UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
ENTREGUE O SAMBA A SEUS DONOS IMAGENS E SIGNIFICADOS DE BAHIA NO RIO DE JANEIRO DA BELLE ÉPOQUE
DIEGO RAMIRO ARAOZ ALVES
RIO DE JANEIRO 2006
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ENTREGUE O SAMBA A SEUS DONOS: Imagens e significados de Bahia no Rio de Janeiro da belle époque
Diego Ramiro Araoz Alves
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).
Orientadora: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Rio de Janeiro Setembro de 2006
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ENTREGUE O SAMBA A SEUS DONOS: Imagens e significados de Bahia no Rio de Janeiro da belle époque Diego Ramiro Araoz Alves Orientadora: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).
Aprovada por:
____________________________________________________________________ Presidente, Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti – Orientadora Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGSA
____________________________________________________________________ Profa. Dra. Mônica Pimenta Velloso Fundação Casa de Rui Barbosa
__________________________________________________________________________ Prof. Dr. André Botelho Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGSA
Rio de Janeiro Setembro de 2006
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Alves, Diego Ramiro Araoz. Entregue o samba a seus donos: imagens e significados de Bahia no Rio de Janeiro da belle époque/ Diego Ramiro Araoz Alves. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2006. ix, 107 f; 29,7 cm Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2006. Referências Bibliográficas: f. 118-120. 1. Imagem baiana. 2. Samba. 3. Carnaval. 4. Rio de Janeiro. I. Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia. III. Entregue o samba a seus donos: imagens e significados de Bahia no Rio de Janeiro da belle époque.
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RESUMO
ENTREGUE O SAMBA A SEUS DONOS: IMAGENS E SIGNIFICADOS DE BAHIA NO RIO DE JANEIRO DA BELLE ÉPOQUE Diego Ramiro Araoz Alves Orientadora: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).
A partir da literatura e dos registros de cronistas carnavalescos sobre a participação de imigrantes baianos na formação do samba e na modernização do carnaval carioca, no início do século XX, o trabalho investiga o processo de construção simbólica das imagens de Bahia no Rio de Janeiro da belle époque. De um modo geral, observa-se que a Bahia constituiu uma referência da ancestralidade e afrodescendência brasileira, como demonstram letras de samba e fantasias de carnaval. Na análise dos episódios de disputa envolvendo diferentes agentes do universo da cultura popular e as narrativas simbólicas da belle époque, verifica-se: a) um caráter heterogêneo da vida social dos imigrantes baianos; 2) uma condição sociológica ambígua desse grupamento.
Palavras-chave: 1. Imagens baianas. 2. Samba. 3. Carnaval. 4. Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro Setembro de 2006
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ABSTRACT
ENTREGUE O SAMBA A SEUS DONOS: IMAGES AND MEANINGS OF BAHIA IN THE RIO DE JANEIRO OF BELLE ÉPOQUE Diego Ramiro Araoz Alves Orientadora: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).
From the literature and the registers made by chronicles writers of carnival about the participation of bahian immigrants in the formation of samba and the modernization of the carioca’s carnival, at the beginning of century XX, the work investigates the process of symbolic construction of the images of Bahia in the Rio de Janeiro of belle époque. In a general way, we can observe that Bahia constitutes a reference of the ancestry and the African descent in Brazil, as demonstrate the lyrics of samba and fancy dresses of carnival. Analyzing the episodes of dispute involving different agents of the universe of the popular culture and the symbolic narratives of belle époque, it is verified: 1) a heterogeneous character of the social life of the bahian immigrants; 2) an ambiguous sociological condition of this grouping.
Key words: 1. Images of Bahia. 2. Samba. 3. Carnival. 4. Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro Setembro de 2006
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A meus pais
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AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente às pessoas mais importantes da minha vida. Aos meus pais, Ramiro e Edinilsa, por acreditarem no sucesso das minhas escolhas. Sinto um grande orgulho de vocês e serei eternamente grato pelo incentivo sempre prudente e carinhoso. Aos meus irmãos, Pablo e a minha querida Denise, sou grato pela felicidade de vê-los crescer. À minha esposa, Mariluze, pelo apoio constante e incondicional, e pelos inesquecíveis momentos de afeto e de cumplicidade. De fato, você foi o meu porto-seguro em meio aos descaminhos que resultaram neste trabalho. Na qualidade de aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, contei com a bolsa de estudos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), durante dois anos. O que me possibilitou uma certa tranqüilidade durante o mestrado. Registro também a minha gratidão pelas aulas e orientações dos professores do PPGSA, e pela atenção e zelo das queridas Claudinha e Denise. Manifesto aqui a minha dívida de gratidão com a minha orientadora, professora Maria Laura Cavalcanti, pelo precioso aprendizado e pela forma honesta, cuidadosa e atenta com que acompanhou todo o desenvolvimento deste trabalho. Agradeço ao professor André Botelho e à professora Mônica Velloso pelas conversas e pelas observações sempre muito bem-vindas. Sou especialmente grato pelo privilégio de têlos na banca de qualificação do meu projeto de mestrado e, agora, no exame da dissertação. Agradeço aos meus colegas da turma de mestrado pelas descobertas e pelos inúmeros momentos de alegria. Simone Toji, Paulo Clemente, Júlia Polessa, Marcos Aquino, Salvador Schavelson, Renato Redenschi, Vivian Paes, Ana Gabriela Dickstein, Daniel Silva, André Demarchi, Milene Mizrahi e Samantha Brasil: muito obrigado! Aos meus grandes amigos, Fernando Cardoso e Maurício Aguiar, obrigado pelo clima maravilhoso de troca de idéias e de experiências, que nos acompanha desde a Bahia.
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ÍNDICE Introdução
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Capítulo 1. Considerações sobre o debate histórico-musicológico .
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1.1. Um problema musicológico?
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1.2. Interface de questões a partir dos livros Na roda do samba e Samba .
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Capítulo 2. Imagens e significados de Bahia
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2.1. Imagens de Bahia e o samba em vias de profissionalização
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2.2. Significados de Bahia e o universo do carnaval
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Capítulo 3. Planos narrativos da belle époque carioca.
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Considerações finais
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Bibliografia
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INTRODUÇÃO:
O horizonte temático deste trabalho versa sobre a construção simbólica das imagens de Bahia no Rio de Janeiro da belle époque. Mais especificamente, discuto a natureza processual dessas imagens e seus significados no contexto tanto de fixação do samba enquanto gênero musical quanto da modernização do carnaval carioca, no começo do século XX. Nosso objetivo consiste em compreender qual o lugar simbólico ocupado por imigrantes baianos no Rio de Janeiro deste período. Para tanto, examino as narrativas de cronistas, depoimentos e registros feitos em jornais sobre a participação desses imigrantes no samba e no carnaval desta cidade. Uma das idéias que desenvolvo é a de que a modelação de uma certa imagem baiana esteve concatenada à configuração de um arranjo sociológico específico entre os imigrantes baianos e outros segmentos também atuantes no universo do samba e do carnaval carioca deste período. Pode-se observar, no caso do processo de estilização do samba, por exemplo, inúmeras rixas, intrigas e disputas envolvendo baianos. Partindo desse princípio – ou seja, de que existiu uma dimensão conflitiva inerente a esse grupamento –, suponho que os imigrantes baianos protagonizaram uma espécie de luta pelo prestígio (ou ainda, de uma luta por certa visibilidade) no universo da cultura popular carioca, ao mesmo tempo em que esteve em jogo a negociação de determinadas imagens e significados de Bahia. De um modo geral, a literatura sobre o tema atribui um caráter homogêneo à vida social desses imigrantes baianos. Pouco se discutiu a dimensão conflita “interna” desse grupamento. No entanto, o que se percebe é o desempenho de uma espécie de liderança comunitária exercida pelos imigrantes baianos entre os segmentos populares do Rio de Janeiro, no início do século XX. Liderança que, supõe-se, foi fundamental para a criação de uma identidade social baiana durante o período da belle époque carioca (VELLOSO, 1990). Tal
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visibilidade teria como base o lastro sócio-simbólico instituído com a introdução e a manutenção de hábitos, costumes e práticas lúdico-festivas importadas da terra natal, cuja tradução mais sensível se fez através da formação do samba e da introdução dos ranchos carnavalescos no Rio de Janeiro. O historiador José Murilo de Carvalho assinala que os imigrantes negros e mestiços oriundos da Bahia habitaram, primeiramente, a zona portuária do Rio de Janeiro, onde teriam formado um substrato cultural de sobremaneira hegemônico na capital republicana: a “pequena África”. Descendentes de africanos mulçumanos, ali os baianos reelaboraram “sua música e sua religião, fertilizaram-se no novo ambiente criando os ranchos carnavalescos e inventando o samba moderno” (CARVALHO, 1984, p. 136). De acordo com Roberto Moura (1983), com as
obras de ampliação do porto e o início das grandes reformas urbanas da cidade, essa “pequena África” foi transferida para o bairro da Cidade Nova. Mais precisamente, no perímetro que, atualmente, compreenderia a Avenida Presidente Vargas, os bairros do Estácio de Sá e Rio Comprido, além de morros como Providência, São Carlos, Santo Cristo, Mangueira e Catumbi, tendo como epicentro a antiga Praça Onze de Junho; um dos lugares considerados como berço do samba carioca. Embora a Praça Onze abrigasse uma população bastante heterogênea – imigrantes provenientes de toda parte do globo e grupos étnicos os mais diversos, como africanos (MOURA, op.cit.), ciganos (GERSON, 1954) e judeus (MALLAMUD, 1998) – os baianos lá
instalados alcançaram notória visibilidade na efervescente vida lúdica do lugar. Não por acaso, a circunvizinhança da Praça Onze tornara-se conhecida como zona de baixo meretrício e dispunha de toda uma infra-estrutura voltada para a boemia, abrigando inúmeros bares e casas noturnas que atraíram para a região as primeiras fábricas de cerveja da cidade, no início do século XX. Se não bastasse, essas e outras características – como a proximidade com a Estação Ferroviária Central do Brasil (local de desembarque da população suburbana) e com a
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sede de diversos jornais da época – fizeram da Praça Onze o epicentro do chamado “pequeno carnaval” (ou seja, a festa brincada por segmentos subalternos), assim como dos primeiros ranchos carnavalescos da cidade. Motivos que fizeram do lugar o palco oficial do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, desde o ano de 1929 (FARIAS, 2006, p. 128). É em meio ao deslocamento desse nicho cultural, somado à reformulação do mapa sócio-simbólico da cidade e ao complexo emaranhado dos fluxos de sentidos que revestiam o cotidiano da Praça Onze, que as tias baianas alcançaram um papel de destaque. Eternizadas pela memória oral da música popular carioca, essas personagens seriam a principal referência da “liderança” baiana na “pequena África” e na Cidade Nova. Segundo Roberto Moura, isso foi possível graças ao monopólio de determinado conhecimento religioso e por participarem ativamente dos eventos lúdico-festivos da região. Por um lado, o conhecimento que detinham em torno do candomblé teria consubstanciado uma linhagem hegemônica no universo da religiosidade afro-brasileira, no Rio de Janeiro. Conhecimento, afirma Moura, adquirido ainda em terreiros da Bahia, para onde as tias de maior peso iam com relativa freqüência “tratar de suas coisas de Santo e dos negócios de nação” (Id. Ibid, p. 94-95).
Por outro, pode-se dizer que as tias baianas atuaram como verdadeiras matriarcas na fase de gestação do samba carioca. Isso não só por que alguns dos primeiros sambistas em vias de profissionalização eram seus descendentes diretos – tais como Donga, filho da tia Amélia, e João da Baiana, filho da tia Perciliana – mas também por que o universo sóciosimbólico que se criou entorno delas tende a ser visto como uma condição fundamental para a fixação do samba enquanto gênero musical. Boa parte da literatura etnomusicológica, por exemplo, apóia-se na hipótese de que as matrizes estéticas e rítmicas do samba foram geradas em meio aos eventos religiosos e festivos sediados em suas residências. Estudos recentes consideram esse cenário como paradigmático para problematização do tema das mediações culturais. A perspectiva lançada por alguns autores avança, sobretudo,
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no sentido de considerar a “cultura popular” como um lócus eminentemente plural e integrado por relações de poder, pela existência de mediadores e pela administração de conflitos e negociações inerentes à própria formulação desse contexto (VIANNA, 2002; VELLOSO, 2004). Leitura que se distancia do olhar romântico e pacifista empregado pela literatura folclórica (GONÇALVES, 2003). A tese defendida por Hermano Vianna é paradigmática nesse sentido. O
autor argumenta que ao lado da repressão ao samba houve, desde cedo, interesse e apoio de segmentos de elite pelo gênero. O mérito de seu trabalho é o de ir de encontro à historiografia tradicional do samba, que ressalta sempre e apenas a repressão da elite à música popular. Para Vianna, as mediações realizadas por baianos foram cruciais para a formalização do samba, a exemplo, das relações intensas que tia Ciata mantinha com intelectuais e políticos da época, convidados ilustres dos sambas em sua casa. Do ponto de vista analítico, diria que a idéia de luta pelo prestígio é tributária desse esforço da antropologia cultural de questionar uma suposta natureza estanque das relações sociais, bem como dos próprios limites das hierarquias e fronteiras que são estabelecidas na formalização de diferentes grupos. Nesse sentido, o ponto de encontro com a nossa proposta reside na premissa de que o interior desse grupamento baiano foi heterogêneo, por excelência. Do ponto de vista conceitual devemos fazer aqui uma ressalva. Sabemos que o termo “luta” pode denotar uma acepção de indivíduo muito específica, ancorada numa situação sociológica em que os atores possuem uma suposta consciência e controle das suas ações visando fins objetivos numa determinada configuração das relações de poder1. Para tratar desse aspecto, inspiro-me na concepção de “sociedade” sugerida por Norbert Elias. Basicamente, o referencial deste autor considera que a coordenação e o intercâmbio sóciosimbólico da vida se dá numa dinâmica processual fincada na disposição de interdependências entre as pessoas. Epistemologicamente, esse aporte conceitual propõe um redimensionamento 1
Algo semelhante pode ser encontrado, de forma mais direta, no esquema teórico proposto por Talcott Parsons (1965) e, indiretamente, na noção de campo de Pierre Bourdieu (2003)
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das fronteiras entre individuo e sociedade, e privilegia a investigação de como as pessoas se relacionam em interdependências e conformam determinadas configurações. Acredito que essa sugestão viabiliza, inclusive, um aprofundamento em torno da relação entre a produção simbólica das imagens de Bahia combinada à questão da funcionalidade das relações de poder protagonizada entre imigrantes baianos. Apoiado nessa perspectiva, diria, enfim, que o nosso objeto consiste em investigar a sócio-gênese de certa imagem de Bahia construída em meio à formalização do samba e da modernização do carnaval carioca, em princípios do século XX.
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Este trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro capítulo estabeleço os aspectos paradigmáticos da nossa discussão. O debate histórico-musicológico sobre as origens do samba constitui um primeiro eixo de explanação. Procuro estabelecer nexos entre diferentes considerações em torno do tema com o intuito de recolocar a questão sob o ponto de vista sociológico. Assim, formalizo a questão de em que medida a consideração do samba como um ritmo originário da Bahia ou do Rio de Janeiro assinalaria a tradução de um monopólio simbólico e de sentidos em torno deste gênero musical? Ou ainda, em que medida a reflexão sobre a origem do samba – matizada tanto pela literatura quanto por artistas e compositores da música popular brasileira – constitui ela própria uma conseqüência ideológica e narrativa sobre a construção de diferentes imagens que têm no samba um elemento central de formação, tais como a de Brasil, de Rio de Janeiro e de Bahia? Em seguida, proponho uma leitura sistematizada dos livros Na roda do samba, de Francisco Guimarães (Vagalume), e Samba, de Orestes Barbosa. Ambos os autores atuaram como cronistas carnavalescos e publicaram seus respectivos livros no ano de 1933. As obras são consideradas um marco pioneiro da literatura dedicada ao assunto samba.
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O tema central dos livros é a transformação do samba, durante as primeiras décadas do século XX. Os autores discutem fundamentalmente a questão da autenticidade dos diferentes estilos de samba existentes neste período. De modo sucinto, pode-se dizer que Francisco Guimarães tende para uma visão homogênea e segregacionista do universo do samba. Guimarães defende em tom militante as “raízes do samba baiano”, tidas como as mais “tradicionais” e “autênticas”, então conservadas, no Rio de Janeiro, nas “rodas de samba” promovidas pelas tias baianas. Este autor é contra o rádio, a indústria fonográfica e o comércio de sambas. Acusa esses recursos e práticas de descaracterizar o “verdadeiro” samba. No livro Samba, contrariamente, Orestes Barbosa é maleável e vê com certo positivismo essas transformações e a recepção do samba na indústria de discos e edições. Aos seus olhos, o samba configura um elemento de agregação do universo social heterogêneo e cosmopolita inerente à vida urbana do Rio de Janeiro, onde, para o autor, o samba teria nascido. Esses motivos fazem de Orestes Barbosa um crítico de postura menos radical do que a de Francisco Guimarães. Barbosa, inclusive, reconhece como legítimos os diferentes estilos de samba da cidade sejam eles identificados com o “reduto baiano”, tocados no rádio ou apreciados por segmentos de elite da cidade. Quem primeiro discutiu o contraste entre essas obras foi Carlos Sandroni, cuja tese necessariamente será retomada em seus aspectos mais pertinentes à nossa investigação. Em Feitiço decente (2001), a preocupação de Sandroni foi evidenciar a ausência de uma definição para o samba nos livros Na roda... e Samba. Apoiado nesse diagnóstico, o autor argumenta que as transformações estéticas do samba, em princípios do século XX, foram acompanhadas por uma reconfiguração simbólica mais ampla que proporcionaria condições para que se firmasse enquanto gênero da música popular. No caso, entende que as divergências contidas em ambos os livros sinalizaria a convergência de determinados elementos e de uma lógica simbólica em vias da consolidação de um paradigma rítmico para o samba. Isso se verificaria
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no reconhecimento dos autores, afirma Sandroni, entre um “antigo” e um “novo” estilo de samba. Assim, considerando que a classificação proposta pelo autor de Feitiço decente não avança no sentido de problematizar as narrativas incutidas nas tendências apontadas em Na roda do samba e Samba, vejo que o debate aí instaurado fornece pistas importantes sobre quais foram os sentidos imputados e negociados em meio às mudanças estéticas do samba. Nesse sentido, o tema da autenticidade é especialmente sugestivo enquanto pista analítica para a compreensão tanto do condicionamento dos olhares dos autores quanto da natureza simbólica que integrou o universo em que o samba surgiu no Rio de Janeiro. Como veremos a seguir, as entrelinhas dos livros reportam uma relação direta entre as formulações de cada autor e suas respectivas experiências com o meio musical da época. A defesa do “verdadeiro samba”, por exemplo, motivo expresso de cada obra, se dá em razão dos autores se auto-intitularem exímios conhecedores do mundo do samba. Suponho, portanto, que o debate instaurado nos livros registra não apenas a mudança estética e estrutural deste gênero, foco da contribuição de Carlos Sandroni, mas também a tradução de uma lógica simbólica fincada numa retenção específica de sentidos em torno do samba e, consequentemente, da Bahia. A partir desses elementos, enfim, ancoro os paradigmas heurísticos do nosso objeto. No segundo capítulo discuto as diferentes imagens e significados de Bahia no contexto de fixação do samba enquanto gênero musical e da modernização do carnaval carioca, no início do século XX. No item 2.1, enfoco a questão da profissionalização do samba e a repercussão das inúmeras polêmicas envolvendo rixas entre sambistas e o problema da autoria de sambas. Nesse ambiente a música “Pelo telefone” (1916) constitui um marco para o problema da luta pelo prestígio e a formalização de certa imagem de Bahia. A música (sucesso no carnaval de 1917 e primeiro samba a ser reconhecido como samba) foi registrada por Donga, cuja autoria foi sempre questionada, acusado de apropriar-se “indevidamente” de estrofes improvisadas nas festas da casa de tia Ciata.
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No item 2.2, discuto como imigrantes baianos atuaram na modernização do carnaval do Rio de Janeiro. Além de serem considerados os introdutores dos ranchos carnavalescos na festa desta cidade, na consulta a jornais da época, nos meses que antecedem o carnaval, verifica-se uma série de reportagens e crônicas que registram a presença de elementos idílicos associados à Bahia: o nome de determinadas agremiações carnavalescas, fantasias de baianas, estabelecimentos comerciais e personalidades do meio popular. Contando com a contribuição de Vagalume – o grande expoente da crônica carnavalesca nas primeiras décadas do século XX, contribuindo para mais de 50 periódicos dedicados ao humor, carnaval e festas populares – o Jornal do Brasil foi, seguramente, o veículo que mais registros fez nesse sentido; motivo por que privilegiei discutir as notas publicadas na coluna carnavalesca deste periódico. O terceiro capítulo, por fim, procuro qualificar os conceitos de belle époque e de “pequena África”, com o fito de compreender a condição sociológica de baianos no Rio de Janeiro, no início do século XX. Focalizo, sobretudo, o modo como a historiografia abordou o tema do controle social e da cultura popular. Âmbitos que tomo como parâmetros para a análise das narrativas engendradas nesse contexto do Rio de Janeiro. Aí se encontram ancoradas, por exemplo, disposições narrativas antípodas, como civilização e barbárie, tradição e modernidade – conceitos que exerceram uma função normativa crucial sob os diferentes níveis de coordenação da vida social da cidade, nas primeiras décadas do século XX. Da mesma forma, pode-se dizer que a tensão dos equilíbrios de poder existente entre a “pequena África” e a belle époque constitui um desses níveis de produção de narrativas. Uma das conclusões do trabalho aponta na direção de que a construção das imagens e significados de Bahia no Rio de Janeiro, no começo do século XX, está diretamente ligada a uma condição relativamente ambígua assumida por imigrantes baianos: “estabelecidos” num universo outsider (a “pequena África”) em relação à belle époque carioca.
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CAPÍTULO 1: CONSIDERAÇÕES SOBRE O DEBATE HISTÓRICO-MUSICOLÓGICO.
“A Bahia/ Estação primeira do Brasil/ Ao ver a Mangueira nela inteira se viu/ Descobriu-se sua face verdadeira/ Que alegria não ter sido em vão que ela expediu/ As Ciatas pra trazerem o samba pro Rio/ Pois o mito surgiu dessa maneira.” Caetano Veloso, Onde o Rio é mais baiano (1999) “Eu sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo sim Senhor/ Quero mostrar ao mundo que tenho valor/ Eu sou o rei do terreiro/ Eu sou o samba/ Sou natural aqui do Rio de Janeiro/ Sou eu quem levo a alegria/ Para milhões de corações brasileiros.” Zé Kéti, A voz do morro (1955)
Uma dimensão crucial para a argumentação desenvolvida neste trabalho finca raízes em estudos de domínio eminentemente histórico-musicológico. A saber, a questão do surgimento do samba e a centralidade que tanto a Bahia quanto o Rio de Janeiro ocupam enquanto supostas regiões de nascimento desse ritmo e o debate sobre as transformações estéticas deste gênero musical na cidade do Rio de Janeiro, durante as primeiras décadas do século XX. No meio acadêmico as conclusões que folcloristas, musicólogos e demais estudiosos apresentaram são relativamente controversas. De um modo geral, atribui-se que os elementos rítmicos mais profundos do samba seriam originários do continente africano (ver ANDRADE, 1975; CARNEIRO, 1974; RODRIGUES, 1984), ao passo que existe uma atmosfera
de dúvidas nos estudos que se dedicam à questão de como ocorre a distribuição regional dessas fontes rítmicas pelo Brasil (ver SANTOS, 1997; TINHORÃO, 1997, 1988). Até mesmo no universo da música popular brasileira encontramos um esforço de interpretação desse problema, em que se levam a cabo as representações e variantes narrativas criadas de episódios da história da música popular e por agentes ligados direta e indiretamente ao universo do samba. Um exemplo disso pode ser observado através das composições de Caetano Veloso e de Zé Kéti que afixamos na epígrafe deste capítulo.
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Em “Onde o Rio é mais baiano” (1999), Caetano Veloso – ele mesmo um músico baiano, vale lembrar – propõe uma leitura ambígua sobre o samba, que seria, a um só tempo, um gênero baiano e carioca. Existiria em torno dele – sobretudo do samba que se desenvolveu no Rio de Janeiro – uma espécie de amálgama simbólico entre a Bahia e o Rio. Ainda de acordo com sua música, o samba representaria um signo de identificação de uma Bahia mais baiana assim como de um Rio de Janeiro mais carioca. No entanto, isso é sugerido a partir de uma tensão, tendo em vista que o compositor reconhece no Rio de Janeiro o lugar por excelência do samba e, ao mesmo tempo, reivindica à Bahia uma espécie de vanguarda no processo de formação do samba carioca. Essa proposição se verifica de forma mais explicita em duas passagens: na referência às tias baianas – “que alegria não ter sido em vão que ela (a Bahia) expediu as Ciatas pra trazerem o samba pro Rio”; e no trecho referente à Mangueira – uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio – “a Bahia estação primeira do Brasil, ao ver a Mangueira nela inteira se viu, descobriu-se sua face verdadeira”.
Na composição “A voz do morro” (1955), contrariamente, Zé Kéti não faz qualquer menção à Bahia como fonte ou região de origem do samba. No caso, o samba aparece como um gênero unicamente carioca; produto genuíno do morro, lugar que retém uma teia de significados essencial para a construção mítica da origem do samba carioca e que é, por sua vez, uma falha geográfica que marca toda a paisagem do Rio de Janeiro, onde se abriga boa parte da população pobre e marginalizada da cidade, resultando daí a denominação pejorativa de “favela”, termo que originalmente classificava as habitações de imigrantes nordestinos nos morros cariocas, em fins do século XIX. Assim, diferente de Caetano Veloso – que vê no samba uma tensão entre duas regiões – Zé Kéti sugere uma condição de excelência do samba enquanto signo nacional, no qual o Rio de Janeiro é a principal referência da idéia de brasilidade aí incutida.
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Penso que a partir do conteúdo narrativo dessas composições podemos identificar uma questão de fundo no debate sobre a origem do samba. Pode-se dizer que no contraste apresentado pelas músicas de Caetano e Zé Kéti, estão implícitos não somente uma reflexão sobre a espacialidade do samba, em que são confrontadas as referências regionais baiana e carioca, como também um redimensionamento da própria condição nacional deste gênero. Ambas ilustram uma espécie de indefinição entre os signos que dariam suporte à imagem de brasilidade que é comumente vinculada ao samba. Portanto, na medida em que, cada qual dota à Bahia e ao Rio de Janeiro pesos diferentes e lugares simbólicos peculiares, não seria um exagero dizer que as músicas “Onde o Rio é mais baiano” e “A voz do morro” reproduzem imagens que validam certa ambigüidade na simbologia do samba – ora vinculado à Bahia e ao Rio de Janeiro – enquanto ícone da idéia de brasilidade que lhe é inerente. A tensão entre essas duas matrizes regionais parece ter sido pouco aprofundada pelas análises que abordaram a relação entre o samba e a identidade nacional. Diria até que a literatura, embora reitere a importância do Rio de Janeiro e da Bahia na elaboração desse estilo musical, muitas vezes acaba por situá-la num lugar-comum, cedendo espaço a temáticas mais amplas como a do problema da formação do samba carioca e dos caminhos que fizeram deste gênero o principal suporte simbólico da nacionalidade, já na década de 1930. Essa constante associação entre samba, Rio de Janeiro e Bahia inquieta e sugere, portanto, o delineamento das questões deste capítulo. Inicialmente, gostaria de destacar a forma como a Bahia se integra ao universo do samba carioca. Como já indicamos, a construção do olhar sobre a importância simbólica que a Bahia teve durante a gestação do samba carioca esteve diretamente ligada ao modo como foi narrada a vinda de famílias baianas para o Rio de Janeiro. Em Panorama da música popular brasileira na belle époque, o pesquisador Ary Vasconcelos oferece uma descrição sugestiva a esse respeito:
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É fácil compreender que, com a vinda dos escravos da África para o Brasil, vieram também as suas músicas e suas danças e, ao que tudo indica, foi na Bahia onde começaram a surgir as primeiras sessões de samba, ou seja, “danças de negros”, sagradas e profanas. Essas danças foram aos poucos tomando forma autônoma, distinguindo-se das danças africanas. Mais tarde, baianas como Tia Ciata, Tia Amélia (mãe de Donga), Tia Presciliana de Santo Amaro (mãe de João da Baiana), Tia Mônica (mãe de Pendengo e da Carmem da Xibuca) e Tia Gracinda, e baianos como Hilário Jovino, transferiram-se para o Rio e continuaram aqui a promover, em suas casas, na rua da Alfândega e adjacências, sessões de samba e de candomblé. A partir de 1870, pelo cruzamento ou influência recíproca e sucessiva do lundu, polca (esta chegou ao Brasil por volta de 1845), habanera, maxixe e choro, começaram a aparecer músicas que tendiam ritmicamente para o samba: Moqueca, Sinhá, espécie de lundu (1870), As laranjas da Sabina (1888), Morte do Marechal (1893), Não deixa tirar (1902), e Vem cá, mulata (1906) (VASCONCELOS, 1977, p. 25).
