida pelos atores, que é por isso, uma relação metacomunicativa. O autor, pensando em termos de psychological frame, o frame, ou em minha tradução, o enquadramento, é um mecanismo cognitivo que inclui certas ações significativas dentro de uma delimitação, ao mesmo tempo em que exclui outras. Ao fazer isso, o enquadramento enfatiza os elementos inclusos. Desse modo, num todo homogêneo e aleatório, o enquadramento permite organizar a percepção, separando níveis de entendimento e possibilitando a criação de sentidos apropriados. Desse modo, as dimensões sociológica, emotiva ou teatral se colocam como possibilidades de enquadramento no relacionamento metacomunicativo entre passistas e seus interlocutores. Nessa direção, considero que o sambar dos passistas deixa à vontade os interlocutores para realizar os variados enquadramentos possíveis. Assim, uma pessoa pode privilegiar o aspecto competitivo da apresentação, ou pode enfatizar só o caráter cômico de uma palhaçada, vai depender da relação que desenvolver com a performance do passista. A ambigüidade da performance permite que sentidos variados e até contrários possam conviver conjuntamente, isso permite que o passista seja um “animador de sentidos”, ele deve levantar tantos sentidos quanto for possível na sua atuação, permitindo


ao interlocutor realizar o enquadramento que couber. É uma tentativa de construção conjunta de significados, que nunca se cristaliza, se coloca sempre em movimento e é sempre provisória. Pois pode haver desencontro entre a intenção de quem samba e o enquadramento de quem interage com ele, mas isso não impede o sucesso do sambar. O que importa é a tentativa de criar indícios de relacionamento. A própria festa carnavalesca, como rito organizado e social, é, em si, uma espécie de enquadramento, no qual é permitido que os sentidos se encontrem soltos à procura de uma direção. Sambar é como o paradoxo lógico que Bateson detectou no “play”, no “brincar”138. Ao mesmo tempo em que o gestual teatral diz uma coisa, isto é, denota algo, os movimentos corporais podem fazer referência à coisa contrária. No exemplo de Bateson, as brincadeiras de luta como um soco brincalhão denota um soco de verdade, mas não realiza o que um soco de verdade realiza. O mesmo se dá no sambar, o sambar também afirma, mas não afirma, sua “declaração” contém ao mesmo tempo a sua negativa implicitamente. A ambigüidade tão presente na performance explicita esse jogo, a alegria expressa vem acompanhada da contrariedade, a mulata pode ser loira, um singelo cumprimento às vezes tem a intenção de ofender. Porém, o sentido pode ser fixado – isto é, enquadrado - pelo interlocutor, às vezes ele vai entender de maneira denotativa, “ao pé da letra”, o sorriso será simplesmente alegria; às vezes eles vai entender de maneira metacomunicativa, um beijo jubiloso enviado a alguém que só causou mágoa é quase uma vingança, pois o passista magoado se exibe em esplendorosa alegria na frente do magoador. Da mesma maneira, é irônico reconhecer que toda esta investigação também é um enquadramento, que conseguiu detectar pelo menos três dimensões da performance dos passistas, mas que não pode confirmá-las como sendo definitivas. No meu relacionamento com o sambar deles, essas foram algumas reflexões a que pude chegar. Quem sabe quantas outras facetas do samba dos passistas ainda ficaram por desvendar?

5.3.6. A performance no samba como mediação de relacionamentos Até aqui foi possível depreender que é difícil entender o sambar dos passistas como representativo de algo determinado e preciso, justamente porque, conforme a tensão de 138

BATESON, op cit.


emoções contrárias e os usos e abusos da elaboração dos personagens da mulata e do malandro, essa performance se mostra intensamente ambígua. A ambigüidade, ao invés de cristalizar os sentidos, acaba por fazer proliferar os possíveis significados do sambar. Os enquadramentos de sentido são sugeridos, porém, sempre instáveis. Penso que a apresentação dos passistas de escola de samba sublinha no samba a vontade de interagir com outros sujeitos durante a celebração de carnaval, por isso sua performance é antes de tudo relacional. Relacional não só na composição gestual, mas também na maneira como o passista constrói sua carreira e sua vivência no mundo do samba. O passista samba, não para comunicar alguma coisa precisa, mas para tentar se relacionar com desconhecidos ou conhecidos durante a festa carnavalesca, de modo espontâneo e por vezes jocoso. É por isso que se Goldwasser (1975) considera a escola de samba enquanto uma organização mediadora dos fluxos sociais da sociedade mais ampla, Da Matta (1979) e Cavalcanti (1994) consideram os desfiles dessas agremiações como ritos que medeiam os processos simbólicos da heterogênea sociedade brasileira, arrisco dizer que a performance dos passistas funciona também como elemento mediador no plano das interações entre as pessoas. O sambar é possibilidade de colocar em movimento encontros e desencontros momentâneos com quem estiver presente na festa do desfile de carnaval, sublinhado ainda por um contexto de extrema competição e rivalidade que é a busca de prestígio por quem desenvolve uma carreira dentro da escola de samba.


