O rancho e a rua; questões sobre a atualização de uma forma cênicomusical carnavalesca

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Reitora Wrana Maria Panizzi Vice-Reitor José Carlos Ferraz Hennemann Pró-Reitor de Pesquisa Carlos Alexandre Netto Pró-Reitora Adjunta de Pós-Graduação Jocelia Grazia Diretor do Instituto de Artes Círio Simon Vice-Diretor do Instituto de Artes Flávio Roberto Gonçalves Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música Ney Fialkow Chefe do Departamento de Música Helena de Souza Nunes


Diretoria da ANPPOM 2001-2003

Diretoria Presidente: Maurício Alves Loureiro (UFMG) 1ª Secretária: Martha Tupinambá de Ulhôa (UNI-RIO) 2º Secretário: Fernando Iazzetta (USP) Tesoureira: Bernadete Zagonel (UFPR)

Conselho Diretor Manuel Veiga (UFBA) Jorge Antunes (UnB) Vanda Freire (UFRJ) Liane Hentschke (UFRGS)

Conselho Fiscal Carlos Alberto Figueiredo Pinto (UNI-RIO) Jamary Oliveira (UFBA) Glacy Antunes (UFG) José Augusto Mannis (UNICAMP) (Suplente) Catalina Estela Caldi (UNI-RIO) (Suplente)

Conselho Editorial Silvio Ferraz, Editor (PUC-SP) Carlos Palombini (UFMG) Irene Tourinho (UFG) Fausto Borém (UFMG)


COMISSÃO ORGANIZADORA Coordenação Geral Profa. Dra. Liane Hentschke (UFRGS) Vice-Coordenação Prof. Dr. Ney Fialkow (UFRGS) Coordenação Científica Profa. Dra. Luciana Del Ben (UFRGS)

Coordenação de Subáreas - Educação Musical: Profa. Dra. Jusamara Souza (UFRGS) - Composição: Prof. Dr. Celso Loureiro Chaves (UFRGS) Prof. Dr. Antonio Carlos Borges Cunha (UFRGS) - Música e Tecnologia: Prof. Dr. Eloi Fernando Fritsch (UFRGS) - Musicologia: Profa. Dra. Maria Elizabeth Lucas (UFRGS) - Práticas Interpretativas: Profa. Dra. Cristina Capparelli Gerling (UFRGS) Comissão Científica Profa. Dra. Luciana Del Ben (UFRGS) (Coordenadora) Prof. Dr. Antonio Carlos Borges Cunha (UFRGS) Profa. Dra. Any Raquel Carvalho (UFRGS) Prof. Dr. Eloi Fernando Fritsch (UFRGS) Profa. Dra. Jusamara Souza (UFRGS) Profa. Dra. Maria Elizabeth Lucas (UFRGS) Coordenação Artística Prof. Dr. Antonio Carlos Borges Cunha

Equipe de Apoio Administrativo Secretaria Geral: Fátima Ramos (PPG Música, UFRGS) Núcleo de Apoio a Eventos – Instituto de Artes, UFRGS Núcleo Setorial de Informática – Instituto de Artes, UFRGS


Agradecimentos

Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS Pinacoteca Barão de Santo Ângelo (Instituto de Artes, UFRGS) Espaço Ado Malagoli (Instituto de Artes, UFRGS) Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) Centro Acadêmico Tasso Correa