Seguindo uma lógica comum aos estudos musicológicos, nesse trecho Vasconcelos considera que a Bahia é a principal referência dos elementos que mais se aproximariam das origens africanas do samba. Considera também que a sua fixação como gênero da música popular é fruto da mistura de diversos ritmos que, vale ressaltar, marcam em sua descrição uma temporalidade frouxa entre os gêneros de música que constituiriam os paradigmas dessa nova síntese, o samba. As considerações de Vasconcelos nos servem de exemplo, portanto, para qualificarmos nosso ponto de partida. Tomo aqui o debate histórico-musicológico sobre as origens do samba como um elemento heurístico para pensarmos o papel desempenhado na “legitimação” desse gênero musical. Essas narrativas de origem podem esclarecer ou consubstanciar interpretações sobre o próprio universo do samba do Rio de Janeiro. Dessa maneira, procura-se analisar especificamente em que medida, neste tipo de discussão, o reconhecimento do samba enquanto um gênero originário da Bahia ou do Rio de Janeiro subsidia narrativas sobre a atuação de personagens ligados ao universo do samba carioca daquele período e quais as
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consequências ideológicas para a construção de imagens de Brasil, da Bahia e do Rio de Janeiro. Para lidar com esse redimensionamento, traço de forma sucinta, no item 1.1, algumas considerações referentes à relação entre o samba e a Bahia. No debate musicológico sobre as origens do samba procuro identificar, basicamente, a ordem de fatores que vejo como crucial enquanto dimensão formativa e de tradução da dinâmica sócio-simbólica em que se constitui a imagem baiana. Nosso objetivo é o de elaborar uma espécie de corte analítico entre as questões que são levantadas pela literatura em questão e as perguntas que o presente trabalho procura responder. Em seguida, no item 1.2, proponho uma leitura dos livros Na roda do samba, de Francisco Guimarães (Vagalume), e Samba, de Orestes Barbosa. Ao articular a lógica argumentativa de ambos os livros, problematizo os paradigmas heurísticos do objeto deste estudo.
1.1. UM PROBLEMA MUSICOLÓGICO?
Na segunda metade do século XIX, verifica-se uma acentuação do fluxo de imigrantes que partiram do Norte em direção ao Sudeste do Brasil. Tal fenômeno acompanhou, até certo ponto, o deslocamento político-econômico iniciado no século anterior, do qual despontou hegemonicamente a cidade do Rio de Janeiro na condição de sede administrativa do governo republicano. Como mostra a historiografia, esse movimento migratório foi intensamente marcado pela chamada “diáspora baiana” (CUNHA, 2001, p. 209), então constituída principalmente de ex-combatentes das guerras de Canudos (1896-1897) e do Paraguai (18641870) e negros fugitivos e nascidos livres (filhos de escravos forros ou beneficiados com a Lei do Ventre Livre, de 1871).
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Praticamente inexistem dados oficiais sobre a imigração baiana para o Rio de Janeiro. Os registros mais diretos, entretanto, constituem-se em depoimentos de descendentes diretos das famílias baianas e de uma geração de sambistas que algum contato tiveram com as festas das tias baianas, além das memórias escritas por cronistas, literatos e estudiosos do tema. Essas fontes, entretanto, tendem a ressaltar a presença de imigrantes baianos na eminência e na visibilidade que alcançaram no âmbito da cultura popular carioca. Apontamos na introdução que as habitações coletivas do Centro, da Cidade Nova e adjacências foram as principais instalações utilizadas pelos recém-chegados ao Rio de Janeiro. Em meio a uma sociabilidade tão diversa – que contava com imigrantes estrangeiros e nacionais; em sua maioria, indivíduos que viviam à margem da sociedade – o destaque alcançado por baianos deve-se, principalmente, a laços de solidariedade que foram produzidos, sobretudo, a partir de vínculos familiares e religiosos. Um exemplo disso estaria na “comunidade baiana” instalada entre a zona portuária da cidade e o bairro da Saúde – logradouro de referência da “diáspora baiana” até o final do século XIX, quando toda a paisagem sociológica da cidade é alterada com o início de grandes reformas urbanas da época. Grupamento que, segundo Roberto Moura, conseguiu estender aos “hábitos coletivos” daquela região, seu estilo de vida (ver MOURA, 1983, p. 20). Apontadas como pessoas respeitadas e prestigiadas na localidade, diversos indícios nos levam a crer que as tias baianas teriam assegurado parte desses vínculos familiares e religiosos. Em depoimento prestado ao jornalista Roberto Moura, Carmem Teixeira da Conceição (uma sobrevivente daquela época) diz que “tinha lá na Pedra do Sal, lá na Saúde, ali que era uma casa de baianos e africanos (...) Da casa deles se via o navio, aí já tinha o sinal que vinha chegando gente de lá (...) Era uma bandeira branca, sinal de Oxalá, avisando que vinha chegando gente. A casa era no morro, era de um africano, ela chamava tia Dada e ele tio Ossum, eles davam agasalho, davam tudo até a pessoa se aprumar” (MOURA, op. cit., p.43). O testemunho de Donga
caminha no mesmo sentido quando afirma que “os baianos que chegavam de sua terra iam para a
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casa do Miguel Pequeno ou então da Tia Bebiana, que morava próximo. Miguel Pequeno era uma espécie de cônsul dos baianos (...) A turma vinha da Bahia e ficava alojada lá até se arrumar melhor” (DONGA et al, 1970, p. 74).
Falamos também que eram tias as baianas que possuíam uma idade mais avançada e que exerciam certa liderança por deter um conhecimento privilegiado sobre o candomblé e por organizarem festas em suas residências, e que o ambiente proporcionado por essas personagens configurou um dos âmbitos onde o samba carioca teria nascido. Entretanto, foi a baiana Hilária Batista de Almeida a mais famosa entre suas conterrâneas. Tia Ciata, como assim ficou conhecida, teria nascido em Salvador no ano de 1854, e somente em 1876 passaria a residir no Rio de Janeiro. Chegando no Rio, firmou casamento com o também baiano João Batista da Silva que chegou a cursar na Bahia dois anos da Faculdade de Medicina e, dentre outras ocupações, foi aproveitado como escrivão no gabinete do chefe de polícia da capital federal. Segundo o sambista Bucy Moreira, neto de Ciata, o cargo de seu avô na polícia foi uma retribuição do então presidente da República, Wenceslau Brás, por tia Ciata ter curado uma enfermidade com o uso de reza e ervas (ver CABRAL, 1996). Num período em que diversos tipos de manifestação lúdico-popular sofriam medidas repressivas por parte do Estado, incluindo aí o candomblé e o samba, a ocupação do marido de Ciata fez com que as festas promovidas em sua casa ficassem isentas da fiscalização policial. Sem dúvida, esse episódio trouxe certa respeitabilidade e prestígio à sua residência, a ponto de torná-la uma referência do universo afro-baiano-carioca, no começo do século XX. Essa e outras condições – tais como a de organizadora de ranchos carnavalescos; a de figura respeitada num dos mais importantes candomblés do Rio; além de sutis relações que estabelecia com setores mais abastados da sociedade carioca, sobretudo, a partir da venda de doces e de fantasias para o carnaval – fizeram de Ciata uma personagem quase mítica na memória lúdico-musical do Rio de Janeiro.
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Mas a sua projeção, entretanto, deve-se especialmente à polêmica que gira em torno da autoria de “Pelo telefone” – considerada a primeira composição que, levando o nome de samba, obteve amplo sucesso no âmbito da música popular já na era do rádio. De fato, “Pelo telefone” representou um divisor de águas no processo de divulgação e de fixação do samba no meio musical carioca. Lançada e registrada por Donga na Biblioteca Nacional em 1916, e lembrada até hoje, essa música tornou incomparavelmente popular o emprego da terminologia samba na cidade, sobretudo, por ocasião do seu sucesso no carnaval de 1917 (SILVA, 1975). Nesse sentido, Carlos Sandroni nos lembra que, até o último quartel do século XIX, a palavra samba era praticamente desconhecida no Rio de Janeiro. O autor argumenta que nessa época seu uso era limitado à zona rural brasileira, sendo o Norte do país a principal referência geográfica do gênero e, em especial, a Bahia, como mostram os testemunhos escritos para o público carioca, em meados da década de 1870. Seria um exemplo disso uma crônica de França Júnior, publicada num jornal do Rio de Janeiro, em 1870, que se refere ao samba baiano como um gênero equivalente ao cateretê carioca. Ou ainda, a descrição realizada por Silvio Romero, no ano de 1897, que diz: “Chama-se ‘xiba’ na província do Rio de Janeiro, ‘samba’ nas do Norte, ‘cateretê’ na de Minas, ‘fandango’ nas do Sul, uma função popular de pardos e mestiços em geral”. E já na descrição de Guilherme Melo, em 1906, a Bahia aparece como a
principal referência do gênero: “na Bahia chama-se ‘samba’ o que no Rio denomina-se ‘chiba’ (...)” (SANDRONI, 2001, p. 86-87).
Procurando analisar a relação entre o sucesso de “Pelo telefone” e a popularização do termo samba na imprensa carioca, Flávio Silva, em levantamento minucioso, mostra que a palavra “samba” aparece apenas 3 vezes no carnaval de 1916, ao passo que nos anos seguintes verificou-se um crescimento vertiginoso do emprego desse termo, com 22 registros, em 1917, e 37 aparições do termo samba, em 1918 (SILVA, 1978, p. 65).
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Contudo, embora a música tenha sido registrada por Donga, cronistas e pesquisadores supõem que “Pelo telefone” seja uma produção coletiva originada na casa de tia Ciata. José Ramos Tinhorão, por exemplo, afirma que a música surgiu “durante as reuniões” promovidas pela baiana (TINHORÃO, 1972, p. 116). Já no livro Na roda do samba, o cronista carnavalesco Francisco Guimarães (Vagalume) acrescenta a participação de seu colega de profissão na composição da letra da música, afirmando que “a letra é um arranjo de Mauro de Almeida (o Perú dos pés frios) e a música também um arranjo do Donga de acordo com a letra”, sendo o resto “pescado na casa da tia Asseata na rua Visconde de Itaúna” (GUIMARÃES, 1933, p. 37). É entorno de questões como essa que diversos pesquisadores elucidam o problema da participação de baianos na formação do samba carioca. No que diz respeito à abordagem musicológica sobre o tema, pode-se dizer que se configuram duas linhas mais centrais de investigação. Uma primeira seria a do debate sobre as fontes rítmicas do gênero; e a segunda, a discussão sobre as matrizes regionais do samba, em que são referências obrigatórias a Bahia e o Rio de Janeiro. Embora esses planos de análise se encontrem intimamente imbricados, podemos atribuir pesos diferentes a cada um deles. Tal procedimento se justifica pelo fato de que o debate sobre as fontes rítmicas e regionais do samba estabelece uma discussão, a um só tempo, técnica e simbólica sobre o problema, sobre o qual apóia-se, inclusive, a construção de narrativas e do mito de origem do samba. Em meio à atmosfera de polêmicas e inovações que paira sob esta composição, nos interessa o fato de que ela suscitou um debate em que convergiram duas vertentes conceituais concomitantes – a folclórica e a popular – então vistas como antípodas na distinção que usualmente se fazia sobre a ecologia musical carioca. Ora, é a partir de “Pelo telefone” que a literatura sobre samba passa a considerar que, nessa época, o gênero representou uma espécie de síntese entre acepções folclóricas de folguedo popular (o batuque, por exemplo) e estilos urbanos de diversão (por assimilar características do maxixe e do tango). Esse ponto é
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especialmente sugestivo para entendermos o lugar que foi ocupado por baianos ao longo das mutações desse gênero musical, inclusive, pelo fato de ter sido uma das dimensões que propiciou a criação de matrizes distintas de enfoque sobre os processos culturais nessa época, a exemplo da abordagem dos cronistas carnavalescos, como veremos à frente. Questão que, em parte, se aproxima da distinção proposta por Renata Gonçalves quanto à maneira como cronistas e folcloristas descreveram os ranchos carnavalescos. A autora mostra, por exemplo, que as visões e formulações da idéia de cultura popular, mobilizada por ambos, esteve pautada, no caso dos cronistas, por uma vivência cotidiana das interações e mediações que diversos atores protagonizaram em torno dessa manifestação carnavalesca, ao passo que os folcloristas, por estarem voltados para a problemática das “raízes nacionais”, nas palavras de Gonçalves, acabaram por destacar a descrição dos ranchos enquanto “folguedos populares” (GONÇALVES, 2003).
Contudo, dedicando um capítulo ao empreendimento de Donga, Sadroni concorda que “Pelo telefone” cristalizou uma nova fase para o universo do samba, embora afirme esta composição apresentava uma estética mista, com elementos considerados tanto como do folclórico quanto do popular2. Nesse sentido, o autor aponta para um distanciamento do repertório folclórico e anônimo (do qual o nicho das tias baianas seria seu principal expoente), em direção à sua popularização, marcada pela produção individual das composições e pela presença do rádio, já contando aí com uma incipiente indústria cultural voltada para o gênero. Falando dos mecanismos que possibilitaram esse deslocamento, o autor de Feitiço decente nos diz que:
Um carnaval dificilmente seria suficiente para ‘introduzir na sociedade’ o que o samba efetivamente era até então – isto é, uma modalidade de divertimento, que incluía coreografia, códigos de conduta, improvisação poética, etc. Era preciso, destes 2
Existem pelo menos 3 versões desta canção. A estrófe mais polêmica ironiza a ação do chefe da polícia no combate à prática de jogos populares e ilícitos na então capital republicana: “o chefe da polícia/ pelo telefone/ manda avisar/ que na carioca/ tem uma roleta/ para se jogar” (ver SANDRONI, op. cit. p. 120-127)
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comportamentos e relações entre pessoas, destacar resíduos, objetos capazes de transitar entre biombos da sociedade (criando na sua passagem sem dúvida novas relações). E moldar estes objetos em formas capazes de adequarem-se aos meios de divulgação de que se dispunha na época: a partitura para piano a ser comercializada; o arranjo para banda; a letra impressa, cuja rigidez transforma todas as improvisações posteriores em meras paródias; a gravação em disco. Mas o sucesso dessa empreitada dependia ainda de outros fatores: o registro na Biblioteca Nacional visando a preservação dos direitos autorais, e a obtenção de um aliado branco, jornalista, figura de destaque no Clube dos Democráticos (uma das principais instituições do carnaval oficial até então), Mauro de Almeida (Ibdem, p. 119-120).
O pioneirismo de Donga consistiria, portanto, na conjugação de meios de produção e de divulgação racionalizados, digamos assim, somados às mediações empreendidas junto ao cronista carnavalesco Mauro de Almeida, o Perú dos pés frios. De fato, a partir daí formalizou-se a distinção entre dois estilos de samba. No fim da década de 1920 esse processo se cristalizaria com a aparição de novos personagens que seriam identificados a partir de dois grupos distintos de compositores. Tomando de empréstimo os termos empregados por Sandroni, aí se definiria um estilo de samba tido como o mais antigo, com forte apelo folclórico e associado à turma da tia Ciata (incluindo João da Baiana, Caninha, Pixinguinha e o próprio Donga), e outro samba tido como o mais moderno, popular, e que tinha no bairro do Estácio de Sá sua principal referência, por onde circulavam Ismael Silva, Brancura, Nilton Bastos, Bide, entre outros. Essa questão foi amplamente discutida na literatura sobre samba e, por isso, acredito ser dispensável repetir aqui a discussão técnica sobre as transformações estéticas ou mesmo os pormenores que nutrem a polêmica criação de “Pelo telefone”, assim como as diferentes considerações sobre o que, de fato, seria o samba, nessa época; tópicos que, em sua grande maioria, são pouco conclusivos. No entanto, gostaria de ressaltar aqui a dimensão valorativa que esteve incutida neste processo. Segundo o próprio Sandroni a convergência do folclórico
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e do popular numa mesma palavra expressaria uma convergência ideológica que vem a se consumar apenas na década de 1930, quando intelectuais brasileiros atribuem uma carga positiva ao folclore, beneficiando assim a popularização do samba (Ibdem, p. 97). Questão tornada central para a definição, por exemplo, de signos nacional-brasileiros, em que o samba configura uma peça-chave. Linha de argumentação semelhante foi desenvolvida por Hermano Vianna (2002) ao perguntar-se sobre as condições em que o samba deixa de ser um ritmo mal-visto e nacionaliza-se. Argumenta o autor que o processo de nacionalização do samba contou com a participação de agentes e grupos sociais os mais dispares possíveis sem que, no entanto, um ou outro exercesse efetivamente mais poder frente os demais. Voltado para o problema das “mediações transculturais”, Vianna mostra que a fixação do samba demandou uma larga teia de mediações, cujo fluxo e trânsito de diferentes atores veio atenuar fronteiras sociológicas e estabelecer trocas cada vez mais intensas entre os vários segmentos da sociedade carioca. Acredito que uma outra ordem de questões deve ser retomada, mesmo por que, em certo sentido, o ponto que aqui se pretende avançar antecede o próprio debate sobre a nacionalização do samba. Vejamos que afora as polêmicas, e ainda que de forma indireta, há ao menos um ponto de concordância entre os informantes daquela época e as conclusões sugeridas por estudiosos: o de que no processo de estilização do samba criou-se um mito de origem diretamente relacionado àquilo que ficou conhecido como sendo a matriz carioca deste gênero, ao passo que isso não se verificaria, ou seria pouco evidente, em relação à suposta transferência de uma matriz baiana do samba para o Rio de Janeiro. Ou seja, embora a história do samba mostre que baianos participaram ativamente deste processo, pode-se dizer que é impossível afirmar que, de fato, tenham sido os baianos os personagens que afixaram a matriz supostamente “mais tradicional” do samba carioca. E isso não só por que outros ritmos guardaram semelhanças estéticas com o samba que era produzido no início do século XX,
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tendo em vista, por exemplo, que as mais diversas matrizes musicais participaram deste processo, tão heterogêneas quanto os agentes que integraram do caldo cultural da “pequena África”, lugar que embora reconhecido como principal reduto dos sambistas ligados a baianos no Rio de Janeiro contou com a presença, por exemplo, de ciganos inclusive no samba lá existente (ver Vasconcelos, 1993). Ao que tudo indica, por fim, o próprio estilo antigo e folclórico de samba demonstra ser uma mescla baiano-carioca, a exemplo do que deixam transparecer alguns dos compositores identificados com o grupo das tias baianas. O sambista João da Baiana, por exemplo, natural do Rio de Janeiro, dizia-se vencedor em relação aos seus irmãos baianos: “Minha mãe tinha orgulho de mim porque eu era carioca e venci os meus irmãos que eram baianos. Eu discutia com as minhas irmãs e dizia: ‘Sou carioca e vou te escrever nas pontas dos pé’. Fazia umas ‘letras’, uns passos, e elas ficavam malucas” (DONGA, et al, 1970, p. 56).
Suponho, portanto, que na estandardização dessas matrizes operou uma sóciodinâmica extremamente sutil do ponto de vista do jogo de prestígio e das relações de poder específicas à composição da esfera da música popular carioca, no começo do século XX, na qual configurou-se um processo simbólico que definiria, já nesse período, uma certa imagem de Bahia no Rio de Janeiro. Assim, com o intuito de precisar a conotação que essa suposta matriz baiana teve na configuração do universo do samba carioca, recorro aos contrastes das narrativas existentes nos livros Na roda do samba, de Francisco Guimarães, e Samba, de Orestes Barbosa, ambos publicados no ano de 1933. No item a seguir iremos estruturar uma leitura das narrativas contidas nestas obras com o franco propósito de tentar amarrar os paradigmas heurísticos do nosso objeto.
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1.2. INTERFACE DE QUESTÕES A PARTIR DOS LIVROS “NA RODA DO SAMBA” E “SAMBA”.
No item 1.1 procurei mostrar que o debate acerca das origens do samba teceu, ao mesmo tempo em que foi nutrido, por uma série de deslocamentos simbólicos. No caso, destaquei como preeminente para os nossos fins a questão simbólica da indefinição do samba enquanto gênero musical e sua relação com contingências sociais e mediações específicas. Procurando compreender parte desses deslocamentos simbólicos, neste item sistematizo uma leitura dos livros mencionados. Francisco Guimarães nasceu no Rio de Janeiro por volta de 1870, vindo a falecer no ano de 19473. Seu apelido, Vagalume, origina-se da coluna do Jornal do Brasil dedicada ao carnaval, onde escreveu durante as décadas de 1910 e 1930. Antes de consagrar-se como cronista carnavalesco, Vagalume atuou como repórter policial e, quando jovem, trabalhou na Estação Ferroviária Central do Brasil. Mulato, supõe-se que sua inserção no meio musical e em circuitos sociais caracterizados por elementos negro-africanos ocorreu pelas mãos de músicos como Donga, Eduardo das Neves e Sinhô, de carnavalescos como Hilário Jovino Ferreira (baiano e introdutor dos ranchos no carnaval carioca), e de líderes religiosos como Henrique Assumano Mina do Brasil (um dos pais-de-santo de maior destaque no Rio de Janeiro do início do século XX), como se deixa entrever na dedicatória de seu livro. Nascido também no Rio de Janeiro, Orestes Barbosa (1893-1966) se destacou tanto na “vida literária”, de um modo geral, quanto na música popular, que só aderiu no final da década de 1920. Nesse âmbito, atuou de forma mais direta enquanto músico, sendo letrista e parceiro de compositores como Noel Rosa (1910-1937) e Sílvio Caldas (1908-1998), e autor de peças consideradas clássicas no repertório da música brasileira, a exemplo de “Chão de Estrelas” (1937). Sobre a sua atuação como jornalista, pode-se dizer que alcançou mais visibilidade que do Vagalume por apresentar um leque mais abrangente de temas e uma 3
Mônica Velloso afirma que Francisco Guimarães nasceu no ano de 1877 (VELLOSO, 2004, p. 20).
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produção mais diversificada (artigos, livros e poemas), em jornais como A Folha e O Mundo, durante a década de 1920, e chega a candidatar-se à vaga deixada por João do Rio na Academia Brasileira de Letras, em 1922, sem obter sucesso. Tomando como base as divergências dos autores sobre o tema da autenticidade do samba – ou seja, as particularidades e avaliações que realizam em torno de diferentes estilos de samba e dos elementos a eles correspondentes – discuto como em meio ao reconhecimento dessas diferenças estéticas, seus olhares viabilizam um caminho para a análise, tendo em vista que a Bahia ocupa um papel relevante na decodificação dos signos de autenticidade deste gênero musical, em ambos os livros. Os livros apontam que em alguns âmbitos as transformações do samba, no início do século XX, obedeceram a uma mesma tendência estética. Geograficamente o samba teria se deslocado das residências das tias baianas para os botequins – “antigamente, lançado o samba, a roda se incumbia da sua propagação” (GUIMARÃES, 1933, p. 123); sua execução não seria mais
improvisada, mas feita a partir de versos fixos – “os ouvintes de rádio querem apreciar a melodia e entender as estrófes. Os versos hoje não são vagas rimas” (BARBOSA, 1933, p. 91); e,
caricaturalmente, a figura do sambista se identificaria ao malandro, típico personagem do meio urbano carioca deste período – “todos os regionalistas do Brasil não vão negar ao malandro do morro essa glória carioca do samba” (BARBOSA, 1933, p. 158).
Diante de tal cenário, Vagalume assume uma posição eminentemente conservadora e militante. O título de seu livro é emblemático nesse sentido, pois defende que o legítimo samba seria aquele realizado – já no passado – nas “rodas de samba” promovidas pelas tias baianas. Numa postura menos radical, Orestes Barbosa prefere o estilo mais moderno, o qual considera produto do meio carioca por excelência. Os livros, enfim, apresentam contrastes significativos em relação à atuação do grupo baiano, especialmente na confluência e justaposições de narrativas tanto sobre as idéias de “tradição” e de “modernidade” do samba
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quanto sobre as referências do “mito” de origem deste gênero. No caso de Vagalume, por exemplo, as feições mais tradicionais, ancestrais e “puras” do samba estariam associadas às rodas de samba promovidas por baianos; ao passo que Orestes Barbosa considera legítimo o samba vinculado aos sambistas do bairro do Estácio de Sá e aquele veiculado no rádio e em discos; por conseguinte, em Na roda... defende-se a paternidade baiana do samba e, em Samba, essa reivindicação pesa para o lado do Rio de Janeiro. Por esse motivo, diria que os relatos e crônicas reunidos em Na roda... e Samba são cruciais para entendermos uma das lógicas com que operou o lugar simbólico protagonizado pela Bahia no Rio de Janeiro. A avaliação estética do samba e as preferências de gosto expressamente enunciadas pelos autores são um forte indício dessa objetivação. Veremos adiante que a pauta de reivindicações e as impressões levantadas por Vagalume e Barbosa traduzem a demarcação de uma fronteira simbólica, evocando-se determinados signos de distinção – incutidos na lógica de reconhecimento entre estilos de samba e agentes sociais – que fizeram da Bahia um motor e ícone imprescindível no processo simbólico aí instaurado. Apoiado em aspectos como esse, intuo ser possível qualificar, do ponto de vista desses cronistas, um panorama das disposições simbólicas imbricadas à imagem de Bahia que propomos investigar. Nesse sentido, centralizo a atenção no tema da autenticidade em Na roda do samba e Samba.
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Em Feitiço decente (2001), Carlos Sandroni argumenta que o termo samba é usado de forma indiscriminada nos livros Na roda do samba e Samba4. Segundo o autor, essa característica diagnostica que no início do século XX ainda não havia uma plena ruptura entre os estilos de samba existentes. Devido, inclusive, ao estado de indefinição desse gênero em 4
A análise desses livros compreende, sobretudo, as páginas 134 a 137 do capítulo intitulado “Desde que o samba é samba?”, In: SANDRONI, Carlos (2001) Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917 – 1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ.
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relação a outros. Contudo, de acordo com o que assinalamos anteriormente, ele afirma que esses livros viriam a manifestar, respectivamente: “(...) duas maneiras de encarar o assunto (um valorizando a tradição, o outro a modernidade), dois grupos de compositores a que se dá pesos diferentes (a turma da tia Ciata e a do Estácio), duas reivindicações de origem (a Bahia e o Rio) e dois personagens-símbolo (o bamba e o malandro)” (Ibid, p. 137).
A questão levantada por Sandroni o distancia dos empreendimentos comumente realizados por musicólogos, em geral interessados apenas na contraposição do gênero em relação a outras formas musicais – do samba em relação ao lundu, ao maxixe, etc. Para ele, Na roda do samba e Samba inauguram um paradigma em torno da distinção dos gêneros da música popular carioca, pois, ainda de acordo com o autor, esse livros demonstrariam que as avaliações estéticas e as transformações do samba passam, impreterivelmente, pelo sentido que é depositado ao plano sociológico em que são protagonizadas. Assim, ao reconhecer que as distinções entre um “novo” e um “antigo” estilo de samba são múltiplas e variadas, Sandroni diz que: De fato, as diferentes categorias nas quais, num dado momento, a sociedade divide seu universo musical, se influenciam mutuamente, num processo contínuo de repercussões recíprocas e seleção de elementos. E elas se transformam não apenas devido a essa influência mútua, mas também devido à sua dinâmica própria, baseada (...) na criatividade dos músicos, e além disso em fatores musicais e extramusicais de toda ordem. (Ibid, p. 141-142).