5.4. Uma canção como teste Gostaria de trazer a letra de uma música lançada em 1966 por Chico Buarque para colocar em movimento a análise que acabamos de empreender sobre a performance dos passistas de escola de samba. A canção escolhida é “Quem te viu, quem te vê” e penso que se as dimensões do sambar levantadas pela nossa investigação não for simples maneirismo antropológico, pode-se compartilhar nessa jóia da música popular brasileira os elementos encontrados durante nossa pesquisa. A poesia é a seguinte:

Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala Você era a favorita onde eu era mestre-sala Hoje a gente nem se fala mas a festa continua Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua Hoje o samba saiu, lá lalaiá, procurando você Quem te viu, quem te vê Quem não a conhece não pode mais ver pra crer Quem jamais esquece não pode reconhecer (refrão) Quando o samba começava você era a mais brilhante E se a gente se cansava você só seguia a diante Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado (refrão) O meu samba se marcava na cadência dos seus passos O meu sonho se embalava no carinho dos seus braços Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão (refrão) Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia Quem brincava de princesa acostumou na fantasia (refrão)

Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria Quero que você me assista na mais fina companhia Se você sentir saudade por favor não dê na vista Bate palma com vontade, faz de conta que é turista

Escolhi justamente esta canção porque pelo menos um dos personagens, a cabrocha, é certamente alguém que participou do agrupamento carnavalesco enquanto figura que se


destacava por causa do seu sambar. A música é cantada a partir do ponto-de-vista de um amante desdenhado. A história é desenrolada, então, a partir da sobreposição paralela entre um tempo passado e o tempo presente realizados principalmente durante os festejos do carnaval entre uma época e outra. No tempo passado, o narrador e a personagem feminina são amantes e participam juntos dos desfiles da agremiação de samba (“O meu samba se marcava na cadência dos seus passos”, “O meu sonho se embalava no carinho dos seus braços”), da qual são figuras de destaques. Ele, como mestre-sala (“você era a favorita onde eu era mestre-sala”) ou ritmista (“o meu samba se marcava na cadência dos seus passos”). Ela se destacava por sambar (“você era a mais bonita das cabrochas dessa ala”, “hoje a gente anda distante do calor do seu gingado”), talvez pudesse ser passista. No carnaval presente, a mulher já não se apresenta como parte do cortejo do agrupamento de carnaval (“hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria”), ela agora é espectadora porque ela ascendeu socioeconomicamente (“suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua”, “você só dá chá dançante onde não sou convidado”), ao mesmo tempo que já não é mais companheira do narrador (“hoje a gente nem se fala, mas a festa continua”). O narrador continuou na agremiação (“hoje eu vou sambar na pista”). O refrão “quem te viu, quem te vê” faz referência à trajetória dessa mulher, que foi uma coisa no passado e agora se encontra transformada, quase uma outra pessoa “que não se pode reconhecer”. Aqui vida e comemoração carnavalesca andam juntas e constituem a vivência no samba. Emoções e processos sociais se mostram inter-relacionados e imprescindíveis um ao outro. A cabrocha, como já recolhido no começo do trabalho, é a menção à mulher que mostrava seus atributos de sambar, que pode ser ligada à noção de mulata que encontramos na dimensão teatral da performance dos passistas porque é também uma composição do feminino no samba. Não é revelado de que modo a mulher aludida elevou sua posição socioeconômica, talvez por meio do casamento com um marido abastado (“na mais fina companhia”). E se assim for, provavelmente a sua visibilidade dentro do desfile de carnaval (“quando o samba começava você era a mais brilhante”) possa ter contribuído para que ela conseguisse essa oportunidade. Aqui a dimensão sociológica do sambar, da preocupação do sambista em abrir possibilidades por meio de sua performance de elevar seu status, seja no mundo do


