O desfile de escola de samba e suas reverberações no imaginário das brincantes

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XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 1 A 5 DE SETEMBRO DE 2003 UNICAMP-CAMPINAS SP

GRUPO DE TRABALHO 15 PRÁTICAS CULTURAIS E IMAGINÁRIO

O DESFILE DE ESCOLA DE SAMBA E SUAS REVERBERAÇÕES NO IMAGINÁRIO DAS BRINCANTES

Ronald Clay dos Santos Ericeira

São Luís 2003


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1 APRESENTAÇÃO Este ensaio foi desenvolvido a partir do aprofundamento de alguns pontos constituintes do anteprojeto com o qual fomos selecionados para o programa de pós-graduação do mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão. Ensejamos rastrear subsídios para a discussão do samba e de suas escolas enquanto produção cultural do Rio de Janeiro assim como encetamos desvelar o lado invisível dos dramas e do imaginário de mulheres que desfilam em escolas de samba. Nessa perspectiva, o presente trabalho calca-se em elucubrações conceituais concernentes ao histórico do samba e à participação feminina nesse contexto cultural no mesmo modo em que aporta eixos diretivos ainda a serem investigados em posterior pesquisa de campo.

A perspectiva, adotada no trato do objeto de estudo, busca uma análise que seja oportuna e concomitantemente diacrônica e sincrônica. Essa postura metodológica é baseada nos comentários de QUEIRÒS (1992) os quais afirmam que a festa do carnaval, nesse caso específico o desfile de escola do samba, não encerra em si mesma explicações auto-reveladoras: “A efervescência dos comportamentos não anula nem a configuração, nem os valores e preconceitos da sociedade presente, embora se proclame o contrário; com efeito, o baile [ o desfile] só pode existir apoiado nesta configuração e nestes valores, nos quais se mostra fortemente enraizado, da mesma forma que qualquer outra atividade cotidiana”. ( QUEIRÓS, 1992,

p151) .

Nesses termos, ao entrarmos em contato com as mulheres que desfilam em escolas de samba, interagiremos como seres de “carne e osso “ , logo, tanto as brincantes quanto a festa do carnaval devem ser situados no espaço, no tempo e na coletividade que o atualiza e o pratica a cada ano.


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2 O SAMBA : MANIFESTAÇÃO CULTURAL POPULAR DO RIO DE JANEIRO Uma questão nos faz pertinente: como caracterizar o samba e suas escolas como produção cultural peculiar da sociedade carioca, em que VELHO (1994) a concebe como complexa devido à coexistência, em um mesmo palco, de diferentes estilos, visões de mundo e constituída de indivíduos em diversos planos e empregando a linguagem própria de seus grupos? O samba não é carioca apesar dos famosos versos da música A voz do moro do Zé Kéti: “eu sou o samba, sou natural daqui do Rio de Janeiro”, mas foi nesta cidade que adquiriu popularidade, desenvolveu um formato próprio e de onde posteriormente difundiuse para o restante do país.

Na visão de SANDRONI (2001), o samba, em seu primeiro momento, estava associado à zona rural principalmente do sul da Bahia em contraste com a música produzida nas cidades urbanas e quase sempre esteve ligado com o universo dos negros. No final do século XIX, acentua-se o fluxo migratório do Nordeste para o Sudeste,

grupos de negros forros unidos

por laços de

parentesco e de amizade formam uma “comunidade baiana” no bairro da Saúde no centro do Rio. Estes grupos possuíam na figura da “Tia” o centro regulador das famílias, da religião e do lazer. Este papel era comumente exercido por velhas negras baianas.