Embora tenha contribuído para o desenvolvimento de uma análise sobre música e sociedade – principalmente por privilegiar a análise das transformações musicológicas concatenada às diferentes instâncias de sociabilidade que a engendraram – gostaria de acrescentar à discussão feita por Sandroni uma questão específica e que considero central para a costura do nosso objeto. Ora, quais as disposições simbólicas que atuaram e quais as que se
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desenvolveram em meio à polarização de diferentes estilos de samba? Levando-se em conta a identificação de diferentes tipos sociais com este ou aquele estilo de samba, que negociação esteve incutida no processo de formação do samba carioca, tal como sugerem os livros Na roda do samba e Samba? Nas contribuições de Vagalume e Orestes Barbosa, suponho que há, para além de um simples diagnóstico, uma espécie de materialização dos diferentes níveis de disputa simbólica que são apresentados tanto no debate em torno das transformações do samba quanto no reconhecimento e na qualificação de protagonistas e dos tipos sociais que participaram deste processo. Nos seus respectivos livros, encontra-se uma profusão de elementos que expressam uma relação direta entre os motivos das obras e as teias de significados que nortearam a relação de cada autor com o universo do samba. Esse elo, fortemente marcado pelas diferenças de geração e de trajetória, me parece ser imprescindível para entender a forma como cada autor montou a lógica de seus argumentos. Em ambas as obras há uma espécie de “messianismo”, uma vontade de “revelar o verdadeiro samba” que objetiva, em última instância, a relação afetiva que os autores construíram com este universo. Nesse sentido, acredito que essa dimensão valorativa pode aqui ser recuperada enquanto um âmbito no qual ocorre a tradução de dispositivos simbólicos, tão atuantes quanto as classificações que se propõem a fazer no interior dos livros. Logo na introdução de Na roda do samba, Vagalume diz que seu intuito foi: “(...) reivindicar os direitos do samba e prestar uma respeitosa homenagem aos seus criadores, àqueles que tudo fizeram pela sua propagação. Não tive outro objetivo, senão separa o trigo do joio... Hoje que o samba foi adotado na roda “chic”, que é batido nas vitrolas e figura nos programas dos rádios, é justo que a sua origem e o seu desenvolvimento sejam também divulgados. Há nestas páginas, duríssimas verdades que vão aborrecer meia dúzia de consagrados autores de produções alheias, mas, tenham eles paciência, porque, quem o do alheio veste, na praça o despe (...) Reuni nestas páginas, o resultado das minhas investigações sobre o samba, que, já está ficando por cima da carne seca.... como se diz na gíria da gente dos morros, nas “escolas” do Estácio e no Catete, para quem este volume deve lembrar gratas recordações de um tempo feliz; reminiscências de um
36 passado alegre, risonho, cheio de esperanças no futuro e que se acha desfeito nos dias que correm. Nós, os daquela época, somos os desiludidos de hoje(...). Os cultores do samba, os
sambistas verdadeiros, aqueles que sempre lutaram e continuarão a lutar, para que o samba não seja desvirtuado, notarão a sinceridade que presidiu a confecção deste trabalho. Ultimamente, apareceram muitos escritos sobre o samba, mas, os seus autores demonstraram sempre o maior desconhecimento do assunto. Aqui entre nós – que ninguém nos ouça – a minha única preocupação, foi dar nome aos bois e provocar o estouro da boiada... Muita gente ficará de calva à mostra, porque procurei desmascarar os que se locupletam com o resultado dos trabalhos dos outros, fazendo da indústria do samba, um condenável monopólio.” (GUIMARÃES, 1933, p.22-24)
Penso que dois pontos desse trecho podem ser destacados. O primeiro, certamente, é a tônica militante do discurso. De um lado, o autor busca homenagear e reivindicar os direitos dos “verdadeiros criadores do samba”. De outro, denuncia e condena os “consagrados autores de produções alheias”. A queixa de Vagalume é contra a influência que teve sobre o samba tanto o rádio quanto os mercados de edição e fonográfico. A esse respeito sua visão é pessimista, na medida em que esses elementos descaracterizariam os aspectos mais tradicionais do samba. Na esteira da construção de uma certa “temporalidade” sobre o samba, pode-se dizer, enfim, que a narrativa de Vagalume reproduz algo semelhante ao que José Reginaldo Gonçalves denomina de retórica da perda, na medida em que reconhece uma formatação moderna deste gênero musical e lança mão de uma “coleção” de elementos que devem ser salvos, preservados, no caminhar de um tempo irreversível e inerente, no caso, às mudanças do samba. Ou seja, de acordo com Gonçalves (1996), a construção dessa narrativa sobre a degeneração, recorrente nos discursos sobre patrimônio, fundamenta-se principalmente na percepção de que o tempo presente é sempre o tempo de uma perda progressiva, que dilacera uma memória que se quer na constituição de certa identidade social. Daí o saudosismo de Vagalume ao que “foram” as rodas de samba das tias baianas. O autor, enfim, exterioriza tensões e conflitos deste universo, mas reconhecendo-os como elementos de deterioração da “natureza interna” do samba.
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Um segundo aspecto caracteriza o corte temporal estabelecido entre o âmbito da homenagem e o da condenação, emblematicamente sugerido na frase: “nós, os daquela época, somos os desiludidos de hoje”. Nessa passagem fica explicita uma tensão entre o samba de “hoje”, “dotado na roda chic”, “batido nas vitrolas e cantado em programas de rádio”, e o samba que,
na memória do autor, “traz gratas recordações de um tempo feliz”, de “um passado alegre e risonho”.
Ora, se a “modernidade” configura um problema para Vagalume, ela, inversamente, é vista com bons olhos por Orestes Barbosa. Nas palavras do prefaciador, por exemplo, essa perspectiva é insinuada da seguinte maneira: “O Rio de Janeiro, berço do samba, reclamava de há muito um estudo sobre a melodia carioca. Porque nada melhor para definir um povo do que a sua música. É ela que nos mostra através dos seus ritmos e dos seus motivos, a verdadeira alma da gente que a criou. Agora, porém, com o aparecimento deste livro está satisfeita aquela justa exigência. E, é preciso acentuar, satisfeita por um dos poucos, senão o único conhecedor do samba capaz de realizar uma obra definitiva. Nascido na Aldeia Campista (...) fronteira de Vila Isabel, Orestes aprendia instintivamente, na sua adolescência, a ser carioca. Morou nos subúrbios. Morou em Paquetá. E morou na Gávea (...) Depois foi à Europa. Esteve na França. Andou pela Alemanha. Visitou a Holanda. Remexeu a Bélgica toda. Um dia, voltou. Foi residir no mesmo bairro onde nasceu. E aconteceu o que não podia deixar de ter acontecido. Poeta e carioca, Orestes virou sambista. Sambista integral. Sambista do bom. Criador do samba em sua última fase – o samba urbano. Porque foi realmente Orestes Barbosa quem coloriu a emoção do morro, introduzindo no samba a nota civilizada do “abat-jour” de seda, do arranhacéu imponente, do perfume esquisito, do “manteaux” acariciante, do aperitivo capitoso, do telefone serviçal (...). Cidade líder do Brasil, se a nossa metrópole não possui autonomia política, tem, ao menos o direito de dizer, pela pena de um de seus grandes cronistas, que é a legitima dona do pandeiro e do tamborim.” (Martins Castello, prefacio a BARBOSA, 1933, p. 10-12)
Nessa passagem é interessante notar que a experiência cosmopolita de Barbosa é ressaltada na condição de elemento que consolida o samba (o “samba urbano”) em gênero e
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símbolo da cidade do Rio de Janeiro, sendo a pessoa de Barbosa a própria personificação de uma síntese entre o morro e a civilidade, digamos, entre a “tradição” e a “modernidade” – “Porque foi realmente Orestes Barbosa quem coloriu a emoção do morro, introduzindo no samba a nota civilizada do abat-jour de seda, do arranha-céu imponente (...)”.
De acordo com a apresentação do livro, percebe-se também a inexistência de qualquer preocupação em referenciar a ancestralidade do samba, muito menos em estabelecer uma comparação entre seus diferentes estilos, como faz Vagalume. Prevalece, entretanto, o enaltecimento de um tipo de samba mais moderno e com fortes traços “burgueses”. Até certo ponto, a contraposição entre a “tradição” e a “modernidade” é verificada na retórica utilizada por cada um dos autores. O discurso tradicionalista defendido em Na roda do samba, por exemplo, ajusta-se perfeitamente à idéia de intimidade que seria, na concepção de Vagalume, uma espécie de credencial do mundo do samba. O sambista de Vagalume é, portanto, aquele que tem o conhecimento, que tem intimidade com a “roda de samba”. Assim, o autor classifica o universo do samba a partir dos elementos e personagens que integram, ou não, a “roda” – dimensão lúdico-simbólica de reconhecimento do verdadeiro sambista. É de acordo com esse parâmetro que o autor distingue, por exemplo, a cena do samba no início do século XX: “Há muita gente que conhece o samba porque foi criada dentro da roda: Caninha, Donga, Juca da Kananga, Chico da Baiana, Aymoré, Dudu, Marinho que toca, Assumano, Zuca, Conceição, etc...” (GUIMARÃES, op.cit., p. 58).
Nesse repertório, o autor destaca figuras como Donga – “filho de peixe... Nasceu na roda” (Ibid., p. 124), Caninha – “é filho do samba com a malandragem. Não nega que foi nascido e crescido na roda” (Ibid., p. 125), João da Baiana – “este, pode formar ao lado do Donga e do Caninha, porque foi criado na mesma roda e conhece, como eles, todos os segredos do samba e do ritmo do partido alto” (Ibid., p. 128), Heitor dos Prazeres – “conhece o samba e é da roda” (p. 130), e Sinhô, a quem rende as mais calorosas homenagens, declara “o rei do samba” (Ibid., p. 31).
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Por outro lado, em relação aos que considera estrangeiros à “roda”, Vagalume procede da seguinte maneira: “Lamartine Babo é incontestavelmente um moço de valor e um bom elemento que ingressou no meio dos sambistas, sem que, entretanto, pertença à roda do samba” (Ibid., p. 126) ; “Ary Barroso é um nome de cartaz, mas na roda do samba é um profano” (Ibid., p. 127) ; “Não se pode dizer que o Sr. Salvador Corrêa seja realmente da roda do samba ou mesmo um sambista” (Ibid., p. 135).
Porém, suas críticas mais ácidas são reservadas ao cantor Francisco Alves que, no início da década de 1930, tornara-se o mais famoso artista de rádio e do disco, no Brasil. Francisco Alves foi também o principal divulgador dos sambistas do Estácio de Sá. Sua obra, entretanto, foi alvo de inúmeras polêmicas por ter feito uso confesso da prática de compra de sambas. Para Vagalume, ele: “Não é da roda, nem conhece o ritmo do samba. Conhece, entretanto, os fazedores de samba, os muzicistas, enfim – os “enforcados” – com os quais negocia, comprandolhes os trabalhos e ocultando-lhes os nomes (...). E quem tiver um trabalho bom, seja de que gênero for e quiser gravar na Cada Edison, tem que vendê-lo ao Chico Viola, porque do contrário nada conseguirá!” (Ibid., p. 131)
Contudo, a condenação de Vagalume à “indústria do samba” e ao “plagiário” atinge também aqueles personagens identificados com a “roda”. Donga, por exemplo, é acusado de ser o precursor da indústria do samba pelo fato de apropriar-se indevidamente da música “Pelo telefone” (Ibid., p. 37). Até mesmo a Sinhô Vagalume tece críticas, pois este “usava de um truc vantajoso: tinha uma amante pianista de uma casa de músicas da rua do ouvidor, e, quem lá ia escolher músicas, ela, primeiramente, executava o que era de seu mulato...” (Ibid., p. 39).
Como se percebe, a comercialização é propriamente um elemento negativo aos olhos do autor de Na roda do samba. O comércio de sambas e a heterogeneidade social, então vinculados ao incremento do mercado fonográfico e pelo rádio, são aos olhos de Vagalume os grandes inimigos da “roda”:
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“Onde morre o samba? No esquecimento, no abandono a que é condenado pelos sambistas que se prezam, quando ele passa da boca da gente da roda para o disco da vitrola. Quando ele passa a ser artigo industrial – para satisfazer a ganância dos editores dos autores de produção dos outros...” (Ibid., p. 36)
Se a idéia de intimidade alimenta a perspectiva tradicionalista e romântica de Vagalume, a defesa da “modernidade” em Orestes Barbosa sugere que este autor enaltece a capacidade plástica, ou melhor, maleável do samba. Suas possibilidade de integração, enfim, com mundos sociais distintos, de “negros” e “brancos”, “pobre” e “ricos”, etc. A retórica de Samba, nesse sentido, viria a contemplar a perspectivação de certo trânsito. Isso se sugere, por exemplo, na apresentação feita por Armando e Rosa Maria Gens a outro livro de Orestes Barbosa, Bambambã (1993). Segundo seus comentadores, Bambambã representa uma obra “esquinada”, tendo em vista que a linguagem empregada por Orestes (eminentemente taquigráfica, pois operaria sob cortes e superposições entre frases curtas) o permite traduzir as cenas do cotidiano com a precisão do instantâneo. De certa forma, essa perspectiva está posta – “estas páginas foram escritas na rua. (...) No registro imprevisto das emoções” (BARBOSA, 1933, p. 248). Essa disposição “esquinada” me parece ser fundamental para entendermos sua discussão
(ou melhor, seu desprezo) em relação ao tema das raízes, da legitimação da matriz baiana do samba, em que pese a atenção dada à aspecto maleável que esse gênero assume em seu livro. Ora, esse aspecto é assinalado desde o prefácio do livro, quando o cosmopolitismo e a experiência de Barbosa em outros países configuram um signo de distinção e de mediação que favoreceria a divulgação e a entrada do samba em circuitos mais heterogêneos da sociedade carioca, a ponto de estandardizá-lo enquanto ícone genuíno do Rio de Janeiro. Dessa forma, de um livro a outro, percebe-se que a idéia de homogeneidade cede lugar a certa concepção de heterogeneidade. Em Barbosa essa última perspectiva acontece via o acréscimo de uma dose de requinte ao samba, sendo imprescindível a atuação de mediadores como Francisco Alves e Mário Reis. Para o autor, esses personagens contribuíram na
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amplificação do espaço de divulgação deste gênero entre as camadas mais aburguesas do Rio de Janeiro. Assim, ao contrário de Vagalume, Francisco Alves é homenageado por Barbosa – “não há exagero em dizer que é o maior cantor do Brasil” (BARBOSA, op.cit., p. 91) – e o coloca no rol
de sambistas como Noel Rosa, Ismael Silva, Brancura, Nilton Bastos e outros. É o trânsito de artistas como Francisco Alves que fascina o autor de Samba. Juntamente com seu principal parceiro – Mário Reis – Francisco Alves consolidaria um tipo de prestígio visto, por Barbosa, como necessário para o samba. Ao falar de Mário, Orestes diz que: “A sua elegância a sua distinção pessoal obrigou Botafogo5 a confessar que a sua emoção é igual à do morro. A chamada elite social, mestiça de todas as raças, vivia no sacrifício de amar o samba sem poder gozá-lo. A alta sociedade era uma grande dama apaixonada pelo seu criado esbelto, o qual para poder ser apresentado nos grandes salões, precisava somente de roupa nova e loção no cabelo.” (Ibid., p. 97)
No livro de Barbosa, a entrada do samba em salões aristocráticos é visto enquanto uma justa conquista e não há qualquer menção à “roda” de que fala Vagalume. Os personagens supostamente identificados como pertencentes à “roda” – como Pixinguinha, Donga e João da Baiana – são citamos apenas como aqueles que “não deixam morrer a lembrança do grupo que foi, há vinte anos, o precursor da vitória da música popular” (Ibid., p. 72) . No máximo, Barbosa intui
que a “roda” exista em ambientes recônditos, quase míticos – como o Buraco Quente, no morro da Mangueira, e na Pedra do Sal, no morro da Conceição – e ainda desprovidos dos requintes que dignificariam o samba. Assim, continua Barbosa:
“Mário Reis foi buscar o samba nos desvãos soturnos do Buraco Quente e da Pedra do Sal para os ambientes da aristocracia, onde se cruzam, num trânsito mágico, a imponência heráldica das ricaças e o deslumbramento primaveril das garotas, na confusão de faianças e almofadas de penas de avestruz... Ele pegou a cabrocha de galho de arruda atrás da orelha, e o mulato bamba, elevando-os, perfumando-os com 5
Vale lembrar aqui que Botafogo, no início do século XX, era considerado um bairro da “alta sociedade”.
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as essências da sua intimidade; pedindo licença e entrando com eles nos grandes palcos do mundanismo, dignificando-os, exaltando-os, consagrando-os, salvando-os de um desprezo injusto, e imortalizando-os no sucesso das edições, hoje obrigatórias, nas quais o samba tem as palmas justas que a sua emoção reclama de todos os corações.” (Ibid., p. 98-99)
Percebe-se também que o rádio e o disco ganham uma conotação positiva em Samba. E isso não somente devido à visão otimista do autor para com o poder publicitário desses suportes, mas também por motivos técnico-musicais mesmo, como a possibilidade do artista interpretar suas canções em condições satisfatórias para um grande público. Nesse sentido afirma Barbosa que “aquele sistema de canto em que a garganta era um instrumento em competição com outros (...) dava em resultado os cantores engolirem as letras dos poemas” (Ibid., p. 88). “Os ouvintes de rádio querem apreciar a melodia e entender as estrófes. Os versos hoje não são vagas rimas. São palavras que contam sempre um romance” (Ibid., p. 91).
O contraste com o olhar de Vagalume continua também quando aborda o problema da comercialização de sambas e do plagiário, que é colocado em segundo plano por Orestes Barbosa por considerar que o registro fonográfico configuraria uma ferramenta eficaz no combate ao desaparecimento das composições que existiriam apenas na memória de poucos: “Lamartine Babo é uma figura contestada e discutida. Quando lhe faltasse a originalidade que lhe negam, o seu valor pelos comentários que sugere, já seria um valor. O sucesso de 1932 foi acusado de plágio. Dizem que ele adaptou uma produção dos irmãos Valença, fazendo o Teu cabelo não nega. Mas o fato é que a música pernambucana existia no esquecimento. Ele deu-lhe novas tintas. A marcha pegou. Tudo que é de sua autoria sofre contestação. E a acreditar na verdade do que assolam os seus inimigos teríamos que concluir com esta coisa curiosa: para que as músicas tenham sucesso é necessário que ele apareça como autor.” (Ibid., p. 212-213)
Sabe-se que a compra de sambas foi uma prática geral e aceita com certa naturalidade por sambistas durante as primeiras décadas do século XX. Entretanto, a comercialização e o sucesso de determinadas composições motivaram inúmeras polêmicas que colocariam em
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cheque a veracidade das parcerias efetivadas entre os supostos co-autores. Fenômeno esse que chegou a envolver, como vimos, compositores do calibre de Donga, Sinhô, Lamartine Babo e Francisco Alves. Em defesa deste último, um de seus biógrafos argumenta que a compra de peças musicais representou uma garantia imediata do dinheiro que seria obtido com a venda dos discos e edições, no caso dos compositores populares (CARDOSO JÚNIOR, 1998, p. 23). Como indica Elizabeth Travassos (2000), o samba é um gênero musical que já nasce na indústria cultural, fonográfica. O interessante é observarmos que, à parte essa discussão, os textos de Vagalume e Barbosa imprimem sentidos dispares sobre a questão. O primeiro propõe uma radicalização e idealiza um tipo de samba. Como vimos, para Vagalume a comercialização exterminaria a tradição e qualquer termo de proximidade, de intimidade, a suposta homogeneidade circunscrita no topos mítico da “roda de samba”. Por outro lado, para Barbosa importa muito mais a capacidade de veiculação que é gerada por essas práticas, pelo rádio, discos e edições. Encabeça, portanto, um horizonte ideativo de cunho eminentemente moderno consorciado à capacidade “maleável” deste gênero musical de lidar com o heterogêneo.
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Fica claro na discussão proposta em Na roda do samba e Samba que a referência à Bahia varia conforme oscilam os discursos de defesa da “tradição” e da “modernidade” do samba. Vimos, inclusive, que o primeiro livro recupera a Bahia enquanto o ícone de proa na defesa que faz sobre o tradicionalismo no samba. De forma contrária, Samba não menciona uma única referência sobre a matriz baiana deste gênero musical. Esse desfalque é um dado muito significativo, pois no texto é implícita a idéia de que o samba faz parte da “alma
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carioca”. Vejamos com um pouco mais de calma como essa questão se configura em ambas as obras. Vagalume inicia seu trabalho argumentando que o samba é originário da Bahia – “Os baianos, com justo orgulho, chamam a si a paternidade do samba, que data dos fins do primeiro Império” (GUIMARÃES, op.cit., p. 30). No capítulo intitulado “Gente de outro tempo”, o autor se atem de maneira mais concisa à atuação de baianos no Rio de Janeiro. Nele, percebe-se que a relação de intimidade, inerente à “roda”, é estendida aos demais elementos que se ligam à Bahia. Nesse sentido, destacam-se ícones relativos à religiosidade – representados principalmente pelas crônicas dedicadas aos sambas sediados nos terreiros de João Alabá e Cypriano Abedé, cujos cultos “eram precedidos de festas, dança e cânticos, em que o samba tinha preferência” (Ibid., p. 115) – e à culinária, como fica atestado na crônica sobre a tia Teresa: “Os boêmios chamavam-na de tia Teresa, mas, as baianas, suas conterrâneas, tratavam-na de Tetéa. Foi o apelido que recebeu em Maragogipe aos primeiros dias de nascida (...). Durante muito tempo, tia Teresa vendeu na rua, durante a noite. O seu tabuleiro era um verdadeiro restaurante. Plat du jour: angu à baiana. Nas sextas-feiras e quinta-feira santa, o angu era substituído pelo vatapá ou pelo caruru de peixe.” (Ibid., p, 106)
Em diversas passagens do texto a tensão entre a Bahia e o Rio de Janeiro é menos acentuada e colocada, digamos, a partir de certo sentimento “fraterno”. A exemplo da nota sobre o “afamado samba” da tia Ciata, diz Vagalume que ela “nesses últimos tempos foi, sem dúvida, a baiana de maior nome aqui na Bahia... de Guanabara” (Ibid., p. 116, grifos meus). A proximidade que o autor vê entre a Bahia e o Rio de Janeiro, assim como dos respectivos papéis que desempenharam na formação mítica e estética do samba, é registrada, inclusive, de forma extremamente intimista - “Bem razão teve o Sinhô, quando disse que a “Bahia é boa terra”.
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Eu se não fosse brasileiro, quisera ser japonês e se não fosse carioca, quisera ser baiano. Em todo caso, sou da Bahia... de Guanabara.” (Ibid., p. 166)
No caso de Orestes Barbosa, a contraposição entre a “tradição” e a “modernidade” é mais acentuada. “É preciso combater a tradição”, diz o autor de Samba (BARBOSA, op cit, p. 140). E acrescenta: “essa história de origem, de raiz, de etimologia é para os trouxas” (Ibid., p. 151).
Ambas perspectivas ressoam diretamente na caracterização de tipos sociais a elas correspondentes. Ao recordar dos “bons tempos”, a reflexão de Vagalume sobre as baianas faz dessas personagens uma caricatura quase folclórica e quase desconhecida do universo do samba na época em que redige o livro. É interessante notar a predominância de traços tidos pelo autor como exóticos e dos elementos ligados à sensualidade e à exuberância na descrição dessa figura feminina, típica da “roda de samba”: “E as baianas? Mas que baianas tentadoras, com suas alvas e lindas camisas de cretone bordadas com renda de linho; belas ‘anáguas’ de grande roda com babados e sandália na ponta do pé. E tão sedutoras se tornavam, envoltas no pano da Costa perfumado, ostentando custosas jóias e lindos ‘barangandans’, que contavam na roda inúmeros admiradores, gente graúda: “seu” barão, “seu” comendador e o português da venda ou do açougue (...). Quando ela botava as mãos nas cadeiras, ou na cabeça, vinha em baixo, vinha em cima, em ‘parafuso’, muita gente ficava doente...” (GUIMARÃES, op.cit., p. 103)
Nas cenas descritas em Samba, o personagem predominante é o malandro. Como Sandroni bem observa, Barbosa personifica o malandro. Este representaria alguém de “carne e osso que olha, sabe, ama, escreve, fala, canta e tem fé” (SANDRONI, 2001, p. 137). E mais: o malandro é dotado de uma racionalidade específica, simpatizante da vadiagem e da informalidade. Em certo sentido, pode-se tomar esse tipo social enquanto uma espécie de síntese da perspectiva flexível que é desenvolvida ao longo de seu livro, de modo que o
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próprio malandro vem a constituir a “alma sonora” do samba6. Na medida que a ele “não se deve negar essa glória do samba carioca” – leia-se a paternidade carioca do samba em sua fase urbana – o malandro configura, a um só tempo, o elemento-símbolo da cidade, produto de uma imagem moderna e urbana do Rio de Janeiro. O malandro de Barbosa molda e individualiza diversos níveis e cruzamentos de fronteiras sociais, intrínsecos à formação do universo do samba carioca. Habilmente impõe uma “natureza” local e incorpora a vida cosmopolita da cidade. Assim, se ele é o tipo carioca por excelência, na passagem a seguir fica nítido o lugar que Barbosa reserva ao malandro em sua análise: “O brasileiro tritura tudo. A nossa personalidade vai se definindo nitidamente dia-adia, especialmente a do carioca que, recebendo todas as influências do mundo, impõe a sua natureza a todos, absorvendo e plasmando o que é do Brasil e do exterior.” (BARBOSA, op.cit., p. 134-135)
Embora, de um lado, prevaleça a condição maleável e heterogênea do samba e, de outro, a atmosfera da homogeneidade, o “morro” ocupa em ambos uma dimensão mítica fundamental; este representa um lugar de pureza de onde o samba também teria se originado. A segunda parte do livro de Vagalume, inclusive, é composta de crônicas dedicadas a este assunto. Observar-se também que, de um modo geral, alguns morros ocupam uma posição privilegiada frente a outros, como o da Mangueira, São Carlos, Kerosene, Favela, etc – morros esses situados nos arredores da “pequena África”. A territorialidade dos “morros” expõe, por sua vez, a constituição de um imaginário que se situa numa espécie de meio-termo entre as raízes baianas do samba e a modernização que este gênero sofreu no Rio de Janeiro. Creio que esse “meio-termo” possibilitaria, enfim, um caminho de leitura sobre o modo como ambos os livros operam a temática da autenticidade. Ainda mais que seus 6
Em relação a esse aspecto, penso que a contribuição de Simmel (1983) traz uma luz interessante. Metodologicamente, poderíamos operar com o “malandro de Barbosa” enquanto um dispositivo de formalização de conteúdos. Assim, não é o conceito de malandro que origina a ação de indivíduos, mas sim, este representa uma forma específica de sociação, cuja durabilidade é determinada pelos fluxos de ação que a ela convergem.
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contrastes e planos discursivos tendem a se diluir quando o assunto é o “morro” – regiões da cidade habitadas por pessoas de baixa renda e que desde a década de 1920 passou a representar um dos lugares de excelência do samba. O “morro”, simbolicamente, traduz em Na roda... um elemento de reminiscência da tradição baiana no Rio de Janeiro. Em Barbosa, o “morro” abrigaria a tradição, por assim dizer, do samba carioca. Nesse sentido, pode-se dizer que, para esses autores, o “morro” desempenha uma função valorativa imprescindível na atualização de uma memória estético-musical voltada tanto para o universo do samba quanto para a cidade. Podemos deduzir, então, que, para além de uma tomada de posição diante do surgimento de novos padrões musicais e de tipos sociais no universo do samba, os olhares de Vagalume e de Orestes Barbosa representam cristalizações singulares e emblemáticas de tensões quanto a maneira como se deu a própria configuração simbólica do universo do samba. A discussão inaugurada pelos seus livros aponta, portanto, um ponto central da argumentação do nosso trabalho, pois o distanciamento mantido entre um e outro autor em relação à preferência de estilos opostos e ao mesmo tempo complementares de sambas revela um emprego diferenciado da idéia de autenticidade. Sendo este, por sua vez, o elemento que delineia um quadro específico de retenção de sentidos na qualificação de agentes sociais e na classificação de diferentes modalidades de samba. Nesse sentido é sugestivo o fato de que o debate proposto por Francisco Guimarães e Orestes Barbosa leva em conta o papel desempenhado pela incipiente “indústria cultural”, somada à expansão de um mercado fonográfico e editorial da música popular urbana, e, doravante, a intensificação do processo de profissionalização de músicos, compositores e sambistas. É justamente a partir da modernização dessas práticas que os cronistas realizam um balanço crítico de questões relativas à origem, diferentes tradições e estilos de samba, reiterando assim diferentes narrativas sobre o papel desempenhado por baianos nesse
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processo. Assim, diria que as contribuições de Vagalume e Orestes Barbosa direcionam uma luz preciosa sobre a relação entre o samba e a construção de uma certa imagem de Bahia no Rio de Janeiro. Diria que esses autores agem como sensores mesmo, na medida em que, seus livros, capturam uma negociação simbólica que é concomitante ao processo de fixação do samba. Suas retóricas, posicionamentos e considerações a cerca do legítimo e autêntico samba configuram, enfim, recursos de ordem simbólica que viabilizaram certa estandardização de auto-imagens, seja a baiana ou mesmo carioca. Como veremos, as narrativas sobre a Bahia que é configurada no contraste entre esses livros encontra certa correspondência na forma como baianos atuaram no âmbito lúdicofestivo da cidade do Rio de Janeiro, ao longo das primeiras décadas do século XX. Pode-se dizer que, sobretudo no carnaval, a imagem de tradição que se faz refletir no olhar de Vagalume sobre a autenticidade dos elementos que se associam à Bahia traduz, em grande medida, um cotidiano de disputas simbólicas com referência direta ao que foi a atuação de baianos na “pequena África”. Ora, é justamente a partir da qualidade desse signo – a tradição – que iremos, no próximo capítulo, desenvolver a discussão sobre o locus de construção de uma imagem baiana no Rio de Janeiro.
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CAPÍTULO 2. IMAGENS E SIGNIFICADOS DE BAHIA.
