MARKETING SOCIAL E HERANÇA CULTURAL: O CASO DA ESCOLA DE SAMBA DA MANGUEIRA – RJ Enilson Silva D’Oliveira Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social Programa de Engenharia de Produção, COPPE/UFRJ Cidade Universitária, Centro de Tecnologia, Ilha do Fundão, Caixa Postal 68.507, CEP 21.945-970, Rio de Janeiro, RJ
Maurício C. Delamaro Departamento de Engenharia de Produção Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá, UNESP delamaro@feg.unesp.br Caixa Postal 205, CEP 12.500-970, Guaratinguetá, SP
Roberto S. Bartholo Jr. Programa de Engenharia de Produção, COPPE/UFRJ ltds@pep.ufrj.br Cidade Universitária, Centro de Tecnologia, Ilha do Fundão, C. P. 68.507 21.945-970, Rio de Janeiro, RJ
ABSTRACT: In this paper is presented the social marketing as the result of a new and emergent way of dealing with de social reponsability, wich leads to the role’s redefinition each setor, governmental, public and privace should perform. The School of Samba “Estação Primeira de Mangueira” is described as one complex organization and subsequently is shown that it is a paradigm case of success this new mentality, stressing the respect by the popular culture. KEYWORDS: social marketing, social responsability, Mangueira. RESUMO: Apresenta-se, neste trabalho, o advento do marketing social como fruto de uma nova e emergente forma do exercício da responsabilidade social, a qual implica em redefinições nos papéis dos setores estatal, público e privado. O complexo da Escola de Samba da Estação Primeira de Mangueira é descrito e, então, apresentado como caso paradigmático de sucesso dessa nova mentalidade, destacando-se a importância da valorização da cultura comunitária.
1. INTRODUÇÃO O marketing social aparece como nova possibilidade de atuação das empresas. Seu surgimento está vinculado a um complexo quadro de críticas e proposições sobre as formas de exercício da responsabilidade social. Fazem parte desse quadro o aparecimento e a articulação do chamado terceiro setor, bem como iniciativas empresariais e da cidadania que questionam as relações entre o público, o privado e o estatal.
1.2. EM BUSCA DE FORMAS DA RESPONSABILBIDADE SOCIAL As inovações nos conceitos referentes à prática e à atuação do setor privado e, consequentemente, sua articulação com os outros setores, remontam aos anos 60, quando movimentos sociais buscam realizar um questionamento sobre as bases culturais da sociedade contemporânea. Face às crises ambientais, sociais, políticas, econômicas e pessoais provocadas pelo avanço do modelo de civilização industrial, surgem críticos, artistas, pensadores utópicos e visionários acadêmicos, que alavancam um repensar da ordem estabelecida. Embora de forma não articulada, o questionamento ganha o cenário internacional, manifestando-se, em cada país, de formas diferenciadas. Um forte sentimento por um mundo mais responsável e solidário é seu traço comum da atuação de inúmeras organizações espalhadas pelo planeta, especialmente entidades sem fins lucrativos. No rol de suas preocupações estão desde arte e cultura, educação e lazer, saúde e assistência social, desenvolvimento comunitário e ambiental, até a assessoria às organizações de base, governos locais e movimentos sociais pela defesa dos direitos humanos e de minorias. Tais empreendimentos questionam, de forma explícita ou implícita, o papel do Estado e do Mercado e demonstram, entre outras, crescente desconfiança na ideologia do progresso ilimitado. Dentre as diversas formulações sobre o conceito de desenvolvimento, surge a que diz que uma nova tríade formada pelo Estado, mercado e a sociedade civil poderia tomar o lugar da antiga, formada pelos mundos capitalista, socialista e países em desenvolvimento. No caso brasileiro, essas organizações sem fins lucrativos são nossas antigas conhecidas e há que se reconhecer o papel desempenhado pelos sindicatos, partidos políticos, orfanatos, associações,
fundações, etc. Mas o aparecimento de entidades sem fins lucrativos imbuídas do desafio específico de desenvolver projetos comunitários, especialmente junto às classes pobres faz parte da história recente. A abrangência dessa tendência é assim definida por Tandon e Oliveira: “... os temas e as preocupações variam de lugar para lugar e de uma época para outra, porém os movimentos de cidadãos são agora um fenômeno global e constante. No mundo inteiro, a sociedade civil agora interage e exerce um poder que contrabalança o mercado e o governo. Todavia, a riqueza e a diversidade das iniciativas dos cidadãos ultrapassam de longe sua visibilidade e seu reconhecimento públicos. Ação privada para o bem público é um conceito novo em muitas partes do mundo”.1 Cresce nessa ação privada uma certa forma de encontro com o Outro: a valorização da totalidade da vida humana, a consciência do sofrimento e a opção pela solidariedade. Essa reorientação, segundo Bartholo Jr., “... pressupõe uma associação do esforço de crítica a uma profunda mudança de mentalidade, que por sua vez deverá estar vinculada a uma ação política reordenadora das formas humanas de convivência social, de modo que num mesmo processo de desocultamento emirja o embrião da pós-modernidade, expresso através de uma reestruturação do modo de vida como condição necessária à preservação da própria vida e da autonomia e dignidade de povos, comunidades e pessoas”.2
1.2. SOBRE O PAPEL SOCIAL DAS EMPRESAS Os trabalhadores sempre foram, desde o início da industrialização, especialmente pela atuação dos sindicatos e partidos, uma força que as empresas tiveram que considerar.3 Mas, recentemente, nos últimos trinta anos, essas organizações passaram a sofrer restrições ainda mais severas do meio ambiente social em que atuam. Desde o final da década de 60, a consciência das sociedades civis dos países envolvidos pela sociedade industrial deu início a uma série de movimentos questionadores dos valores estabelecidos pela sociedade de consumo. A reboque do movimento da contracultura, original dos chamados países desenvolvidos, vieram os movimentos ecológicos e de minorias, que vão engrossando as exigências de uma postura mais ética das organizações e da sua responsabilidade social. É assim que se vem a discutir a responsabilidade social do setor privado no que diz respeito à proteção da natureza, bem como sua participação na melhoria da qualidade de vida das sociedades em que atuam: questiona-se, enfim, o relacionamento dos objetivos econômicos com os objetivos sociais dos negócios. No debate, aparecem três grandes correntes de pensamento: a conservadora, a
