Estruturas características do samba-enredo

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Estruturas características do samba-enredo Yuri Prado Brandão de Souza

Universidade de São Paulo (CMU-ECA-USP) - yuri_prado@yahoo.com.br Resumo: A pesquisa pretende traçar um amplo panorama das características e transformações da música praticada pelas escolas de samba desde a sua criação até os dias atuais. Através do levantamento e catalogação das estruturas melódicas mais recorrentes, assim como de seus padrões harmônicos e formais, o trabalho pretende ainda fornecer suporte teórico a uma polêmica: por muito tempo considerado um gênero em constante mudança, atualmente o samba-enredo movimenta debates sobre a sua possível decadência ou estagnação. Palavras-chave: Música popular brasileira; Escolas de samba; Samba-enredo.

Introdução O fenômeno das escolas de samba, por sua importância para o entendimento da cultura popular brasileira e pela complexidade dos aspectos ligados à sua manifestação, é um tema de grande relevância para a pesquisa científica. São bastante conhecidos os trabalhos que o abordam sob os pontos de vista histórico, sociológico (mercantilização e descaracterização das escolas de samba), antropológico (estudo das relações entre os componentes), estético-visual (gigantismo e transformação das alegorias e fantasias) e lingüístico (temática e letra dos sambas-enredo). A pesquisa de Iniciação Científica “Aspectos estilísticos e transformações do samba-enredo sob o ponto de vista melódico”, a partir da qual este artigo foi produzido, teve a intenção de se tornar mais um instrumento para a compreensão do universo das escolas ao estudar a sua música, o samba-enredo, sob o ponto de vista melódico. Julgamos que a linha melódica desse gênero carrega uma quantidade de informações estilísticas suficiente para que pudéssemos analisá-la separada do plano poético. De qualquer forma, como tratamos de um gênero de canção, este último acabou por ser chamado quando a análise estritamente musical se revelou insuficiente. Os sambas analisados foram escolhidos entre as obras das escolas que desfilaram no grupo principal de cada carnaval. A razão dessa escolha se encontra no fato de as maiores escolas pertencerem a esse grupo, as quais são justamente as responsáveis pela maior parte das mudanças ocorridas não somente no samba-enredo, mas em todos os aspectos que envolvem essa manifestação cultural.

A pesquisa Os primeiros capítulos da pesquisa foram dedicados aos ranchos, blocos e cordões, as manifestações do carnaval de rua do Rio de Janeiro responsáveis pelo surgimento das escolas de samba. Foi estudada também a contribuição destas últimas para a formação do samba moderno, tendo como base o livro Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), de autoria de Carlos Sandroni (SANDRONI, 2001). O caminho da música das escolas em direção a um gênero autônomo também foi traçado. Verificamos que inicialmente baseado na forma binária A-B, o samba das escolas progressivamente passou Anais do XX Congresso da ANPPOM 2010

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a contar com uma “melodia que sai ao encalço da letra, suplantando toda a sorte de entraves silábicos para garantir a evolução de uma história preestabelecida” (TATIT, 2000: 3). Foram estudados, desse modo, as mudanças formais ocorridas a partir da década de 1940 e a era do samba-lençol, sub-gênero com linhas melódicas extensas e “pouco previsíveis, que escapam ao controle perceptivo do ouvinte” (TATIT, 2000: 3), o qual dominou a produção dos compositores entre as décadas de 1950 e 1960. As renovações promovidas por Martinho da Vila no final dos anos 1960 e sua influência na década seguinte, além das conseqüências da transformação do samba-enredo em música de massa, notadamente no que diz respeito à valorização dos refrões e das estruturas repetitivas, mereceram um capítulo à parte. As principais características do samba-enredo a partir dos anos 1980 também foram discutidas: a aceleração do andamento dos sambas e seus efeitos (diminuição da síncopa nas linhas melódicas e o surgimento da marcha-enredo); os novos procedimentos composicionais empregados pelos sambistas (figuras de preenchimento, modulações entre tonalidades homônimas e refrões responsoriais); e a padronização formal (duas estrofes entremeadas por dois refrões) dos sambas desse período, considerada um dos mais fortes sinais da estagnação criativa do gênero. Vimos ainda, no último capítulo, os sambas de Eduardo Medrado, Kleber Rodrigues e parceiros, compositores ligados à Imperatriz Leopoldinense que há alguns anos procuram desenvolver uma reação ao atual modelo de samba-enredo. Por conta da escassez de sambas-enredo documentados em partitura, foram feitas transcrições a partir da escuta de todos os discos anuais de escolas de samba (de 1968, quando começaram a ser lançados comercialmente, a 2009), além de coletâneas e arquivos disponibilizados na Internet. Outro importante instrumento de investigação foi a realização de entrevistas com compositores de escolas de samba, fundamentais para a obtenção de informações que só poderiam ser reveladas pelos personagens que vivem o problema abordado na pesquisa.