Apresentação Os encontros da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) constituem-se no principal fórum de circulação da produção científica musical brasileira, congregando diferentes subáreas da Música. Visando a acolher o crescimento significativo dessa produção científica, os eventos promovidos pela ANPPOM ampliaram seu escopo, assumindo a dimensão de congresso. O Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que já havia sediado os encontros da ANPPOM em 1989 e 1991, realiza agora o XIV Congresso da ANPPOM. O objetivo geral do XIV Congresso da ANPPOM é promover a discussão e o debate qualificado sobre Música como ciência e arte, suas interfaces, produção de conhecimento e atividades acadêmicas nas subáreas de Educação Musical, Composição, Música e Tecnologia, Musicologia e Práticas Interpretativas. Pretende ainda oportunizar a reflexão e a troca de informações sobre a pesquisa e o ensino, além da divulgação da produção científicomusical. O XIV Congresso da ANPPOM propõe-se a sinalizar possíveis caminhos para o fortalecimento da área de Música como campo acadêmico-científico e artístico, discutindo o estado atual da área bem como as perspectivas que se lhe impõem na contemporaneidade. Torna-se significativamente oportuno também discutir formas de produção e divulgação do conhecimento na área de Música e políticas de fomento à produção científico-musical. Para tanto, serão discutidas as seguintes temáticas internas: 1. A produção de conhecimento na área de Música: balanço e perspectivas 2. Políticas para a pesquisa em Música 3. Produção e divulgação científica e artística na área de Música Este volume traz, além da programação do evento, os resumos das comunicações e pôsteres enviados pelos autores e autoras e aprovados pela Comissão Científica. Os trabalhos foram avaliados de acordo com os seguintes critérios, estabelecidos a partir das orientações fornecidas na Chamada de Trabalhos: clareza em relação aos objetivos de pesquisa, consistência dos pressupostos teóricos, rigor metodológico, pertinência e relevância do tema e/ou dos resultados e conclusões previstos (no caso de pôsteres) ou advindos do processo investigativo (no caso de comunicações). A ANPPOM e a Comissão Organizadora do XIV Congresso da ANPPOM agradecem o apoio decisivo dos órgãos de apoio à pesquisa (CNPq, CAPES, FAPERGS e UFRGS/Propesq), os quais asseguraram a viabilização deste evento. Porto Alegre, 18 de agosto de 2003. Luciana Del Ben Coordenadora Científica


Apoio


O rancho e a rua; questões sobre a atualização de uma forma cênicomusical carnavalesca∗ Samuel Araújo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) samuca@openlink.com.br Resumo: Este trabalho procura refletir sobre o papel da música como instrumento de atualização da memória social e, para tal, como mediadora de complexas negociações simbólicas entre atores sociais, tempos e espaços diferenciados. Com este propósito de caráter mais geral, procede-se uma análise etnográfica do processo criativo em uma forma cenico-musical denominada rancho, recentemente recriada no carnaval de rua do Rio de Janeiro. Palavras -chave: ranchos carnavalescos, Rio de Janeiro, etnomusicologia Abstract: This paper reflects upon the role of music as a tool in the updating of social memory and, for that purpose, as a mediator of a complex symbolic negotiation between distinct social actors, and different concepts of time and space. Departing from this general viewpoint, it undertakes an ethnographic analysis of the creative process in a scenic -musical form called rancho, which has been recently recreated in Rio de Janeiro’s street Carnival. Keywords: carnival ranchos, Rio de Janeiro, ethnomusicology

INTRODUÇÃO Tem-se como marco deste estudo a iniciativa, em meados do ano de 2000, de retomada da tradição dos chamados ranchos carnavalescos por foliões, músicos e acadêmicos do Rio de Janeiro, fato relacionado à percepção por uma parcela dessa coletividade de “desaparição” daquela tradicional forma cenico-musical, ao menos da cena pública, em algum momento incerto entre o final da década de 1960 e o início da seguinte. Reconstituir uma forma considerada “extinta” por meio de fontes históricas primárias (depoimentos de participantes e estudiosos dos ranchos, registros fonográficos e iconográficos) e secundárias (reduzidas bibliografias específica e tangencial) foi, portanto, o grande desafio inicial enfrentado pelo grupo em questão. Através do estudo de caso, propõe-se colocar em debate algumas questões teoricometodológicas cruciais interpostas ao estudo da música em geral no Brasil—embora aqui seja mais enfatizada uma literatura de temática comumente rotulada

“música popular”—,

tornando salientes condicionantes ideológicos que limitam reconstituições desse objeto a um recorte excessivamente particular e redutor. Assim, invoca-se, por um lado, o que Eric ∗

Este trabalho tornou-se possível graças a [Bolsa de Fomento Não-Identificada] ao Projeto [idem].