radical e a progressista. A primeira, identificada com as concepções monetaristas, defende a maximização dos lucros e considera que a missão das empresas é e deve continuar sendo puramente econômica. A segunda caracteriza-se por não admitir que ações visando a promoção humana e orientadas contra a exclusão social possam ser levadas com e/ou através da propriedade privada. A corrente progressista, representada especialmente por Keith Davis, defende a postura do “lucro justo” conjugado com a participação nos objetivos sociais. 4 Keith Davis afirma que as organizações, ao ignorarem a responsabilidade advinda de seu poder social, estarão ameaçadas pela lei de ferro da responsabilidade social: a longo prazo, quem não usar o poder de uma maneira que a sociedade considera responsável tenderá a perder esse poder. Essa postura é sensível às mudanças ocorridas no comportamento das sociedades civis, pós anos 60. A luta contra más condições de trabalho, contra a comercialização de produtos sem qualidade, contra a deterioração do meio ambiente, orientam para uma tendência geral que é a de se buscar novos fundamentos éticos no relacionamento entre as organizações e o meio onde atuam. O fenômeno novo, aqui, é a perspectiva de existência de uma prestação de contas à sociedade global. Diante desses movimentos civis, muitas organizações empresariais passam a assumir uma postura de maior responsabilidade social e de maior respeito ao meio ambiente e às culturas locais. Há uma mudança, mesmo que inicialmente tímida, da idéia da missão dos negócios. Se no início do processo de expansão do industrialismo essa missão era estritamente econômica – produzir a maior quantidade de bens e serviços ao menor preço possível e distribuí-los de maneira eficaz –, os anos 60 e 70, marcados por enormes transformações científicas e tecnológicas e pela crítica da contracultura ao consumismo, trazem consigo uma angústia que pede mudanças nos comportamentos. A ampliação do conceito de marketing advém dessas solicitações. É na década de 70 que tem início a prática do marketing social em organizações sem fins lucrativos. Idéias, causas e problemas sociais são recolocados em novos patamares e novas formas. O marketing a serviço do bem-estar da comunidade e não só do bem-estar individual do consumidor representa, enfim, uma tentativa, de re-encaixe ético na sociedade contemporânea. No caso brasileiro, tem-se um fator adicional. O Estado, durante aproximadamente cinqüenta anos, exerce uma política econômica e social centralizadora quanto ao atendimento das necessidades básicas, como educação, cultura, saúde. A maioria dos serviços fundamentais – transporte, habitação e comunicação – é incorporada à suas obrigações. Mas um conjunto de fatores – dentre os quais destacam-se o autoritarismo, o patrimonialismo e a apropriação privada da coisa pública – faz
com que essa centralização implique em ineficiência. E essa ineficiência contribui para um estágio precário de bem-estar social e para a permanência da exclusão social. A ineficiência do Estado no atendimento de grande parte das demandas sociais faz com que alguns projetos de integração entre empresa e comunidade comecem a ser tentados. Diferentemente da prática da filantropia e do paternalismo empresarial, que no passado conjugou-se com uma intenção de vigilância (como a construção de vilas operárias, até a metade do século), a atual postura de uma parte do empresariado considera os projetos sociais como investimentos. Segundo Rohden e Goes, “... quem está sintonizado com as transformações ocorridas nos últimos anos na sociedade brasileira, em termos de abertura democrática, fortalecimento da sociedade civil e ampliação das atividades empresariais para além das atividades industriais e comerciais, deve escolher uma das novas designações que passam a aparecer: ação social empresarial, investimento social, participação social ou comunitária da empresa, desenvolvimento social, ou, mais recentemente, cidadania empresarial. O conceito de cidadania empresarial, em particular, encampa essa noção de coresponsabilidade ao definir como empresa cidadã aquela que não foge aos compromissos de trabalhar para melhoria da qualidade de vida de toda a sociedade [...] E este é um compromisso de todas as empresas que atuam no país, inclusive as estrangeiras”.5 De forma crescente, aparecem, na relação das empresas com a comunidade e o meio ambiente, componentes desses conceitos de responsabilidade social do setor privado aliados aos conceitos de marketing social. Entrelaçados, apontam para uma mudança no conceito de planejamento estratégico das organizações. No Brasil, na década de 80, nasce uma vanguarda empresarial com consciência da oportunidade e necessidade de ações sociais, nas quais o setor privado passa a ter coresponsabilidade em projetos de desenvolvimento comunitário. No Terceiro Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor, realizado em 1996, na cidade do Rio de Janeiro, ocorre um painel intitulado “Investimento Privado, Marketing e a Responsabilidade Social”. Nesse painel, a idéia de “empresa cidadã” foi sustentada por diretor da C&A no Brasil: “a empresa decide assumir papel na sociedade como opção, porque reconhece que recebe dela aquilo de que precisa para poder operar; assim, como empresa cidadã, escolhe devolver algo à sociedade. Portanto, a direção da empresa toma uma decisão política e assume a posição de beneficiar a área social. (...) Não devemos esquecer que o problema social não tem dono. Não é do governo nem da iniciativa privada.”6.
