O impacto social do carnaval

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O IMPACTO SOCIAL DO CARNAVAL* Paulo Miguez (paulomiguez@uol.com.br)

No início dos anos 70, Caetano Veloso referiu-se ao carnaval baiano como um “exemplo de solução estética”, de “saúde criativa” do povo da cidade de Salvador. Anos antes, o modernista Oswald de Andrade já havia se referido ao carnaval como a “religião da raça brasileira”. E séculos atrás, um ditado latino dizia smel in anno licet insanire, o que significa uma vez por ano é lícito endoidecer São estas, entre tantas, compreensões que expressam, de forma definitiva, o sentido cultural do carnaval, a “invenção do diabo que deus abençoou”. E é como fenômeno da esfera da cultura, com uma história que remonta aos tempos mais antigos das lupercais, saturnais e bacanais, que, primeiramente, podemos perceber o impacto social, os efeitos produzidos por esta festa nas variadas dimensões de todas as sociedades que experimentaram e experimentam o gozo, o prazer desta loucura chamada carnaval. Fixemo-nos, entretanto, em Salvador, na Cidade da Bahia, no seu carnaval, sua festa maior. É absolutamente claro como o caráter simbólico-cultural da festa redefine, por exemplo, as relações de tempo e espaço das pessoas entre si e com a cidade. Ele explicita sociabilidades, constrói outras tantas, algumas temporárias outras duradouras, modifica comportamentos com seu sentido de extraordinariedade, conquista e transforma a cidade e suas gentes. E isto desde de sempre. Observando os primeiros carnavais da virada do século, de claro sabor europeizante, vamos assistir, por exemplo, a constituição dos clubes carnavalescos, a organização dos préstitos, e, logo depois, do corso, momentos distintos em que a esfera social era impactada de forma singular pela trama da festa. Vamos ver passar, também, blocos, cordões, batucadas e afoxés, contraponto popular da festa que se pretendia civilizada, os quais, ainda longe do tempo em que viriam a se transformar em empresas e produtos fazendo do carnaval negócio e mercado, refletiam a riqueza do tecido social da cidade, organizando amigos, vizinhos, colegas de trabalho, * Este artigo encontra-se publicado no Jornal do Economista, Salvador, Conselho Regional de Economia e Sindicato dos Economistas da Bahia, ano 9, n.17, mai./out. 1998 e, também, na Gazeta Mercantil, São Paulo, 15 set. 1998. Regional Nordeste, p.2.

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companheiros de corporação, irmãos de santo, atendendo ao chamado de Momo e sua algazarra festiva. E vamos dar conta, ainda, de mascarados, travestidos, pierrots, colombinas, arlequins, mortalhas, bêbados, diversões e inversões que o sentido extraordinário da festa produzia, inevitáveis impactos do carnaval nos elos individualizados da trama social. Mas, deixemos de lado a história. Adiantemos o carro, ou, o trio ... Pois bem. Um olhar mais contemporâneo sobre o carnaval vai acentuar a obviedade do seu impacto social, particularmente porque, à sua rica dimensão cultural vem agregar-se uma dimensão econômico-mercantil, com suas práticas e dinâmicas típicas do mundo dos negócios, ocasionando a constituição do que pode ser chamado de “carnaval-negócio” e sua correspondente economia do lúdico, sem dúvidas o traço particular que marca a contemporaneidade do carnaval baiano. Compreender esse processo é fazer mais uma vez um pouco de história, recuando no tempo e destacando três momentos fundamentais pelo que representaram para a transformação cultural da festa. O primeiro deles é, com certeza, a invenção / criação do trio elétrico no carnaval de 1950 pelos geniais Dodô e Osmar, que, no plano estritamente cultural, desempenhou um papel fundamentalmente transformador, ao redefinir os aspectos artístico-musical, gestual, territorial, organizativo e tecnológico da festa, introduzindo o caráter de participação que desde então caracteriza o carnaval da Bahia, e, de quebra, ainda foi o pioneiro das práticas empresariais no espaço da festa. Salta aos olhos o impacto social causado pela trieletrificação do carnaval, uma vez que, desde então, a relação carnaval / cidade nunca mais foi a mesma. O segundo momento vai estar situado na metade dos anos 70, com a emergência dos blocos afro e o ressurgimento dos afoxés. Motivados por impactos provenientes do mundo da cultura, da contra-cultura e da política, e pelas consequências da reconfiguração produtiva da economia baiana, os jovens negromestiços de Salvador vão constituir organizações de inspiração claramente étnico-político-cultural. E o impacto social decorrente da entrada em cena desses novos atores carnavalescos é mais do que evidente. Manejando um repertório estético-político de matriz afrobaiana, que culturalmente passa a hegemonizar a festa, os blocos afro vão colocar-se num plano cujo âmbito de atuação transcende o carnaval, ao produzir arranjos que combinam cultura, política, negócio, regra geral envolvendo as comunidades a partir das quais surgiram. É o caso do Ilê Aiyê, do Olodum, do Muzenza, do Malê de Balê, entre outros, e, também, do Araketu e, mais recentemente, da Timbalada. Ressalte-se que estes dois últimos, 2