Ao enfocar a centralidade de atores ligados direta e indiretamente ao mundo sóciocultural baiano no debate proposto pelos livros Na roda do samba e Samba, procurei qualificar, no primeiro capítulo, a dimensão simbólica em que uma determinada imagem de Bahia é cristalizada no universo do samba carioca. Ressaltando os pontos de divergência das respectivas obras sobre as transformações estéticas do samba no começo do século XX, foi possível observar que, na condução do debate sobre a modernização do samba, há, implícito ao olhar de cada autor, o reconhecimento comum de que a Bahia configura uma espécie de signo de tradição. Com o intuito de redimensionar essa questão, mas com o franco propósito de compreender a natureza processual da construção da referida imagem de Bahia, o objetivo deste capítulo consiste numa tentativa de especificar o plano simbólico-sociológico da atuação de imigrantes baianos no Rio de Janeiro, durante as primeiras décadas do século XX. Para tanto, considero que o universo da música e da cultura urbano-popular carioca apresentam um lócus privilegiado para essa discussão. Especialmente por que determinadas manifestações de cunho lúdico-festivas – a exemplo do processo de criação do moderno samba e do carnaval – traduziram mudanças e tensões sociais diretamente referidas ao modo como a construção de uma imagem de Bahia deu-se em sintonia com o processo de modernização que a cidade vinha atravessando nesse período. Dividindo o capítulo em dois planos temáticos, retomaremos, primeiramente, o tema da profissionalização do samba enfocando suas implicações sobre os mecanismos que balizaram uma espécie de luta pelo monopólio simbólico em torno desse gênero musical. Em seguida, centraremos a atenção no modo pelo qual a imagem de Bahia se fez presente na cena carnavalesca do Rio de Janeiro, no início do século XX.
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2.1. IMAGENS DE BAHIA E O SAMBA EM VIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO.
Entre os pesquisadores de música popular há uma espécie de consenso em relação ao papel desempenhado pelo estilo de samba criado no Estácio de Sá 7: ele teria possibilitado um corte definitivo com o padrão estético de samba então vinculado ao núcleo festivo “liderado” pelas tias baianas. Esteticamente, a principal inovação trazida pelos sambistas do Estácio seria a introdução de um tipo de percussão até então desconhecida das rodas de samba promovidas pelo grupo de imigrantes baianos e que guardariam, segundo a literatura, certa ligação com matrizes rítmicas e percussivas africanas, a exemplo do reco-reco, da cuíca, do ganzá e do pandeiro. Instrumentos de percussão que, vale dizer, determinaram toda concepção plásticomusical que sambistas como Ismael Silva, Bide, Bucy Moreira e Marçal criaram para as primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro. A novidade apresentada por esse grupo de sambistas, em fins da década de 1920, teria consagrado a região do Estácio de Sá como o principal reduto do samba carioca em sua fase moderna, então representado na formalização das Escolas de Samba como gênero de desfile carnavalesco. Um exemplo disso pode ser encontrado em depoimentos de baluartes de outras Escolas de Samba também pioneiras dessa fase – como é o caso de integrantes da Mangueira e de Oswaldo Cruz – unânimes em afirmar que era lá, no Estácio, aonde se “aprendia” o samba. Como nos diz Cartola, “o Estácio era a escola mais velha, não vamos discutir isso. Fora do carnaval, o pessoal do Estácio vinha pra cá pro- morro cantar samba, qualquer dia da semana. E nós
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Bairro localizado nas mediações da antiga praça XI. Integrante, por sua vez, do perímetro que ficou conhecido como a “pequena África”. A simbiose entre o ritmo sincopado e a adequação de canções melodiosas aos desfiles dos blocos e escolas de samba é, seguramente, a grande novidade vinda daquela região. Contudo, vale lembrar que os sambistas desse bairro freqüentavam, sobretudo, a região do Largo do Estácio de Sá e compartilharam uma atmosfera lúdica e de serviços inusitada. O Largo do Estácio, em suas mediações, contava, além das afamadas festas das tias baianas alocadas na praça XI, com uma série de estabelecimentos voltados para o entretenimento lúdico-festivo – a exemplo dos bares, das casas de dança e dos teatros de revista da praça Tiradentes – e de um universo comum aos artistas e músicos populares desde o final do século XIX – incluindo aí a presença de cineteatros, cervejarias, casas de partituras, além da sede de inúmeros jornais (ver FARIAS, 2006).
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tínhamos muito respeito a eles como os mestres do samba” (apud SILVA & OLIVEIRA FILHO, 1989, p. 46).
Vimos também, no capítulo anterior, que a literatura especializada em música popular e samba tende a analisar a construção dessa supremacia a partir dos tipos de solidariedades e dos códigos de conduta que teriam proporcionado aos músicos do Estácio uma posição singular frente ao processo que culminou com a distinção entre o estilo de samba daquele lugar e o samba que era praticado nas casas das tias baianas. Para a maioria dos autores, a linguagem musical produzida no Estácio coroaria a tradução do impacto das mudanças que o processo de modernização impunha ao cotidiano dos segmentos populares do Rio de Janeiro, no começo do século XX. Como observa Santuza Cambraia Naves, essa linguagem foi essencial, entre outros ajustes, para que a poética modernista equacionasse disposições sociais distintas na sociedade brasileira, tendo em vista que esse grupo de sambistas manteve-se comprometido com um estilo de vida mundano e boêmio do universo negro, ao mesmo tempo em que exploraram pioneiramente em suas composições expressões e temas do cotidiano urbano e popular, como a “malandragem”, a “orgia” e a “vadiagem” (NAVES, 1998, p. 88). Gostaria, portanto, de retomar a discussão sobre o processo de diferenciação desses estilos de samba tomando como fio condutor o tema da sua profissionalização. No primeiro capítulo, observamos que essa é a questão-chave nos livros Na roda do samba e Samba. A atividade artística dos sambistas do Estácio de Sá estava longe de integrar um mercado formalizado e institucionalizado que visasse a competição dos recursos de sucesso no campo da música popular. Apesar disso, a visibilidade alcançada por esses agentes coincidiu com a época em que se inicia a possibilidade de ganhar a vida através do samba, sobretudo por meio da parceira autoral e da comercialização de sambas. A rigor, observa-se que a distinção entre sambistas – em termos de quem é ou não um músico profissional – ainda não é, nesse momento, claramente definida. Basta citar a particularidade de Donga e de Pixinguinha, que integraram simultaneamente esferas “informais” e “profissionais” no universo da música
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popular. Donga era filho de baianos e se nomeou o autor de “Pelo telefone”. Já Pixinguinha tinha uma avó africana e foi um dos maiores intérpretes do choro. Ambos integraram desde as rodas de samba e de choro da casa de tia Ciata até grupos como o Oito Batutas e ranchos, a exemplo do Filhos da Jardineira, onde, supostamente, se conheceram. O interessante é que práticas como essas – ingênuas, muitas vezes – foram precedidas pela polêmica da propriedade intelectual de canções (cujo marco foi a repercussão de “Pelo telefone”) e intensificadas com o advento do rádio e com o incremento de uma incipiente indústria fonográfica voltada o gênero samba. Ora, o que mais se registra neste capítulo da história do samba são cenas de intrigas, disputas e desafetos entre personagens do universo do samba, especialmente de atores que, de alguma forma, eram ligados ao reduto baiano-carioca. Assim, nesta seção discuto fundamentalmente a dimensão conflitiva protagonizada por sambistas durante essa fase; quando já se assinalava o caminho da “profissionalização” do samba. Acredito que a partir desse ponto podemos formular, entre outras questões, como e em que medida a redefinição de espaços sociais concatenada à diferenciação de estilos de samba contribuiu na configuração de imagens da Bahia. Suponho que podemos, enfim, identificar as negociações simbólicas operadas por agentes que, ao mesmo tempo, são tidos como precursores do pioneirismo empreendido pelos compositores do Estácio de Sá e mantinham (uns de forma mais intensa do que outros, a exemplo de Sinhô) certa ligação com o núcleo das tias baianas. Com isso, pretende-se evidenciar quais elementos mediados no contexto da “modernização” do samba co-participaram, em consórcio com a reciclagem de símbolos e práticas associados à cultura “negro-urbano-popular”, da re-significação de uma certa imagem baiana. Procuro demonstrar basicamente que, ao contrário do lugar-comum que a literatura tende a reiterar, o ambiente vivido por imigrantes baianos no universo do samba do Rio de Janeiro configurou, antes de qualquer coisa, um lócus marcado por um encadeamento de
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sentidos heterogêneos que operou, em grande medida, sob uma lógica específica na administração dos conflitos aí existentes. Diria que esse aspecto foi, em parte, negligenciado pela literatura, sobretudo por considerar a participação de imigrantes baianos na confecção do samba, quando não apenas a referência da ancestralidade do gênero, uma mera contraposição ao estilo de samba criado no Estácio de Sá; ou seja, àquele tido como carioca por excelência. Dessa forma, diria que a distinção usualmente feita sobre as diferenças estéticas do samba, no início do século XX (antigo e moderno, baiano e carioca, por exemplo), deixa de lado fatos que parecem ser bem mais complexos. Na literatura, entretanto, os paradigmas que integraram a fase de gestação do samba carioca apóiam-se num modelo de análise que correlaciona a estética musical ao estilo de vida dos sambistas. A justaposição entre esses dois fatores faria diferir, sobretudo, os sambistas do Estácio de Sá (músicos “desqualificados”, integrantes da fase moderna do samba e do universo heterogêneo aludido por Orestes Barbosa, em Samba) dos personagens ligados ao reduto das tias baianas. João Máximo e Carlos Didier, por exemplo, chamam a atenção para o seguinte fato: “Se na Cidade Nova as festas são animadas por músicos treinados, bons tocadores de piano, flauta, clarineta cordas e metais, no Estácio de Sá, salvo por um ou outro violão ou cavaquinho em mãos desajeitadas, tudo é tamborim, surdo, cuíca e pandeiro. Ou acompanhamento ainda mais rudimentar, palmas cadenciadas ou batidas em mesas, cadeiras, copos, garrafas. Quanto à parte poética, o sambista do Estácio de Sá canta em suas letras, da maneira mais simples, a vida dos morros e das casas de cômodos, das populações pobres, dos malandros e de outros indivíduos à margem da sociedade” (MÁXIMO & DIDIER, 1990, p. 119).
Da mesma forma, Marília Silva e Arthur Oliveira Filho acrescentam que a polarização entre esses dois estilos de samba seria determinada pelas distintas origens dos músicos: “Para os músicos de formação profissional, que em geral sabiam ler na pauta, pertencentes à baixa classe média, freqüentadores dos ranchos e dos teatros populares, como Donga e Sinhô [ou seja, personagens mais ou menos ligados ao reduto baiano-
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carioca], samba era sinônimo de maxixe, último estágio abrasileirado da polca européia. Para os negros e mestiços descendentes de escravos, era um gênero novo, último estágio abrasileirado do batuque angolense, que eles propunham ensinar à sociedade nacional por meio do movimento das escolas de samba [no caso, os músicos do Estácio de Sá]” (SILVA & OLIVEIRA FILHO, 1989, p. 46).
A relação sugerida, nesses trechos, entre música e camadas sociais distintas me parece complicada para ser aqui desenvolvida, levando-se em conta que a própria complexidade da temática extrapola as polarizações apresentadas acima entre músicos tidos como profissionais versus músicos tidos como desqualificados, camadas médias negras versus descendentes de escravos, e assim por diante. Aos meus olhos, esse tipo de problematização, tão freqüente na bibliografia, sugere que a diferenciação entre esses dois estilos de samba colocou-se na esteira do surgimento de novas disposições sociais entre segmentos populares do Rio de Janeiro, nesse período. Nesse sentido, pode-se dizer que, até certo ponto, somos aqui tributários da premissa apontada por Hermano Vianna (2002), que vê no “mistério do samba” – ou ainda, no duplo-processo de modernização do gênero em consórcio com a sua passagem de “ritmo maldito” à “expressão e signo do nacional-brasileiro” – a marca indelével das mediações culturais como elemento crucial na administração das fronteiras sociais, dos conflitos e de negociações próprias do universo heterogêneo que lhe foi inerente. Com efeito, pretende-se aqui recuperar essa premissa com o fito de compreender em que medida essa pluralidade de sentido atinge os imigrantes baianos e, por sua vez, como isso se fez traduzir na construção de certa imagem de Bahia. Daí termos apontado a importância do jogo narrativo elucidado por Francisco Guimarães e Orestes Barbosa. Mais uma vez, o cenário montado em volta do sucesso de “Pelo telefone” no carnaval de 1917 se mostra fértil para qualificarmos a posição ocupada por baianos nesse processo. Vimos que, com a iniciativa de Donga (o registro da música na Biblioteca Nacional, no ano de 1916), ele próprio um personagem tido como integrante do reduto de imigrantes baianos,
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opera-se um deslocamento do contexto de “produção” do samba: o gênero sai do domínio folclórico e anônimo, e passa fazer parte da dimensão público-popular com peças associadas a um autor. Na versão gravada pela Casa Edison na voz do cantor Baiano, em 1917, “Pelo telefone” trazia os seguintes versos: O Chefe da Polícia Pelo telefone Mandou me avisar Que com alegria Não se questione Para se brincar Ai, ai, ai É deixar mágoas pra trás, Ó rapaz Ai, ai, ai Fica triste se és capaz, E verás (bis)
Tomara que tu apanhes Pra não tornar fazer isso Tirar amores dos outros Depois fazer seu feitiço Ai, se a rolinha – sinhô! sinhô! Se embaraçou – sinhô! sinhô! É que a avezinha – sinhô! sinhô! Nunca sambou – sinhô! sinhô! Porque este samba – sinhô! sinhô! De arrepiar – sinhô! sinhô! Põe perna bamba – sinhô! sinhô! Mas faz gozar.
Diversas narrativas apontam que o episódio que inspirou a música teria sido o da negligência de autoridades policiais na fiscalização de jogos de azar em clubes “chiques” do centro da cidade. Motivo de piada para a população, por diversas vezes a imprensa carioca tratou do assunto com ironia, como o fez o jornal A Noite ao denunciar, em 1913, a existência de uma roleta em local de fácil apreensão e defronte à sua redação, no Largo da Carioca. Supõe-se, no entanto, que a música faz menção tanto a esse fato quanto a outro que ocorreu no ano de 1916, relacionado ao polêmico ofício expedido pelo Chefe de Polícia em reação aos jogos. Amplamente publicadas nos jornais do Rio de Janeiro, as instruções dadas ao Delegado do Distrito tornaram-se motivo de nova chacota por que, ao pedir que lavrasse “auto de apreensão de todos os objetos da jogatina”, o Chefe de Polícia solicita ao subordinado que “(...) antes porém de se lhe oficiar, comunique-se-lhe esta minha recomendação pelo telefone oficial” (apud ALMIRANTE, 1963 , p. 19-20).
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O telefonema acima referido ganharia outra conotação nas piadas que circulavam pela cidade. Ao invés de uma ordem para que o Delegado do Distrito mantivesse informado o seu superior, conta a chacota popular que o telefonema seria destinado aos diretores dos clubes para que encerrassem o jogo antes da chegada das autoridades. E aí está a suposta origem de uma das estrófes que não aparece na letra registrada por Donga: “O Chefe da Polícia/ Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta/ Para se jogar”.
O êxito de Donga, entretanto, desencadeou uma série de rixas entre os personagens que se auto-intitularam integrantes do lugar onde, “numa noitada de festa”, supõe-se terem sido criados os versos “folclóricos” de “Pelo telefone”: a casa da baiana tia Ciata. Vale lembrar que as reivindicações em prol da produção coletiva dessa música ocuparam um espaço generoso na bibliografia que trata das origens do samba no Rio de Janeiro. Reivindicação essa que teve seu primeiro registro no Jornal do Brasil no dia 4 de fevereiro de 1917, com uma nota que protestava contra a “indevida apropriação” de “Pelo telefone”. Nomes como os da tia Ciata e de Sinhô assinaram a estrófe a seguir, numa paródia satírica que fazia clara alusão ao empreendimento de Donga: “Tomara que tu apanhes/ Pra não tornar a fazer isso/ Escrever o que é dos outros/ Sem olhar o compromisso”.
No entanto, tanto Donga quanto Mauro de Almeida (seu parceiro nos versos) admitem a apropriação da melodia e das estrofes “populares” que, segundo eles, não possuíam um registro autoral. Em depoimento, Donga diz que recolheu “um tema melódico que não pertencia a ninguém”, e Mauro de Almeida confirma que “os versos do samba carnavalesco Pelo telefone (...) não são meus. Tirei-os de trovas populares (...): arregleio-os, ajeitando-os à música, nada mais” (SILVA, 1975 apud SANDRONI, 2001, p. 119).
Entre o protesto publicado no Jornal do Brasil e o reconhecimento da apropriação da música, a defesa de Mauro de Almeida me parece especialmente sugestiva para os nossos fins, na medida em que associa o “ajeito” das “trovas populares” à possibilidade de criar um “samba carnavalesco”. Ora, a idéia de samba carnavalesco implica, antes de qualquer coisa,
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algo que se situa no domínio público-popular, em algo que se faz conhecido à grande parte da população, dada a própria condição do carnaval enquanto a principal festa popular da cidade, no início do século XX. Assim, suponho que para compreender como foi possível “Pelo telefone” integrar o repertório da festa carnavalesca devemos observar que tão fundamental quanto as adaptações da versão “original” dos versos dessa música foi o lugar que Mauro de Almeida deteve, representando uma espécie de mediador por “podar” e revestir com um tom “civilizado” a glosa popular a que se refere a letra, e por ser alguém que, envolvido com o universo da cultura negro-popular, ocupava ao mesmo tempo uma posição social de relativo prestígio. Tratava-se de alguém interessado na “música de negros” e que era jornalista, branco, famoso cronista do carnaval e respeitado carnavalesco do Clube dos Democráticos (uma das três maiores sociedades do carnaval oficial da cidade). De fato, esse episódio é representativo dos caminhos que consagraram o samba como gênero da música popular e urbana do Rio de Janeiro. A importância dos cronistas carnavalescos nesse universo pode ser observada numa das crônicas que o autor de Na roda..., Vagalume, assinou no Jornal do Brasil: “Descíamos a rua do Ouvidor em demanda à Avenida Rio Branco quando encontramo-nos com o compadre Mauro de Almeida, o conhecido carnavalesco Peru dos pés frios, companheiro inseparável de Morcego. (...) O compadre Mauro vinha de braço com o Sr. Ernesto Santos e Donga e nos apresentando disse: - Aqui tem o Donga, é nosso irmão, é do cordão, é igual. Tem direito a continência com marcha batida. - Que deseja o Sr. Donga? - Apenas a notícia de que acabo de compor um tango-samba carnavalesco denominado “Pelo telefone” com letra de Mauro. “Pelo telefone” vai ser o sucesso carnavalesco deste ano, pois já foi distribuído às bandas militares” (Jornal do Brasil, segunda-feira, 08.01.1917, p. 10).
O diálogo reproduzido no trecho acima traduz um pouco do que foi essa relação entre a crônica carnavalesca e o samba. Como se vê, a cena consiste num encontro casual, numa das
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artérias do centro da cidade, onde um cronista apresenta a seu colega, colaborador de um jornal de grande circulação, o compositor de um samba recém-criado afim de divulgá-lo na imprensa. Mas se os cronistas exerceram mediações decisivas para a popularização do samba, pode-se dizer também que a consagração de atores como Mauro de Almeida, Francisco Guimarães e Orestes Barbosa na condição de cronistas carnavalescos foi concomitante a esse canal possível de divulgação das manifestações culturais e da música produzida por segmentos populares da cidade por eles criado, do qual se destacaria o samba tanto como expressão maior da cultura urbano-popular quanto o lócus que legitimaria, de fato, esse campo específico da imprensa carioca, na época. Nesse sentido, vale fazer menção aqui à análise de Mônica Velloso sobre a presença do elemento popular na crônica caricatural, humorística e carnavalesca do Rio de Janeiro de princípios do século XX. A autora nos lembra que uma parcela considerável desses cronistas, embora se identificassem com um quadro mais amplo dos letrados da época, tinham na própria trajetória de vida a impressão de traços que os diferiria dos padrões tradicionais da “sociabilidade burguesa vigente”, a exemplo dos já citados Francisco Guimarães e Orestes Barbosa, ambos vindos de famílias humildes, com formação técnico-profissional e passagem no funcionalismo público8, mas que exerciam uma intensa atividade jornalística. Essa condição de relativa indefinição – por integrarem tanto do universo da letra nãoacadêmica de veia jornalística quanto do universo subalterno e popular da cidade – teria sido de fundamental importância para o desenvolvimento de uma espécie de “intelligentsia da cultura das ruas”. Vertente que, segundo a autora, cumpriu um papel decisivo na divulgação de imagens que subsidiaram o inventário nacional-popular brasileiro nesse período. Sobretudo
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É curioso lembrar que inúmeras manifestações lúdico-festivas de segmentos populares foram ostensivamente fiscalizadas pelo Estado no começo do século XX e que muitos desses jornalistas interessados na cultura popular tiveram vínculos empregatícios com a polícia. No caso de Orestes Barbosa e Francisco Guimarães como repórteres policias, ou do caricaturista da Revista Tagarela, Raul Pederneiras, que, além de ser um nome sempre lembrado na Festa da Penha, na casa da tia Ciata e em Cordões Carnavalescos, chegou a ocupar o cargo de Delegado.
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por confiarem a seu objeto (a rua) a existência de uma suposta essência de brasilidade, agora inspirada numa cena urbana capaz de redefinir os traços cosmopolitas da sociedade carioca. Ainda de acordo com Velloso, esse casamento de cronistas com o universo da música popular operou uma síntese específica de linguagens, especialmente por que “às expressões literárias cabia alicerçar as idéias relativas à busca funcional da brasilidade, enquanto às expressões musicais, notadamente aquelas referentes às camadas populares, cabia o papel de inspirar essa busca”.
A música, acrescenta a autora, teria configurado uma possibilidade de mediação para segmentos subalternos, apresentando-se como “poderoso canal de comunicação lingüística” capaz de acionar “elementos de ordem afetivo-intelectual, fortemente mobilizados no tocante às idéias de pertencimento e de identidade” (VELLOSO, 2004, p. 68-69).
Até certo ponto, pode-se dizer que essa geração de cronistas carnavalescos é herdeira da iniciativa de escritores que datam da segunda metade do século XIX e que fizeram do carnaval um assunto constante em suas obras. Como mostra Leonardo Affonso de Miranda Pereira (1999), essa festa cumpriu uma função imprescindível tanto para a invenção de narrativas capazes de imprimir perspectivas pedagógicas voltadas para o comedimento das expressões lúdicas de segmentos populares quanto para que se consolidasse uma literatura identificada com o nacional, sob a qual se viabilizou um espaço de atuação legitimo para esses homens das letras. Na próxima seção espero dar um desenvolvimento adequado à relação entre literatos e as festas populares no início do século XX. Contudo, importa atentar para o fato de que o segmento da crônica carioca a que estou me referindo não teve apenas o carnaval e a rua como objetos de interesse. Vale lembrar que esses agentes ficaram conhecidos, sobretudo, como aqueles que deram início à literatura especializada em samba. Pioneiros – e aqui tomo de empréstimo a sugestão de Carlos Sandroni – de um novo tipo de intelectual (SANDRONI, 2004, p. 27).
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Ora, se por um lado os cronistas carnavalescos compõem esse universo das letras e compartilham uma estilização mundana da vida de forma mais ou menos semelhante a como fizeram escritores como Olavo Bilac, Coelho Neto, Artur Azevedo, e tantos outros, assíduos freqüentadores dos cafés do centro da cidade (nicho por excelência da sociabilidade literária), escritores que igualmente tiveram algum tipo de contato com o mundo popular e atuaram na imprensa que despontava já no final do século XIX para o “grande público”, por outro, podemos considerar como elemento decisivo na distinção desse novo tipo de intelectual a configuração de um lugar específico para suas crônicas: o samba. A atuação dos cronistas carnavalescos nesse universo representa, portanto, uma dimensão-chave para a compreensão de um processo que é inerente à fase de fixação do samba enquanto gênero musical, no qual interpõem-se os elementos aqui discutidos: a concatenação entre a individuação dos personagens ligados ao mundo do samba e o problema da autoria de composições; um dos temas preferidos, como vimos, de cronistas. Essa fase, no entanto, é concomitante às sensíveis mudanças que, já nos anos 1920, o campo da música popular experimentava, quando se registra uma proliferação de estilos em escala nunca antes vista, somada à ambientação dos músicos populares com as tecnológicas de reprodução sonora que acompanharam todo o fluxo de modernização da cidade, como o rádio, o microfone e novas técnicas de gravação, juntamente com a criação de um incipiente mercado fonográfico e de edições. Sumarizando essa paisagem, Sério Cabral nos conta que em fins da década de 1920 “as gravadoras haviam trocado o antigo processo mecânico de gravação de disco pelo processo elétrico; as estações de rádio adquiriram mais potência e o aparelho receptor passou a ser um sinal de status da classe média” e que – mais uma vez a referência ao Estácio de
Sá se mostra paradigmática: “três dias antes de ser fundada a primeira revista especializada em música, nascia no bairro do Estácio de Sá a primeira escola de samba, a Deixa Falar; uma nova geração de compositores e cantores (Mário Reis, Noel Rosa, Almirante, Carmen Miranda,
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Ismael Silva, Ari Barroso e outros) surgia naquela fase; nasciam novas gravadoras e novas estações de rádio e, pela primeira vez, era gravado um samba com instrumentos de bateria de blocos e escolas de samba, o Na Pavuna, de Candoca da Anunciação (Homero Dornelas) e Almirante” (CABRAL, 1979, p: 140-141).
Certamente, a condição do rádio como termômetro dessa nova realidade, na qual a música popular ganha novos significados em sintonia à redefinição dos espaços compartilhados por sambistas no Rio de Janeiro desse período, se deu na medida em que a linguagem musical configurou um suporte semiótico capaz de satisfazer carências sóciopsíquicas de segmentos populares da cidade. A exemplo do que nos diz Flora Süssekind, embora a radiofonia integrasse um conjunto mais amplo de elementos sonoros e visuais – como a fotografia, o cinema e as revistas – decisivos na conformação de sensibilidades compatíveis à nova teia social que se costurava na cidade, a música manteve-se relativamente deslocada enquanto veículo desse “mundo-imagem” que se queria próximo à modernidade de inspiração européia, apolínea, típica da Belle Époque (SÜSSEKIND, 1987, p. 105). Esse flanco, por sua vez, exigiria dos músicos populares certa flexibilidade no que tange ao modo como experimentaram essas mudanças. Foi o que aconteceu com “Pelo telefone” que, segundo depoimento do próprio Donga, teria sido uma iniciativa que possibilitou satisfazer outros anseios incutidos na vontade de popularizar o samba: “Eu e o Germano... e bem assim o não menos saudoso Didi da Gracinda, sempre procurávamos o falecido Hilário Jovino... e nos aconselháva-mos entre nós dentro do nosso repertório folclórico escolher aí qual o melhor para ser introduzido na sociedade, logo que se oferecesse a oportunidade, o que se deu em 1916, quando começamos a apertar o cerco... Porque a hora era aquela” (SILVA, 1983 apud SANDRONI, 2001, p. 119).
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Ao que parece, a intenção desse grupo de sambistas era mesmo a de oferecer à “sociedade” um modelo “civilizado” de samba, diferente, por exemplo, daquele condenado pelas autoridades policiais. Nesse sentido, a referência ao “falecido Hilário Jovino” não é gratuita, pois Hilário, como veremos na próxima seção, ficou conhecido como o responsável pela introdução dos ranchos no carnaval carioca, tipo de agremiação que, ainda que tivesse suas origens em setores subalternos da população, teve grande prestigio nessa época, sendo agraciado pela crônica carnavalesca como um elemento civilizador da festa de momo, dado o caráter comedido e espetacular de seus desfiles, o que os diferiria de outras formações tidas como incivilizadas, a exemplo dos cordões e dos zé-pereiras (ver GONÇALVES, 2003; CUNHA, 2001).