Serão estas mulheres que abrirão as portas de suas casas para a produção do samba carioca, fornecendo aos sambistas um ambiente, ao mesmo tempo recluso e acolhedor, onde pudessem cantar suas dores, seus prazeres e amores. Até a década de 1920, as rodas de samba aconteciam nas salas de visitas e no fundo de quintal das residências dessas senhoras. Na sala de jantar, a polca e o maxixe faziam boca de cena para o samba que até então era proibido pela polícia. MOURA (1983) acredita que o

mito fundador do samba carioca

confunde-se com a casa de Tia Ciata , pois foi em uma das noitadas na casa


4 desta baiana que o primeiro samba composto de letra e melodia foi produzido: “Pelo telefone”, obra musical de Pixinguinha, Donga e Tia Ciata . A importância histórica destas “Tias” as tornou um relevante personagem feminino nas escolas de sambas, geralmente ocupando o papel da tradição, do saber, da pureza e da maternidade. Algumas composições já retrataram a relevância deste personagem, conforme visualizamos nos seguintes versos do samba-enredo de 1983 do Império Serrano: “ Tia Ciata, Mãe amor , em teus seios o samba alimentou e a baiana se glorificou...

Em sua fase embrionária, o samba era execrado pelas classes dominantes das primeiras décadas do século passado e a polícia prendia quem o cantasse ou o dançasse, o repúdio e a perseguição aos primeiros sambistas justificavam-se tanto pela

associação que se fazia entre este gênero musical

emergente com o candomblé quanto pelo samba ser considerado, a princípio, distração para vagabundos e devassas.

Na visão de CABRAL (1996), inicialmente vinculado à vagabundagem, ao vitupério e confinado aos terreiros de macumba e aos morros, o samba carioca instituiu seus personagens próprios: o malandro, o boêmio, a Tia-baiana, a mulata, a cabrocha, a pastora entre outros e criou também seus palcos: os morros, os botequins e, sobretudo as escolas de samba. Diversos atores sociais: trabalhadores, estudantes, donas de casa e demais freqüentadores das “noitadas de pagode” encontram nas articulações simbólicas dessa cultura popular o que BAKHITIN (1987) conceitua de “um segundo mundo e uma segunda vida”.

CABRAL (1996) ainda acrescenta que foi na cidade do Rio de Janeiro onde o samba adquiriu popularidade, desenvolveu um formato próprio e de onde posteriormente difundiu-se para o restante do país. Esse estilo musical começa a ganhar visibilidade com o prestígio evidenciado a nível nacional e internacional pelas escolas de samba cariocas e o pelo

próprio carnaval. Os sambistas


5 aglutinam-se e organizam-se em escolas e estas concretizam a grandiosidade do carnaval dessa cidade. Na opinião de CALDAS (1991), esse trinômio: samba, escolas e carnaval se confundem e se promovem.

Segundo Sandroni (2001), a partir deste paradigma, o samba, como gênero musical,

seria uma produção autóctone dos redutos negros cariocas,

confinado às noites dos terreiros e dos morros do Rio de Janeiro. Em suma, o segmento afro-brasileiro da referida cidade o teria como uma propriedade intrínseca em oposição às produções culturais dos outros grupos éticos ou classes sociais. Todavia, VIANNA (1995), com inspirações na obra “A invenção das Tradições” de Eric Hobsbawn, sugere que o samba seria uma criação cultural engendrada por diversas camadas da sociedade, logo o samba seria uma “invenção” de compositores , artistas modernistas, intelectuais de classe média e jornalistas interessados em produzir um gênero musical genuinamente brasileiro e capaz de fornecer uma definição identitária para a produção cultural nacional que, até meados da década de 1930, sofria influência européia. Esta heterogeneidade de sujeitos, oriundos de classes sociais divergentes e com formação profissional e acadêmica distintas,

teriam inventado ou decretado o samba como o estilo

musical que “faz do brasil, Brasil1”.

Prosseguindo na discussão sobre a invenção das tradições, QUEIRÓS (1992) assevera que a oficialização legal

das escolas de samba originou-se

também da confluência de interesses de diversos segmentos sociais: bicheiros, presidentes de escolas, chefes políticos realizam transações com o objetivo de extrair esta ou aquela vantagem com a promoção dos desfiles.