Hobsbawm (1998) denomina “uso social do passado” no Ocidente, para discutir a interrelação entre os problemas de interpretação e novos usos potenciais da memória social. Por outro lado, procura-se ressaltar a contribuição de uma abordagem, tanto quanto possível, historico-etnográfica à compreensão da dinâmica dos processos criativos em música, particularmente a integração de dimensões em geral estudadas em sub-áreas de conhecimento relativamente estanques, tais quais composição, práticas interpretativas, história da música e etnomusicologia. Outro aspecto importante a ser considerado na leitura deste trabalho é o envolvimento do próprio autor, enquanto folião [sic] e músico, no processo de reinvenção recente da tradição aqui enfocada, o que exige ser ainda mais aguda a consciência do grau de reflexividade necessário à análise que se segue, para que não se a tome por “imparcial” ou “neutra”. Longe, porém, de julgar tal fato um empecilho, a etnomusicologia contemporânea (ver, por exemplo, BARZ e COOLEY 1997) tem reconhecido que os diferentes modos interferência do observador de um processo cultural, do teoricamente mais “neutro” ao mais “intervencionista”, diferenciam-se tão somente pela intensidade, mas exigem o mesmo nível de autocrítica por parte do pesquisador, de modo a não incidir em interpretações subjetivas epistemologicamente irrelevantes.

O USO DO PASSADO MUSICAL NA VIDA SOCIAL DO PRESENTE Leituras variadas e relativamente recentes (ver, por exemplo, ARAUJO 1988, 1992; BARBEITAS, 1995; LIMA 2001) têm constatado a pouca substância teórica entremeada a reconstruções problemáticas do objeto de estudo “música popular brasileira” marcando boa parte da literatura pertinente. Muitos dos problemas básicos resultam da falta de abordagem crítica das fontes de informação (quais, exatamente, teriam sido aquelas consultadas, onde se encontrariam, o que efetivamente podem dizer?), sobre a qual assentam-se visões panorâmicas quase sempre descoladas de uma reflexão sobre as muitas contradições identificáveis nos vestígios disponíveis (partituras, gravações etc.) de práticas musicais diversas. Embora a limitação de espaço não permita desenvolver-se aqui tais questões de modo mais adequado, propõe-se que essas e outras lacunas têm levado a uma certa visão apressadamente

“essencialista”

e

reificada

de

gêneros

musicais

historicamente

significativos no Brasil e a um relativo obscurecimento do trânsito e empréstimos


recíprocos de características estilistico-musicais pelos meandros de uma formação social simultaneamente hierarquizada e permissiva. Conforme Hobsbawm (1998), a

legitimação de uma determinada maneira de se

entender o passado, recortando alguns entre os variados traços visíveis do mesmo, responde, grosso modo, a necessidades das gerações posteriores de reproduzirem e consolidarem determinadas relações de hegemonia. Consequentemente, a maior ou menor duração de certas concepções do passado dizem muito a respeito das relações de poder entre segmentos diferenciados da sociedade, sendo que aquelas de mais longa existência chegam a produzir a sensação—não raro ilusória—de que as coisas realmente tiveram tal forma ou procederam num determinado sentido. Mas, como alerta Hobsbawm, qualquer pretensão à estabilidade eterna de tais visões é sempre, de uma maneira ou outra, igualmente ilusória.1 As inovações que ocorrem em interpretações desse passado dever-se-iam, segundo o historiador inglês, exatamente às possibilidades abertas pela revelação e exploração dessas omissões em função de novos anseios sociais. Haveria nesse caso, diz o autor, duas possibilidades: uma que comporta mudanças do tipo em que as estruturas e relações sociais, e as respectivas ideologias subjacentes, não são modificadas (por exemplo, inovações tecnológicas); nesse caso, o passado continua a ser o padrão para o presente; já na segunda possibilidade de inovação, ....o passado deve deixar de cessar ser o padrão para o presente, e pode, no máximo, tornarse modelo para o mesmo.(...) Isso implica uma transformação fundamental do próprio passado. Ele agora se torna, e deve se tornar uma máscara para inovação, pois já não expressa a repetição daquilo que ocorreu antes, mas ações que são, por definição, diferentes das anteriores (1988, 26). Tal situação é, portanto, igualmente bifurcada, podendo significar tanto a implantação de uma nova ordem, quanto o simulacro de uma antiga. O caso relatado a seguir se enquadra, como procura-se demonstrar, no primeiro caso e os espaços assim abertos à inovação tendem (embora não possam jamais garantir), segundo a interpretação aqui formulada, a instaurar uma nova ordem, muitas vezes à revelia do próprios atores sociais envolvidos.