Por ora importa atentar para o fato de que se, por um lado, os moldes empregados por Donga à popularização do samba não agradaram sambistas ligados à turma da tia Ciata, como mostra o manifesto publicado no Jornal do Brasil, citado anteriormente, por outro, diversos indícios nos levam a crer que o sucesso alcançado por “Pelo telefone” no carnaval de 1917 tende a ser visto com bons olhos por personagens também identificados com o reduto baiano, mas que se auto-identificam como pertencentes a grupos distintos nesse universo, cujas lideranças, na literatura, tendem a se configurar, uma na esfera do samba, como é o caso da tia Ciata, outra na formalização dos ranchos carnavalescos, a exemplo de Hilário Jovino. Assim, é emblemático o fato de, em outro depoimento, Donga mencionar o modo como sua iniciativa foi recepcionada por figuras como Germano e o próprio Hilário Jovino: “(...) pouco ia à casa de tia Ciata. O meu negócio eram os ranchos. Na casa dela eu ia no carnaval. Sobre esses carnavais há estórias interessantes. Vocês sabem o que significam os versos “Sou jardineira, ia-iá, não me mate”? Eram os grupos que saíam para criticar os outros nas vésperas do carnaval. O Hilário tinha organizado o “Bem de Conta” e a Aciata tinha o “Macaco é outro”. Pois bem, o Hilário era muito espirituoso e descobriu em um domingo de carnaval o estandarte da tia Aciata. Sim, porque havia essas coisas de descobrir (...). Havia a ordem para ninguém saber, pois era uma surpresa. O Hilário, não sei o que ele arranjava, sempre descobria. Ele descobriu o
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Rosa Branca do estandarte da tia Aciata (...). Tia Aciata deu um ataque.” (DONGA, et al, 1970, p. 79-80)
Penso que uma pergunta pode ser feita sobre esse relato. Ele diz respeito a algum tipo de heterogeneidade interna, exatamente no reduto baiano? Em outras palavras, até que ponto a polêmica de “Pelo telefone” e os posicionamentos assumidos pelos personagens nela envolvidos evidenciam uma espécie de luta pelo monopólio simbólico em torno do samba e, consequentemente, de uma imagem de Bahia? A rigor, parece que nesta fase de formação do samba há uma conjugação singular de fatores. De modo mais visível, os efeitos dessa conjugação foram traduzidos na administração de conflitos existentes entre sambistas, consubstanciados nas mudanças estéticas do samba. Diria que um desses efeitos configura a modelação de certa imagem de Bahia neste contexto. No qual o samba se fixou como gênero da música popular, e sambistas ficaram reconhecidos pelo semblante do indivíduo-autor. Aspectos que, até certo ponto, são conseqüência de fatores como: as mediações criadas por cronistas, a introdução de novas tecnologias de radiodifusão, e o incremento de um mercado fonográfico e editorial voltado para a música popular. Para precisar esse norte de argumentação, gostaria, por fim, de discutir uma cadeia de polêmicas que tiveram no sambista Sinhô (1888-1930) o seu ponto de partida; no repertório desse sambista – que passou grande parte da sua juventude na região da Cidade Nova, nas proximidades do caldo cultural que circundava as casas das tias baianas – a Bahia foi uma temática central. Edigar de Alencar nos conta que, como quase todos os músicos populares da época, Sinhô iniciou sua carreira artístico-musical na efervescente vida lúdica daquele lugar, consagrando-se como “pianista de gafieira” em clubes e agremiações dançantes e carnavalescas da região e adjacências: o Dragão Clube Universal, do largo do Catumbi, em 1910; o Grupo Dançante Carnavalesco Tome Bença a Vovó, da rua Senador Euzébio, em 1914; o Grupo Dançante Carnavalesco Netinhos do Vovô, com sede na praça da República e
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depois na praça Onze, em 1915; e da Sociedade Carnavalesca Kananga do Japão, localizada também na rua Senador Euzébio, agremiação que tinha o seu pai como sócio, e na qual permaneceu por mais tempo (ALENCAR, 1981, p. 23). A popularidade de Sinhô já era registrada desde 1915 pelo Jornal do Brasil, destacando-o como um dos mais prestigiados pianistas da música popular, ao anunciar sua apresentação ao lado do flautista Pixinguinha num baile da Sociedade Carnavalesca Fidalgos da Cidade Nova – “abrilhantará este o choro de cordas regido pelo exímio flautista Pexinguim e o valente cronista Sinhô pianista” (Ibid, p. 23) – e logo o nome de Sinhô esteve associado às
grandes sociedades carnavalescas da época, sobretudo o Democráticos e o Fenianos, e ao Rancho Ameno Resedá, no qual chegou a ocupar o cargo de diretor de harmonia. A Bahia, por sua vez, foi uma constante em suas composições, presente desde a sua primeira peça a fazer sucesso nas grandes sociedades carnavalescas: o samba Quem são eles?, dedicado ao Clube dos Fenianos e que levava inicialmente o título de A Bahia é boa terra. Com versos inspirados numa temática folclórica, supõe-se que a letra reporta-se às desavenças que o político baiano Rui Barbosa – um dos nomes mais importantes do governo republicano – travava com J. J. Seabra sobre o governo daquele estado: “A Bahia é boa terra/ Ela lá e eu aqui, iaiá/ Ai, ai, ai/ Não era assim que meu bem chorava/ Não precisa pedir que eu vou dar/ Dinheiro não tenho, mas vou roubar/ Carreiro, olha a canga do boi/ Carreiro, olha a canga do boi/ Toma cuidado que o luar já se foi/ Ai, olha a canga do boi/ Ai, olha a canga do boi” (Quem são eles?/ A Bahia é boa terra, Sinhô, 1918).
Quem são eles? teria, assim, desencadeado inúmeras respostas musicais entre este compositor e os integrantes do reduto baiano no Rio de Janeiro, mas que só vieram definitivamente a ganhar força quando, em 1920, Sinhô apresenta o samba Fala meu louro. Nessa ocasião, Sinhô acaba criando desafeto com Hilário Jovino ao usar uma glosa política da
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época em volta do mesmo Rui Barbosa para criticar a “comunidade” baiana da pequena África: “A Bahia não dá mais coco pra botar na tapioca, pra fazer o bom mingau pra embrulhar o carioca/ Papagaio louro do bico dourado/ Tu falavas tanto qual a razão que vives calado?/ Não tenhas medo coco de respeito/ Quem quer se fazer não pode/ Quem é bom já nasce feito.” (Fala meu Louro, Sinhô, 1920).
As provocações aí sucedidas eram, por vezes, dirigidas pessoalmente, como no caso de Não és tão falado assim, dedicada à Hilário Jovino, e até à figuras como Donga, Pixinguinha e China, autores de Já te digo (composta em resposta a Sinhô), sucesso no carnaval de 1919. Nesse mesmo ano, Sinhô introduziria o samba no repertório das revistas teatrais, com a apresentação, no Teatro São Pedro, de uma adaptação de A Bahia é boa terra. A essa altura, somando-se o fato de que Fala meu louro havia sido gravada por Francisco Alves, tornara-se fácil o sucesso desta música no carnaval de 1920. Entretanto, repetindo o feito de tia Ciata contra a gravação de “Pelo telefone”, Hilário Jovino, incomodado com a sátira sobre a Bahia, acusa Sinhô de plagiar a melodia de Fala meu louro e oferece como resposta a letra de Entregue o samba a seus donos: “Entregue o samba a seus donos é chegada a ocasião/ lá no Norte não fazemos do pandeiro profissão/ Falsos filhos da Bahia que nunca pisaram lá que não comeram pimenta na muqueca e vatapá/ Mandioca mais se presta, muito mais que tapioca/ Na Bahia não tem mais coco?/ É plágio de carioca.” (Entregue o samba a seus donos, Hilário Jovino, 1920).
A divulgação deste samba pelo Jornal do Brasil na coluna de Vagalume foi então acompanhada da seguinte nota, com o título de Os coelhos estão dando na horta do sambista Sinhô: “Depois da carta de desafio do Hilário, surge Pedro Paulo com este sambinha: Olé/ Todo o mundo faz um samba/ Eu também quero fazer/ Mas dizer que é da Bahia/ Olé!/ Não pode ser/ A Bahia é boa terra/ Já não dá mais côco, não/ Quem quiser tudo
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saber, erra/ Olé!/ É Toleirão/ Pelo suco tudo passa/ Basta falar com Iáiá/ Mas um sambinha sem graça/ Olé/ Não vem de lá” (Jornal do Brasil, 28.01.1920)
Enfim, tudo indica que o ponto final dessa estória foi dado mesmo por Sinhô, em 1921, com os versos de Sempre voando: “Já descobri, meu bem/ Coisa que causa espanto/ Na Bahia tem, tem/ Gente que é pai de santo”. (Apud VASCONCELOS, 1985, p. 203).
Da atmosfera compartilhada por esses sambistas, acredito que podemos precisar, por fim, o ponto a que se pretende chegar nesta seção. Propus aqui, a partir do episódio de “Pelo telefone”, uma relativização da noção de que o reduto de imigrantes baianos constituiu um bloco integro e homogêneo. Pelo contrário. No seu “interior” houve uma negociação sóciosimbólica que se manteve à margem do tratamento que a literatura tem dado ao processo de estilização do samba carioca. Para precisar essa linha de argumentação, tomei como paradigmáticas as intrigas geradas no “reduto baiano-carioca”, mostrando que, elas próprias, já assinalariam que a própria simbologia criada em torno de figuras como as tias baianas – muitas vezes apontadas como personagens quase-míticos do nascimento do samba – se deu de forma tensa e conflitiva. Diversos atores – inclusive as tias baianas – competiram pelos meios de legitimação do samba enquanto gênero musical. Entretanto, o que se percebe é que a entrada de baianos nessas cenas de disputas, intrigas e desafios foi fundamental para que se estandardizassem determinados ícones referentes à Bahia. Nas composições de Sinhô, por exemplo, pode-se observar que essa referência progressivamente tendeu para os elementos ligados à culinária e religiosidade daquela região. Composições essas (é bom repetir) que foram feitas no calor das desavenças musicais travadas com Hilário Jovino. Digo: se na primeira música em que este autor tematiza a Bahia (Quem são eles?/ A Bahia é boa terra), a principal referência é um elemento folclórico de inspiração rural – “Olha a canga do boi” – nas composições seguintes, dirigidas ao “núcleo baiano” da Cidade Nova, essa referência integra um segundo universo de ícones – “A Bahia não dá mais coco pra botar na tapioca, pra fazer o bom
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mingau pra embrulhar o carioca”; “Na Bahia tem (...) gente que é pai de santo” – que é igualmente
compartilhado na réplica do baiano Hilário Jovino – “Falsos filhos da Bahia que nunca pisaram lá que não comeram pimenta na muqueca e vatapá”.
Em meio à acentuação das heterogeneidades internas dessa “comunidade imaginada”9 de imigrantes baianos, percebe-se, diria, que a tradução dos conflitos inerentes a esse “reduto”, então veiculados em músicas de samba, acabaram por ressaltar alguns dos ícones que, jocosamente, ou não, estavam sendo empregados para retratar aquilo que identificava determinados personagens como supostamente baianos ou não. Com efeito, ícones fortemente identificados com uma certa concepção de ancestralidade aliada à representação de uma certa idéia de afrodescendência. Se nos é permitido falar de identidade baiana na fase de gestação do samba carioca, no começo do século XX, creio que devemos observá-la a partir da sua natureza contrastiva, tal como sugere Fredrick Barth (1969), em sua teoria sobre do processo de identificação étnica. Este autor considera que o significado da “fronteira cultural” entre grupos é o elemento, por excelência, da constituição de identidades sociais. Estudando o caso de grupos nômades, Barth argumenta que, em lugar da língua ou das narrativas de origem, traços diacríticos “definiriam” a identidade desses grupos. De certa forma, um desdobramento dessa perspectiva pode ser encontrada nos estudos realizados Roberto Cardoso de Oliveira (2000). Com quem, acredito, podemos estabelecer um ponto de encontro conceitual mais preciso. Em seu diagnóstico sobre os (des)caminhos da identidade, Oliveira elenca diversas “situações de fronteiras”, onde especialmente a etnia e a nacionalidade se justapõem como variáveis em processos identitários. Analisando o caso de Andorra10, o autor exemplifica que em processos de construção de identidade marcados por situações de fronteira existe uma
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Fazendo aqui uma analogia livre e descompromissada do termo empregado por Benedict Anderson (1989) em sua análise sobre as sociedades nacionais. 10 País oficialmente “catalão” situado entre a Espanha e a França.
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“profunda ambigüidade” no contraste entre o “nós” e o “eles”. De modo que a identidade passa a ser invocada rotineiramente com referência a “operadores simbólicos” específicos. Sob esse ponto de vista, enfim, poderíamos considerar que, analogamente, o samba constitui um “operador simbólico” de formalização dessa suposta identidade baiana. Através do qual diversos atores atribuíram significados de distinção do que viria a ser “o baiano” e, por conseguinte, a Bahia. Certamente, uma conseqüência disso foi a construção/qualificação de uma espécie de signo de ancestralidade e afrodescendência. Entretanto, suponho que esse processo simbólico encontrou algum tipo de apelo no modo como imigrantes baianos atuaram no contexto do carnaval do Rio de Janeiro – tema da nossa próxima seção.
2.2. SIGNIFICADOS DE BAHIA E O UNIVERSO DO CARNAVAL.
A literatura sobre o carnaval do Rio de Janeiro, de fins do século XIX até início do século XX, considera que as diferentes formas de organização carnavalesca que então proliferavam em toda a cidade representam uma pista e um fator de qualificação do grau de reverberação das mudanças sociais empreendidas naquele período, e, por conseguinte, dos anseios civilizatórios compartilhados pela elite republicana, sobre o comportamento de segmentos populares. Um aspecto importante nessa lógica de argumentação aponta que, na época, o surgimento de novas formas de carnaval assinalaria uma espécie de desprestígio e enfraquecimento dos grupamentos que detiveram a “verdadeira beleza” da principal festa da cidade, emblematicizada nas três grandes sociedades carnavalescas, elas próprias referências do empreendimento civilizatório deste período: Democráticos, Fenianos e Tenentes do Diabo. Assim, a pluralização da festa seria revestida com um tom particular. Como se percebe na imprensa, a maioria das crônicas da época reporta-se à idéia corrente de que o carnaval se
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tornara uma festa moribunda com a proliferação, sobretudo, de modalidades de brincadeira inventadas por populares, como nos mostra a passagem a seguir, escrita no ano de 1890: “Quando as sociedades carnavalescas se recolherem todas aos seus poleiros (...) o Carnaval será enterrado ao som de alguma marcha fúnebre tocada por algum Zépereira. Então sim, grupos de cucumbis, de cupidos de ouro, de mandirobas, de baianas filhas de papagaio e de pés espalhados, hão de levar o mísero cadáver até a cova rasa que o espera” (apud CUNHA, 2001, p. 151).
Essa crônica evidencia uma apreciação que opõe as “sociedades carnavalescas” aos modelos de festa momesca de populares que, aos olhos do autor, ainda estariam fortemente identificados com a estética grotesca e com os jogos agonísticos do Entrudo; tipo de carnaval que teve suas origens nos tempos da colônia. Essa oposição, entretanto, seria atravessada por outras variantes e modelos de festa, como os “cucumbis” e os “blocos de mandirobas”. Penso que a impressão desse cronista sugere um primeiro importante a ser qualificado: qual(is) o(s) significado(s) do carnaval nessa época? Do ponto de vista daqueles que pensavam de modo mais direto o carnaval (literatos e cronistas), os modelos de organização de que dispunham os integrantes dos inúmeros cordões, clubes, sociedades, grêmios e ranchos no carnaval carioca configurariam uma dimensão central para a avaliação do sucesso, ou não, do que deveria ser o papel ocupado pelo carnaval na vida de segmentos subalternos da cidade: um instrumento pedagógico. Leonardo Affonso de Miranda Pereira (1994) aponta que, já na segunda metade do século XIX, o carnaval carioca era objeto de uma geração de literatos que transferiu para a festa questões mais gerais da sociedade. De acordo com Pereira, esses literatos (então comprometidos com o recém-instalado regime republicano) voltaram-se para o carnaval com o intuito de empreender uma ação pedagógica e um sentimento civilizatório em torno da folia, visando sempre atingir a camada que imaginavam ser a base edificadora da idéia de nação: os “populares”. O resgate do carnaval passaria, portanto, pelo crivo ordenador da festa de estilo
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europeu, sobretudo, dos modelos importados de cidades como Roma, Veneza e Nice. Estilo esse que seria materializado nos bailes de máscaras e nos desfiles de préstitos, dos grandes carros alegóricos e dos corsos. Para o autor, a tematização do carnaval por parte desses intelectuais contribuiu para a consolidação de uma literatura nacional e, ao mesmo tempo, para a invenção de concepções tradicionais e modernas de carnaval, na medida em que apontaram um sentido evolutivo da festa historicizando-a a partir de suas diferentes modalidades. Assim, sobre o carnaval de fins do século XIX, a distinção mais aguda se faria perceber na classificação do entrudo como o modelo mais antigo e tradicional de carnaval, e das grandes sociedades enquanto o tipo moderno-civilizado, por eles desejado como modelo ideal de brincadeira. Seguindo um modelo teórico comum aos intérpretes do carnaval (ver QUEIROZ, 1992), baseando-se no reconhecimento de duas dimensões sociológicas inconciliáveis (o “popular” dominado versus o “burguês” das elites), o trabalho de Pereira caminha, enfim, no sentido de evidenciar um choque entre esse surto de modernidade elitista de inspiração européia e a vida cotidiana da cidade, ainda marcada pela paisagem colonial luso-africana. Embora reconheça que alguns elementos foram assimilados pelas camadas subalternas (como a recorrência ao formato de passeatas), o autor defende que esse segmento respondeu negativamente ao projeto dos intelectuais, resistindo às imposições modernizadoras pela reiteração do hábito do entrudo. Assim, a polarização entre “popular” e “burguês” ganharia materialidade naquilo a que chama de “pequeno carnaval” (associado ao entrudo e praticado nas mediações da Praça Onze de Junho) e de “grande carnaval” (o desfile das grandes sociedades carnavalescas na Avenida Central), respectivamente, no Rio de Janeiro. A despeito do cenário observado por Pereira, penso que as mediações entre um e outro carnaval foram cruciais para o surgimento dos cordões e dos ranchos carnavalescos. Modalidades essas que guardaram muitas semelhanças, especialmente quanto à origem social
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de seus componentes, geralmente “recrutados nos morros, subúrbios e arrabaldes da cidade ou nas profissões braçais” (CUNHA, op. cit., p. 152), mas cujas diferenças residem na forma como o
folguedo carnavalesco foi estilizado por cada grupamento em consonância ao código de civilidade urbana e de normatização das práticas de exibição pública, assim como dos modos de expressão e comunicação, agora submetidos ao ímpeto de uma “festa polida”. Os cordões, oriundos dos cucumbis do período imperial e dos congos coloniais, iriam caracterizar a intervenção popular no carnaval deste período, ao apresentar nas ruas danças, músicas e percussão inspiradas em matrizes culturais afro-brasileiras. Seus desfiles exibiam fantasias de índios, reis, bichos, estandartes, e cânticos acompanhados de ganzás, tamborins, agogôs, entre outros instrumentos. Muitos cordões, entretanto, estiveram associados às maltas de capoeiras da cidade; um dos motivos da repressão policial de seus desfiles e da posição marginal que ocuparam frente ao carnaval exibido na Avenida Central. Na margem oposta aos capoeiras e aos cordões estavam os ranchos, que logo foram agraciados pela imprensa carioca. Embora sua origem fosse igualmente popular e subalterna, os ranchos passaram a disputar com as grandes sociedades a atenção de espectadores os mais heterogêneos, dado a novidade de exibirem-se na condição de verdadeiros teatros líricos ambulantes, apresentando danças, roupas, alegorias, cenários e cantos que compunham a narração, a cada ano, de um novo enredo. Em suma, a distinção estética entre cordões e ranchos seria a de que: “(...) ranchos usavam alegorias sobre carroças, mesmo que em escala menor do que as sociedades, enquanto os integrantes dos cordões, com suas variadas fantasias, seguiam invariavelmente no chão, a pé; os cordões caracterizavam-se sobretudo pela percussão acompanhada de cantoria, na qual um ou dois dançarinos vestidos de índio entoavam a copla, e o coro em uníssono repetia o estribilho (ou chula), por vezes acompanhados apenas por cavaquinho e violão, mas os ranchos harmonizavam seu canto, apresentavam-se com percussão leve (pandeiros, castanholas etc) e com um volume instrumental considerável, que incluía cordas e sopro (do que resultava a diferença musical entre as marchas-ranchos e o batuque sincopado dos cordões); a presença de mestres de canto ou de harmonia era, assim, marca característica dos ranchos, tendo em vista a necessidade de ensaios mais estruturados para suas apresentações – ao
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passo que os cordões contavam muitas vezes com um mestre-de-pancadaria, a quem cabia afinar o ritmo da percussão; nos ranchos, o destaque era dado pela forte presença feminina – as saiolas ou pastoras, que dominavam o diapasão do canto e do desfile enquanto os cordões, embora nem sempre excluíssem as mulheres, eram predominantemente masculinos em suas saídas às ruas” (CUNHA, op. cit., p. 152).
Na dissertação de mestrado, Renata de Sá Gonçalves (2003b) ressalta que o surgimento e a visibilidade alcançada pelos ranchos no carnaval carioca, no começo do século XX, acenariam a existência de uma relação específica entre a nova configuração social da cidade, os novos padrões de organização e as mudanças estéticas e de apreciação dos vários tipos de cortejo carnavalesco; itens que a autora toma como primordial para avaliar a maneira como essa modalidade de carnaval sintonizou-se às novas sensibilidades geradas com o processo de modernização deste período. Gonçalves defende a tese de que o processo de formalização dos ranchos revela conflitos detonados com a complexificação e o alargamento das teias sociais da cidade. Formalização que trouxe como principal novidade a difusão, entre os ranchistas, de códigos e hierarquias comuns às grandes sociedades – o registro na polícia e a licença para desfilar, a realização de ensaios, a formalização de estatutos e de uma hierarquia entre os cargos administrativos (diretores, tesoureiros, secretarias), a criação de funções responsáveis pela organização do desfile (diretor de canto, de dança, de orquestra), assim como de um corpo de agentes especializados ao qual era submetida a produção artística do desfile (artistas plásticos, coreógrafos, músicos). Aos olhos da autora, esses elementos possibilitaram tipos de integração e de negociação específicos com esferas mais amplas, a essa altura, também envolvidas com o carnaval (o Estado, o comércio bairrista e a imprensa, por exemplo) âmbitos através dos quais operavam funcionalmente relações típicas do “dilema brasileiro”, afixado na fórmula amalgamada das relações pessoais e impessoais, formalidade e informalidade, que envolveriam desde as concessões da prefeitura municipal e o patrocínio do comércio próximo
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à sede de cada rancho e, principalmente, as intermediações com a imprensa na condução do jogo de prestígio entre ranchistas, então motivado com a prática de exibição dos respectivos estandartes na redação dos jornais e com a premiação a cada ano do “melhor rancho a desfilar”. Sinais, enfim, de que esse foi o principal modelo de carnaval da cidade, antes das escolas de samba. Nessa época os ranchos expressariam, segundo a autora, uma determinada “totalidade social”: Junto aos ranchos, também os cordões e as grandes sociedades indicaram a contínua tensão entre a ‘permanência’ e a ‘decadência’ das formas culturais ao longo de um processo histórico e cultural. Desse modo, o carnaval dos ranchos abriga uma série de ambivalências sociais que podem ser sintetizadas pelas tensões entre o tradicional/moderno, o cotidiano/extraordinário, o justo/solidário. No interior de seu processo se estaria caracterizando, qualificando e hierarquizando a vida social dentro de sistemas classificatórios e morais (GONÇALVES, op. cit., p. 216).
A tematização proposta pela antropóloga traz como dado o caráter híbrido e a indefinição dos ranchos entre o “grande carnaval” e o “carnaval popular”, revelando, portanto, um núcleo contraditório inerente a essas mesmas distinções, tendo em vista a circulação de símbolos e práticas comuns a ambos os modelos de carnaval. Acrescentaria, entretanto, que se por um lado a estética de desfile e o modelo organizativo dos ranchos representaram um redimensionamento da modalidade de carnaval das grandes sociedades pelos agentes do “pequeno carnaval”, por outro, o caldo histórico-cultural sobre o qual surgiram os ranchos, no final do século XIX, nos revela oscilações sugestivas de como o processo modernizador e civilizatório aí deflagrado veio a formatar a dinâmica das relações sociais que difeririam as práticas lúdicas dos ranchos das dos cordões. Nesse sentido, a título de exemplo, basta dizer que a maior parte dos integrantes das maltas de capoeira do início do século XX (participantes destacados dos cordões) era composta de jovens sem profissão definida ou que exerciam atividades desvinculadas à moderna produção capitalista da época, como as de cocheiros, carroceiros, etc (DIAS, 2001). Contrariamente, o esteio em que foram formados os ranchos
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teve na urbanização da cidade e na ampliação do setor secundário da economia fatores determinantes11, sendo imprescindível, por exemplo, o papel aí desempenhado pelas indústrias têxteis nesse período, para onde foi designada boa parte da mão-de-obra nordestina emigrada desde a segunda metade do século XIX para o Rio de Janeiro (LEVY, 1989). Esse espaço, por sua vez, conformaria um nicho de interação específico – tratando-se de pessoas regularmente empregadas cujos moldes de solidariedade foram consorciados com os esquemas de convivência promovidos pelas fábricas em torno de expressões lúdico-recreativas inspiradas nos padrões burgueses e das camadas médias da sociedade, no qual se destacaria o incentivo à prática esportiva (HERSCHMANN & LERNER, 1993). Núcleo interativo que construiria, enfim, as bases de re-significação dos costumes, práticas e símbolos desse contingente no contexto urbano carioca. É ilustrativa, nesse sentido, a lembrança de Hilário Jovino (considerado um dos introdutores do rancho no carnaval carioca) de que a origem do rancho está baseada nos ternos de reis que eram compostos de “famílias dos operários das fábricas” que faziam parte “das filarmônicas incentivadas por alguma indústria na época” (CABRAL, op. cit., p. 15).
Pode-se considerar, portanto, que o processo de formatação dos ranchos, assim como o padrão organizativo e a estética de desfile adotada por essa modalidade carnavalesca, ocorreu mediante a forma como a incorporação de símbolos associados às grandes sociedades concatenou-se ao disciplinamento das atividades lúdicas dos agentes que os inventaram. Segundo Edson Farias, essa simbiose simbólico-sociológica estampada no processo de formação dos ranchos, seria, a um só tempo, produto e função do que chama de “gênero desfile de carnaval”. De acordo com o autor, o rancho redefiniria o modo de fazer carnaval no início
do século XX, na medida em que a idéia de desfile, aí empregada, integraria numa unidade cênica e operística conteúdos pedagógicos então consagrados nos desfiles do Ameno Resedá. 11
Nesse sentido é exemplar como os nomes de alguns ranchos faziam referência tanto aos seus bairros de origem, como “Estrela do Engenho Velho” e Flor da Gávea” quanto aos lugares de trabalho ou categorias profissionais, como o “Flor da Aliança ou Flor da União – de operários da fábrica de tecidos do mesmo nome – ou do Flor da Marítima – que, na Gamboa, congregava marinheiros e pescadores”. Ou mesmo em referência à condição de classe de seus integrantes, como “Flor dos Operários, Lira Operária e União Operária” (ver GONÇALVES, op. cit., p. 158; e CUNHA, 2001, p. 170).
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Rancho que mereceu, inclusive, a designação de escola (ver EFEGÊ, 1965). Para Farias, essa noção de “espetacularização” desenvolvida pelo “gênero desfile de carnaval” conformaria um dispositivo de tradução de toda a processualidade urbana, modernizadora e civilizatória por que passava a cidade naquele período (FARIAS, 2006, p. 89). Feita essa explanação – ainda que resumida – sobre as nuances sociológicas mais gerais e intrínsecas ao significado da modernização do carnaval carioca, no começo do século XX, gostaria de desenvolver algumas questões entorno de certa imagem baiana que se cria no universo carnavalesco deste período – no qual o modelo ranchos carnavalescos atingiu, como falamos, um destacado papel tanto pela sua crucialidade na transição entre diferentes formas de se brincar a folia momesca quanto por representar um ícone aglutinador das disposições sociais desencadeadas pelo processo urbano mais amplo da cidade. O contingente de negros e mestiços baianos migrados para o Rio de Janeiro, desde a segunda metade do século XIX, é apontado pela literatura como o grupamento que atuou decisivamente para a implantação dos ranchos como modelo de desfile no carnaval carioca. Esse contingente habitou, sobretudo, a região portuária da cidade. Nas proximidades, portanto, de onde desembarcaram outros conterrâneos e dos locais onde trabalhavam como estivadores ou no Arsenal de Marinha, e nas proximidades da Cidade Nova, bairro que se estendia em direção ao conjunto de fábricas de tecidos, bebidas, alimentos e chapéus localizadas nas mediações dos bairros do Rio Comprido e de São Cristóvão (MOURA, 1983). Assim, pode-se dizer que parte considerável da mão-de-obra dessa população teve o mesmo destino de outros contingentes de nordestinos que aludimos anteriormente, aproveitados nas indústrias e no corpo militar da capital republicana. O interessante é que a maioria desses baianos era oriunda da região do recôncavo baiano, onde haviam experimentado hábitos urbanos e se familiarizaram com associações lúdico-profanas voltadas para fins festivos, a exemplo dos ternos de reis. Dados levantados por José Ramos Tinhorão indicam que os
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baianos representaram a segunda maior população de emigrados da capital republicana, constituindo “2.120 numa população local de 274.972 em 1870; 10.633 na população de 522.651 em 1890; e 12.926 entre 1.157.873 de habitantes recenseados em 1920”. Somado a esses números, o
autor não hesita em afirmar que essa população assumiu “uma espécie de liderança espontânea entre as camadas baixas a que se integravam”, por aproveitarem “a riqueza da sua antiga experiência de vida no Recôncavo para assumir na capital” (TINHORÃO, 1998, P. 264). Essa experiência, ainda
segundo Tinhorão, configuraria funções sócio-econômicas que difeririam a vida urbana de Salvador de outros centros urbanos do tempo de colônia: “a cidade de Salvador, ao contrário dos dois outros mais importantes entrepostos litorâneos, Recife e Rio de Janeiro, não se voltava apenas para fora, como porto de escoamento da produção destinada ao mercado internacional, mas tinha uma face voltada para o interior, representado pelo golfo que se abria à sua frente sob a forma de anfiteatro e a cuja volta se tornavam desde 1549 os centros agro-industriais dos engenhos destinados a transformar a região numa unidade geo-econômica que na capital da colônia a sua capital particular” (Id., Ibid, p. 79).