Aparecem dois caminhos paradigmáticos: de um lado, apostar no aprofundamento democrático para a expressão de uma nova cidadania, baseada em valores solidários; e de outro, a construção de guetos “ao contrário”, inclusive para as empresas, através construção de muralhas e da manutenção de exércitos e um arsenais com o objetivo de colocar-se ao largo de uma sociedade miserável. Os empresários sintonizados com estas novas “formas representativas e com as reivindicações sociais, também passam a construir canais novos de representação e participação na sociedade, especialmente a partir das novas organizações empresariais. A participação mais ampla na sociedade não apenas restrita às atividades econômicas, mas alcançando inclusive a área de ‘investimento social’, ganha um destaque inovador.”7 Cresce o número de projetos de “participação comunitária”, que “podem ser considerados como de prestação de benefícios à comunidade por parte de iniciativa privada. Sua criação introduz um conceito recente no meio empresarial. Categorias como educação, cultura ou saúde são usualmente entendidos como áreas sociais que necessitam e merecem o investimento de recursos estatais e mesmo privados. Mas a definição de uma área de ‘participação comunitária’ indica uma aparente tomada de posição do empresariado na sociedade, ou, pelo menos, uma filosofia empresarial de construção de responsabilidade social, de participação nos problemas e atividades da sociedade civil por parte da iniciativa privada.”8 E, aí, “... a responsabilidade social que deve ser encampada pelos empresários é concebida em uma relação necessária com a sociedade civil em geral e com o Estado de forma particular.”9 Herbert de Sousa, na qualidade de presidente do júri do Prêmio Eco de filantropia empresarial, promovido pelas Câmaras Americanas de Comércio, em São Paulo, no ano de 1995, sintetiza essa nova visão e a esperança dessa nova tendência: “... não podemos conviver com a miséria e com o desemprego. Isso é um problema de decisão política. Mas decisão política não é só decisão dos políticos. Ela é decisão de toda cidadania. E é assim que quero convocar todos os empresários a se assumirem como cidadãos, porque as questões políticas dizem respeito também a eles. Para mim uma empresa só é brasileira se tem sentido social, se tem sentido público. Mas se uma empresa internacional se estabelece no Brasil, gera empregos, se compromete com os problemas do meio ambiente brasileiro, e trabalha com a cidadania brasileira, e se transforma em cidadã brasileira, ela é uma empresa a quem dou boas vindas e todo estímulo para que realize sua função, porque é parte deste planeta e parte da solução. Não podemos conviver com a miséria e com o desemprego. Isso é um problema de decisão política. Mas decisão política não é só decisão dos políticos. Ela é decisão de toda cidadania. E é assim que quero convocar todos os empresários a se assumirem como cidadãos, porque as questões políticas dizem respeito também a eles.”10
Dentro dessa perspectiva, não se está eximindo o Estado de suas obrigações sociais, nem se está justificando qualquer ímpeto privatista. Para além da atuação do Estado, no entanto, começa-se a vislumbrar que o sucesso das iniciativas contra a exclusão social dependem de uma tomada de posição pessoal e institucional que não se esgota na luta pelo poder através da atuação partidária e sindical. A participação em funções orgânicas e substantivas nas estratégias anti-exclusão não necessita propugnar o Estado mínimo. Muitos, senão a maioria, dos projetos sociais financiados por empresas têm como público alvo a infância e a adolescência carentes. A corrente empresarial progressista, como é chamada por Keith Davis, engaja-se, também, em programas de educação, saúde, atenção à mulher, preservação do meio ambiente, contribuição para melhoria da qualidade de vida e de trabalho. O desenvolvimento de projetos comunitários dos mais diversos tipos parece tornar-se uma tendência de fôlego, mas a ênfase no atendimento à criança e ao adolescente é marcante: no relatório da ABONG – Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais – de novembro de 1995, no item referente às “Iniciativas Empresarias e Projetos Sociais Sem Fins Lucrativos”, informa-se que perfil do público-alvo prioritário das ações foram os jovens e as crianças (44%). Em seguida vêm: comunidade (26%), adultos (24%), idosos (16%).11 Empresas como Bradesco, C & A, Shell, Xerox, Fundação Kelloggs, O Boticário, Fundação Abrinq, Odebrecht, reunidas, estão aplicando anualmente mais de R$ 100 milhões em programas sociais em escolas, cursos de profissionalização, construção de casas, programas de saúde, esporte e cultura. A preocupação com o tema, permitiu que em maio de 1995, se formalizasse o GIFE Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, com sede em São Paulo. O seu estatuto social, no artigo 2o, reza que “a instituição tem por finalidade congregar as entidades privadas que voluntariamente promovem e executam, no Brasil, com recursos próprios, atividades de apoio ao desenvolvimento social, abertas à comunidade, e de investimentos em tal setor, através do estímulo à cidadania participativa, com o objetivo de promover e divulgar conceitos e práticas de investimento social entre indivíduos e organizações, através de seminários, debates e publicações, e por meio de intercâmbio com entidades e empresas públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, que tenham objetivos semelhantes.” A escassez de recursos públicos, conjugada com a crescente preocupação do setor privado no desenvolvimento de ações dirigidas aos setores excluídos, nos faz reconhecer a existência de uma nova conjuntura baseada na abertura de diálogo para ações comuns entre entidades civis e
empresariais. A atuação conjugada de pessoas e entidades ligadas ao terceiro setor, ao aparelho estatal e ao setor empresarial são expressão de uma mudança de mentalidade, cujas ações podem, a médio prazo, ser decisivas para os conceitos de cidadania, de responsabilidade social e de organização social no Brasil contemporâneo. O complexo da Mangueira e as parcerias que o viabilizam são um exemplo concreto das possibilidades em jogo. Sua descrição sucinta é feita a seguir.
2. O COMPLEXO VERDE E ROSA O complexo da Mangueira é fruto do empreendimento comunitário, em parceria com o setor privado e o setor estatal. Está estruturado em quatro partes constitutivas principais, cada uma delas com organizações e administrações independentes, mas que se integram na mesma missão: promover a inclusão social de crianças e adolescentes da periferia da cidade, resgatando sua autoestima e desenvolvendo suas potencialidades e responsabilidades. Os quatro subsistemas principais, que sustentam as ações nas áreas de arte e educação, de esporte e lazer, de trabalho e de saúde, são: a Vila Olímpica, o CAMP-Mangueira, o CIEP “Nação Mangueirense” e o Posto de Saúde “Tia Alice”. O complexo está localizado no bairro de São Francisco Xavier, na parte plana do pé do morro, em frente ao Palácio do Samba e do lado oposto em relação à linha da Rede Ferroviária Federal. Ocupa uma área de 35 mil metros quadrados.