embora formalmente classificados em outras categorias de blocos, não deixam de explicitar elementos claramente vinculados à simbologia da cultura dos afrodescendentes. Num plano semelhante ao dos blocos afro podem ser situados os afoxés, cuja inserção na festa é uma extensão do universo religioso do candomblé - à exceção, talvez, do Filhos de Gandhi -, refletindo, por conseguinte, uma evidente vinculação com as comunidades onde estão inseridos. O caso do Olodum, que pode ser classificado como uma "holding cultural", é sem dúvidas, desse ponto de vista, um dos mais expressivos. Vamos encontra aí não apenas uma organização carnavalesca mas uma Fundação, gerando e gerenciando importantes projetos na área social como o Projeto Rufar dos Tambores, o SOS Racismo e o Mulher Negra; um Grupo Cultural, com Bloco, Banda e Banda Mirim gravando discos e fazendo shows no país e exterior; ações nitidamente empresariais, como a Fábrica de Carnaval e a Butique Olodum; ações na área educacional, como a Escola Criativa Olodum e a Biblioteca Malcom X; além de um grupo de teatro, o Bando de Teatro Olodum, uma editora e um jornal. Nos anos 80 localiza-se o terceiro e último momento desse processo: o aparecimento blocos de trio. É bem verdade que os primeiros blocos do gênero surgiram na metade dos anos 70. Mas é na virada dos 80 para os 90 que este tipo de organização carnavalesca assume características empresariais e vai consolidar-se e afirmar-se como um elemento transformador da festa, ocasionando um importante salto de escala e promovendo grandes inovações organizacionais e tecnológicas, contribuindo assim, de forma decisiva, para a transformação do carnaval baiano em um produto com um ciclo de realização que ultrapassa os limites da própria festa e da cidade. Para a potencialização desse cenário afro-elétrico-carnavalesco e a sua transformação num grande mercado, vão contribuir, grandemente, alguns atores exteriores ao mundo da festa propriamente dita. São, particularmente, ações empresariais privadas na área da indústria cultural e ações político-administrativas de grande relevância, com destaque para o provimento de infra-estrutura e serviços públicos de qualidade necessários à realização da festa. A conjunção desses elementos vai produzir um carnaval, a partir dos anos 90, requalificado como um megaevento e transformado em um grande negócio. Uma festa com uma estrutura e uma lógica organizacional crescentemente complexa; com uma economia e uma indústria plenamente desenvolvidas e consolidadas; com imensas e diversificadas possibilidades mercadológicas; estimuladora da arrecadação tributária; e significativamente representativa enquanto geradora de emprego e renda para grande parte da população de Salvador. Criando, transformando e realizando múltiplos produtos, o carnaval assume a condição de megaempreendimento, e passa a articular-se, de forma multifacetada, com a indústria cultural, do turismo e do lazer. Afirma-se, assim, como um negócio estratégico à volta do 3