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Paródia da obra de DAMATTA (2001)


6 “ A realização dos desfiles encontra-se vinculada a forças e atores sociais concretos, permitindo a absorção e expressão dos conflitos da cidade – relações entre as camadas populares e as camadas médias, jogo do bicho e os poderes públicos e zona norte e a zona sul” (PEREIRA, 1999, p 129)

A difusão do samba como produto nacional permitiu que ele adentrasse as camadas sociais que outrora lhe eram impenetráveis e como ele não poderia permanecer incólume, o samba passa a ser veículo de diálogo entre grupos diversos, tornando-se, após difusão em todo país, uma criação arbitrária e isenta de atavismos étnicos ou sociais. Contudo, o povo que vive do e no mundo das escolas de samba cariocas ainda pratica e produz de maneira peculiar esta manifestação popular.

Na visão de LEOPOLDI

apud ARAÙJO (2001), as escolas de samba

possuem um mesmo padrão de exibição pública e o um mesmo modelo de organização interior. Assim, elas apresentam uma estrutura formal composta de presidentes, vice-presidentes, diretores de alas e harmonia etc. DAMATTA (1996) nos revela que as supracitadas agremiações carnavalescas possuem um núcleo interno formado por uma comunidade de indivíduos relacionados entre si por proximidade geográfica, laços de parentescos ou amizade, dedicados e apaixonados pela sua escola de samba e que, na maioria das vezes, habitam nos arredores das suas quadras.

Todavia,

QUEIRÒS (1992) revela que a paz no interior da escola de

samba não é inabalável, pois há sempre jogos de interesses a fim de manter ou conquistar posições de privilégio junto à presidência da agremiação. A vontade de conquistar o título seria, na acepção desta autora, o elemento inelutável que engendra a coesão interna e desfaz os conflitos. Desfeitas as disputas, a escola pode preparar-se para o grande momento do ritual carnavalesco e tentar ser a rainha dessa festa na quarta-feira de cinzas...


7 3 O DESFILE DE ESCOLA DE SAMBA E O IMAGINÁRIO FEMININO

Dedicaremo-nos a partir deste ponto a discussão sobre o que pode revelar o desfile de escola de samba sobre a “condição feminina”, pois acreditamos que o fato de participarem do desfile de escola de samba fantasiadas, isso, de algum modo, influencia o imaginário das brincantes acerca das concepções que elas nutrem sobre si mesmas e seus corpos. Para tal intento recorremos como suporte teórico a categoria de “ritual” pela permissão que essa construção teórica outorga para a realização do diálogo entre o cotidiano e o momento “extra-ordinário” do desfile. Reforçando o comentário do início desta comunicação, este ensaio trata de uma aproximação temática com o objeto de estudo, por conseguinte os questionamentos aqui infracitados suscitam pesquisa de campo.

As relações entre os gêneros e os conteúdos simbólicos produzidos pela cultura (valores, discursos e as tradições) se intersectam e se autodeterminam. Segundo BENEDICT (s/d), homens e mulheres vivenciam seus

personagens

segundo os padrões culturais da coletividade onde estão inseridos. Calcando-nos nessa acepção, as relações, entre homens e mulheres no mundo não-oficial das escolas de

samba, teriam uma peculiaridade específica, uma trama teatral

própria, atores e atrizes vivenciando seus textos e comunicando-se em uma linguagem comum a ambos.

Demarcaremos o estudo dessa festa popular pela ótica do feminino, pois ao conceder palavra às atrizes que protagonizam as dramatizações desse rito é uma forma tanto de vivificá-lo quanto de permitir a apreciação de discursos de sujeitos que historicamente se calaram, mas que ao imergirem no desfile de escola de samba possuem algo a nos revelar desse festejo e sobretudo de si mesmas. Além disso, se na sociedade ela é obrigada a ocultar seu corpo, é a exibição deste que caracteriza e dinamiza o referido ritual, logo essa criação popular sobrevive pela participação ímpar do feminino.