2.1. A ESTRUTURAÇÃO DO COMPLEXO, NO TEMPO As sementes do Complexo da Vila Olímpica da Mangueira são lançadas no ano de 1972, com o projeto Recriança.12 Nascido dentro da sede da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, o projeto consegue pequenos e diversos patrocinadores e suas ações buscam aliar o fornecimento de alimentação e a promoção do esporte para crianças carentes da comunidade. Suas atividades acontecem na Sede da Mangueira, na Escola Municipal Mestre Waldomiro e na Associação de Moradores do Morro da Candelária. Em 1984, ocorre o primeiro contato com a Xerox do Brasil, que viria a ser, no futuro, a principal parceira do complexo. A empresa é contatada com o pedido de que financiasse a compra de algumas bicicletas que seriam sorteadas numa comemoração, no dia 12 de outubro, na sede da Escola de Samba.
Durante anos, os ensaios da Escola servem como local de reunião das lideranças locais que amadurecem um projeto de maior envergadura para o atendimento às crianças e aos jovens. A Vila Olímpica começa a nascer em 1987. O terreno é doado pela Rede Ferroviária Federal, após intrincada negociação. A Xerox aprova a proposta de financiamento que lhe apresentada, apesar de seu plano estratégico não prever, na época, investimentos do tipo. São selecionadas as pessoas interessadas em participar como voluntárias e são contratados os primeiros profissionais. O Posto de Saúde “Tia Alice” começa a funcionar em 1990, quando sua construção, financiada pela Secretaria de Obras do Governo Estadual, fica concluída. O Posto é aparelhado e seu funcionamento viabilizado por outra iniciativa de marketing social: desta vez a parceira é a Golden Cross. Em 1994, é inaugurado e incorporado ao complexo o CIEP 241, que recebe a designação “Nação Mangueirense”. Também em 1994, é incorporado e começa a funcionar, no complexo, o Círculo de Amigos do Menino Patrulheiro – CAMP. Embora já existisse desde 1988, funcionando na Escola Mestre Waldomiro, com o objetivo de treinar e encaminhar os jovens para o mercado de trabalho, recebe novo impulso e apoio com a incorporação ao complexo.
2.2. A VILA OLÍMPICA A construção da Vila Olímpica da Mangueira foi iniciada em 87 e concluída em 92. Teve um início modesto, atendendo cerca de 150 crianças. Em 1988, este número dobrou, e, atualmente, 3.000 crianças procuram o projeto de esporte e lazer, que oferece sete modalidades esportivas: futebol de campo, futebol de salão, handebol, voleibol, basquete, natação e atletismo. Até o momento, já passaram cerca de 10.000 crianças pela Vila. Para tanto conta com uma infra-estrutura básica: ginásio, pista de atletismo, campo de futebol, lanchonete, vestiários, administração, depósito, ambulatório médico, área de recreação, caixa de areia. O financiamento da Xerox foi de, aproximadamente, U$ 300 mil dólares anuais, até 94. Passa para U$ 500 mil dólares anuais, a partir de 95. Esta verba destina-se a cobrir os gastos com todas as modalidades esportivas, pessoal, manutenção das instalações, compra de material esportivo, gastos com equipes federadas, viagens, professores. É utilizada, também, para apoio e para socorros financeiros aos outros subsistemas.
O objetivo central do Projeto Olímpico Mangueira/Xerox é criar condições básicas para que crianças e adolescentes encontrem opções de cidadania que as afastem do risco social. A estrutura deste segmento do complexo foi montada para poder atender ao desenvolvimento físico, psicossocial e recreativo da comunidade infanto-juvenil, tendo, sempre, como pré-requisito a freqüência escolar. A integração de educação e lazer, somada à disciplina que a prática desportiva requer, vêem refletindo no desempenho escolar das crianças e adolescentes do projeto; além de propiciar oportunidades de vida, anteriormente fora de alcance das crianças e adolescentes. O envolvimento da comunidade, presente desde o início, vem sendo fortalecido junto às escolas da região. A cada ano, desde 1987, a mobilização social se repete: são visitadas as doze escolas públicas do entorno e recrutadas crianças para o esporte. Praticar esportes, receber treinamento, competir passaram a ser um prêmio a ser conquistado nos estudos. A força de vontade observada nos meninos, aliada ao prazer e à energia encontrados nas equipes de trabalho têm trazido recompensas para todos os envolvidos. Algumas categorias já colecionam títulos. A equipe de atletismo da Mangueira é hexacampeã brasileira de atletismo infanto-juvenil (masculina e feminina), bicampeã brasileira do infantil e tetracampeã juvenil; tetracampeã estadual de handball e a quinta colocada do Brasil, dentre outros diversos resultados expressivos.