Estruturas características Nesta comunicação, daremos destaque às estruturas características do samba-enredo, assim chamadas por atravessarem fronteiras temporais e estilísticas e pela grande frequência com que são empregadas pelos compositores. A primeira delas é uma progressão de acordes, por nós denominada padrão harmônico característico, que corresponde aos primeiros dezesseis compassos de muitos dos sambas-enredo já apresentados em desfile, nas mais diversas épocas:1

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Figura 1. Padrão harmônico característico

Nesse mapa harmônico, os quatro primeiros compassos são destinados à afirmação do I. Os compassos 5 a 8 preparam a polarização para o IIm, que será afirmado no 9o compasso. E, por fim, a progressão a partir do 13o compasso garante o retorno ao I. Cabe notar que essa estrutura de dezesseis compassos pode ser ainda reduzida (menor número de compassos) ou expandida (maior número) sem que a trajetória harmônica aqui descrita seja alterada. A utilização desse mapa harmônico parece estar intimamente ligada ao surgimento do sambaenredo, já que começa a ser mais claramente percebida nos sambas produzidos a partir dos anos 1950. Entretanto, é somente a partir dos anos 1970 que sua presença adquire grande notabilidade, a ponto de tornarse característica essencial do gênero. Para se ter uma idéia da crescente importância desse padrão à medida que a década de 1970 avançava, basta dizermos que em 1968, por exemplo, somente um (O tronco do Ipê, da Portela) dos dez sambas apresentados pelas escolas pertencentes ao antigo Grupo 1 (atual Grupo Especial) se utilizava dele. Dez anos depois, em 1978, sete dos dez sambas se valiam do padrão (O Amanhã, União da Ilha; A criação do mundo na tradição nagô, Beija-Flor; Dos carroceiros do imperador ao Palácio do Samba, Mangueira; Dique, um mar de amor, Vila Isabel; Mulher à brasileira, Portela; Sonho infantil, Arranco do Engenho de Dentro; Talaque, talaque, o romance da Maria-Fumaça, Arrastão de Cascadura). O padrão harmônico característico continua a ser largamente utilizado nos dias atuais. No carnaval do ano de encerramento desta pesquisa (2009), cinco dos doze sambas fizeram uso do padrão de maneira rigorosa (Tambor, Salgueiro; E por falar em amor, onde anda você?, Portela; Vira-Bahia, pura energia, Viradouro; Mocidade apresenta: Clube Literário Machado de Assis e Guimarães Rosa, estrelas em poesia!, Mocidade Independente; Não me proíbam criar. Pois preciso curiar! Sou o país do futuro e tenho muito a inventar!, Porto da Pedra) e um de maneira expandida (Tijuca 2009: uma odisséia sobre o espaço, Unidos da Tijuca). A relevância desse mapa harmônico, entretanto, não reside somente em sua larga utilização. O estudo fraseológico do samba-enredo acabou por nos revelar a existência de uma frase musical atrelada ao padrão harmônico característico, a qual possui fundamental importância para a compreensão desse gênero musical. Anais do XX Congresso da ANPPOM 2010