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“Claro que uma dominação total do passado excluiria todas as mudanças e inovações legítimas, e é improvável que exista alguma sociedade humana que não reconheça nenhuma delas. A inovação pode acontecer de dois modos. Primeiro, o que é definido oficialmente como “passado” é e deve ser claramente uma seleção particular da infinidade daquilo que é lembrado ou capaz de ser lembrado. Em toda sociedade, a abrangência desse passado social formalizado [grifo do autor desta comunicação] depende, naturalmente, das circunstâncias (HOBSBAWM 1988, 23)”.


OS RANCHOS E A MEMÓRIA SOCIAL DO RIO DE JANEIRO As escassas referências bibliográficas sobre os ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro apontam, de modo implícito (EFEGÊ 1965) ou explícito (SÁ 2002), para o seu decisivo papel como mediadores culturais desde seu surgimento entre populações de classe média baixa do século XIX, sob a liderança, ao que tudo indica, de migrantes do estado da Bahia, recriando em espaço urbano cortejos pastoris natalinos das áreas rurais nordestinas (ver TINHORÃO 1972, 1998). Sua adaptação ao contexto citadino leva ao eventual deslocamento, ainda ao final do século XIX, de seu período de apresentação para o carnaval, mais apropriado, no entender de destacados ranchistas, para a exposição de conteúdo profano-religioso popular (ver depoimento de Hilário Jovino ao Jornal do Brasil, apud TINHORÃO 1998). Assim, funde-se o rancho progressivamente às diversas formas carnavalescas de rua, como blocos e cordões, bem como assimila elementos de formas cênicas expressivas, da ópera ao espetáculo de revista, que tanto influenciam aspectos do carnaval da época, como os temas de carros alegóricos, personagens, figurinos e alegorias, para tornar-se um dos principais eixos de trânsito e interação entre produtos culturais da segmentação social vigente (ver a este respeito BAKHTIN 1984). Objeto de crescente admiração e envolvimento por parte dos mais variados segmentos sociais da cidade, chegam os ranchos ao seu apogeu na primeira década do século XX, tendo na fundação do rancho-escola 2 Ameno Resedá, em 1907, um de seus marcos. Por esse período, segundo a historiografia disponível, já encontram-se consolidados alguns do traços estilísticos mais gerais dos ranchos, entre eles, a forma de cortejo tomado de empréstimo aos pastoris, a subordinação do mesmo a um enredo, muitos dos quais derivados de óperas famosas, o uso de alegorias portáteis e carros alegóricos, e, o que mais diretamente nos interessa, a consagração da marcha, a tempo denominada marcha-rancho, como gênero musical com função alusiva ao enredo do desfile. Por fim, e de acordo com as mesmas fontes, o rancho serve ainda—com sua concepção de cortejo organizado, suas alegorias e alas fantasiadas segundo um enredo determinado—de modelo de organização às escolas de samba. A ascensão destas, no entanto, foi contemporânea ao progressivo declínio do prestígio dos ranchos, até seu desaparecimento do olhar público na segunda metade do século XX.

“FLOR DO SERENO” OU A VOLTA DOS RANCHOS AO CARNAVAL DE RUA A cena noturna diária de Copacabana permite que se pense sem sobressalto em todo o tipo de encontro coletivo, do mais informal ou espúrio ao mais legitimado e regrado. Ainda assim, não parece exagerado rotular como singular uma reunião de trabalho em torno de um conjunto de pequenas mesas em um minúsculo bar3 daquele bairro, em que falas alternadas (uma subversão notável do efeito acústico que prevalece no cotidiano), cercadas de certa cerimônia, marcaram, em abril de 2002, a fundação do rancho carnavalesco que mais tarde se denominaria Flor do Sereno.