8 Nesse rito carnavalesco, há uma liberdade de permuta de papéis entre homens e mulheres permitindo a leitura das relações de gênero a partir de uma outra perspectiva distinta da abstraída do cotidiano. Reforçam-se ou invertem-se as práticas e representações sociais concernente aos gêneros, indicando a imanência de situações e apontando caminhos para outras. A investigação dessa temática será centrada em desvelar os conteúdos imaginários que a mulher do núcleo interno de uma escola de samba constrói acerca da presença do feminino durante o ritual do desfile e dar-se-á na compreensão da leitura que essa mulher faz das dramatizações do desfile de uma escola de samba que intermedeiam uma dialética com a condição feminina no plano social ordinário. Para tal intuito, faremos um recorte em três destes dramas: a permuta de papel sexual; a exibição e ocultamento do seu corpo a fantasia do cotidiano e a fantasia de carnaval. 4 O RITO Há diversas concepções teóricas que trabalham o rito popular como categoria suscetível de análise científica e antropológica. O referencial teórico que, ilumina nossa presente aproximação com essa temática investigativa, calca-se nas concepções de autores que analisam os rituais por meio do contraste com os atos do mundo diário. Os ritos demandam uma data marcada, um palco, uma organização formal interna e personagens próprios para se concretizar. São estes componentes que

irão caracterizá-los como frutos de uma realidade cultural

distinta.

Para QUEIRÓS (1992), os mitos são situados no universo da fantasia reforçando ou opondo-se a estrutura social existente. Sua forma de concretização é o rito. Para esta autora, em um ritual, há dramatizações de práticas sociais onde aspectos do cotidiano ganham caráter extraordinário e são colocados em foco, permitindo deslizes semânticos e metamorfoses arbitrárias de comportamentos sociais.


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“ A função do mito parece ser, pois, essencialmente psicológica e suas atividades se ligariam ao imaginário, esta faculdade humana de elaborar, por meio da fantasia e a partir do real, noções que não corresponderiam mais a este último; ... O mito carnavalesco, resultado da atividade criativa, reúne observações, formula noções e constrói uma imagem social atraente, refúgio no qual os indivíduos, uma vez por ano, encontram o prazer de uma existência alegre e livre , oposta à penosa aceitação das desilusões do cotidiano.(QUEIRÒS , 1992, p 195)

Por sua vez, DAMATTA (1996) concebe os ritos como possuidores de figuras e personagens que são individualizadas e engendradas com significados diferentes das relações ordinárias comuns. O ritual é um momento de especial convivência onde se aglutinam pessoas de sexo, idade e posições sociais diferentes imersos em um campo social que ultrapassa os sistemas relacionais triviais. 4.1 O RITUAL DO DESFILE DE UMA ESCOLA DE SAMBA O desfile carnavalesco de uma escola de samba como um rito popular informal é caracterizado pelo tom de brincadeira e espontaneidade e sendo um rito do povo, nesta festa, há lugares para todas as diversidades. Neste ritual, há dissoluções de papéis e posições sociais: brancos, negros, pobres, ricos, homens e mulheres representam personagens que comumente diferem daqueles vividos cotidianamente. Dados importantes dos desfiles aludem ao fato de que os componentes da escola de samba em quase sua totalidade estão fantasiados com trajes temáticos e dançam e cantam durante a apresentação do cortejo. Concernindo à temporalidade dos desfiles, CAVALCANTI (1999) define o carnaval como parte da civilização e seu tempo tem uma dimensão estrutural, pois, com ele, experiências e atos socialmente definidos retornam a cada ano.