samba ou na sociedade mais ampla, é uma hipótese muito palpável. Ao ascender socialmente, a antiga cabrocha corta os laços com o mundo do samba. Quando a mulher reaparece, seu antigo amante do mundo do samba a reconhece. O desfile de carnaval foi a festa que novamente colocou em contato, mesmo que só por meio da visão, os ex-amantes. Ele continuou participante do carnaval do grupo carnavalesco, ela, já aparece na posição de espectadora. Se num momento passado o carnaval promoveu o encontro amoroso entre componentes, no momento presente é novamente a festa carnavalesca que medeia o reencontro dos envolvidos, agora em posições distantes. Neste reencontro, é a performance do amante preterido que irá intermediar o contato com a antiga cabrocha (“Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria, Quero que você me assista na mais fina companhia”). Porém, essa apresentação estará imbuída da tensão de emoções entre a alegria de brincar o carnaval e a contrariedade de reencontrar alguém que se amou, mas que o abandonou (“Se você sentir saudade por favor não dê na vista, bate palma com vontade, faz de conta que é turista”). E é essa tensão de sentimentos, de exibir um semblante, mas sentir um outro sentimento “que não dê na vista”, que tornará o reencontro entre o narrador e a mulher ambíguo, pois a performance dele permite ser apenas a expressão da alegria de um momento festivo ou o comentário irônico da presença da amada. O mesmo se pode dizer do aplauso que ela pode dar, um reconhecimento da arte popular ou da distância de sua nova posição social. Desse modo, todas as dimensões desenhadas pela análise empreendida da atuação dos passistas – a sociológica, a teatral e a emotiva - aparecem de alguma maneira nessa obra da música popular brasileira. Gostaria de apenas apontar que a multiplicidade apresentada na performance do sambar pode ser reconhecida em outros meios como constituinte da dinâmica no mundo do samba.


Considerações Finais

O presente trabalho, ao destacar a posição dos passistas dentro da organização de uma escola de samba, acabou por sublinhar a heterogeneidade de talentos e especialidades que constitui a agremiação carnavalesca e seu desfile. O sucesso do cortejo reúne os esforços múltiplos de pessoas com habilidades diferentes, mas inter-relacionadas, como ritmistas, cantores e compositores, baianas, carnavalesco, mestres-salas e porta-bandeiras, passistas, integrantes de alas, artesãos diversos entre os muitos participantes. Tratar analiticamente do passista de escola de samba envolveu testemunhar algumas mudanças que acompanharam o carnaval e as escolas de samba cariocas. Como apresentado (cf. item “Lá vem o passista”), a posição de passista nem sempre existiu e seu surgimento nos desfiles das agremiações carnavalescas revelou um fazer e criar, de uma chamada cultura popular realizada na cidade, que se mostram abertos aos processos históricos e sociais das variadas camadas e setores da sociedade mais ampla. O movimento de especialização de posições dentro de uma escola de samba acompanhou a ampliação de sua base social ao incluir a participação das camadas médias na realização do cortejo carnavalesco. Como bem mostram Cavalcanti (1992) e Gonçalves (2004), a festa carnavalesca é onde a cidade do Rio de Janeiro e seus atores se encontram e se transformam. As histórias e experiências de integrantes da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira aqui reunidas também demonstraram uma apreensão muito própria desse constante processo de transformação do qual as agremiações carnavalescas participam. O que se chamou de “retórica da perda”, a valorização dos tempos do samba de outrora e o lamento por essa época que não volta mais, nada mais é que a constatação de que as vivências e as práticas nas escolas de samba mudaram e ainda estão mudando. Só que esse processo vem acompanhado de resistências, críticas às inovações e embates velados entre seus participantes, novos e antigos. Ao mesmo tempo, a tensão visual e samba, constitutiva do próprio fazer e brincar dos desfiles das escolas de samba (CAVALCANTI: 1994), pode ser apropriada pelos componentes do grupo quase como categorias para pensar as mudanças, pois, no caso dos passistas, esses atores consideram que atualmente sua