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Termo usado pelos integrantes do rancho em questão para referir-se a sua excelência. Minúsculo em dimensões espaciais, maiúsculo em dimensões simbólicas, o bar em questão mantém-se há algumas décadas, graças ao reconhecido carisma de seu dono e à cumplicidade de seus “clientes”, como referência a um movimento de valorização da música popular brasileira, promovendo principalmente performances de samba e choro. 3


O primeiro orador da noite, músico e compositor prestigioso cujo nome costuma servir de referência a várias gerações de outros músicos, repassou sua memória dos desfiles de ranchos. Em sua intervenção, referências à escassa literatura específica (principalmente EFEGÊ 1965) mesclaram-se a reminiscências, uma vez que sua própria biografia se confundia com algo que é sistematicamente apontado pela literatura: a continuidade entre os ranchos como forma cenico-musical popular (cujos desfiles assistiu na infância, levado pelos pais, ligados aos ranchos) e as escolas de samba (algumas das quais ajudou a fundar já na adolescência). Seguindo essa reconstrução recorrente, o declínio e virtual desaparecimento dos ranchos do carnaval carioca abriram caminho à afirmação progressiva e eventual hegemonia absoluta—e, no entender do orador e de muitos dos presentes, perniciosa (uma vez tornada mercadoria) e asfixiante—das escolas de samba (cada uma delas apresentando cerca de 4.000 pessoas nos desfiles oficiais de hoje) e dos chamados blocos da Zona Sul (que chegam a congregar 20.000 pessoas durante o carnaval, o que tem gerado controvérsias acirradas entre seus próprios integrantes). Colocada a importância de se buscar, em tal quadro, outras referências, os demais presentes se manifestaram oralmente e em ata pela fundação do rancho, uma novidade assentada no passado. Em reuniões semelhantes outras pessoas foram se agregando ao grupo original e procurando atualizar as muitas dimensões envolvidas em “colocar o rancho na rua”, ou seja, enredo (alusão a temáticas contemporâneas), cores emblemáticas (verde, azul e prata), música, adereços, figurinos e, quiçá, carros alegóricos, sendo importante, em relação a esses três últimos itens, recorrer-se à criatividade como compensação ao desejado baixo custo dos respectivos materiais. Em todas as discussões, adotou-se o princípio básico, já proposto na alocução-chave da primeira reunião, de que a busca de referências no passado não deveria ser vista como modelo estanque para o presente. O uso do passado nesse caso envolvia uma nítida percepção de mudança em relação ao comércio e gigantismo desenfreados, e de retomada, pelos participantes do grupo em formação, do poder simbólico julgado perdido no caso de agremiações como escolas de samba e blocos. Com relação à música, várias idéias foram postas em prática, como a recuperação e audição de gravações comerciais de marchas-rancho do período áureo dos ranchos no carnaval carioca (ca. 1907–1930), bem como de gravações não-comerciais posteriores do mesmo gênero musical, algumas dessas últimas, até então, inéditas. Foi mais uma vez o orador-chave da primeira reunião quem formulou a noção de repertóriopadrão4 do desfile: três canções, duas delas em sub-gêneros associados à marcha-rancho (marcha-enredo e marcha-regresso) e uma no gênero samba, mas com características de maxixe, como foi comum nas três primeiras décadas do século XX. O tempo, porém, passava e as discussões sobre o enredo e, consequentemente, sobre a organização não avançavam, em grande medida, pela quantidade e grau de especialização das tarefas relacionadas a esses dois aspectos. A música, por sua vez, também vivia alguns impasses, embora fosse tida como, entre as diversas dimensões conjugadas no rancho, a de mais fácil solução, tamanha a concentração de músicos gravitando historicamente em torno do contexto acima delineado. Embora a dificuldade maior fosse evidentemente o enredo não estar ainda definido, talvez a “novidade” de se compor uma marcha em


