16/04/2017
Cadernos do CNLF, Série X, Número 6
<< A INTERTEXTUALIDADE NOS SAMBAS DA POLÊMICA ENTRE WILSON BATISTA E NOEL ROSA Flávio de Aguiar Barbosa (UERJ) INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é aplicar o conceito de intertextualidade à análise dos sambas produzidos por Wilson Batista e Noel Rosa, na famosa Polêmica entre os dois. Inicialmente, apresentamse brevemente os fatores de textualidade, especialmente a intertextualidade, segundo a lingüística textual. Em seguida, analisamse as letras dos sambas referidos, com atenção especial para as relações de intertextualidade construídas entre as letras. Exploramse também, com base na análise do discurso, os posicionamentos discursivos dos compositores, com seus pressupostos ideológicos, principalmente a partir de evidências lexicais. EMBASAMENTO TEÓRICO DO ESTUDO DA INTERTEXTUALIDADE E DA TEXTUALIDADE EM GERAL Os estudos lingüísticos tradicionais, baseados na perspectiva estruturalista, enfocavam quase exclusivamente a descrição gramatical no nível da frase. O sistema da língua era entendido como uma rede formal de estruturação abstrata e os conhecimentos referentes ao mundo extralingüístico e ao uso da linguagem não deviam interferir nessas investigações. Chegavase a reconhecer a importância de fatores como a sociedade, a cultura de uma determinada comunidade lingüística etc., mas transferiamse essas preocupações para outras linhas de pesquisa. As incursões estruturalistas no estudo do texto limitavamse a tentativas de estabelecer linhas estruturais invariáveis no desenvolvimento de determinados tipos de texto (como a divisão do texto argumentativo em introdução, desenvolvimento e conclusão, a divisão do texto narrativo em exposição, complicação, clímax e desfecho etc.). Com o desenvolvimento da lingüística do texto, já a partir da década de 60 do século XX, mas principalmente a partir dos anos 1980, o enfoque dado a esse estudo mudou consideravelmente. Isso decorreu em grande parte da tese de que não há textos e “nãotextos” em essência. Considerandose que texto pode ser definido, na conceituação de Halliday e Hasan (1976), como “qualquer passagem, falada ou escrita, de qualquer tamanho, que realmente forma um todo unificado” e que a percepção da unidade a que se refere a definição é devida à depreensão de uma mensagem global pelo receptor, percebese que a interpretabilidade de um mesmo texto variará de acordo com uma série de fatores, como a identidade do receptor e a situação comunicativa. Novos elementos passaram então a ser valorizados nas investigações textuais. Além de informações gramaticais e semânticas, passouse a atentar para a contribuição de elementos pragmáticos e discursivos ao estudo do texto. Podemse perceber os avanços deflagrados por essa ampliação teórica ao considerar conceituações posteriores de texto, como a de Koch e Travaglia (1993): ...unidade lingüística concreta (perceptível pela visão ou audição), que é tomada pelos usuários da língua (falante, escritor / ouvinte, leitor), em uma situação de interação comunicativa, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente da sua extensão. Nessa definição percebese uma série de incrementos à noção teórica de texto: o reconhecimento do fato de que não há somente textos escritos (os produtos comunicativos em [1] linguagem oral também são textos) , a consideração da influência dos participantes do processo comunicativo na produção e interpretação de um texto e a inserção dessas atividades em uma situação concreta para alcançar objetivos específicos. Um dos pontos mais importantes no desenvolvimento dos estudos sobre o texto foi a sistematização da noção de coerência textual. Tal conceito é tido como a base da interpretabilidade, ou seja, é o requisito básico para que um texto possa funcionar como uma unidade comunicativa, cuja mensagem é interpretável. Assim como a interpretabilidade de um texto é variável, dependendo de diferentes fatores, também a coerência textual não é um conceito absoluto e não se pode dizer que haja textos completamente incoerentes, os ditos nãotextos. Uma série de elementos favorece o estabelecimento da coerência pelo receptor de um texto. Eles são agrupados diferentemente pelos teóricos, mas são basicamente os seguintes: Elementos lingüísticos O conhecimento gramatical (tanto por parte do produtor quanto do receptor de textos) é importante para o estabelecimento da coerência textual: por meio desse conhecimento, o receptor pode detectar no desenvolvimento linear de um texto conexões lógicas que balizam a interpretação da mensagem. A concordância gramatical, a referência pronominal, a elipse, a [2] seleção lexical, o uso de tempos verbais, de elementos dêiticos, de conectivos etc. são recursos da coesão textual, segundo a terminologia predominante . Conhecimento de mundo Na conceituação de Koch e Travaglia (1993), “o conhecimento de mundo é visto como uma espécie de dicionário enciclopédico do mundo e da cultura arquivado na memória.” Essas informações são armazenadas e organizadas sistematicamente por cada indivíduo em modelos cognitivos que aciona para interagir com a realidade. Esse tipo de conhecimento e principalmente o seu compartilhamento são essenciais no processo comunicativo (ver também o tópico informatividade, a seguir).
Fatores pragmáticos Os que ancoram um texto em uma situação comunicativa determinada, como a situacionalidade (ver subtópico seguinte), características dos interlocutores ou da relação entre eles (posição hierárquica, afetividade, familiaridade com o assunto abordado, entre outras), crenças pessoais, a função do texto produzido etc. Situacionalidade Fator que ancora um texto em uma dada situação comunicativa. É materializada por contextualizadores (assinatura, data, local, elementos gráficos, como disposição da página, fotos, etc., que ancoram o texto na situação comunicativa) e perspectivos ou prospectivos (elementos que avançam expectativas sobre o conteúdo; dependem do conhecimento de mundo do leitor – título, autor [seu estilo, dados biográficos, postura política etc.], estilo de época, corrente científica, filosófica, religiosa). Inferência É o processo cognitivo usado para estabelecer relações não explícitas entre informações de um texto, que garantem a continuidade de sentido. Tem a ver com o conhecimento de mundo e principalmente com o compartilhamento desse conhecimento. Todo texto é repleto de informações pressupostas que devem ser recuperadas pelo receptor. Intencionalidade e aceitabilidade O produtor de um texto pode deflagrar o processo comunicativo com uma série de possíveis intenções, desde a simples criação e manutenção do canal de comunicação até a interferência no comportamento ou nas crenças do interlocutor. É necessário que o receptor perceba essa intenção e a adequação do texto produzido à situação comunicativa, considerandoo aceitável e relevante para o propósito almejado.
Informatividade O conhecimento partilhado entre produtor e receptor define a parcela de informações dadas e novas de um texto. Quanto mais informativo ele for, maior será a dificuldade para se estabelecer a coerência textual; a situação inversa também pode abalar o cálculo da coerência textual: se houver muitas informações já conhecidas, o texto não será informativo e o intercâmbio textual será percebido como irrelevante e sem objetivo; ferese, nesse caso, o princípio da aceitabilidade. A sétima característica de um texto coerente é a intertextualidade, foco principal deste estudo.
http://www.filologia.org.br/xcnlf/8/04.htm
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