2.3. O POSTO DE SAÚDE “TIA ALICE” O posto de saúde, construído pelo Governo do Estado, é mantido pela Golden Cross, desde 1990. Está estruturado para atender a comunidade com 2 pediatras, 1 cardiologista, 1 pneumologista), 2 ginecologistas, 2 odontopediatras, 3 auxiliares de enfermagem, 1 assistente social, 1 estagiária em assistência social e 3 estagiárias de psicologia. O trabalho do posto de saúde privilegia a prevenção. O posto de saúde possui um total de 7.000 mil pessoas cadastradas e chega a atender cerca de 1.200 pessoas por mês. Na opinião da assistente social, que acompanha o projeto desde o início, a sensibilidade do setor privado em relação aos problemas da sociedade, fez com o a parceria com a comunidade se consolidasse e crescesse com o tempo.13
2.4. O CIEP “NAÇÃO MANGUEIRENSE”
O CIEP “Nação Mangueirense” veio fortalecer o projeto integrado. Atende a faixa etária de 12 aos 18 anos, tanto na educação formal (segundo segmento do primeiro grau até o segundo grau), como em oficinas de arte (cursos de artesanato, música, teatro e dança). Possui laboratório de Física, laboratório de Biologia, laboratório de Química, biblioteca, sala de audiovisuais, piscina, oficinas de atividades complementares, refeitório e atendimento médico. No início, tinha uma equipe formada por 28 professores, com carga de 40 horas semanais, para atender 09 turmas de 32 alunos. No quadro atual, o número de professores aumentou para 36, para atender 24 turmas de 32 alunos, chegando ao total de 768 alunos. Está, ainda, distante de sua capacidade máxima, que é de 40 turmas. Como as verbas do Governo Estadual são insuficientes e só bastam para pagamento dos seus professores e funcionários públicos, diversas atividades são mantidas com recursos da Vila Olímpica. Inclusive o pagamento de profissionais: inspetores de alunos, salva-vidas, auxiliar de secretaria, vigia, dentista, professores das oficinas, animadores, enfermeira.
2.5. O CAMP-MANGUEIRA Quando, no início, o complexo só oferecia esporte e lazer, houve uma preocupação com a seleção natural que o esporte acaba provocando entre as crianças. Foi, então, acoplado, em 1994, o CAMPMangueira, que já funcionava desde 1988, em outro local. O CAMP – Círculo dos Amigos do Menino Patrulheiro – é um projeto educacional sem fins lucrativos, que atende ao adolescente na complementação educacional visando sua inserção no mercado de trabalho. Criado em 1988, por Alice de Jesus Gomes Coelho, atua com jovens na faixa etária de 14 a 18 anos. O ingresso no projeto está baseado num o processo de seleção, do qual consta uma prova escrita (Português, Redação e Matemática) e entrevista com a presença do responsável familiar. A inscrição só é feita mediante a apresentação de declaração de freqüência e desempenho escolar. A criança deve estar cursando, no mínimo, a 5a série do primeiro grau, ter referência domiciliar e deve haver a participação efetiva dos responsáveis. As turmas são formadas, durante todo o ano, para cursos de treinamento intensivo, que duram três meses. O curso não tem caráter profissionalizante, mas preparatório. No curso são oferecidas complementação de Português e Matemática, e conhecimentos em Relações Humanas, Técnicas
Comerciais, Iniciação ao Trabalho, Orientação Sexual, Educação Física, Artes, Telemarketing e Informática, entre outros. Os estudantes são encaminhados para estágios laborais nas instituições conveniadas. Atualmente, o CAMP-Mangueira recebe apoio não só da Xerox do Brasil. Mantém convênios com um número sempre crescente de empresas. São, no momento, mais de 160, dentre as quais: Gillette do Brasil, Golden Cross, Souza Cruz, Grupo Brascan, COPPE-UFRJ, Jornal do Brasil, Editora O Dia, OAB, Tintas Supercor, Smithkline Beecham, Companhia Docas do Rio de Janeiro, Câmara de Comércio Americana. Estas empresas acolhem em seus quadros cerca de 600 adolescentes oriundos do CAMP, anualmente. Já passaram pelo CAMP cerca de 5.000 jovens, que, em sua maior parte, encontraram nas empresas em que estagiaram seu primeiro emprego.14
2.6. OUTRAS INICIATIVAS Algumas outras iniciativas, que são subprojetos dos já mencionados ou são desenvolvidas de forma paralela, merecem menção. A primeira, a vitória obtida pela comunidade com a aprovação do Conselho Tutelar da Mangueira, conquistado através de projeto de lei da Câmara Municipal, que criava 16 Conselhos Tutelares na cidade do Rio de Janeiro, respeitando os artigos 131/140, do estatuto da Criança e do Adolescente.15 A comunidade, preocupada em assumir a luta pelos direitos de suas crianças, compôs seu Conselho Tutelar, em 1993, com nomes respeitados na comunidade. 16 A segunda, a fundação, em 1987, do Grêmio Recreativo Mangueira do Amanhã, hoje um dos segmentos de trabalho da Vila Olímpica. A Escola de Samba Mirim da Mangueira do Amanhã, desfila anualmente na Marques de Sapucaí, com cerca de 2000 mil crianças, dirigida pela cantora Alcione. A iniciativa procura aliar educação e cultura, dando continuidade à tradição da comunidade, formando seus futuros componentes. A Escola de Samba Mirim mantém, ainda, o Centro de Apoio “Sérgio Cabral”, que fornece material escolar, alimentos não perecíveis, medicamentos e produtos de higiene aos moradores mais necessitados da comunidade. Para complementar o conjunto de iniciativas, a Mangueira inaugurou, em 29 de dezembro 1995, o Centro Sociocultural Barracão da Mangueira, na Praça XI, destinado à assistência médica, cursos profissionalizantes, atividades esportivas e encaminhamento para o mercado de trabalho de pessoas de todas as faixas etárias.