Assim, o intercâmbio gerado com a comercialização e transporte dos mais diversos produtos e especiarias – açúcar, fumo, madeira, mariscos, mão-de-obra escrava, etc – teria criado um feixe de interdependências particular entre as regiões rurais, as pequenas vilas de beira-mar e o tipo de vida urbana que se cristalizava na capital. Somando-se aí o movimento intenso de ida e vinda de embarcações oriundas de todas as partes do globo no porto de Salvador, escoando os mesmos produtos no fluxo do mercado internacional. Ao atentar-se para essa realidade, sobretudo no que diz respeito à tênue fronteira aí estabelecida entre o trabalho braçal ampliado pela dinâmica sócio-econômica que abrangia
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toda a extensão do recôncavo e o surgimento de novas práticas lúdicas e festivas12, leva Tinhorão a concluir que: “a tendência no sentido do aprofundamento da divisão do trabalho surgida na virada dos séculos XVII-XVIII, não apenas vinha permitir uma maior variedade na troca de experiências entre os componentes das camadas mais baixas, mas tornava as possibilidades criativas resultantes desse intercâmbio ainda mais enriquecidas pela circunstância de ele se processar através do cruzamento de informações tanto rurais quanto citadinas. Esse fenômeno propiciado pelas condições especiais da realidade econômico-social do Recôncavo baiano ia permitir ainda na primeira metade do século XVIII o aparecimento de uma série de novas formas de diversão entre as baixas camadas, que estava destinada a transformar não apenas Salvador no primeiro centro produtor de cultura popular urbana do Brasil, mas a garantir para a própria Bahia o título de pioneira na exportação de criações para o lazer de massa citadina no exterior” (Id. Ibid., p. 82)
As condições de sociação das “camadas baixas” distribuídas pela baía de Todos os Santos na época da colônia, tal como sugere o autor, nos permite cogitar, por sua vez, a possibilidade de analisar em que medida – ao constituírem bases e dispositivos tanto de recriação quanto de incorporação de um saber específico de práticas culturais fortemente identificadas com tradições africanas – novos hábitos, costumes e valores vinham sendo inseridos por negros baianos, desde o século XIX, no Rio de Janeiro. A historiadora Mônica Velloso (1990) aponta elementos bastante elucidativos a esse respeito, ao mostrar como do condensado caldo cultural transplantado por baianos foram construídos signos de distinção no complexo social das camadas populares e subalternas da capital republicana. Segundo Velloso, os baianos detiveram uma posição privilegiada no Rio de Janeiro, sabendo 12
Essa relação bem que poderia ser ilustrada com a impressão do viajante Robert Ave-Lallement: “Quando se desembarca na Bahia, o povo que se movimenta nas ruas corresponde perfeitamente à confusão das casas e vielas (...) De feito, poucas cidades pode haver tão originalmente povoadas como a Bahia. Se não soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia tomá-la, sem muita imaginação, por uma capital africana, residência de um poderoso príncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma população de forasteiros brancos puros”. E continua: “Esses homens cor de azeviche formam o mais admirável grupo atlético que se possa ver. Põem-se em marcha aos gritos e com certo entusiasmo bélico (...) Carregar um peso é quase uma dança; o ritmo da marcha nesse trabalho é quase como o dum cortejo sálio. Os próprios gritos têm de ser rítmicos, os músculos do peito têm que ajudar” (AVÉ-LALLEMENT, s/d, p. 22-23).
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habilmente preencher a lacuna gerada com o ímpeto modernizador da época e lançando mão de determinados códigos e de redes de solidariedade remanescentes da terra natal. Entre as mulheres baianas já constituía uma espécie de tradição o fato de se agruparem em torno de pequenas corporações de trabalho, como o comércio de doces e salgados, costuras e aluguel de roupas carnavalescas. Normalmente, essa solidariedade era ditada pelos laços de nação e de religião. Na Bahia era costume dos africanos terem seus ‘cantos’ na cidade onde se reuniam diariamente para trabalhar” (VELLOSO, 1990, p. 212).
Partindo da premissa de que a questão da territorialidade manifestava-se de forma latente nas modificações da estrutura urbana da cidade durante o período da belle époque, a autora analisa a maneira como o surgimento da identidade social baiana esteve concatenado à criação de determinados espaços simbólicos no contexto da cultura popular do Rio de Janeiro. Seriam exemplos disso o “valor territorial” vinculado aos laços de familiaridade e de filiação étnica, expressos na idéia da “família ampliada e concentrada”, bem como o importante papel de mediação exercido pela figura feminina das tias baianas ao possibilitarem canais de diálogo com esferas mais amplas da sociedade seja por meio de seus pontos de venda de quitutes nas ruas do centro e em festas populares da cidade, ou no nicho sócio-simbólico criado em torno das suas residências e terreiros de candomblé, ambientes que contavam com a freqüência de personagens ilustres, como políticos, cronistas, músicos e literatos. Houve, portanto, algum tipo de correlação entre a posição hegemonicamente ocupada por baianos na vida urbano-popular carioca e a visibilidade que esses agentes alcançaram no universo carnavalesco do Rio de Janeiro, no começo do século XX. Essa proposição talvez seja válida se considerarmos que outras referências regionais também integraram contextos lúdico-festivos e da folia carioca neste período, sem, no entanto, obter a mesma visibilidade da “referência baiana”. Basta lembrar, por exemplo, que para o bairro de Vila Isabel – região que na época abrigava a sede de inúmeras unidades fabris – dirigiram-se parcelas
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consideráveis de imigrantes pernambucanos que fundaram, nos arredores do largo bulevar da Avenida 28 de Setembro, o afamado Clube Vassourinhas, introduzindo, assim, o ritmo do frevo no Rio de Janeiro (FARIAS, op. cit., p. 83). Referência essa que se estende ainda a grupos musicais como o Bando de Tangarás – grupo originário de Vila Isabel e que, por algum tempo, chegou a integrar nomes como Noel Rosa e Almirante; ambos se apresentavam com fantasias de cangaceiros e sertanejos e tocavam ritmos como o cateretê, lundus, maxixes, corta-jaca, etc. O mesmo vale para o interesse despertado no público carioca pelo grupo pernambucano Turunas da Mauricéia. Anunciados como “músicos do Norte” e “caboclos brasileiros”, na década de 1920 os Turunas chegaram a dividir a sala de exibição do Cine Palais com sambistas como Pixinguinha e Donga, então integrantes do conjunto Oito Batutas (ALMIRANTE, 1963, p. 30). Sem contar ainda que o carnaval da cidade registrava a presença
de agremiações inspiradas em temas sertanejos, como é o caso do Grupo do Caxangá que, em nota publicada pelo Jornal do Brasil, aparece com a seguinte descrição: “Reaparecerá no próximo carnaval o Grupo do Caxangá, vestido com características roupas do sertão do Norte. Os conhecidos foliões dão seus ensaios nos salões da Kananga do Japão. (...) João Pernambuco cantará as sentimentais toadas do Cariri” (Jornal do Brasil, segunda-feira, 12.02.1917, p. 9).
Acredito que em meio a essa diversidade de referências regionalistas, uma questão, em especial, pode ser aqui tomada como heurística para precisarmos a imagem de Bahia que estaria sendo gerada nesse contexto lúdico-festivo da cultura popular, durante a belle époque carioca. O interessante é observar que o nome de vários personagens se repete quando o tema é a participação de baianos nos processos de modernização do samba e do carnaval cariocas. Não por acaso, no começo do século XX vemos tanto na incipiente profissionalização do samba quanto na formalização dos ranchos carnavalescos um ponto em comum no tocante ao modo como passaram a ser produzidas e veiculadas diferentes imagens e matrizes simbólicas no âmbito dos desfiles carnavalescos e da música, sendo decisiva a criação, digamos assim,
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de um corpo de especialistas em cada um desses campos da cultura urbano popular carioca. Como exemplo, temos de um lado e de forma mais visível, é bem verdade, funcionários públicos e operários que integraram uma primeira safra de cenógrafos, coreógrafos e artistas plásticos preocupados com a produção do desfile dos ranchos carnavalescos. De outro, um conjunto de agentes que, também participantes do universo do carnaval, estiveram envolvidos com uma dinâmica mais ampla da modernização da cidade – como no caso dos cronistas carnavalescos – e de outros ainda sem bases estáveis na sociedade, mas que já despontavam como atores da cultura popular, e que viam no samba algum tipo de inserção social – como é o caso tanto das tias baianas (ficando apenas com aquelas imortalizadas pela memória do samba, cito aqui as tias Ciata, Perciliana e Bebiana), quanto de personagens pioneiros da fase de fixação do samba enquanto gênero musical (como Sinhô, Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Hilário Jovino, Germano, etc), assim como, posteriormente, os sambistas cujos nomes seriam associados às escolas de samba (Ismael Silva, Brancura, Bide, Bucy Moreira, Marçal, Carlos Cachaça, Cartola, Paulo da Portela, entre outros). No entanto, alguns desses nomes estiveram envolvidos em cenas de intrigas e disputas durante o processo de formalização dos ranchos carnavalescos. Cenas que muito se assemelham àquelas mencionadas na seção anterior, quando tratamos da imagem de Bahia veiculada nas polêmicas em torno da profissionalização do samba. Acredito que a trajetória de Hilário Jovino configura um caso típico – sendo ele um personagem-símbolo dessa fase – para qualificarmos uma questão central do nosso trabalho. Já falamos das polêmicas que envolvem seu nome e o de Sinhô, quando questiona a autoria de algumas composições que este último assinava, e também do incentivo que deu a Donga na divulgação da música “Pelo telefone”, assim como das “disputas carnavalescas” que mantinha com tia Ciata. Embora os dados biográficos de Hilário sejam escassos e pouco precisos, as informações mais completas são fornecidas por ele mesmo em entrevistas realizadas pelo
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cronista carnavalesco Vagalume, publicadas no Jornal do Brasil durante as primeiras décadas do século XX. O que evidencia que, já nessa época, era uma pessoa de prestígio na cidade. Ao certo, sabe-se apenas que residia nas proximidades da zona portuária e que era empregado da Guarda Nacional, onde foi Tenente. Patente baixa, mas que favorecia estreitas ligações com a polícia da cidade. O que não deixa, por sua vez, de significar algum tipo de segurança e proteção para a prática dos ranchos carnavalescos. Em entrevista ao Jornal do Brasil, no ano 1913, o tenente Hilário afirma que já existiam ranchos no Rio de Janeiro, antes da sua chegada no ano de 1872, como é o caso do rancho “Dois de Ouro”. Hilário teria aderido a essa agremiação, mas logo fundaria o seu primeiro rancho (o “Rei de Ouro”), no ano de 1893, cuja sede ficaria na “Pedra do Sal”; lugar da zona portuária onde muitos baianos se instalaram (GONÇALVES, op. cit.). Vejamos, então, no que consistiria a inovação implantada por Hilário no carnaval carioca, nas palavras do cronista Vagalume: Agora que os barulhentos e espalhafatosos cordões se vão transformar em ranchos, substituindo as chulas por lindas marchas e a pancadaria de pandeiros e tamborins por afinadas orquestras, é curioso saber-se o histórico dos ranchos, como eles foram introduzidos na capital republicana e quem os seus introdutores. Os nossos ranchos carnavalescos tiveram origem no Estado da Bahia, segundo nos informou o Sr Tenente Hilário Jovino, a quem pedimos informações a respeito. Eis o que ele nos disse: - Em 1872, quando cheguei da Bahia a 17 de junho, já encontrei um rancho formado. Era o Dois de Ouros, que estava instalado no Beco João Ignácio, n. 17. Ainda me lembro: o finado Leôncio foi quem saiu na burrinha. Vi, e francamente, não desgostei da brincadeira que trazia recordação do meu torrão natal; e, como residia ao lado, isto é, no beco João Ignácio, n. 15, fiz-me sócio e depressa aborreci-me com alguns rapazes e resolvi então fundar um rancho. - A saída deixou de ser no dia apropriado, isto é, 06 de janeiro, porque o povo não estava acostumado com isto. Resolvi então transferir a saída para o carnaval. (Jornal do Brasil, sábado, 18 de janeiro de 1913, p. 10).
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A avaliação de Hilário Jovino quanto a transferência da data de desfile do seu rancho do dia de Reis para o carnaval estaria centrada na percepção de que “a aceitação dessa forma de brincar seria mais fácil no contexto de um carnaval que dava origem a tantos conflitos” (CUNHA, op. cit., p. 212). Inclusive, na tentativa de consolidar a brincadeira dos ranchos, Hilário chegaria a
tratar com desdém outras formas de folia, sobretudo os cordões e os cucumbis. Um exemplo disso estaria na criação do sujo Afoché, brincadeira que fez junto com o famoso pai-de-santo João Alabá, no ano de 1900. O sujo consistiria numa espécie de jogo de sátiras e provocações entre integrantes de diferentes ranchos. No entanto, o Afoché, segundo Donga, seria uma brincadeira “contra as ‘crenças’ de pais e avôs dos cariocas organizados em torno dos cucumbis” , satirizava-se assim “suas toadas e seus instrumentos de percussão”, imitando “tipos negros bem conhecidos na cidade, identificáveis sem dificuldade pelos contemporâneos na caricatura de seus trejeitos e hábitos” (Apud CUNHA, op. cit., p. 213). Em certo sentido, esse episódio sugere uma
aversão de Hilário, não somente ao modelo de carnaval dos cordões e cucumbis, mas também aos “africanismos”, a práticas “antigas” e tradições negras existentes no Rio de Janeiro. Além de rixas com a população local, “Lalau de ouro” (como Hilário era conhecido no meio carnavalesco e boêmio da cidade) protagonizou cenas que marcaram dissidências entre seus conterrâneos. Uma das polêmicas mais citadas pela literatura, entretanto, envolve o seu nome e o da tia Ciata, os baianos mais ilustres da cena popular carioca daquela época. Contase que, chegando no Rio de Janeiro, Hilário se hospedaria na casa do baiano Miguel Pequeno, onde Ciata se encontrava desde o ano de 1876 (e já nessa época era uma figura respeitada nos candomblés cariocas). Ao que parece, fundar um rancho era um sinal de prestígio no interior desse grupo, tanto que Miguel Pequeno também queria formar seu rancho juntamente com Ciata, e já tinha até nome (Rosa Branca) e registro policial, quando Hilário resolve participar da sua montagem. No entanto, um incidente interrompeu o projeto: Hilário teria se envolvido com a mulher de Miguel Pequeno, a também baiana Amélia Kitundi13. Diante do desgosto de 13
Depoimento de Bucy Moreira, neto de tia Ciata, a Roberto Moura (ver MOURA, 1983, p. 92).
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Miguel Pequeno, Ciata ficaria furiosa, desencadeando assim uma inimizade que jamais foi superada, entre Hilário e a sua xará (ironicamente, o nome de Ciata era Hilária Batista de Almeida). Esse episódio teria dividido o grupo de baianos instalados no bairro da Saúde. Formariam-se assim lideranças centralizadas, respectivamente, em ambos os personagens e que eram facilmente percebidas, juntamente com as celeumas aí geradas, nas cenas de disputas que se arrastaram ao longo dos carnavais do início do século XX entre os diferentes ranchos criados por baianos (Donga et al., 1970, p. 79). A despeito das brigas, esse grupamento baiano passaria a fundar inúmeros ranchos pela cidade que, por vezes, eram identificados ora como cordões pela crônica da época ora como manifestações de cunho folclórico. Ao que tudo indica, somente no ano de 1907 definiria-se o modelo ranchos carnavalescos, com a fundação do Ameno Resedá. Rancho em que o no nome de Hilário Jovino esteve mais uma vez vinculado, assim como o do cronista Vagalume. O perfil dos integrantes desse rancho era bem diverso. Nele desfilavam operários do arsenal, comerciários, músicos independentes, mas principalmente os da banda do corpo de bombeiros (dirigida por Anacleto Medeiros, também fundador do rancho e nascido na “pequena África”), funcionários públicos e comerciantes importantes do Catete (bairro onde localizava-se sua sede). Certamente, o tipo de enredo apresentado pelo Ameno Resedá foi essencial para o seu sucesso. Seus enredos eram marcados pelo conteúdo pedagógico, o que se percebe pela inclusão de temas literários clássicos – A corte egipciana, A divina comédia, por exemplo – e pelo aperfeiçoamento da apresentação carnavalesca, dada a exuberância de seus estandartes, alegorias, fantasias e roupas, elaborando assim uma espécie de cortejo dramaturgico-musical. E assim, logo o Ameno Resedá seria destacado pela imprensa carioca como a mais importante agremiação carnavalesca da cidade (ver EFEGÊ, 1965, p. 111-124).
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Gostaria de chamar a atenção, no entanto, para os tipos de imagens associadas à Bahia, colocadas em cena justamente na fase de formalização dos ranchos carnavalescos na folia carioca, durante as primeiras décadas do século XX. A manifestação dessas imagens pode ser verificada nos tipos de fantasias e alegorias carnavalescas desses grupamentos, sobretudo as de baiana. Da mesma forma, inúmeros ranchos e blocos carnavalescos levavam nomes diretamente referidos à Bahia, tais como Sociedade Carnavalesca Baianinhas da Espada, S. C. Baianinhas do Méier, S. C. Baianinhas do Bonfim, Baianinhas Faceiras sem Paixão, Baianinhas da Rua Senador Pompeu, ou ainda grupos com nomes que denotavam uma presença “mais enérgica” da simbologia baiana na cena carnavalesca, com nomes tão inusitados como o “Bloco me Deixa Baiano”14 e o “Grupo Carnavalesco Baiano Burro, Nasce Morto”15. Diversos periódicos registraram esses aspectos. Mas, seguramente, foi o Jornal do Brasil, e mais uma vez pela mão do cronista Vagalume, o principal veículo de divulgação dessas imagens. Gostaria, portanto, de discutir esse material nos próximos parágrafos. Diria que a dimensão simbólica desses ícones é crucial para compreendermos qual o significado que foi atribuído à Bahia no contexto da cultura popular carioca, durante as primeiras décadas do século XX. Para tanto, pretendo discutir esse material à luz da concepção dialógica observada por Mikhail Bakhtin, em seus estudos sobre a construção de categorias estéticas na literatura, concatenada à alternativa de método proposta por Carlo Ginzburg quanto à análise do objeto historiográfico. Creio que a partir dessas ferramentas poderíamos desenvolver algumas considerações a respeito das “pistas” que qualificariam a referida imagem de Bahia.
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Jornal do Brasil, domingo, 21.01.1917, p. 10. Jornal do Brasil, quarta-feira, 22.01.1919, p. 8.
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Atento ao modo como Dostoievski elabora a linguagem polissêmica na qual constituise a trama d’Os irmãos Karamazov – então materializada na “confusão” de consciências a que estiveram fadados os quatro irmãos com o parricídio do velho Karamazov, neste romance –, Bakhtin (1997) procura elucidar as condições em que a autoconsciência humana é determinada pela alteridade, pela “outridade”. O autor defende a idéia de que os enunciados lançados pelos sujeitos – valendo aqui desde personagens da literatura até o relacionamento entre indivíduos na vida social – seriam compostos pela convergência simultânea e infinita de sentidos, cuja modelação jamais encontraria um acabamento final. Nessa linha de pensamento, Bakhtin constrói os conceitos de circularidade, de inversão e de dialogismo, ambos intimamente associados, para dar conta de como ocorrem intercomunicações entre modalidades de cultura diferentes, sejam elas distantes, apenas, ou antípodas. É inclusive apoiado na premissa bakhtiniana que o historiador Carlo Ginzburg elabora sua análise sobre a vida cotidiana de comunidades camponesas européias, no século XVI (1987). No entanto, é numa reunião de artigos compilados sob sugestivo título de Mitos,
emblemas e sinais16, que Ginzburg lança mão de uma questão que vejo como central para os nossos fins. A saber, em que medida às ciências humanas poderia ser facultado um modelo epistemológico que, apoiado na premissa “indiciária” das fontes históricas, possibilitasse apreender as interconexões de sentido específicas às relações, datadas, de uma determinada unidade social? Assim, elaborando uma analogia entre os métodos empregados por Freud, pelo “detetive” Sherlock Holmes e pelo historiador da arte Morelli – respectivamente, a busca dos sintomas, dos indícios e dos signos pictóricos – Ginzbrug argumenta que é intrínseco ao fazer historiográfico o paradigma semiótico-indiciário. Segundo o autor, “a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-las” (GINZBURG, 1989, p. 177). 16
Sobretudo no artigo intitulado “Sinais: raízes para um paradigma indiciário” (GINZBURG, 1989, p. 143-179)
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Os elementos a que nos referimos anteriormente em torno da materialização de uma estética veiculada à Bahia no universo carnavalesco carioca, no começo do século XX, configuram aqui, portanto, “indícios” reveladores de fenômenos mais gerais, de imagens de mundo que foram produzidas e compartilhadas no confronto sócio-simbólico protagonizado por imigrantes baianos no Rio de Janeiro. Passo, enfim, a análise de algumas crônicas publicadas por Vagalume no Jornal do Brasil, em que são destacados os preparativos dos foliões para o carnaval. Nosso intuito agora reside em observar o relato deste cronista sobre os componentes que se apresentam nos ensaios dos grupos carnavalescos, às vésperas da folia. Em especial, daremos atenção a elementos como fantasias, danças, músicas e comidas. Assim, temos: Foi grande a nossa surpresa, quando penetramos a sede das Baianinhas do Bonfim, à rua Augusta n. 48, Estação do Encanto. Quando ali chegamos a rapaziada garrida fazia umas evoluções diabólicas, cheias de dengos e requebros, ao som de maracás, castanholas, flautas e violões, executados com mãos de mestres. O salão era excessivamente pequeno e acanhado para comportar os inúmeros admiradores das baianinhas que, aliás, fazem jus aos mais francos e calorosos aplausos, pelo modo porque tão bem sabem desenvolver as dificílimas contradanças à moda da Bahia umas, e à moda africana outras (Jornal do Brasil, segunda-feira, 10.01.1910, p. 11, grifos meus).
Tudo indica que essa crônica trata-se da visita a um ensaio de determinado rancho carnavalesco situado nas mediações do bairro da Cidade Nova. Logo de início, o nome da agremiação (Baianinhas do Bonfim) me parece sugestivo, embora pouco preciso, de quem eram os seus integrantes. Seriam estes baianos? Acredito, no entanto, que o interessante nesta crônica é observar quais as qualidades que o visitante ressalta sobre o referido grupo. As baianas, como se vê, são enaltecidas pela sensualidade e pela lascívia que se traduzem através de gestos e de expressões tidas pelo autor como típicas da Bahia e do continente africano.
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Ora, nas palavras de Vagalume, essas “baianinhas” elaboravam performances “cheias de dengos e requebros”, mostrando-se exímias dançarinas de “modas” “baiana umas e africana outras”.
Ao que parece, a presença da figura feminina da baiana era comum às mais diferentes agremiações e regiões da cidade. Sobre as Baianinhas Caprichosas – provavelmente, também um rancho, agora localizado no subúrbio – Vagalume destaca, dessa vez, uma música que fala da seguinte maneira sobre a baiana: Lord João Gazista, um antigo e endiabrado carnavalesco do Engenho de Dentro, não perde um só momento para mostrar que o povo da Bahia é bom mesmo de verdade. E quem duvidar disto é dar um pulinho ali à rua Pernambuco n. 100 e então verá como é delicioso ouvir marchas como esta: “Eu vi umas baianinhas/ sambando na areia/ apanhando conchinhas/ e folgando no seio...” (Jornal do Brasil, sábado, 11.01.1913, p. 9).
A culinária é também um elemento sempre destacado. Numa visita à sede do “sujo” Macaco é outro...– suponho que seja a casa da tia Ciata, então líder desse grupo de foliões – Vagalume registraria uma “disputa” entre seu companheiro de profissão e um sambista pelas “delícias” gastronômicas servidas na reunião festiva: Que caruru apimentado, com dendê e quiabos, acompanhado do magnífico acaçá, o pessoal do Macaco é Outro... ofereceu aos seus amigos e camaradas. (...) O “Didi” foi quem enfrentou o Mauro na conjugação do verbo repetir; de modo que o concurso de gastronomia travado entre eles assumiu proporções violentas ameaçando o pessoal de ficar no gelo, se por acaso entre os dois concorrentes não houvesse um “basta”, afim de desempatarem em outra prova obrigada a vatapá. Mas enquanto o caruru era devorado, a “macacada” caia em um samba desenfreado, entoando lindas chulas. (Jornal do Brasil, segunda-feira, 13.02.1911, p. 7).
Essa parece ter sido uma prática generalizada pelos grupos de foliões. Numa nota seguinte Vagalume nos conta que também “esteve muito concorrida a ‘matinée’ realizada ontem na Sociedade Carnavalesca Filhas da Jardineira, na qual foi pela firma ‘Getúlio & Tito’ oferecida uma apimentadíssima peixada à baiana, aos numerosos convidados”. Ou ainda, como no caso do rancho
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Filhos da Jardineira: É hoje que Mamãe Lelé Candinha vai reunir a filharada (...) A meninada vinda do colégio, devido às festas carnavalescas, vai hoje entrar numa peixada à baiana, obrigada a pimenta de cheiro, coentro e azeite de dendê (Jornal do Brasil, domingo, 01.02.1914, p. 25).
Pode-se dizer que, até certo ponto, os cronistas carnavalescos estariam reproduzindo ou retificando uma imagem já comum à figura da baiana. Incluindo aí, entre outros aspectos, seus atributos de sedução, as habilidades e vocação para a dança e para música, sua origem seja baiano-africana, os dotes culinários e as ligações estéticas que essa figura mantém com a religiosidade afro-descendente. Vale lembrar que imagens como essas são recorrentes no imaginário da literatura e nos registros de viajantes europeus que passaram pela Bahia e pelo Rio de Janeiro. Na Bahia, Robert Ave-Lallement se mostra seduzido por essa figura feminina, cuja pele “é negra e limpa e dum frescor como só notei no Rio em negras Minas e, mesmo nestas, raramente. Entre as negras Minas moças da Bahia, vêem-se ou adivinham-se formas admiráveis”. E
presenciando um festejo, diz: “Vi algumas, sobretudo aos domingos, que brilhavam pelos seus atavios. Mesmo na sua gala, aos domingos, procurava permanecer uma negra Mina (...) assim foi que vi muitas negas Minas na sua fatiota domingueira, esplêndido quadro africano” (AVÉ-LALLEMENT, s/d, p. 23-24). No Rio de Janeiro dos tempos imperiais, por exemplo, Manuel Antônio de
Almeida já destacaria a singularidade da baiana, por ocasião de numa procissão: “As chamadas baianas não usavam de vestido; traziam somente umas poucas de saias presas à cintura, e que chegavam pouco abaixo do meio da perna, todas elas ornadas de magníficas rendas; da cintura para cima apenas traziam uma finíssima camisa, cuja gola e mangas eram também ornadas de renda; ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar de corais, os mais pobres eram de miçangas; ornavam a cabeça com uma espécie de turbante (...); calçavam umas chinelinhas de salto alto (...) E além de tudo isto envolviam-se graciosamente em uma capa de pano preto, deixando de fora os braços ornados de argolas de metal simulando pulseiras” (ALMEIDA, 1969, p. 75)
Um dado interessante encontrado nos jornais é que a baiana representaria também uma fantasia que – claro, por ser uma fantasia – assumiu múltiplas formas e simbologias na cena carnavalesca do Rio de Janeiro. Um exemplo disso está no fato de que diversas crônicas
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registram a presença de foliões – predominantemente no espaço das ruas e não em sedes de agremiações carnavalescas – travestidos de maneira idêntica à baiana dos tempos do Império, descrita acima. Foi assim que saiu, certa vez, o Grupo das Sabinas do Poleiro, cujos participantes eram também sócios do Clube dos Fenianos, uma das três grandes sociedades carnavalescas da cidade: Sempre espirituoso, cheios de Verne os carnavalescos do poleiro vieram ontem para a rua numa organizada passeata do Grupo das Sabinas do Poleiro, constituído por nada menos de 45 gatos vestidos de baiana, não lhes faltando a anágua, a chinelinha, a trunfa, o baragandã e pano a tiracolo. Já se deixa ver que, sendo um grupo de baianas do “poleiro”, a roupagem não podia deixar de ser alvi-rubra. (Jornal do Brasil, segunda-feira, 09.02.1914, p. 10, grifos meus).