andamento lento sobre enredo a ser explorado também em termos plásticos e cênicos em desfile público impusesse desafios adicionais a compositores habituados a ver na chamada marcha-rancho,5 cujo modelo se assentou ao início do século XX, algo anacrônico e representativo de um Brasil igualmente deslocado do tempo presente.6 É inequívoco, contudo, o efeito agregador que essas reuniões informais permeadas por música produziram sobre o grupo, que mantinha seu núcleo inicial pouco a pouco acrescido de indivíduos de variadas procedências e gerações, todos animados pela mistura de ansiedade e incerteza cercando a empreitada. O papel da música nesses encontros sempre foi central, pois ouvia-se e tocava-se ao vivo, em formações instrumentais improvisadas, marchas-rancho, sambas e choros, produzindo uma espécie de reverberação crescente de valores afins, não importando tanto a indefinição quanto à marcha-rancho alusiva ao enredo ou ao samba amaxixado que daria, através de sua letra, um toque de crítica social ao desfile. Esse ethos em formação foi, sem dúvida, crucial para o surgimento da primeira canção original composta para o Flor do Sereno, a marcha-rancho de mesmo nome. Com forma usualmente encontrada em marchas-rancho (bissecional, 1ª parte em tom menor, 2ª em homônimo maior), prestava-se, segundo a concepção original do compositor, tanto a intercalações entre coro feminino e coro masculino, quanto a passagens em terças ou “uníssono” (estas, como sabido, oitavadas) entre os dois, além de dois versos da primeira parte cantados por voz solista masculina. Tais recursos derivaram parcialmente da informação de que a música dos ranchos, em seu período áureo, contava com o concurso de cantores líricos, embora nenhuma das fontes bibliográficas ou fonográficas registrassem a estruturação das partes vocais sugerida acima como de uso padronizado ou mesmo eventual nos desfiles do início do século XX. No entanto, questões relativas ao escasso tempo para preparação e, talvez, à falta de um modelo carnavalesco análogo ainda em uso, tornaram inviável tal concepção, recorrendo-se então a um modelo usual em blocos e escolas de samba, com um cantor solista e eventuais passagens a duas vozes em uníssono. A harmonia modulante da segunda metade da segunda parte também não partiu de modelos dos ranchos do período citado, mas, sim, de processos característicos de outros contextos de criação musical, como a bossa nova, o jazz, e a música de concerto. Tais “inovações” foram a tempo sublinhadas pela partitura de fatura contrapontística (elaborado por representante do meio academico-musical)7 , certamente contrastando com o modelo arquetípico de arranjos em partes apenas parcialmente fixadas para formação instrumental ad hoc dos pioneiros ranchos, para a “novidade” que produziu, inquestionavelmente, o maior 4

Aparentemente, tal idéia não encontra respaldo na literatura específica (ver EFEGÊ 1974), o que não invalida, certamente, a hipótese de ser um procedimento adotado em casos específicos no tempo e no espaço. 5 Aqui propõe-se uma possibilidade baseada em observação pessoal, uma vez que a dificuldade apontada contrastava com o número incontável de compositores altamente qualificados e atuantes na chamada MPB entre os freqüentadores do bar tomado como sede do rancho. 6 Para marcha-regresso, porém, foi escolhida de uma fita cassete não-comercial uma canção no gênero, composta em parceria com dois outros co-autores, na década de 1970, pelo compositor que aparece citado acima como mentor exponencial do grupo. Suas inflexões sonoras de bossa-nova e metáforas contestatórias, típicas do período político em que foi concebida, pareceram de imediato servir à desejada construção de significados relativamente novos sobre uma forma musical do passado, uma vez que alguns condicionantes históricos (concentração de renda e poder, exclusão social), na percepção dos foliões, não teriam mudado tanto até o ano de fundação do rancho.


impacto junto ao público nos ensaios e no desfile de rua: a Orquestra Típica Flor do Sereno, com regente (também do meio academico-musical) à frente de 15 instrumentos de sopro, cavaquinho, violão e percussão8 . Embora o conteúdo de sua letra fosse mais nitidamente de reintrodução do lirismo dos ranchos às ruas que o consagraram no passado, a marcha em questão foi proposta e aprovada sua adoção como marchaenredo para o primeiro desfile, em 2001, sendo, a partir daí, tomadas as decisões relativas aos demais aspectos envolvidos, como figurinos, alegorias, adereços e estrutura do desfile.