10 Aliás, os desfiles de escolas de samba teatralizam aspectos da sociedade brasileira gerando uma polissemia social em um campo simbólico de regras próprias. Os dramas vividos neste ritual dialogam com o mundo oficial, possibilitando confirmações e ressignificações das práticas sociais triviais, e sobretudo permitindo uma maior clareza das mensagens do universo cotidiano. “ É forçoso reconhecer-se que a existência social é , antes de mais nada, teatral, e à vista disso, cada cena, por mínima e „séria‟ que seja, é importante”. ( MAFFESOLI apud SOUSA, 1998, p 192)

Desse pressuposto, perguntamos: o que pode revelar as dramatizações existentes no ritual do desfile de escola de samba sobre a mulher? Para a presente proposta de pesquisa, delimitamos três desses dramas, quais sejam:

4.1.2 O drama da troca de papéis com os homens. O desfile de escola de samba possui um tema específico para ser dramatizado, por conseguinte os trajes que os sambistas irão utilizar apresentamse em número reduzido se comparado aos cortejos carnavalescos de rua, contudo isso não inviabiliza que mulheres e homens possam interpretar personagens do sexo oposto, desde que essas fantasias

estejam em sintonia com o enredo

apresentado pela escola. Ressalvamos que a temática do campo do masculino e do feminino e suas diversas formas de entrelaçamentos conduzem o investigador a vislumbrar dualidades cristalizadas no trato das questões de Comumente lhe são apresentados alguns binômios

relações de gênero. como traços

de

personalidade pertencentes a homens e mulheres e inclusive denotam aquilo que BOURDIEU (1999) conceitua de cosmologia androcêntrica, uma vez que comumente as mulheres são apresentadas, em contraponto com o masculino, de maneira passiva, inferiorizada, mera reprodutora e assexualizada.


11 “Em seu processo de socialização, as mulheres apreederam, em geral, que existe uma sexualidade legítima e, outra, que não o é, e que se estabelece à margem da normalidade. Apreenderam, ainda ,como forma de SER-MULHER, que devem ser recatadas e puras. Aprendem a temer seus desejos e escondê-los, até mesmo de si próprias. Dessa forma, poderão preservar-se na respeitabilidade que a sociedade lhes confere”. ( Sousa, 1998, p167)

Contudo, evidenciando em forma de caricatura o universo masculino do cotidiano, a mulher pode, efemeramente enquanto durar o ritual, dominar, seduzir livremente e transformar o homem

em seu objeto passivo. QUEIRÓS (1992)

afirma que, no carnaval, os homens conservam-se vestidos e, quase sempre, são eles ao mesmo tempo espectadores e cobiçados alvos de uma competição entre as mulheres, as quais aquecem a atmosfera da festa com sua sensualidade enfeitiçadora.

Durante o desfile, predomina o ardor sexual, possibilitando que a mulher faça um deslizamento ou transcenda momentaneamente os impasses do “amour passion 2“.Levantemos alguns questionamentos sobre esta inversão de papéis: como a mulher interpreta o estar na condição masculina ainda que brevemente? Como representa para si o outro lado da moeda (o homem estar na condição feminina)? Entretanto, essa licenciosidade possui um limite, uma vez que o desfile de escola de samba, como os demais ritos populares, possui regras internas. A mulher tem seu acesso restringido e ainda não pode (ou não deveria) representar alguns personagens. É-lhe interditado, por exemplo, interpretar o papel de mestresala, personagem vivido exclusivamente por homens. A execução dos instrumentos

da bateria e a interpretação do canto apresentam um número

irrisório de participação feminina. Em contrapartida, há personagens deste rito vivenciados somente por mulheres: porta-bandeira e rainha de bateria. 2

Nomenclatura empregada por GIDDENS (1993) referindo-se à conexão genérica entre o amor e a ligação sexual.