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Frase característica Antes de qualquer análise, observemos os primeiros compassos de três sambas que seguem o padrão harmônico característico:

Figura 2: Exemplo de frase característica (1)

Figura 3: Exemplo de frase característica (2)

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Figura 4: Exemplo de frase característica (3)

Podemos perceber em todos os casos a utilização, entre os compassos 9 e 11, da mesma frase musical. Essa frase, conforme já assinalado nos colchetes, será denominada frase característica:

Figura 5: Frase característica

A frase característica está quase tão presente no samba-enredo quanto o padrão harmônico característico, ainda que este último não implique o uso da primeira. Na realidade, a frase característica não tem um desenho melódico fixo, e sim um perfil que admite inúmeras variações em seu contorno. Para que uma frase presente em um samba-enredo seja considerada pertencente ao domínio da frase característica, ela deve obrigatoriamente estar de acordo com os seguintes requisitos: • estar posicionada no 9o compasso do padrão harmônico característico (afirmação do IIm); • ser concluída com uma suspensão 4-3 (4a justa do acorde resolvendo na 3a maior) no acorde dominante do 11o compasso, frequentemente precedida por um salto ascendente de 3a (portanto, em Dó maior, as últimas notas serão lá-dó-si). É importante salientar que a utilização de um mesmo material melódico em diferentes composições é um recurso comum no samba-enredo. Nenhum dos compositores entrevistados mencionou que esse compartilhamento melódico pode ser um indício de plágio ou falta de criatividade. De qualquer forma, consideramos que a frase característica é o exemplo máximo dessa prática e podemos mesmo classificá-la como o mais significativo elemento identificador desse gênero, sua marca sonora. Anais do XX Congresso da ANPPOM 2010

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Tópicas Em nossa pesquisa, conseguimos estabelecer uma relação entre a frase característica e as pesquisas realizadas por Acácio Tadeu de Camargo Piedade, professor do Departamento de Música da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina), acerca da aplicação da teoria das tópicas na música brasileira. As tópicas são figuras “de retórica musical que portam significado cultural e historicamente marcado”, sendo que “sua plenitude significativa se dá não apenas por sua feição interna, mas também pela posição de sua articulação no discurso musical” (PIEDADE, 2006). Assim, gestos musicais característicos da música brasileira como, usando as classificações de Piedade, o “nordestino”, o “brejeiro” ou “época de ouro”, quando usados no momento correto, carregariam em si uma mensagem que poderia ser apreendida pelo público. Dessa forma, poderíamos considerar a frase característica como uma tópica dotada, ao mesmo tempo, de máximo e nulo potencial retórico: máximo quando em uma situação fora de seu contexto de origem, como, por exemplo, em uma improvisação livre, sua utilização poderia remeter o ouvinte treinado a esse gênero; e nulo quando levamos em conta que, já tratando do samba-enredo propriamente dito, a linha melódica da frase característica aparece vestida em versos adequados aos mais diferentes enredos, o que nos impediria de afirmar com segurança a existência de uma expressão extramusical em seu interior.

Considerações finais Estudos sobre a retórica musical do samba-enredo já estão sendo desenvolvidos pelo autor desta comunicação e parecem indicar um diálogo ainda maior do que o imaginado entre a melodia do samba e os outros elementos do desfile.

Notas 1 O método de análise aqui utilizado é o mesmo do livro “Harmonia e Improvisação” de Almir Chediak (CHEDIAK, 1986), que enfoca a harmonia da música popular.

Referências Bibliográficas CHEDIAK, Almir. Harmonia e improvisação. 12a edição. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1986. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Análise musical e música popular brasileira: em busca de tópicas. In: II JORNADA DE PESQUISA E XV SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – CENTRO DE ARTES – UDESC, 2006, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UDESC, 2006. CD-ROM. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. UFRJ, 2001. TATIT, Luiz. Marchinha e samba-enredo. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 mar. 2000. Caderno Opinião, Tendências/Debates, p. 3. Anais do XX Congresso da ANPPOM 2010

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