apresentação anda sendo encoberta pelo predomínio do visual – a ênfase na valorização plástica das alegorias e no uso de fantasias, a adoção de coreografias em detrimento do samba. Apesar do “luxo” parecer dominar a cena do carnaval, os passistas continuam sendo figuras prezadas dentro do desfile, que também precisa do seu “samba no pé” para evoluir completamente na avenida. A consolidação do passista enquanto componente especializado e reconhecido dentro do desfile das escolas de samba tornou a posição uma possibilidade de carreira carnavalesca para quem vive no chamado mundo do samba. O passista é um permanente folião. Os relatos de passistas da Escola de Samba de “Mangueira” alinhavaram muitas trajetória de vida - o início quando crianças, o aprendizado das habilidades corporais, o aprimoramento, as glórias alcançadas por meio do sambar. A vocação do samba, segundo eles, se mostrou uma busca pessoal, independente de condição racial – ser negro - ou social – ser morador de morro. Mas o dom só é realizado quando o vocacionado é reconhecido por outros integrantes da escola de samba. Por isso, ninguém nasce passista, é sempre uma outra pessoa que assim o designa. A investigação se desenhou a partir das concepções e vivências desses atores e optou por se concentrar no tratamento analítico da sua dinâmica gestual, o sambar. Ao nos determos nesse elemento ritmo-corporal, através da idéia de performance, um cenário recheado de rivalidades e disputas por prestígio veio à tona por meio do samba de cada um deles. E nessa corrida, a contribuição individual e particular se mostra elemento conflagrador da criação e do fazer carnavalescos. Nesse sentido, a importância de se construir um estilo ou uma marca próprios faz parte do contexto social do carnaval das escolas de samba como estratégia para se destacar dentro da competição. Os passistas dessas agremiações são os integrantes cuja posição enfatiza sobremaneiramente essa tensão de se diferenciar individualmente ao mesmo tempo em que se participa do cortejo coletivo e conjunto do carnaval. A competição e a busca por prestígio por cada indivíduo implicam num tamanho empenho emocional e dramático, que esses planos tiveram que ser abarcados para compreender os sentidos colocados em jogo pelos passistas. Essa tensão revela em escala micro o que Cavalcanti (1994) já apontava sobre a dinâmica de competição entre as diversas escolas de samba durante os desfiles carnavalescos, a lógica ritual de reciprocidade agonística. Pois “como toda competição, o


desfile revela com clareza a ambivalência intrínseca à reciprocidade: relacionar-se é confrontar-se. Trocar é a um só tempo associar-se e rivalizar-se (CAVALCANTI : 1994, p. 21).” Sem tirar nem pôr, esse princípio social geral (MAUSS: 1974 [1923-1924]) também estrutura a dinâmica performática desse grupo de componentes das escolas de samba que são os passistas. Porque o carnaval é um evento ritual de caráter múltiplo (DA MATTA: 1979), a performance dos passistas também assim se desvelou. Foram encontradas pelo menos três dimensões constituintes dela: sociológica, emotiva e teatral. A dimensão sociológica se refere à preocupação do passista em ampliar sua visibilidade por meio da apresentação gestual, de modo que, dentro do campo de disputa com outros passistas, obtenha o maior prestígio possível para modificar seu status dentro da escola de samba ou na sociedade mais ampla e, assim, mudar sua trajetória social. A dimensão emotiva apresentou uma composição sui generis de sentimentos, em que alegria e contrariedade estão presentes juntas e ao mesmo tempo durante o sambar. Essa tensão de emoções simultâneas cria ambigüidades de sentido, permitindo que o exercício de sambar possa estar imbuído de intensa ironia para com o seu interlocutor. Essa ambigüidade e efeito de ironia também podem ser encontrados na dimensão teatral, pois os personagens da mulata e do malandro são incorporados pelos passistas de modo a subverterem os sentidos usuais atribuídos a essas figuras, assim podemos ver mulatas loiras e malandros comportados. Porém, se o carnaval e a performance dos passistas se mostraram polissêmicos, polifônicos e multidirecionais, eles são, sobretudo, relacionais. Isto é, seus sentidos só podem ser sugeridos segundo o relacionamento que estabelecem com um interlocutor, individual ou coletivo. Assim, permitem-se ser enquadrados por variadas direções de sentidos. Mas, se não é a busca por ser entendido que a festa do carnaval e o sambar do passista procuram - eles multiplicam os entendimentos e chegam até a confundir - propõese que eles procuram criar um campo de relacionamentos. É nesse campo que são possíveis os encontros e os mal-entendidos necessários para se juntar os iguais e os diferentes, os conhecidos e os desconhecidos dentro de uma mesma folia.