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Portanto, a constatação deste fato leva-nos a uma reflexão: se mesmo no momento extra-ordinário como desfile de escola de samba em que a subversão de práticas sociais é consentida, há um ponto de interseção que delimita o campo dos sexos, proibindo ou censurando os avanços desta fronteira é porque existiria um espectro natural para ambos os sexos? Ou ritual do desfile de escola de samba é,

nesses termos, um espelho das relações de gênero construídas

socialmente? 4.1.3 O drama da exibição e ocultamento do corpo feminino Salientamos de antemão que comungamos com a perspectiva teórica de corpo de LECLAIRE (1992). Nesse sentido, não vislumbramos aqui um corpo fisiológico que, mesmo pensado, como sistema, seria fixo, respondendo a sistemas de estímulos - respostas

e tampouco um corpo humano construído

unicamente como força de trabalho e respondendo apenas aos apelos de uma disciplina que o obrigaria a produzir “mais-valia”. Ao contrário, apreendemos um corpo, sobretudo, enquanto superfície erógena e marcado pelo desejo.

Historicamente, a mulher foi obrigada a esconder ou ocultar seu corpo para não despertar a lubricidade

masculina e sobretudo como forma de

exteriorizar para sociedade seu recato e sua decência. SAFIFIOTI (1992) ressalta que tanto o gênero, quanto o sexo, são inteiramente culturais, já que o gênero é uma maneira de existir do corpo e o corpo é uma situação, ou seja, um campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas.

As pulsões sexuais que

alimentam seu corpo e o próprio narcisismo de exibir-se foram sufocados ou omitidos para si mesma e para a sociedade

Contudo, no carnaval, a ordem para a mulher é mostrar seu corpo, pois ARAUJO (2000) revela que etimologicamente carnaval significa lavagem da carne, lavagem do corpo para

exorcizar os pecados e realizar os desejos sexuais

recalcados antes do período da quaresma. Aliás, REGO (2001) enfatiza que a


13 exibição do corpo e os movimentos de quadris, braços e pernas historicamente caracterizaram o samba como uma dança sensual. Nesta dança, há um jogo de cena e de sedução manifestado em passos e gestos que incitam os casais à relação sexual, por isso possuía uma conotação de vulgaridade em meados do século XIX. A visão do corpo feminino permitiu que o desfile das escolas de samba ganhasse visibilidade com proporções mundiais, ou seja , ao deixar-se ver pelo mundo, a mulher possibilitou que esse rito deixasse de ser visto apenas pela comunidade pobre que comumente participava dele. Para tratar da exibição do corpo feminino nesse ritual recorremos ao olhar da psicanálise. O que quer uma mulher? Em seus estudos, FREUD (1996) conclui que a mulher é um continente negro, pois os caminhos que a conduziram ao encontro de sua feminilidade e do seu gozo sexual é

uma incógnita. Na psicanálise, a

expressão da sexualidade e as condutas morais de uma cultura são contraditórias e deste conflito originam-se os sintomas neuróticos. A psicanálise postula que, não tendo o falo para perder, a mulher anarquiza a ordem e a lei e angústia da mulher ante a castração é tematizada pela cultura. Nesse sentido, o sintoma feminino por excelência seria a histeria. Diríamos que a particularidade da histeria reside no fato de que coloca o corpo em evidência. Segundo FREUD (1996), a mulher por não possuir falo 3 investe narcisicamente toda sua energia psíquica em seu próprio corpo, erotizando-o completamente. O corpo torna-se o centro das pulsões e a beleza um ideal a ser atingido. Ela precisa dar-se a ver, dar visibilidade ao seu corpo pela sua voz, pela sua inteligência, pelas suas roupas (ou na ausência delas) como forma de concretizar sua existência. Na busca de sua visibilidade, a mulher representará diversos papéis na busca incessante de alicerçar sua subjetividade e inserção social.