4. IDENTIDADE CULTURAL: HERANÇA E MUDANÇA A Estação Primeira de Mangueira é uma das agremiações mais tradicionais e autênticas da cidade do Rio de Janeiro, sempre preocupada e comprometida com a preservação da cultura negra e popular do país, especialmente através do samba. Na sua evolução histórica, foi uma das poucas entre as grandes Escolas de Samba que se manteve com seus próprios recursos, amparada pelo esforço comunitário. A sede do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira foi construída através de mutirão, um exemplo concreto deste sentimento de solidariedade e união, próprio das comunidades carentes. Desde esse momento, tem sido admirada e respeitada nos meios artísticos e culturais do país. Mantém-se longe dos “patrocinadores bicheiros”, mesmo tendo que optar por cobrar ingresso em seus ensaios. Foi sempre inovadora: introduziu o samba enredo e as figuras do mestre-sala e da porta-bandeira, criou uma batida diferente em sua bateria. Dentre os valores agregados da Verde e Rosa, estão tradição, emoção, poesia, idoneidade e alegria. A busca da autonomia financeira do Grêmio Recreativo Estação Primeira de Mangueira sempre esteve voltada para o desenvolvimento de uma “marca”, repleta de um “valor simbólico”: um misto de cultura e realização social, que vai além do lucro das organizações do mercado. Sua forma substantiva de se organizar mostra que é possível a construção de um modelo de realização social, unindo comunidade, setor privado e governo. A comunidade Mangueirense é um microcosmo no universo da cidade do Rio de Janeiro. O cotidiano dos moradores é afetado pela dramaticidade do processo histórico e social de uma sociedade global excludente. Neste sentido, a importância do carnaval precisa ficar clara: uma vez no ano os moradores dos morros atuam como atores principais. Vivendo personagens e interpretando a história brasileira e universal, passam da subalternidade cotidiana para o centro da cena. A Escola de Samba sempre funcionou como palco, praça, clube, mas, especialmente, como promotora da presença da comunidade no mundo. Segundo Goldwasser17, a “... Mangueira é uma Escola enraizada no Morro. Franqueada a entrada à quadra durante a maior parte do ano, moradores do Morro se fazem seus usuários habituais: a escola se avista de todos os lados da favela, é um palco permanente profusamente iluminado. O portão da Escola é um comutador da conduta, transpondo-o, abaixa-se o tom da voz e modera-se o comportamento, e a Escola se faz, para muitos, o centro das reuniões domingueiras, o campo de
futebol das crianças, a festa dos fins de semana, a cena de promoções oficiais, o centro da vida comunitária.” Na realidade, a Escola de Samba exerce, unicamente por existir, uma forma espontânea de educação. Cotidianamente, então, existe a preservação e re-criação da herança cultural negra e mestiça. Tendo como centro o carnaval, este centro desdobra-se no cotidiano, fazendo com que as gerações percebam sua existência e as pessoas se achem capazes de ensinar e de reensinar o que lhes foi legado no passado pelos seus familiares, amigos e lideranças. Tradição viva. O significado de tradição pode ser percebido nas palavras de Cartola18 quando diz: “meu amor pela escola começou não sei bem quando. Mas acho que antes dela ter sido criada, com minha chegada ao morro. Mangueira escola e Mangueira morro pra mim é a mesma coisa. Lá, pelo menos, a luta pela sobrevivência e pelo prazer aproximava as pessoas, embora os pactos de solidariedade estivessem ainda se esboçando”. Para Cartola, a história da Mangueira é uma caminhada repleta de cumplicidades. Mesmo observando e valorizando as diferenças entre as pessoas, não havia na comunidade uma distinção, aquele individualismo que já se espalhava na urbanização da cidade do início do século. Para o grande mestre do samba, a organização jurídica do GRESEP, significou “a possibilidade de unificar o morro a partir de princípios a serem estabelecidos por uma Escola de Samba, que lhes desse representatividade frente às instituições públicas, e até os habilitando a obter pequenas facilidades e eventual patrocínio estatal, benefícios de que já gozavam os ranchos começou a sensibilizar a gente do morro. A Escola de Samba da Estação Primeira de Mangueira, seria o encontro das necessidades de organização e respeitabilidade da Mangueira com o espírito agressivo e poético do grupo dos sambistas que a arrebatava”. 19 Moura assinala que “a Mangueira constitui-se juridicamente apresentando um corpo de diretores, incorporando a forma de organização dos ranchos, que por sua vez subordinavam-se aos modelos das instituições das classes superiores: a empresa, a repartição, a fábrica. Entretanto, a Escola se representar frente ao sistema da ordem pública, pelo menos inicialmente, não inibia a forma comunitária de discussão e partilhe do poder que se fundava no morro”.20 Esta união estabelecida na comunidade, através da organização da Escola de Samba, definiu o samba como uma forma de expressão hegemônica das comunidades do morro. O direito de existir como comunidade, a sobrevivência, a convivência da Estação Primeira. A Escola de Samba foi a forma organizacional dessas populações para expressarem suas tradições e conjunturas. Isso significa dizer que uma verdadeira educação comunitária se estabeleceu no final da década de vinte e se propagou ao longo deste século, sempre preocupada com a formação de pessoas.