Apêndice: Brasilidade do gesto Em meio às declarações e conversas com os passistas, um outro elemento também é reclamado para compor sua performance: a reivindicação de que o sambar é portador de uma certa idéia de brasilidade. Não pretendemos realizar uma análise aprofundada da questão, que mereceria um estudo à parte, mas deixamos registrada a maneira como os passistas a entendem. Muitos passistas vivenciam essa brasilidade de modo contrastivo diante de platéias estrangeiras. Alguns deles já se apresentaram em outros países e um deles nos declarou que quando isso acontece, ele se sente como um “embaixador” da cultura brasileira. A maioria deles está acostumada em realizar apresentações para os inúmeros turistas que visitam a escola de samba e os desfiles de carnaval. Que samba é brasileiro.É, hoje em dia, você chega em uma escola, você é gringo, turista, ou até de uma outra cidade daqui do Brasil, você quer conhecer quem? Passista. Mestre-sala e Porta-Bandeira. São as coisas que mais visam dentro da escola. Mestre-sala e porta-bandeira, ai, passista da escola, você quer um passista da escola. São as coisas até que, do meu ponto de vista, prevalecem mais. E a bateria, né. (...). Mas assim, passista é uma coisa bem...todo mundo quer aprender a sambar, quer saber, às vezes...quando você vai fazer um show, você vê assim pelo semblante dele, “ Como é que ela consegue mexer a perna desse jeito? Perna com quadril, com braço, tudo ao mesmo tempo?” Então, eles ficam até meio 139 surpreendidos com aquela, aquela coisa assim.

E a brasilidade no passista estaria presente, então, na coisa mais valiosa de sua habilidade carnavalesca, o samba no pé. Matheus: É a cara do Brasil, né, samba. Não tem como, sambando, então, é Brasil mesmo, que é a cara da gente. Acho que todo o mundo espera o carnaval. Todo mundo, acho que brasileiro, a maioria espera o carnaval. (...) É isso mesmo, samba é Brasil, não tem como. Pesquisadora: E onde tá isso? 140 Matheus: Tá no principal que é no samba no pé.

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Amanda de Almeida Matos, 22 anos, rainha da Bateria de 2005 em entrevista concedida em 12/07/2005. Matheus Olivério da Silva Rego, 18 anos, passista jovem da Mangueira em entrevista realizada em 22/07/2005. 140


Porém, há aqueles que arriscam uma interpretação mais elaborada a respeito.

José Carlos: É, porque o samba veio da África, aí foi pra Bahia e veio pro Rio. E é isso, na verdade, é uma andança afro bem castigada. Eu acho que antigamente, acho, não, como diz o historiador Haroldo Costa, ele fala que na época da escravidão, né, os negros dançavam assim, fazendo aquelas coisas, às vezes índio faz, né. Aquilo já era um modo de passista, um modo de dança, né. E eles agüentavam, e eles faziam aquilo pra não serem castigados, né. E os brancos, não, não faziam aquilo. Então, a evolução vê que hoje tem branco tem muito branco sambando, cantando, dançando, compondo, né, tanto quanto o negro. Na parte da composição eu não vou dizer do negro, não, mas na parte de dança, tem muito branco, claro que, em relação à passista, sou eu e mais meia dúzia de três ou quatro, de cor branca, né. (...) José Carlos: A própria dança, o próprio gingado do passista é brasileiro. Gingado africano, mas que foi evoluído aqui no Brasil, foi moldado aqui no Brasil. Eu acho que a dança africana chegou aqui de uma maneira, e que o brasileiro com seu jeito, com sua manha... R: Esperteza. José Carlos: Com seu jogo de cintura, melhorou, na minha concepção. É claro, quando foi que os africanos trouxeram isso aqui há [estala dedos em sinal de muito tempo]. Tinha que melhorar alguma coisa. Mas eu creio que nós, se fosse ao contrário, nós levássemos essa dança pra África, nós chegaríamos lá, já com malandragem, mesmo há 500 anos atrás. Que o brasileiro, ele realmente, qualquer coisa que coloca, né, faz com manha e o negócio acaba fluindo, né. É, veio da África, mas a gente, nós aperfeiçoamos aqui. É, porque o negro, o negro brasileiro é diferente do negro africano. O negro africano é mais duro, o negro brasileiro tem mais um gingado. R: Aí, ele soltou aqui, né. José Carlos: Então, eu acho que a dança, o lado corporal da coisa, o Brasil 141 não perde pra ninguém, não. Não perde, não, ninguém nem chega perto.