Em outra crônica publicada desta vez extraída do jornal Gazeta de Notícias, e escrita provavelmente por Mauro de Almeida, cronista responsável pela cobertura do carnaval naquele periódico, temos dois registros muito semelhantes ao que foi feito por Vagalume: Visitou-nos Virgilio Mesquita de Almeida, que é um rapagão endiabrado e veio vernos, como era carnaval, fantasiado de baiana, mas parecia um baianão (Gazeta de Notícias, 16.02.1915, p. 1). Era uma baiana verdadeira: dengosa, requebrada, cheia de remelexos e de bamboleios complicados. Parou no meio da sala e dançou: dançou com graça, agitando num lundu cheio de dengos, macios, maneiros: – Quebra, baiana gentil... E a baiana se requebrava... Depois soubemos: era o pequeno Campos que causou um sucesso enorme fantasiado de baiana... (Gazeta de Notícias, 16.02.1915, p. 3).
Ora, que o significado e qual o lugar da fantasia de baiana no meio desse universo masculino-carnavalesco? Em que medida o seu uso, além de reportar-se, a um só tempo, tanto para a idéia de inversão quanto para uma questão sexual, nos permitiria compreender o significado de Bahia nesse contexto? Comentando sobre a importância do uso desta fantasia no carnaval do Rio de Janeiro, no começo do século XX, Edson Farias sugere que ela também teria se encaixado ao processo
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de modernização da festa ao exercer uma dupla função da codificação e contenção dos impulsos dos foliões – tanto bélica quanto civilizatória, no caso – tendo em vista que sua vestimenta, composta por grandes saias e muitos panos, proporcionaria aos participantes da festa a possibilidade de se forjar e esconder, por exemplo, armas brancas e de fogo, acionadas na eminência e em circunstâncias em que eram deflagrados conflitos específicos aos grupos integrantes dos mais diversos modelos de carnaval, na rua. Essa, segundo o autor, seria, inclusive, a principal razão pela qual o uso da fantasia de baiana, no carnaval, foi mais freqüente entre os foliões do sexo masculino. Para o autor, sua conotação enquanto símbolo de tradição negro-baiana no universo tanto do carnaval quanto do samba seria efetivada, por sua vez, com as inovações implementadas por Paulo da Portela para os desfiles da escola de samba, sobretudo, ao criar a ala das baianas (FARIAS, 1999, p. 221-222). De fato, o lugar simbólico ocupado pela figura e fantasia de baiana e as codificações nelas traduzidas, denotam, desde sempre, a complexidade de sentidos em que foi inventada certa imagem de Bahia no universo do carnaval carioca. Se, a um dado momento, ela assumiu feições catalizadoras do uso da violência no processo de formalização das escolas de samba, por outro, é inegável sua condição de signo de referência da ancestralidade e da descendência afro-baiana, no contexto da cultura popular carioca. Em seu estudo sobre as escolas de samba do Rio de Janeiro, Maria Laura Cavalcanti aponta, em particular, qual a posição ocupada pelas integrantes da ala das baianas e o respectivo “capital” simbólico que detêm em relação ao conjunto mais amplo da agremiação, nos dias de hoje: Há um tipo corporal característico de baiana: toda chefe de baiana e grande parte da ala são mulheres mais velhas, geralmente já avós, de fartos seios e formas. A ala alude às origens afro-brasileiras do samba e, além de maternais e acolhedoras, as baianas representam também a prodigalidade. Toda escola faz anualmente uma festa das baianas, na qual elas oferecem tradicionalmente um banquete onde não falta nada. Toda escola ouve muito suas baianas, e a autoridade a elas atribuídas e a deferência com que são tratadas podem ser percebidas, em sua forma negativa, na gíria popular “rodar a baiana”, usada para designar alguém que expressou com razão muita raiva. O
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descontentamento de uma baiana não é um descontentamento qualquer: tem um forte lastro moral. Por essa razão um carnavalesco dá sempre especial atenção à fantasia das baianas (CAVALCANTI, 1994, p. 198-199).
Certamente, o processo de construção da respeitabilidade das “baianas” nas escolas de samba não é, por enquanto, um problema que se pretende desenvolver aqui. No entanto, acredito que a descrição feita por Cavalcanti sugere delineamentos importantes para que possamos compreender o lugar da fantasia de baiana no universo em questão. Acredito que não se trata de uma simples vestimenta ou de um mero figurino carnavalesco. Mas de uma “fantasia” com propriedades simbólicas específicas e que condensa funções particulares do significado de Bahia no Rio de Janeiro, no início do século. Uma fantasia – que, por ser fantasia, agrega valores e ao mesmo tempo um caráter espetacular e de representação idílica – que transpõe para o centro da cena carnavalesca uma referência identificada genericamente à Bahia. Não uma referência à toa, mas ancorada e determinada pelo lugar que a Bahia ocupa nesta festa. Lugar que expressa certo prestígio, uma espécie de “autoridade simbólica” de certa imagem de Bahia. A título de ilustrar essa hipótese, transcrevo, abaixo, uma última crônica de Vagalume, registrando a criação do Grupo Carnavalesco Baiano Burro, Nasce Morto: Ninguém se espante, porque depois de muito natural, o incomparável e incansável folião Lellis Aragão acaba de fundar um novo bloco que este ano se destina ao mais franco sucesso. O bloco é denominado “baiano burro, nasce morto”. Depois dos Filhos da Candinha, do Ideal das Pérolas, surge agora este cujo sucesso é fácil de se prever. Lellis assim explicou a coisa: - “Ora, já estou velho e não tenho mais ideal. Comigo agora é na realidade e o amigo concordará que baiano burro nasce morto. Na terra do vatapá, meu amigo, todo mundo é sabido.” (Jornal do Brasil, quarta-feira, 22.01.1919, p. 8).
Um tanto inusitado, e bem carnavalesco é verdade, o nome desta agremiação transmite certo ar de materialidade ao que se tentou defender ao longo deste capitulo. E assim acredito
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que podemos arriscar uma primeira conclusão sobre o que até agora discutimos, os elementos descritos e as questões desenvolvidas anteriormente. O reconhecimento consensual de viajantes, literatos, músicos, foliões e cronistas carnavalescos sobre a(s) simbologia(s) que compõe(m) a figura da baiana. Ou seja, de uma figura que, feminina, integra uma síntese de elementos que são vinculados tanto a aspectos e práticas da cultura afro-descendente – sobretudo a culinária e religiosidade -, quanto a gestos e expressões de cunho lúdico-festivo associadas também à matriz africana – a dança e a música, por exemplo – e, por fim, a especificidades comportamentais e códigos de conduta originários de sociabilidade “afro-baiana” transferida para o Rio de Janeiro – destacamos a sensualidade e a lascívia – confirmam, suponho, que a Bahia representou um signo de distinção no universo da cultura popular do Rio de Janeiro. Pode-se ler este processo de construção e seu significado mais amplo de “africanidade” baiano-carioca, como uma duplaconsequência da visibilidade alcançada por imigrantes baianos na modernização do carnaval carioca, no início do século XX. Vimos, no entanto, que essa participação de baianos foi marcada por cenas de disputa estreitamente ligadas à outros domínios simbólicos, como no caso do samba. Esse conjunto de relações de conflito entre os próprios imigrantes baianos, e deste, por sua vez, com o universo popular do Rio de Janeiro, constituiu um âmbito fundamental para a formalização de uma certa imagem baiana. Contudo, em consórcio com essa construção simbólica percebe-se o papel igualmente decisivo da configuração de dispositivos narrativos específicos ao tempo da belle époque carioca. Partimos, portanto, no próximo capítulo, para uma reflexão sobre essa questão.
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CAPÍTULO 3: PLANOS NARRATIVOS DA BELLE ÉPOQUE CARIOCA. No capítulo anterior discutimos a atuação de imigrantes baianos nos universos do samba e do carnaval carioca, no início do século XX. E, ao mesmo tempo, procuramos qualificar o lugar simbólico das imagens de Bahia registradas nesses mesmos contextos e que foram veiculadas em jornais da época. Para tanto, tomamos por objeto a análise tanto das polêmicas em que estiveram envolvidos diferentes atores ligados ao reduto baiano-carioca quanto de peças musicais e indumentárias de carnaval que tematizaram a Bahia. Assim, pudemos perceber que essas imagens, embora por vezes assumissem sentidos diversos seja no universo do samba ou no do carnaval, mantiveram um ponto em comum: a associação entre uma certa idéia de tradição baiana a elementos e símbolos da cultura afro-descendente. O argumento que se pretende desenvolver neste capítulo toma por hipótese o fato de que a formalização dessa imagem baiana esteve consorciada a uma determinada configuração social da cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX. Pressuponho, portanto, que um gradiente narrativo-simbólico agiu decisivamente no complexo de interdependências sociais da cidade e, por sua vez, na construção da imagem baiana que vínhamos discutindo. Assim, nosso objetivo aqui consiste, primeiramente, em analisar a qualidade dos conceitos de “pequena África” e de belle époque, por serem termos sempre empregados quando se tenta caracterizar, no caso do primeiro, o espaço urbano onde imigrantes baianos obtiveram maior visibilidade e, no segundo, a época em que a cidade atingiria um certo ideal de civilidade e de modernidade. Acredito que esses conceitos plasmam uma dimensão sociológica importante para compreendermos esta fase do processo de formação social da cidade do Rio de Janeiro. Apoiado nessa premissa, procuro argumentar que um dos pilares da construção simbólica da imagem baiana no Rio de Janeiro foi o da específica condição sociológica que imigrantes baianos assumiram no contexto narrativo e de interdependências construídas entre a belle époque e a “pequena África”.
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Com o intuito de compreender como uma determinada estrutura de sentidos foi construída em consórcio ao processo de modernização sócio-urbana da cidade do Rio de Janeiro, no começo do século XX, recorro, inicialmente, a uma breve revisão das abordagens que a historiografia fez deste período. De um modo geral, a belle époque é vista como o estágio final de um processo em que foi intensificado o esforço da elite republicana em empreender um tipo de pedagogia capaz de introduzir modos de conduta importados do continente europeu e tidos como civilizados. Segundo Nicolau Sevcenko, as frenéticas mudanças sociais por que passou o Rio de Janeiro, nesse período, representaram, a um só tempo, a expansão dos valores ocidentais e capitalistas e uma “desestabilização” das condições de integração social de “regiões periféricas” do globo (SEVCENKO, 1999, p. 44). Para o autor, essa foi, no caso do Brasil, uma condição essencial
para que novos segmentos hegemônicos – herdeiros da empreitada abolicionista e republicana – criassem mecanismos de superação da antiga estrutura urbano-colonial do país. Assim, orientando-se sob um “ideal vitorioso do progresso e da riqueza”, a belle époque carioca conformaria alguns padrões de conduta e de reformulação do ambiente urbano. Identificados pelo autor como: “(...) a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense” (SEVCENKO, op. cit., p. 30).
Esse processo se fez sentir desde instâncias sutis da vida da população até as configurações assumidas pelo aparato estatal brasileiro. É emblemático, no primeiro caso, que em meio a essa reestruturação sociológica coincide a chegada e a consolidação de
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determinadas práticas esportivas, como no caso do futebol, do remo, do ciclismo, da equitação e de demais modalidades, com a proliferação de clubes e associações que promoviam atividades de caráter físico e competitivo pela cidade. Essas práticas lúdicorecreativas, inclusive, chegam a ditar os novos “padrões de beleza” física da população. Um exemplo disso está na conexão que Micael Herschmann e Kátia Lerner vêem entre o aparecimento da figura do “sportman” e as aspirações vivenciadas na belle époque. Para os autores, o crescente espaço dessas atividades na vida do Rio de Janeiro era “indício do fenômeno de modernização e de organização das condutas que já atingiam outros eventos da sociedade brasileira”, cuja tarefa seria a de “regenerar o homem brasileiro”, através do ideal de um
homem saudável, elegante, compenetrado, disciplinado e competitivo. Os autores argumentam ainda que a difusão do futebol entre camadas menos privilegiadas da sociedade, cumpriu um papel importante de contenção do conteúdo emotivo da vida cotidiana da população, de forma análoga ao significado que literatos atribuíram ao carnaval, em fins do século XIX (HERSCHMANN & LERNER, 1993, p. 29-39). A reverberação desse processo na forma como o Estado republicano agiu, se traduziu, sobretudo, na ação repressiva às circunstâncias adversas ao então projeto modernizador, principalmente, as manifestações lúdico-festivas de segmentos populares da população, então compostos, em sua maioria, de negros e mestiços. Estigmatizava-se, enfim, tudo que pudesse macular a construção da auto-imagem que se quis distanciada da herança dos tempos coloniais. Sabemos, por outro lado, que mecanismos de reestruturação da vida social também tiveram de ser inventados pelas camadas menos favorecidas da população. Como nos mostra Maria Cristina Wissenbach, não podemos esquecer de que essa era uma sociedade com pouco menos de trinta anos de convívio com negros livres. Agentes, por sua vez, que participaram de outras vias de integração social que não aquelas tipicamente consagradas como sendo da
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“elite branca”. Vias essas que se configuraram, sobretudo, a partir da ampliação de uma certa
idéia de “intimidade às formas de associação e de convívio social” e que seriam celebradas “em expressões de identidade social, religiosa e cultural” (WISSENBACH, 1998, p. 130).
No caso específico do Rio de Janeiro, José Murilo de Carvalho nos fala de uma cidade que se configurava enquanto pelo conjunto de fragmentos e de nichos de sociabilidades dispersos; de uma cidade que reunia coletividades formadas por nacionais e estrangeiros de diversas procedências e que elaboravam diversas sínteses, por exemplo, de “mundos populares” e de negros: “A cidade não era uma comunidade no sentido político, não havia o sentimento de pertencer a uma entidade coletiva. A participação que existia era antes religiosa e social e era fragmentada. Podia ser encontrada nas grandes festas populares, como as da Penha e da Glória, e no entrudo; concretizava-se em pequenas comunidades étnicas, locais ou mesmo habitacionais; um pouco mais tarde apareceria nas associações operárias anarquistas. Era a colônia Portuguesa, a inglesa; eram as colônias compostas por imigrantes dos vários estados; era a Pequena África da Saúde, formada por negros da Bahia, onde, sob a matriarcal proteção de Tia Ciata, se gestava o samba carioca e o moderno carnaval (...)” (CARVALHO, 1987, p. 38).
Complementando esse sucinto retrato sócio-histórico, soma-se o fato de que a cidade do Rio de Janeiro registrou um vertiginoso aumento demográfico durante o período, quando chega a uma média anual de crescimento de 3,2% da população, entre os anos de 1890 e 1920. Contando com o incremento proporcionado por imigrantes nacionais e estrangeiros que, desde meados do século XIX, aportavam na cidade atraídos pelo incipiente progresso econômico e social da metrópole, na busca de melhores condições de vida. Sendo esse um dos fatores que contribuiu, por sua vez, para o agravamento das condições sanitárias e de saúde pública, para o aumento do índice de desemprego e problemas habitacionais (SALVATORE, 1992, p. 35).
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Não por acaso, data dessa época a implementação de inúmeros projetos de reformas sócio-urbanísticas, sobretudo do conjunto de medidas que configurou o plano diretor da gestão do prefeito Pereira Passos, que viria alterar decisivamente toda a paisagem da região central do Rio de Janeiro. As reformas empreendidas por Passos ficaram conhecidas pela expressão popular do “bota abaixo” que, simbolicamente, denotava a forma brutal com que se tentou assepsiar as mazelas sociais da cidade, ganhando materialidade com a destruição das habitações populares que se localizavam no bairro do centro – também conhecidas como “cabeças-de-porco” por se tratarem de moradias precárias e superlotadas, de poucos cômodos e população numerosa, tornando-se num campo fértil para a proliferação das epidemias – assim como de alguns morros para a construção das novas artérias de circulação da cidade, como é o caso da Avenida Central, atual Rio Branco. Entretanto, a construção dos espaços e identidades sociais durante a belle époque carioca não se restringiu à questão do reordenamento geográfico e paisagístico da cidade. O impacto simbólico desse processo sobre a população carente e marginalizada se cristalizaria com o deslocamento desses segmentos em direção aos subúrbios e morros da cidade. Sobretudo em busca de novos abrigos com a implementação das reformas urbanas. Um desses pólos subalternos viria a constituir a área que compreenderia desde a região do cais do porto até os bairros da Saúde e da Cidade Nova, sendo rodeada pelos morros do Santo Cristo, da Providência (na época, Favela), de São Carlos, Catumbi, Gamboa, Mangueira e Estácio, cujo epicentro seria a antiga praça Onze de Junho. Esta, enfim, seria a região da cidade que ficou conhecida como “pequena África”. O conceito de “pequena África”, por sua vez, configura na literatura historiográfica a idéia de que foi um espaço possível de integração entre segmentos subalternos da cidade, durante as primeiras décadas do século XX. Concordando que “apesar de tantas condições adversas”, Mônica Velloso (1988, p. 15) vê nesse lócus sociológico, por exemplo, a agregação
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de “elementos marginalizados pelas propostas modernizadoras”. Para a autora, esse lugar representaria um desafio ao processo de formação social da cidade que se “idealizava” uma Europa possível e não oferecia “formas alternativas” de integração à população marginalizada. Na “pequena África”, nas palavras da autora, “a cultura popular consegue sobreviver, criando estratégias próprias de defesa”, sendo decisiva a construção de uma certa “liderança comunitária”
por parte de imigrantes baianos: “Tia Ciata, através do candomblé, consegue criar uma verdadeira comunidade popular. Liderada por elementos negros, oriundos da Bahia, essa comunidade vai oferecer alternativas de organização fora dos modelos da rotina fabril (...). A denominação de “pequena África” à Cidade Nova registra o anseio de uma comunidade – que não se reconhece enquanto branca – de fazer valer a sua identidade” (VELLOSO, op. cit., p. 16).
Parece mesmo que grande parte da bibliografia compartilha a idéia de que a “pequena África” foi um reduto e referência da cultura negro-baiano-carioca. Para Muniz Sodré, por exemplo, a residência de tia Ciata reteve “elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global”17, configurando-se numa espécie de “biombo cultural” e ponto, por excelência,
da cultura afro-descendente, no Rio de Janeiro. O interessante é que essa referência representa, antes de qualquer coisa, uma estruturação simbólica que teve na história do samba, talvez, o seu principal suporte narrativo. Basta lembrar que a população local era bastante heterogênea, formada por uma diversidade étnica que contou com a presença, entre outros, de ciganos, portugueses, italianos e judeus. Sérgio Cabral recorda-se, por exemplo, que: “(...) Jamais um sambista mencionou, em qualquer entrevista concedida a mim (nem a outros. Pelo menos, não li), a presença dos judeus na praça Onze. Em compensação Samuel Malamud escreveu um livro de 120 páginas sem uma frase se quer (a não ser o 17
Seriam esses elementos a “responsabilidade pequeno-burguesa dos donos (o marido era profissional liberal valorizado e a esposa, uma mulata bonita e de porte gracioso); os bailes na frente da casa (já que ali executavam músicas e danças mais conhecidas, mais “respeitáveis”), os sambas (onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado) nos fundos; também no fundos, a batucada – terreno próprio dos negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso (...)” (SODRÉ, 1998, p. 15).
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registro de que a praça ficou famosa pelo seu carnaval) sobre o turbilhão em que o local se transformava com a presença dos sambistas. Entretanto, “durante todos os dias da semana, a praça Onze fervilhava de judeus”, escreveu Malamud, que adiante destacou os bares freqüentados pela comunidade judaica – o Praça Onze, o Capitólio e o Jeremias –, exatamente os mesmos freqüentados pelos sambistas. Como se um povo fosse invisível para o outro (...)” (CABRAL, 1996, p. 67-68).
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Entendo aqui que os conceitos de belle époque e “pequena África” representam uma configuração de valores e de sentidos. Os mobilizo, portanto, a partir da natureza narrativa com que estabelecem equivalências e oposições semânticas da “realidade social” em questão. Por sua vez, importa matizar aqui a questão de em que medida – concomitante às exigências urbanísticas e à estruturação simbólica aí deflagrada – a polarização entre a belle époque e a “pequena África” traduziu uma condição sociológica específica em meio esse acentuado processo de estigmatização dos segmentos subalternos da população, principalmente, de negros e mestiços. Pretende-se, portanto, tomar essa reconfiguração sócio-geográfica da metrópole carioca não somente enquanto metáforas dos espaços que estavam sendo demarcados entre diferentes grupos étnicos e/ou sócio-econômicos – ou, se quisermos, da distribuição das interdependências construídas entre-grupos –, mas também como solo fértil para o entendimento de como diferentes narrativas foram produzidas sobre o elemento popular. O fato é que, juntamente com as mudanças ocorridas nas primeiras décadas do século XX, percebe-se nos temos belle époque e “pequena África” a materialização de disposições que enfocam um confronto entre o que seria o moderno e o tradicional, o civilizado e o bárbaro, e assim por diante. É interessante observa como o âmbito das festas populares comparece nesse contexto. Perguntando-se sobre como as idéias de ordem e de inversão social estiveram implicadas ao longo do carnaval e da festa da Penha, na passagem do século XIX para o século XX, Rachel
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Soihet (1998) verifica uma ampliação e difusão de elementos e práticas culturais nas diferentes camadas que compuseram a malha social do Rio de Janeiro, naquele período. A autora ressalta que a festa da Penha, por ser originariamente um evento católico, expressou “um universo ideológico de grupos dominantes”, embora fosse a festa mais popular desse
período. Em contrapartida, fazendo uso do conceito bakhtiniano de circularidade cultural, Soihet argumenta que eventos como proporcionou a interpenetração de valores e uma realocação de dispositivos de reconhecimento de diferentes atores sociais, tendo em vista que a festa paulatinamente passou a integrar elementos de uma cultura popular fortemente identificada com tradições, símbolos e práticas de comunidades negras do Rio de Janeiro. É o caso do samba que, segundo a autora, embora tenha sido objeto de perseguição por longo tempo, obteve condições de persistir tanto entre negros quanto em outros grupos, “passando a se constituir em ritmo característico da sociedade brasileira como um todo” (SOIHET, op. cit., p. 45).
Sob essa ótica, Soihet sugere um questionamento da idéia de controle sobre populares, já que esses eventos como os da Penha e o carnaval, configuraram importante palco de “subversão” da posição estigmatizada e periférica assumida ao longo do cotidiano dos
populares. Portanto, ao observar que houve um compartilhamento de determinados símbolos tidos como próprios de camadas subalternas entre o diversificado público das festas, a autora argumenta que jamais houve um efetivo controle da brincadeira de populares nessas ocasiões. Pelo contrário, Soihet vê nessas ocasiões a manifestação de certo poder por parte desses agentes, agindo na contra da posição simbólica de escória em relação ao conjunto mais amplo da sociedade. Contudo, no seu quadro lógico-interpretativo fica a impressão de certa continuidade de um olhar que estabelece dualidades entre possíveis mônadas e núcleos de sociabilidade. Ora, se este ou aquele símbolo foi capaz de “circular” entre diferentes grupamentos, em que medida ele pode ser considerado como propriamente de um único grupo?
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Presumo que essa não é a mesma perspectiva desenvolvida pelo trabalho de Martha Abreu (1999), onde são observados as motivações, processos e instrumentos de fiscalização e de controle que atuaram sobre a festa do Divino Espírito Santo, no Rio de Janeiro, ao longo do século XIX. Apesar de nessa festa estarem incutidas práticas culturais antagônicas nos discursos de civilização versus barbárie, progresso versus atraso, tal como no objeto estudado por Soihet, o olhar empregado por Abreu procura superar a dicotomia resistência versus controle de maneira a evidenciar a existência de gramáticas que giram em torno de processos conflitivos e de negociação entre os agentes sociais. Sumariamente, observa-se o seguinte enquadramento no seu trabalho. Primeiro, a autora verifica uma indefinição por parte de autoridades na fiscalização de práticas lúdicas e festivas, ao longo de quase todo século XIX, sobretudo com relação aos pedidos de autorização de instalação de barraquinhas de jogos e bebidas para a festa; e essa indefinição, em segundo, esteve diretamente ligada, principalmente em festas religiosas como a do Divino, ao modo como diversos dispositivos de negociação e conflito foram apropriados por diferentes atores sociais, como delegados, agentes, fiscais, políticos, intelectuais, empresários, escravos, populares, sacerdotes, etc. Como chama a autora a atenção para o caso da policia de festas: “(...) ela nunca deixou de ser um campo aberto de divergências entre diferentes estratégias de dominação e controle, onde as negociações e as autorizações pessoais nunca perderam totalmente espaço, apesar dos dispositivos legais, ampliando os limites de várias manifestações culturais não muito condizentes com as expectativas dos defensores de uma determinada “civilização” (ABREU, op. cit., p. 287).
É o caso também de concessões para a prática de divertimentos, cultos religiosos, sambas, etc., onde a barganha, muitas vezes, representava tanto um mecanismo “indireto” de controle de situação quanto uma certa conquista de condições e espaços por parte daqueles
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que eram “vigiados”. Esse traço, de imprecisão e de negociações, segundo Abreu, atravessou todo o processo de enfraquecimento da festa do Divino Espírito Santo, no Rio de Janeiro. Conclui a autora que a diminuição do prestígio das comemorações dessa festa não teve como motivo principal o cerceamento das formas populares de participação nessa festividade. Devendo-se, em grande medida, a uma configuração mais ampla de remodelação do gosto e apreciação lúdica na cidade – o que, certamente, não implica na ausência de mecanismos de controle que viabilizassem essa mudança. Para Abreu, muito embora não se perseguisse diretamente a festa do Divino Espírito Santo, a partir da década de 1870 seu controle foi esboçado através de diversos projetos de melhoramentos urbanos que impediram, da mesma forma, a manutenção do mais importante espaço público e popular carioca da época – o campo de Santana. Valendo-nos de outra passagem: “Se o enfraquecimento da festa pode ser creditado à transferência da igreja, à demolição daquele velho marco religioso da cidade, no mesmo ano do indeferimento dos pedidos dos barraqueiros, não deve ser vista como uma simples coincidência. Sem dúvida, conjuntamente, representam sinais e sintomas de uma iniciativa controladora mais ampla sobre a cidade e seus habitantes, e não simplesmente uma manifestação de uma provável “decadência dos costumes da nossa sociedade e enervamento de seu senso religioso”, como entendia, saudosamente, Moraes Filho. Ainda mais se lembrarmos que, sob as cinzas da velha igreja, se construiria a estação principal da Estrada de Ferro D. Pedro II, um símbolo do progresso e um novo marco, não religioso, para a cidade” (Id., ibid., p. 271).
Creio que chegamos a um ponto crucial deste capítulo.Vejamos que o argumento da autora chama a atenção, ainda que indiretamente, para a existência de um processo que viria a consolidar uma qualidade lúdica peculiar na belle époque. A exemplo do que se convencionou chamar de moderno carnaval e a festa da Penha – eventos que paulatinamente supriram o espaço deixado pela festa do Divino Espírito Santo, retendo assim novos significados – Abreu aponta que a questão da modernização das festas populares está diretamente associada à uma
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reconfiguração de dimensões lúdicas da cidade. Assim, o carnaval, “planejado por uma elite de literatos para ser uma festa civilizada, européia e unívoca, tornar-se-ia palco das mais diferentes manifestações populares e negras de rua, ironicamente no centro da cidade, de onde se procurava afastar as marcas do atraso e impor o cenário da civilização”, e a festa da Penha, “apesar de ser uma tradicional comemoração religiosa popular e portuguesa e de se realizar numa área distante da cidade, com barracas, jogos e muitas atrações, começou a atrair um significativo contingente da população negra, com seus batuques, capoeiras e sambas” (ABREU, op. cit., p. 297).
É importante lembrar também que, na medida em que esses espaços foram sendo reformulados, onde a participação em massa e popular eram resignificadas, presenciava-se a efervescência da vida cultural e mundana da cidade como um todo. O que para Rosa Maria Araújo (1993) vem a representar uma “vitória do cosmopolitismo republicano”, em que “o projeto normatizador redefine o estilo de boemia, aburguesando e ampliando as práticas de laser da intelectualidade e do povo, conquistando a participação em massa da população nos prazeres mundanos” (ARAÚJO, op. cit., p. 341).
Nesse sentido, pode-se dizer que a dimensão lúdico-festiva durante a belle époque se deu em consórcio com a ampliação e incremento de serviços e atividades que mantiveram estreita relação com as mudanças sócio-urbanas incutidas no processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro. Desempenhando papel de destaque o teatro, cinema e literatura; a boêmia, cafés, cabarés e jogos de aposta; a prática de novas atividades esportivas, assim como a concorrência de festas como o carnaval e a da Penha. Em torno dessas atividades o que se verifica é a existência de disposições sociológicas que atuaram no sentido de canalizar diferentes modalidades de gosto e de divertimento, sob as quais costuraram-se diferentes formas de solidariedades e produziram-se signos de distinção e códigos de conduta na população carioca desse período. Nesse sentido, a tematização sobre a cultura popular é especialmente reveladora, por abranger ela própria uma dimensão lúdica importante e um lócus capaz de sintetizar diferentes planos narrativos da belle époque carioca.
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Para tanto, iremos, a seguir, focalizar o modo como diferentes crônicas reportaram-se à festa da Penha.