REINVENTANDO A TRADIÇÃO, INVENTANDO SIGNIFICADOS A breve reflexão acima sobre o retorno dos ranchos às ruas do Rio de Janeiro, representado pela preparação para o desfile do Flor do Sereno,9 aponta para o campo musicológico a fertilidade de abordagens críticas que integrem história e etnografia com a análise da dinâmica de criação e (re-)interpretação de formas culturais. Constata-se através dela a natureza simultaneamente diacrônica e sincrônica dos próprios processos criativos que tenta-se compreender, em que a busca de referências em formas pré-estabelecidas (diacrônico) apresenta lacunas significativas que estimulam intervenções (sincrônico) ora inovadoras, ora meramente circunstanciais, nas práticas do presente. Tal abordagem, ainda aplicada de modo incipiente, mas em nítida expansão, à música produzida no Brasil, insinua-se como um passo potencial rumo à superação de categorias reificadas, sacralizadas como formas e gêneros ideais —isto é, fôrmas [sic] reducionistas de produtos desvinculadas da práxis que os constitui como tal—assim como à integração de dimensões históricas, etnográficas, criativas e interpretativas no estudo das práticas musicais em geral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Samuel. Brega: music and conflict in urban Brazil. Latin American Music Review Vol. 9, Nº 1, p. 50-89, 1988. ______________ Acoustic labor in the timing of everyday life; a critical contribution to the history of samba in Rio de Janeiro. Dissertação de doutorado (Ph.D.) em Musicologia, Universidade de Illinois, Urbana-Champaign (E.U.A.), 1992. BARZ, Gregory; COOLEY, Timothy (org.). Shadows in the field; new perspectives for fieldwork in ethnomusicology. Oxford: Oxford University Press, 1997. BAKHTIN, Mikhail. Rabelais and his world. Trad. Hélène Iswolsky. Bloomington, IN: Indiana University Press, 1984. 7

Efeito ainda mais acentuado pelo recurso a desenvolvimento motívico, modulação levando a seção exclusivamente instrumental, acordes de empréstimo e poliacordes. 8 Note-se que, no desfile, o equilíbrio do volume sonoro entre os diversos instrumentos e vozes foi produzido por sistema de amplificação de cada fonte sonora individual montado sobre um estrado de caminhão, ficando os instrumentistas e regente acomodados sobre o mesmo, e os cantores desfilando na rua em meio aos demais foliões. 9 Com a participação de cerca de 600 pessoas, o desfile do Rancho Carnavalesco Flor do Sereno na Av. Atlântica, Copacabana, segunda-feira de carnaval de 2001, foi saudado por representantes da imprensa carnavalesca carioca como o mais surpreendente—em sentido positivo—acontecimento do carnaval de rua carioca no ano em questão (ver a sucinta lista de sítios virtuais após bibliografia).


BARBEITAS, Flávio Terrigno. Circularidade cultural e nacionalismo nas Doze Valsas para violão de Francisco Mignone. Dissertação de mestrado. PPGM, Escola de Música da UFRJ, Rio de Janeiro,1995. EFEGÊ , JOTA (pseud. de João Ferreira Gomes) 1974 Ameno Resedá; o rancho que foi escola. Rio de Janeiro: Letras e Artes. HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo, Companhia das Letras: 1998. LIMA, Luiz Fernando Nascimento de. Live samba; analysis and interpretation of the Brazilian pagode. Helsinqui: International Institute of Music Semiotics, 2001.

SÁ, Renata Gonçalves de. “Cultura urbana” e “cultura popular”: os ranchos carnavalescos. Comunicação apresentada ao I Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, Recife, 2002 TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972. _____________________História social da música popular brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998. SÍTIOS VIRTUAIS http://www.samba-choro.com.br/fotos/porexposicao/fgrande?foto_id=310&chave_id=5 http://jbonline.terra.com.br/jb/evento/carnaval2001/rio/materia/2001/02/carriomat20010210 010.html http://odia.ig.com.br/sites/carnaval2003/ranchos.htm


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