Segundo nosso informante, a fonte do sambar é africana, vindo junto com as levas de escravos de nossa história colonial. Porém, a originalidade do sambar não está em ter nascido do outro lado do Atlântico, mas em ter se modificado em terras brasileiras, de modo, que índios e até brancos pudessem também participar. Por isso, se os africanos trouxeram um samba “duro”, os brasileiros amaciaram os gestos, com “jeito” e “manha”, produziram o “gingado” característico de nossa brasilidade, o “jogo de cintura”, que como pontua a interlocutora de nosso pesquisado, está mais relacionado com uma noção de “esperteza” do que de preguiça ou displicência. Para ele, o passista da escola de samba seria a figura do carnaval que incorpora essa malemolência do corpo na sua movimentação

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José Carlos Torres Cunha, 52 anos, passista antigo de Mangueira, ainda atuante, e sua companheira na época, R., em entrevista concedida em 10/03/05.


gestual e assim carrega na sua performance essa idéia de Brasil. É quase uma afirmação de que o “jeitinho” é nosso! Não só esses integrantes de escola de samba irradiam tal concepção de brasilidade através do gestual. Na festa de escolha da nova Rainha da Bateria de Mangueira de 2004, no momento de apresentação do “samba” das candidatas, o seguinte trecho da música de Ary Barroso foi cantada: Isto aqui ô ô é um pouquinho de Brasil, iáiá desse Brasil que canta e é feliz, feliz, feliz É também um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça, ai ai e não se entrega, não Olha o jeito nas 'cadeira' que ela sabe dar Olha só o remelexo que ela sabe dar Morena boa que me faz penar bota a sandália de prata e vem pro samba sambar

Enquanto a música era executada pelos cantores e pela Bateria da escola de samba, as competidoras entravam e realizavam cada qual seu número. A idéia de que o “o jeito nas cadeiras”, o “remelexo” é um “pouquinho de Brasil”, difundida pela música popular brasileira, reafirmava em palavras o que estava sendo sugerido pelo “sambar” ali em meio ao concurso. Gilda de Mello e Souza (1980 [1974]) aponta a existência de um certo “gestual brasileiro”. Comentando as obras do pintor Almeida Júnior, já encontra nesse artista da pintura anterior ao Modernismo de 22 traços de uma certa reivindicação de nacionalidade. E essa particularidade não estaria na maneira de pintar, notadamente extraída das lições da Academia Imperial de Belas Artes, nem na criação cromática, atualizada com as novidades do movimento impressionista, todos derivados de modelos europeus. A particularidade nacionalista da pintura de Almeida Júnior estaria em realizar a notação da dinâmica dos gestos em telas como O Derrubador (1871), Caipira Picando Fumo (1889-1898), Amolação Interrompida (1889-1898). Coube a Almeida Júnior surpreender a verdade profunda de uma nova personagem; não apenas a aparência externa, os traços do rosto ou a maneira peculiar de se vestir, mas a dinâmica dos gestos – aquilo, enfim, que Marcel Mauss descreveu com tanta perspicácia num ensaio célebre, designando como as técnicas do corpo. Essa acuidade de observação já reponta numa tela de mocidade como O


Derrubador (...) É nosso, sobretudo, o jeito do homem se apoiar no instrumento, sentar-se, segurar o cigarro entre os dedos, manifestar no corpo largado a impressão de força cansada (...) Nas telas posteriores, principalmente as pintadas a partir de 1890, Almeida Júnior aprofunda a análise do comportamento corporal do homem do campo. Apreende a sua maneira canhestra de caminhar, sem nobreza, mantendo os joelhos meio dobrados enquanto apóia os pés no chão. Fixa-o em várias posições e nas diversas tarefas diárias, amolando o machado, arreiando o cavalo, empunhando a espingarda, picando fumo; ou nas horas de folga ponteando a viola. Surpreende-o na caça, acocorado e à espreita ou olhando de banda e esgueirando-se cautelosamente entre os arbustos, enquanto com a mão livre pede cautela ao companheiro. Almeida Júnior empreende sozinho e sem precursores esta notação milagrosa do gesto, lutando contra as reminiscências artísticas, que lhe impunham, a cada momento a postura européia civilizada... (idem: 1980, p. 224-225)

Como se tentou evidenciar, o gesto como elemento reivindicatório de uma certa brasilidade pode ser invocado tanto por pinturas representando a vida do caipira sertanejo, por canções ufanistas da música popular brasileira e pela performance de virtuoses do corpo de uma expressão coletiva e festiva como as escolas de samba carnavalescas.


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