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Olavo Bilac, no seu já clássico testemunho sobre a presença dos romeiros da festa da Penha no centro da cidade, no ano de 1913, nos transmite a seguinte impressão: “Num dos últimos domingos vi passar pela Avenida Central um carroção atulhado de romeiros da Penha: e naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, contra a fachada rica dos prédios altos, contra as carruagens e carros que desfilavam, o encontro do velho veículo, em que os devotos bêbados urravam, me deu a impressão de um monstruoso anacronismo: era a ressurreição da barbaria – era uma idade selvagem que voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da cidade civilizada... Ainda se a orgia desbragada se confinasse no arraial da Penha! Mas não! Acabava a festa, a multidão transborda como uma enchurrada vitoriosa para o centro da urbs...” (apud SEVCENKO, 1999, p. 69).
Em sua fala, Bilac reporta-se à festa da Penha como um dos últimos resquícios do que foi a capital republicana antes da chegada de uma certa civilidade. O festejo é para o autor uma manifestação a ser repudiada por macular a imagem que se pretendia construir do Rio de Janeiro e, sobre a qual, a população, aos seus olhos, deveria se espelhar em culto ao autocomedimento e à abnegação da vida mundana. Afinal, como lembra Sevcenko, nessa época “a luta contra a ‘aturrice’, a ‘doença’, o ‘atraso’ e a ‘preguiça’ era também uma luta contra as trevas e a ‘ignorância’ (...)” (SEVCENKO, op. cit., p. 33).
Até certo ponto, pode-se dizer que no Brasil a legitimidade dos olhares que definem a cultura popular esteve consorciada ao caráter autoritário promulgado por segmentos de elite nas reflexões sobre a cultura. Em As tradições populares na belle époque carioca, apoiandose na produção literária brasileira da passagem dos séculos XIX e XX, Mônica Velloso argumenta que a elite brasileira esteve sempre preocupada em construir ora uma imagem
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idílica do elemento popular, como no caso da época romântica do nacionalismo literário, ora em elaborar mecanismos disciplinadores e pedagógicos especificamente a esses setores, como no caso, afirma, do positivismo técnico-científico. Assim, Mônica Velloso considera que, em mais um desses momentos, no período da belle époque: “(...) começa a ser posto em curso o processo de modernização da sociedade brasileira, calcado em um cosmopolitismo profundamente agressivo. O endeusamento do modelo civilizatório parisiense é concomitante ao desprestígio das nossas tradições. Vive-se um apogeu da ideologia cientificista que transforma a modernidade em um verdadeiro mito, cultuado pelas nossas elites. Mais do que nunca, a cultura popular é identificada com negativismo, na medida em que não compactuaria com os valores da modernidade” (VELLOSO, 1988, p. 8-9).
Concomitante ao desenvolvimento dessa “ideologia”, Velloso identifica ainda um aspecto drástico da modernização da capital republicana, o qual esteve intrinsecamente ligado ao crescente processo de monopolização da força física e da vigília por parte do Estado a determinadas “tradições populares”, a exemplo do “candomblé, capoeira, bumba-meu-boi, romarias religiosas, maxixe, violão, serestas, cordões carnavalescos, enfim, as mais variadas expressões culturais passam a ser objeto da vigilância do poder estatal, que volta e meia interfere, legisla, adverte, proíbe e reprime. É o olhar do poder que tudo quer controlar” (Id., Ibid., p. 8).
Entretanto, Velloso sugere que as camadas populares – entendendo-se como qualquer contingente que vivia às margens da elite político-econômica e republicana, e basicamente constituída pela população negra e mestiça – apesar de toda a vigília, conseguiria elaborar práticas, costurar teias específicas de sociabilidade e deter certos bens simbólicos que possibilitariam algum tipo de resistência. Assim, a autora argumenta que as tradições populares, no Rio de Janeiro dos tempos da belle époque, ao mesmo tempo em que foram repreendidas, funcionaram, elas mesmas, enquanto mecanismos de “sobrevivência” de tais grupos. Ao falar do aspecto profano da festa da Penha, Velloso lembra que:
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“A imprensa carioca desencadeia uma violenta campanha contra a festa, identificandoa como local de crimes, malandragens e licenciosidade. Lamenta-se que a ordeira comunidade portuguesa tenha perdido a influência sobre a festa. Mas o que estava realmente em questão era o fato da igreja ter perdido o seu controle sobre o evento, passando este ao domínio popular” (Id., Ibid., p. 20).
Sem dúvida, os literários e cronistas da época exerceram um papel importante tanto na constituição de mediações, como falamos anteriormente, quanto na produção de narrativas, mesmo que tenham assumido orientações divergentes sobre alguns aspectos. Observando a peculiaridade que assume a intelectualidade carioca no período da belle époque, Angela de Castro Gomes (1999) mostra que se, de um lado, segmentos da imprensa do Rio de Janeiro reportavam-se negativamente ao tema da cultura popular, de outro, o movimento modernista a viu como um substrato possível da “invenção de brasilidade”. Em ambos os casos, a produção intelectual foi decisiva para uma definição do elemento popular, registrando em textos imagens mundanas da cidade. Preocupada não com a análise do modernismo enquanto movimento artístico-literário, mas nas confluências entre esse movimento, seu objeto e entorno – ou seja, a cidade, a cultura e a nação – a autora argumenta que as condições encontradas pelos intelectuais cariocas diferiram-se, por exemplo, daquelas dispostas em São Paulo; centro de referência do movimento modernista brasileiro. Partindo desse pressuposto, Gomes observa um deslocamento da produção modernista carioca (sempre identificada enquanto uma vanguarda pré ou pós-modernista) em relação ao cânone paulista. O que seria justificado pelo fato de que as interpretações que procuraram retratar a história e a identidade do Rio de Janeiro atravessavam o próprio tipo de intelectual e de produção cultural que vinha se desenvolvendo na cidade. Para a autora, essa situação seria um reflexo da idéia de capitalidade – a cidade conformando-se numa “arena cultural” entendida enquanto “um espaço de monumentalização do
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poder e um lugar de lutas simbólicas” (GOMES, 1999, p. 23). Ao comparar o caso das metrópoles
paulista e fluminense, Gomes ressalta que diferentes aspectos sócio-formativos influíram na construção das sociabilidades e do campo de atuação desses intelectuais – a organização com base no mercado e produção, no caso de São Paulo, e a presença do aparato estatal, no caso do Rio de Janeiro. Seria essa, portanto, a explicação encontrada pela autora para justificar o perfil que caracterizou a intelectualidade carioca do período, marcada por uma dupla e contraditória inscrição social – ora possuidora de um estreito vínculo com o Estado, ora apreendendo a “rua” enquanto o lócus de sua sociabilidade, aproximando-se da boêmia e da convivência com uma população marginal. Acredito que Ângela de Castro Gomes sugere uma saída para especificarmos tanto a circunstância quanto a maneira com que o tema da cultura popular foi retomado pela intelectualidade (e a crônica jornalística) carioca nos tempos da belle époque. Ou seja, a apreensão de “ambientes populares” enquanto ponto de partida do debate sobre a modernização da cidade. Em parte, pode-se dizer que a sua contribuição se aproxima de outra sugestão lançada por Nicolau Sevcenko (1999), que perfila o argumento de que – a partir dessas mesmas condições identificadas por Wissenbach para o caso do Rio de Janeiro – pôdese criar um campo e um mercado de produção intelectual privilegiado, nos termos mesmo de uma “hegemônica tradição” frente ao restante do país. Para este autor, o posto de capital durante o acontecimento de importantes capítulos da história política brasileira fez do Rio de Janeiro ponto de partida para um ideário de nação, em que se deu relativo destaque à vida cotidiana da cidade, sobretudo, nos retratos feitos por intelectuais e literatos. Sevcenko, no entanto, apresenta uma conclusão que interessa aos nossos fins: que o modo como este debate fluiu na belle époque representou a percepção do “desmembramento” que ocasionaria, na sociedade brasileira, a sua polarização em duas sociedades “antagônicas e dessintonizadas” –
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uma moderna e a outra tradicional; a laboriosa e a ociosa; a urbana e a rural – no campo da literatura, da imprensa e da crônica da época. Com essa rápida digressão, nossa intenção aqui se volta para demonstrar que o modo como a cultura popular foi tratada por escritores de diferentes vertentes não esteve desvinculada da maneira como esses agentes legitimaram um campo específico de atuação. Verdadeiros “produtores de sentidos”, a participação dos literatos, por exemplo, foi decisiva na tentativa, razoavelmente eficaz, de agrupar a heterogeneidade do país sob um signo de nação e povo brasileiros, decodificando determinados ícones como nacionais, e encontrando nas múltiplas faces da vida carioca do início do século XX o terreno que dotaria uma possível síntese narrativa e imagética, seja de Brasil, Rio de Janeiro ou Bahia. Tomando, novamente, o caso da crônica carnavalesca gostaria de precisar alguns dos sentidos imputados sob a festa da Penha, a título de compreendermos como uma narrativa sobre a “pequena África” foi aí também criada, tendo em vista que uma parcela significativa dos “populares” que participavam dessa festa provinha dessa região da cidade, como, era o caso dos imigrantes baianos. Um exemplo disso está numa das crônicas de Vagalume sobre a festa, em que registra a presença de “grupos perfeitamente carnavalescos, entoando chulas e sambas, ao som de pandeiros, chocalhos e ‘reco-recos’, atravessavam a ‘gale’, desenvolvendo passos de dança como fazem aos seus respectivos ‘ranchos’” (Jornal do Brasil, segunda-feira, 07.10.1912, p. 6).
Até certo ponto, portanto, pode-se dizer que foram os cronistas carnavalescos os principais mediadores da “circularidade cultural” a que se refere Rachel Soihet. Ironicamente, os cronistas concorreram pelos mesmos veículos de divulgação daqueles que empreenderam ferrenhas críticas ao aspecto popular da festa – a imprensa. Nesse sentido, basta lembrar que, ao contrário das críticas e o repudio de Olavo Bilac aos romeiros da Penha, os cronistas carnavalescos promoviam e estimulavam tudo quanto fosse por eles considerado “civilizado” nesse festejo. Em 1905, por exemplo, lê-se no Correio da Manhã uma nota que registra a co-
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existência pacífica de elementos tidos como antípodas e inconciliáveis com o caráter profano e “católico” do arraial da Penha: “As promessas são cumpridas com tenacidade, uns sobrem os degraus cavados na rocha vida de joelhos; outros devotos expõem os crânios desnudos aos ardentes raios do sol, animados todos da fé religiosa dos nossos maiores. Cumprida a devoção, recomeça a folgança. Os pandeiros do samba, os choros de dois ou três instrumentos surgem de todos os lados, dança-se o maxixe e a cana verde” (Correio da Manhã, segunda-feira, 23.10.1905, p. 3).
De acordo com Rachel Soihet (1998), o reconhecimento do samba como elemento incivilizado e associado à desordem social seria explicitado por uma parcela significativa dos literatos que escreveram sobre os festejos da Penha18. Sobretudo por estar esse gênero musical associado à população negra e mestiça da cidade. No entanto, quando da proibição do samba na festa da Penha, no ano de 1912, o cronista Vagalume publica uma nota ponderando a real necessidade de intervenção policial sobre o ritmo: “Desde que há a festa da Penha, têm sido permitidos os sambas e os batuques no arraial. Este ano, porém, não sabemos porque a polícia entendeu que devia proibir que os foliões que ali não se divertissem como sucede todos os anos. Já de há muito que não se dá na Penha um fato de maior gravidade, sendo permitidos aqueles divertimentos que muita animação davam aos festejos, pela sua originalidade” (Jornal do Brasil, 14.02.1912, p. 7).
Ora, seria pouco prudente afirmarmos aqui que, de fato, nenhum desses episódios “de maior gravidade” tenham acontecido no ano de 1912. As coberturas dos anos anteriores não
deixam dúvida de que na festa aconteciam inúmeros incidentes, bebedeiras e brigas (“Joaquim Ribeiro e Manuel Duarte, vulgo baianinho, ambos embriagados alteraram-se”19), inclusive, entre
indivíduos do próprio corpo policial (duas ou três praças de infantaria de polícia portaram-se de
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Além de Olavo Bilac, Soihet faz menção à Mário Pederneiras, Raul Pompéia e outros cronistas que viam a presença de populares como um ponto negativo para a festa da Penha. 19 Jornal do Brasil, segunda-feira, 17.10.1902, p. 1;
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modo o mais inconveniente tanto no arraial, durante a tarde, como a noite, em regresso para esta capital”20).
Interessante é que a iniciativa dos cronistas em transmitir uma imagem civilizada da festa esteve, em parte, associada à ampliação promovida por comerciantes, barraqueiros e cervejarias de “serviços”, iniciando-se assim um vinculo empresarial-publicitário específico em torno da festa. Não por acaso, encontramos, no caso do Jornal do Brasil, uma coluna reservada apenas às “barracas” da festa, onde eram descritos os cardápios, a ornamentação e quem eram os seus proprietários. As barracas, por sua vez, constituíram um importante ponto de encontro dos cronistas carnavalescos. Como é o caso da barraca “Já fui faladeira”, “da viúva D. Eliza Moreira e Filhos. Aí, para hoje, prepararam um angu especial em homenagem à imprensa carioca”; ou da “Cabana do Pai Tomás”, “a mais antiga barraca da Penha, e onde o velho Sr. Pacífico da Gama recebe sempre o pessoal da imprensa com especial carinho”21.
No entanto, o que se verifica na festa da Penha é um outro tipo de referência à Bahia e, igualmente, uma outra instância de construção de certa imagem baiana no Rio de Janeiro. À começar pela singularidade da figura da baiana em meio às sonoridades e letras de músicas cantadas no arraial: “Um grupo desembocava no arraial alegre e saltitante, cantando ao som de pandeiros longa versalhada de que podemos anotar esta quadra: “Ó que linda noite/ noite de luar!/ Ó linda morena/ vem comigo andar”. E o estribilho soava ritmado, e as violas gemiam. Um outro grupo passava e foi enfrentando aquele. E os alegres cantavam: “não me serve ter cabelos/ criados à revelia/ que não me servem de laço/ para laçar quem eu queria”. E fechou-se o samba e redobrou-se o entusiasmo: “Oh, baiana!/ Oh, baiana!” Repetiam os alegres foliões. Uma mulata, dengosa e faceira, gemia estes versos: “eu sou pobre, meu amor/ não tenho nada que dar/ dentro do peito a dor/ de não poder livre te amar”. Um grupo de crioulas imprimia uma nota interessante e faceta à festa. Vestiam todas de branco, trazendo chapéus de feltro, cantando e rindo alegremente” (Jornal do Brasil, segunda-feira, 15.10.1900, p. 1, grifos meus) 20 21
Jornal do Brasil, segunda-feira, 02.10.1902, p. 3; Jornal do Brasil, segunda-feira, 26.10.1914, p. 4;1
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Os nomes de algumas barracas, da mesma forma, consubstanciariam a influência de negros na festa e, sobretudo, de baianos, como lembra Rachel Soihet, representando assim espacialidades de referências afro-baianas: Gruta do Pedaço, Reino da África, Sultana da Bahia, Flor da Cidade Nova (ver SOIHET, op. cit., p. 25). Contudo, não foi só a partir do nome das barracas que a imprensa registrou a referência baiana nessa festa, mas também por meio de uma série de ícones e imagens associados, principalmente, à música (samba) e à figura da baiana, como vimos, assim como à culinária, aos pratos servidos em barracas de baianos. Vejamos: A gruta do Pedaço – o sr. João Baiano fez prodígios ontem com o saboroso angu, vatapá, caruru e outras especialidades da cozinha baiana (Jornal do Brasil, segundafeira, 07.10.1912, p. 6). Cabana de Pai Thomas – sempre em constante lufa-lufa, entre o angu e o caruru à baiana e o saboroso caldo de cana (Jornal do Brasil, segunda-feira, 14.02.1912, p. 7). A Gruta do Pedaço – a popular barraca do popularíssimo “baiano” que oferecerá aos seus amigos especialidade da terra do vatapá... É nesta barraca que se reúnem os boêmios e os noctívagos (Jornal do Brasil, domingo, 18.10.1914, p. 6). Fomos depois à “Gruta do Pedaço”, uma das barracas mais populares, pois pertence ao conhecido boêmio e moctivago sr. João J. Arcanjo, o baiano das petisqueiras noturnas em frente à E. F. Central do Brasil. Ali os pratos de residência eram o angu à baiana e a saborosa moqueca, preparados pelo hábil cozinheiro Luiz Loureiro. O baiano levantou uma saudação ao Jornal do Brasil (Jornal do Brasil, segunda-feira, 19.10.1914, p. 8).
Eram também nesses ambientes que se divulgavam as músicas do próximo carnaval. Ponto que é constantemente ressaltado pelos primeiros sambistas do Rio de Janeiro. É assim que, Heitor dos Prazeres lembra desses primórdios do samba: “naquele tempo não tinha rádio, a gente ia lançar música na festa da Penha, a gente ficava tranqüilo quando a música era divulgada lá, que aí estava bem, que era o grande centro. Eu fiquei conhecido a partir da festa da Penha” (MOURA, 1983, p. 112). Fato que é bem sintetizado na crônica a seguir, já nos tempos da música “Pelo
telefone”:
112 “Depois de um lauto almoço na “barraca da Parcimônia”, onde ao champagne o “dr.
Sciencia” brindou o “Vagalume” e ao “JB” foi entoado o novo samba que tem o nome do grupo – Fica calmo que aparece... A música que é um choro medonho do sr Ernesto Santos (o Donga), autor do tango “Pelo telefone” é dedicada aos “Zuavos” e ao Vagalume tendo a letra do sr. Mauro de Almeida, “d’A Rua” e “Gazeta de Notícias” (Jornal do Brasil, segunda-feira, 7.10.1918, p. 8)
Acredito que essa cena, enfim, dá substância ao que se procurou demonstrar neste capítulo. O modo como a crônica carnavalesca retratou a festa da Penha no início do século XX, no Rio de Janeiro, possibilitaria, digamos assim, um ajuste, um equilíbrio, entre as narrativas comumente empregadas na qualificação da cultura popular no tempo da belle époque. A presença simbólica dessa “pequena África” na festa foi ressaltada pelos cronistas a partir de aspectos tidos como civilizados da festa. Ou melhor, tidos como apropriados à forma como elementos lúdico-festivos dotariam uma nova configuração ao arraial da Penha – sobretudo, com a integração espacial dos diferentes foliões por meio de barracas e a intermediação da imprensa que, nesse sentido, paulatinamente legitimaram a presença do samba e outros ritmos na festa. Suponho, por fim, que a Bahia (melhor dizendo, o caráter empreendedor de baianos na montagem de barracas e na venda de “quitutes da terra natal”, assim como a visibilidade que já iam construindo no universo do samba e do carnaval) configurou um veículo importante no equilíbrio vislumbrado pelos cronistas carnavalescos quanto à presença do elemento popular nos domingos de outubro na Penha. Festa que constituiu, ela própria, um âmbito de integração dos feixes narrativos da belle époque, traduzidos, então, nas disposições discursivas do que seria o civilizado e o bárbaro, naquele momento.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Iniciei este trabalho apresentando os contrastes e a dinâmica narrativa desenvolvidos por dois livros pioneiros no assunto samba. Escritos no ano de 1933, por dois consagrados cronistas carnavalescos, ambos os livros apontavam para um lugar simbólico específico da Bahia no contexto das transformações estéticas do samba, no início do século XX. As imagens produzidas pelos autores davam conta de uma descrição contrastiva do “mundo do samba”, ao mesmo tempo em que discutiam os termos de autenticidade das variantes desse gênero musical. Dessa forma, vimos que o livro Na roda do samba postula que o legítimo e verdadeiro samba identifica-se através das matrizes rítmicas e estéticas introduzidas por imigrantes baianos no Rio de Janeiro. Aí o universo social dos sambistas é apresentado como homogêneo e segregado entre aqueles que pertencem ou não aos ambientes e práticas originárias da Bahia. Em Samba a crítica da autenticidade do samba desloca-se. O autor positiva o caráter maleável desse gênero musical e sua capacidade de agregar um universo cosmopolita e diferentes segmentos sociais da cidade. Neste, o samba passa a ser identificado como um gênero típico do Rio de Janeiro. Para o autor de Samba, diferente de Na roda..., pouco importa a influência de práticas modernas de reprodução e divulgação do samba, como o rádio e o disco. Mais ainda: no primeiro livro esse é um aspecto abominável e, no segundo, essas mudanças são vistas com bons olhos. Vi nessa discussão um paradigma heurístico para pensar em que medida o universo do samba, e mais especificamente o nicho identificado com o “reduto baiano-carioca”, poderia ser compreendido em termos de uma sociabilidade heterogênea ou homogênea. Sob esse ponto de partida privilegiei, em seguida, analisar diferentes situações e contextos onde foram registradas, de forma explícita, episódios de polêmicas, rixas e disputas entre personagens direta e indiretamente ligados ao “reduto baiano”, ou seja, àquele nicho de sociabilidade que
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tinha como central as figuras das tias baianas. Procurei demonstrar que, em meio a esses episódios, estavam sendo negociadas imagens e determinados significados de Bahia. Para tratar dessa questão, tomei como heurísticas as polêmicas envolvendo a autoria dos primeiros sambas a serem veiculados no rádio e na imprensa e cenas de disputa por espaços de participação no carnaval do Rio de Janeiro, que então ganhava feições modernas com a introdução dos Ranchos Carnavalescos, supostamente por imigrantes baianos. Pode-se observar aí uma tensão específica entre os planos sociológico (de atuação) e simbólico (cognitivo) entre os agentes envolvidos. Situação a que chamei de uma construção simbólica de certa imagem de Bahia a partir da “luta pelo prestígio” na cena da cultura popular do Rio de Janeiro, em questão: o samba e o carnaval. Por sua vez, o conteúdo de músicas e as referências idílicas sobre Bahia, dispostas em fantasias e no conjunto estético de agremiações carnavalescas, indicam que certa imagem de Bahia estava sendo produzida sob o semblante de uma noção de ancestralidade e afrodescendência referida àquela região do país. Por fim, procurei analisar em que medida essa simbologia manteve-se concatenada à uma reestruturação simbólica mais ampla da cidade do Rio de Janeiro que, na época, encontrou nas transformações sócio-urbanas o motor, por excelência, desse processo de resignificação de valores, comportamentos e estilos de vida. Assinalei para o fato de que duas narrativas centrais, associadas a suas respectivas referências sociais, simbólicas e geográficas, poderiam ser tomadas como paradigmáticas sobre essa questão: de uma lado, a “pequena África” e, de outro, a belle époque. Acompanhando a sucessão dessas questões e argumentos, chegamos à conclusão que os imigrantes baianos assumiram uma condição ambígua, no contexto da “pequena África” frente a belle époque carioca. Sem querer substancializar esses termos, aponto que essas expressões traduziriam parte das disposições narrativas incutidas no amplo processo de transformação urbana do Rio de Janeiro, no início do século XX.
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Para tanto, do ponto de vista conceitual, estive inspirado na sociologia proposta por Norbert Elias, tendo em vista que seus trabalhos apontam para a percepção de limites teóricos no modo como a sociologia aborda a relação entre o problema simbólico e a dinâmica processual da vida social. De modo sucinto, pode-se dizer que o social, para Elias, configura uma de fusão (ou melhor, uma interpenetração) entre duas “escalas” da vida humana: o indivíduo e a sociedade. Operar com esses conceitos, aliás, seria um procedimento inviável para o autor. Segundo Elias, o constrangimento proporcionado por estruturas sociais não implica que elas sejam uma realidade objetiva, além e acima dos indivíduos, do mesmo modo que a vida das pessoas não se constitui separadamente da estrutura social, como uma espécie de mônada independente. O autor considera que a vida social se dá por meio de interdependências entre pessoas. Dessa forma, propõe como saída a análise das configurações sociais. Conceito que é entendido como uma disposição de padrões mutáveis das interdependências humanas criadas em consórcio com as relações de poder que lhe são inerentes. Ou seja, a sociologia, para Elias, teria como tarefa investigar a dinâmica de interconexões sociais com o fito de compreender as especificidades de cada configuração e seus níveis de integração22. A análise da natureza relacional da categoria poder é central em seus estudos. O poder integra e é inerente às interdependências humanas. Para Elias, portanto, todas as relações humanas portam a marcada indelével dos equilíbrios – tensos – de poder. Pode-se dizer que a noção de poder aqui empregada está orientada sob essa premissa. Ressalto, portanto, que a construção da visibilidade de imigrantes baianos no universo da “pequena África” coloca-se mais na esteira do arranjo de forças produzido na concorrência pelos mecanismos de formalização do samba e da modernização do carnaval, do que de uma 22
Em Introdução a sociologia, o autor elabora uma sistematização mais vigorosa desses conceitos e da sua proposta epistemológica. Nele, argumenta ainda que a constante necessidade de reformulação do pensamento sociológico deve-se à própria condição configuracional da construção do conhecimento humano, considerando que jamais as disposições cognitivas do homem estiveram desvinculadas das tensões produzidas na dinâmica de equilíbrios de poder nas “sociedades” (ver ELIAS, 1999).
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suposta transplantação da terra natal de tipos específicos e “intactos” de laços de solidariedade e que seriam compartilhados por baianos, quando da imigração para o Rio de Janeiro. Em outras palavras, propus observar a relação entre a visibilidade de baianos e a construção das imagens de Bahia num sentido inverso àquele usualmente empregado pela literatura: a solidariedade de baianos como base do destaque que obtiveram na formação do samba e do carnaval do Rio de Janeiro. Diria ainda que a condição sociológica desses imigrantes baianos se assemelha à situação descrita no livro Os estabelecidos e os outsiders (2000). Para o autor, a relação entre os “de dentro” e os “de fora” consubstancia um “modelo de jogo” que envolve a possibilidade de retenção de poder sócio-simbólico e a dinâmica de desenvolvimento das configurações. O sentido geral dessa relação consiste na questão da autonomia e da ambigüidade inerente à formação de equilíbrios de poder. Assim, se um “grupamento” detém um considerável grau de retenção de poder frente outro(s) é possível que ele não apenas controle outro(s) grupo(s), como também exerça algum controle sobre o processo de distribuição e retenção do poder. Por outro lado, tão logo se ampliem as redes de interdependências mútuas na distribuição do poder, ocorre que podem ser diminuídas as acentuações mais particulares de retenção de poder que, por sua vez, tendem a ficar cada vez menos dependentes de certa previsão e mais sujeitas à adequação dos rumos de lutas sócio-simbólicas. Supondo que os imigrantes baianos exerceram uma liderança comunitária na “pequena África”, poder-se-ia classifica-los como “estabelecidos”. Somando aí o significado da imagem baiana em contextos da cultura popular do Rio de Janeiro. Essa particularidade constituiu um lócus específico no arranjo de mudanças sócio-simbólicas da cidade. Tudo indica que, num plano narrativo, seriam os imigrantes baianos “estabelecidos” num universo outsider em relação ao conjunto simbólico mais amplo do Rio de Janeiro. A “pequena África” como o universo “por excelência” de imigrantes de diversas procedências, de negros e mestiços, e de
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camadas escórias da população. E que, por isso, posicionou-se numa extremidade simbólica antípoda àquilo que foi conhecido como a belle époque. Tal ambigüidade foi aqui vista como chave analítica e de compreensão do significado assumido pela “Bahia” no Rio de Janeiro, no início do século XX. Ou melhor, identificamos a partir dela uma tensão entre a construção dessa disposição simbólica e o plano sociológico em que esses imigrantes baianos estiveram inseridos. Quero chamar a atenção, portanto, para o fato de que a construção simbólica de uma determinada imagem de Bahia no Rio de Janeiro, neste período, não constituiu apenas uma esfera cognitiva e de produção de “conhecimento”. Mas sim, que a construção dessa(s) imagem(s) operou sob uma perspectiva eminentemente prática (ou pragmática, se quisermos). Tal premissa, é bem verdade, os antropólogos conhecem desde a defesa durkheimiana de que o símbolo não é somente um reflexo do real, mas sim, algo que o institui enquanto realidade (DURKHEIM, 1996). O interessante é que a formalização das imagens e significados de Bahia, na cidade do Rio de Janeiro, se dá em consonância ao desenvolvimento de determinadas esferas lúdicas e de diversão populares da cidade. E mais: a construção simbólica em questão foi feita e meio à formalização de universos que, desde aí, já ganhavam contornos de música e festa popular nacionais, por excelência: o samba e o carnaval. Talvez a consequência mais sensível disso tudo esteja no modo como, ainda hoje, diferentes suportes estéticos (as músicas de Caetano Veloso e de Zé Kéti são apenas um exemplo) “apropriam-se” dessas construções e re-elaboram jogos fantásticos e idílicos de representações sobre o que seja o Brasil. Tensionam uma miscelânea “identitária” tão plural e complicada de se ajustar quanto a que conhecemos sob “o signo de unidade nacional-brasileira”, aguçando a produção de imagens e de um fértil universo imaginário (e por que não afetivo?) sobre o Rio de Janeiro, a Bahia, etc...
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