qual desenvolvem-se os mais diversos arranjos institucionais envolvendo variados atores públicos e privados. É óbvio, portanto, o profundo impacto social daí decorrente. Mas, não restam dúvidas que esse impacto pode, não apenas ser maior como, e especialmente, mais democraticamente apropriado pelo conjunto da sociedade soteropolitana. São muitos os aspectos que poderiam ser aqui levantados. Elenco apenas alguns poucos, com o objetivo de provocar a discussão e, quem dera, alguma reação. Do ponto de vista dos atores privados da festa, particularmente os blocos carnavalescos que assumem a condição de carro-chefe do negócio carnavalesco, os grandes blocos de trio, pode-se esperar mais, muito mais em troca do que recebem da festa e da cidade. Não há dúvidas, por exemplo, quanto ao seu papel gerador de emprego e renda e, claro, de alegria, com suas atrações maravilhosas e seus trios hiperpotentes, verdadeiras usinas de som. Porque não esperar dessas organizações uma ação decididamente mais, digamos, social? Por exemplo, ações semelhantes àquelas que os blocos afro realizam, a maioria dos quais, inclusive, sem a força econômica que caracteriza os principais blocos de trio Por que não olhar, por exemplo, para suas próprias cordas, e verificar que a situação dos chamados “cordeiros” beira à semi-escravidão, pela forma extremamente precária como realizam o trabalho e são tratados e remunerados? Ainda no mundo privado, ações de marketing cultural das empresas que anunciam no carnaval sua marcas e produtos seriam extremamente bem recebidas. Particularmente se realizadas em benefício das organizações carnavalescas que não têm capacidade, ou interesse, em se viabilizarem como produtos no mercado da festa, como os pequenos blocos afro e afoxés, cada vez mais raros no carnaval. Não tenho fórmulas mágicas, mas quem inventou com tanto brilhantismo e sucesso o “carnaval-negócio” - e merece parabéns por assim ter procedido - certamente não padece da falta de criatividade para inventar uma ação mais solidária com a cidade e sua festa. Também do ponto de vista do poder público, muito ainda pode ser feito no sentido de aprofundar o impacto social derivado do carnaval. Não creio que o seu papel se esgote com o provimento da infraestrutura e dos serviços urbanos demandados pela realização da festa, ou com as ações direcionadas à sua comercialização como evento. Por exemplo, o trato com o mercado de barraqueiros e vendedores ambulantes que colore a festa, e representa uma alternativa única para grande parte da população em termos de emprego e renda, merece uma atenção que transcenda a simples - e necessária regulação, e que evite, de forma determinada, o recurso à repressão.

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Seria o caso da adoção de políticas que estimulassem, através de mecanismos diversos, a potencialização e modernização dos agentes que já atuam nesse mercado, e que também buscassem a sua ampliação, com a inclusão de muitas outras atividades, a exemplo do que parece ser o objetivo pretendido com a criação da Fábrica de Carnaval recentemente anunciada pela Prefeitura. Concluindo retomo, a título indicativo e com pequenas alterações e acréscimos, algumas das ações sugeridas numa publicação organizada pela professora da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, Dra. Tânia Fischer, e editada pelo SEBRAE em 1996, intitulada O Carnaval Baiano: Negócios e Oportunidades: • aproveitamento das manifestações culturais, dos equipamentos e da mão-de-obra existentes nos bairros, na realização dos carnavais de bairro; • criação de uma "agência de empregos temporários" e respectivo programa de treinamento para a mão de obra demandada pelo evento; • definição de preços públicos para o negócio de ambulantes e barraqueiros que evitasse a formação de cartéis e não fosse um impedimento à participação dos capitais individuais, reconhecidamente reduzidos; • elaboração de estudos avaliando o impacto do carnaval na economia e na vida sóciocultural das comunidades de bairro, • elaboração de estudos que identifiquem alternativas de sobrevivência para as pequenas organizações carnavalescas - e que não necessariamente tenham o mercado como único critério definidor; • elaboração de estudos dimensionando a geração de emprego e renda pelo carnaval; • elaboração de estudos avaliando o impacto do carnaval na arrecadação municipal; • formulação de programa de capacitação gerencial para barraqueiros e ambulantes; • formulação de programa de financiamento de equipamentos para os pequenos empreendimentos; • formação de cooperativas de fornecimento de matéria prima para ambulantes; • elaboração de perfis de microempreendimentos; • elaboração de perfis de oportunidades de negócio em regime de parceria com grandes organizações carnavalescas: seguros, clínicas médicas, táxis, hotéis, estacionamentos, etc. 5


• elaboração de projetos destinados a recuperar e sistematizar a memória visual, sonora e documental sobre o carnaval baiano, como parte de uma política cultural de cunho verdadeiramente antropológico para a festa.

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