Resgatou-se e ampliou-se, no morro, uma mentalidade que fazia com que problemas, muitas vezes tratados pelos “citadinos” com mesquinhez e individualismo, fossem facilmente resolvidos pela comunidade na base da fraternidade. Assumir a responsabilidade de famílias inteiras que haviam perdido quem as mantivesse sempre foi caso comum. Foi assim que, quando morreu Saturnino Gonçalves – primeiro presidente da Escola Estação Primeira, pai de Dona Neuma, deixando mulher e três irmãs – todos foram amparados e cuidados pelo casal Deolinda e Cartola. Somente de passagem – pois mereceria uma atenção toda especial –, destacamos o papel representado pela mulher no morro (papel esse pouco percebido pelos movimentos de mulheres ou de valorização da mulher). As mulheres tiveram um papel fundamental desde a formação dessa comunidade predominantemente negra, pois, quando da ocupação dos morros, “a irregularidade da vida de trabalho do homem era francamente desfavorável à sua permanência numa relação estável, ou mesmo no sustento da prole. Era comum uma mulher ter filhos com diversos homens com quem ela vivia sucessivamente”, o que gerou “códigos bastante diferentes das regras matrimoniais estritas da burguesia, que desvalorizavam qualquer mulher que tivesse tal comportamento”21. Famílias inteiras tinham a mulher como responsável: muitas quituteiras, dentre as quais diversas transformaram-se em cozinheiras famosas. Sempre foram as responsáveis pela festas da Escola de Samba e serviam como “grandes mães”, ou tias, para os necessitados e abandonados. O sonho de uma sociedade matriarcal de Oswald de Andrade poderia encontra aí uma expressão emblemática. A importância da mulher, nessa figura, é relembrada anualmente pela ala das baianas. Contrapondo o isolamento da comunidade mangueirense do tecido social modernizante, a articulação da comunidade via Escola promove vinculações autênticas entre as pessoas, funcionando como uma área de homogeneização social. Faz-se um recorte na ideologia da dominante, onde impera um sistema social estratificado. Existe um “modus de vida mangueirense”, com uma particular interação social. É uma comunidade nivelada e socialmente coesa, politicamente aberta em suas discussões internas, diferentemente do que vai acontecendo paralelamente no núcleo “moderno” da cidade do Rio de Janeiro. A cidade está fragilizada pela violência, pelo tráfico de drogas, pela corrupção, pela ausência do Estado e por um mercado cada vez menos capaz de diminuir a exclusão. Educação, saúde, habitação e trabalho, para as camadas de baixa renda da população, foram ficando em níveis inaceitáveis. É verdade que este quadro vem provocando na sociedade civil carioca um clima de indignação, despertando sua auto-estima e criando um movimento social, mesmo que difuso e ainda pouco
articulado, que busca soluções e luta para restaurar sua dignidade. É dentro desse movimento mais amplo que enxergamos as iniciativas vinculadas ao marketing social. No entanto, não é possível enxergar, aí, só possibilidades positivas. Isso porque tais iniciativas não são “neutras”: elas trazem inovações, pressões para mudanças e não, apenas, “promoção humana” e “melhora da qualidade de vida”. Podem, embora não necessitem, solapar a tradição viva da comunidade. As palavras de Kotler, considerado um conhecedor do marketing social, são explícitas a esse respeito e o tom autoritário em que são proferidas revelam, também, alguns dos perigos vinculados a projetos que elegem um “público-alvo” que pode ou não ter voz ativa. Kotler 22 afirma que o marketing social e “o esforço de sua utilização e implementação podem acarretar mudanças de determinadas atitudes e comportamentos dentro de uma comunidade, cidade, ou mesmo de um país.” Nessa visão, mudança social “é um esforço organizado, feito por um grupo (o agente de mudança), visando convencer terceiros (os adotantes escolhidos como alvo) a aceitar, modificar ou abandonar certas idéias, atitudes, práticas e comportamentos” e, ainda, que a “mudança social pode ser vista de duas formas, a que ocorre espontaneamente, no curso da vida, sem planejamento deliberado ou intervenção humana racional e a planejada e estruturada por seres humanos, para atingir objetivos e metas específicas em torno das quais existe acordo.” No caso da parceria Mangueira/Xerox, as possíveis ações diretas de pessoas envolvidas no projeto tinham, sim, por objetivo alterar comportamentos, especialmente das crianças e adolescentes de baixa renda, estabelecendo melhoramentos de padrões de vida e contribuindo na formação cidadania. No entanto, talvez uma das grandes virtudes da parceria seja de que ela nasce não apenas de cabeças que se encontram fora da comunidade da Mangueira. O projeto nasce dentro de uma comunidade, inserida num contexto conflituoso, com diversos problemas trazidos pela modernidade. A idealização desse projeto não foi tarefa confortável para quem planejou, pois setores da própria comunidade externaram desconfiança e mostraram-se avessos às novas idéias.23 Novamente a Sede da Escola de Samba aparece como palco: foi ali que ocorreram as “conversas meticulosas”, que identificaram os perigos reais e que minimizaram os receios infundados. Ainda segundo Kotler, “existem quatro tipos de causas sociais, em que o marketing social pode ser utilizado: mudança cognitiva (são as campanhas de informação e educação pública); mudança de ação (são aquelas que tentam realizar uma ação específica, durante um dado período); mudança de comportamento (visa ajudar as pessoas a modificar algum aspecto de seu comportamento, tendo em
vista o bem estar individual); mudança de valor (procuram alterar profundamente as crenças e/ou valores que um grupo-alvo possui quanto a alguns objetos e situações). 24 A escolha correta dos adotantes escolhidos como alvo seria o primeiro passo para o sucesso de qualquer proposta de mudança social: conhecimento profundo sobre o comportamento do grupo delimitado, ideologias, aspirações, enfim do modo de vida da comunidade. Esse conhecimento, permite uma melhor adequação dos meios e mensagens sensibilizadores do público-alvo, despertando seu interesse . No caso do Projeto da Vila Olímpica da Mangueira, o aspecto da mudança de comportamento é relevante: os quatro programas básicos – Esporte e Lazer, Saúde, Educação e Trabalho – foram dirigidos às crianças e adolescentes, procurando estimulá-los e sensibilizá-los a adotarem caminhos e atitudes que os possibilitem vencer as barreiras da exclusão social. No entanto, repetimos, no caso em questão, tais mudanças de comportamento não são simplesmente “engenhadas” por pessoas externas à comunidade. Ela surge, também, da própria afirmação da tradição da Mangueira como fonte inspiradora, presente e resistente. A tradição viva da Mangueira serve como resistência, não no sentido de oposição, mas no de oferecer a resistência necessária à construção e propiciar enraizamento e identidade cultural às ações. Ponto fundamental do sucesso parece ter sido a formação de uma equipe de pessoas – idealizadoras e realizadoras do projeto – que, ou são da própria comunidade, ou têm profundas ligações e conhecimento da comunidade. Em outras palavras, pode-se afirmar que a equipe sempre esteve integrada na “comunidade ética”, compartilhando os ideais e valores herdados.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo realizado na comunidade mangueirense mostra que é possível uma intervenção social, utilizando o marketing social, que altere a tendência histórica de promoção da exclusão no Brasil. O sucesso das parcerias deve-se, sobretudo, à interferência, participação e atuação da comunidade, não só como alvo das intervenções, mas como co-responsável pelas ações e decisões. Ou seja, o respeito, o resgate e a reelaboração da herança cultural é condição de possibilidade desse sucesso. Qualquer projeto pretensamente inclusivista ou pretensamente promotor de melhores condições de vida que pretenda opor-se, apagar ou desconsiderar a herança cultural é um engodo. Certamente, a permanência de uma comunidade não é garantida pela ausência de mudanças. Isso pode significar, até, sua esclerose. No entanto, as mudanças devem ser promovidas por essa mesma
comunidade que, de um lado, se enraiza no passado e no que é passado no presente – a herança; e, de outro lado, pela abertura que essa comunidade consegue estabelecer para além de si. Esse parece ser o caso, até o momento, das parcerias da Mangueira com o setor privado e com o setor público.