3

Conceito psicanalítico alusivo à diferença sexual


14 A histeria nos personagens femininos das escolas de samba é nitidamente identificada, citemos alguns exemplos: a visibilidade da personagem “baiana” é notória , não tendo o corpo da juventude, ela o erotiza e deixa-se ver apelando para suas roupas: colar, chapéu, saia rodada

e seu tradicional

tabuleiro. Por sua vez, a mulata-passista ficou conhecida pelo seu requebro, pela voluptuosidade de movimentos, pela sensualidade que exala do seu corpo desnudado. A mulata deixa-se ver nacional e mundialmente pela ausência parcial ou total de suas roupas. Como a mulher vislumbra a importância da visibilidade do corpo da personagem que interpreta como elemento constitucional intrínseco deste rito? De que forma a exibição do seu personagem pode desvelar a representação que faz para si de seu próprio corpo? Qual implicação pessoal possui ao exibir seu próprio corpo? 4.1.3 O drama da fantasia do desfile e a fantasia do cotidiano O significante fantasia nos permite uma compreensão polissêmica de seu significado, pois tanto pode referir-se àquilo que FREUD (1996) qualifica de desejos sexuais recalcados, ou seja, o que o sujeito guarda nos recônditos do psiquismo, escondendo-os da sociedade e que por vezes não ousa revelar nem a si próprio, quanto pode concernir aos trajes carnavalescos que os brincantes usam nos desfiles de escolas de samba. Assinalamos que existe uma diversidade de qualidades atribuídas ao sexo feminino,

mas

comumente

possuem,

como

extremidades

opostas

e

complementares, os adjetivos puta e santa mãe-virgem. A puta é associada à vagabundagem, ao vitupério e à licenciosidade sexual, enquanto que Mãe-santa é o símbolo da castidade, da maternidade e da pureza. Os padrões morais da sociedade reverenciam a Mãe que abençoa seus filhos,e que preserva o lar e os bons costumes. Para FREUD (1997), a puta, a mulher de sexualidade desmedida, é execrada, pois como ícone da devassidão arrisca subverter a cultura e destruir a civilização.


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Para DAMATTA (1996) , em um ritual carnavalesco como o desfile de escola de samba, essa dicotomia mãe-puta é dramatizada de forma inversa. Este autor acredita que no período do carnaval a figura da puta é que estar no altar sendo exaltado, ela controla e é o centro das atenções masculinas. A “mulher da vida” dá vida ao desfile carnavalesco ou como nos conduz a refletir o supracitado autor: é a mulher deslocada do seu lugar ou simplesmente o outro lado da mulher que nos é desvelado? Essa linha de raciocínio se explicita na seguinte citação de SOUSA (1998,p165): “ A Mulher que “brinca” , tomando as iniciativas quanto ao prazer sexual, erótico, é a Mulher Perdida, que nega sua natureza de pureza, de “Santa”. No ritual do desfile, as mulheres podem escolher livremente as fantasias que utilizarão para brincar o carnaval , mas não podem fugir de suas fantasias sexuais. SOUSA (1998) constata que o comportamento carnavalesco permite à mulher embrenhar-se em fendas por onde escapam desejos socialmente reprimidos. Este fato nos incita a uma reflexão: até que ponto a decisão de optar por esta ou aquela indumentária é uma “livre escolha”? Há uma síntese ou um descompasso do desejo silenciado pela mulher com o papel que decidiu representar no desfile de escola de samba? Enfim procuramos apontar que a mulher viveu e ainda vive à busca de uma imagem que lhe defina, de encontrar o caminho proposto por BEAUVOIR (1988) de como se tornar uma mulher, vivenciando papéis que deslizam em dois pólos que vai da santa à puta. Investigar os pontos de interseção entre as representações coletivas acerca dos adjetivos atribuídos ao gênero feminino no plano cotidiano e a tessitura imaginária confeccionada pelas brincantes durante os preparativos e momento ritualístico do desfile, é uma das questões que em nossas pesquisas de campo procuraremos desvelar.


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