BIBLIOGRAFIA Anais do III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, 1996. BARTHOLO JR., R. S. Os labirintos do silêncio. Cosmovisão e tecnologia na modernidade. Rio de Janeiro: Marco Zero / COPPE, 1986, p. 131. GOLDWASSER, J. M. O palácio do samba. Estudo antropológico da Escola de Samba da Estação Primeira de Mangueira. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 110. GUIMARÃES, H. W. M. “Responsabilidade social da empresa: uma visão da história de sua evolução” in Revista de Administração de Empresas. São Paulo: FGV, 24 (4), outubro/dezembro, 1984, p. 215. KOTLER, P. Marketing para organizações que não visam lucro. São Paulo: Átlas, 1978, p. 288. MOURA, R. Todo o tempo que eu viver. Rio de Janeiro: Corisco Filmes Edições, 1988, p. 22. “Projeto Educação para o Trabalho – CAMP/Mangueira” in Relatório do Projeto Social da Mangueira, 1997, p. 15. ROHDEN, F. e GOES, S. Empresas e filantropia no Brasil. Rio de Janeiro: ISER, 1996, p. 42. TANDON, R. e OLIVEIRA, M. D. Cidadãos. Construindo a sociedade civil planetária. Washington: Civicus, 1995, p. 13. WILHEIM, A. M. e FERRARI, E. “Relatório anual da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais” in As ONGs e a realidade brasileira. Iniciativas empresariais e projetos sociais sem fins lucrativos. Rio de Janeiro: ISER, 1995, p. 18.
NOTAS 1
Ver TANDON, R. e OLIVEIRA, M. D. Cidadãos. Construindo a sociedade civil planetária. Washington: Civicus, 1995, p. 13. 2 BARTHOLO JR., R. S. Os labirintos do silêncio. Cosmovisão e tecnologia na modernidade. Rio de Janeiro: Marco Zero / COPPE, 1986, p. 131. 3 Ver GUIMARÃES, H. W. M. “Responsabilidade social da empresa: uma visão da história de sua evolução” in Revista de Administração de Empresas. São Paulo: FGV, 24 (4), outubro/dezembro, 1984, p. 215. 4 Ver, para um aprofundamento, GUIMARÃES, H. W. M., op. cit., p. 216. 5 Ver ROHDEN, F. e GOES, S. Empresas e filantropia no Brasil. Rio de Janeiro: ISER, 1996, p. 42. 6 Ver Anais do III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, 1996. 7 Ver ROHDEN, F. e GOES, S. , op. cit., p. 42. 8 Ver ROHDEN, F. e GOES, S. , op. cit., p. 49. 9 Ver ROHDEN, F. e GOES, S. , op. cit., p. 56. 10 Ver ROHDEN, F. e GOES, S. , op. cit., p. 61. 11 Ver WILHEIM, A. M. e FERRARI, E. “Relatório anual da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais” in As ONGs e a realidade brasileira. Iniciativas empresariais e projetos sociais sem fins lucrativos. Rio de Janeiro: ISER, 1995, p. 18. 12 Muitos dos dados, especialmente os históricos, foram obtidos no trabalho de campo, através de entrevistas. Dentre outras, foram realizadas entrevistas com: Sandra Damasceno, gerente de assuntos corporativos da Xerox; José Monteiro, gerente de marketing da Xerox, Francisco de Carvalho, coordenador geral da Vila Olímpica; Alice de
Jesus Gomes Coelho, presidente do CAMP-Mangueira; Maria Rosária, assistente social do CAMP-Mangueira; Terezinha Rodrigues da Silva Labruna, diretora do CIEP “Nação Mangueirense”, Neuma Gonçalves. 13 Ana Guedes, entrevista a Enilson Silva D’Oliveira, setembro de 1997. 14 Ver “Projeto Educação para o Trabalho – CAMP/Mangueira” in Relatório do Projeto Social da Mangueira, 1997, p. 15. 15 O Instituto do Conselho Tutelar, que é um órgão autônomo e permanente, não jurisdicional, é encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. 16 Fazem parte do conselho: Francisco de Carvalho, coordenador da Vila Olímpica; Carlos Sales, diretor da Xerox do Brasil, Alcione, Tia Zica, Dona Neuma, Jamelão, Tia Jô, Tio Jair. 17 GOLDWASSER, J. M. O palácio do samba. Estudo antropológico da Escola de Samba da Estação Primeira de Mangueira. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 110. 18 Ver MOURA, R. Todo o tempo que eu viver. Rio de Janeiro: Corisco Filmes Edições, 1988, p. 22. 19 Ver MOURA, R., op. cit., p. 25. 20 Ver MOURA, R., op. cit., p. 31. 21 Ver MOURA, R., op. cit., p. 74.. 22 Ver KOTLER, P. Marketing para organizações que não visam lucro. São Paulo: Átlas, 1978, p. 288. 23 Entrevista por Alice de Jesus Gomes Coelho, “Tia Alice”, uma das principais articuladoras dos projetos. 24 Ver KOTLER, P., op. cit., 1978, p. 288.