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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
O ESPETÁCULO DA TRADIÇÃO: Um estudo sobre as escolas de samba e a indústria cultural
Inês Teixeira Valença
UFRJ – 2003
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O ESPETÁCULO DA TRADIÇÃO: Um estudo sobre as escolas de samba e a indústria cultural
Inês Teixeira Valença
Escola de Comunicação da UFRJ Dissertação apresentada ao curso de Mestrado
Orientadora: Ilana Strozenberg Doutora em Comunicação Social
Rio de Janeiro 2003
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O ESPETÁCULO DA TRADIÇÃO: Um estudo sobre as escolas de samba e a indústria cultural
Inês Teixeira Valença
Escola de Comunicação da UFRJ Dissertação apresentada ao curso de Mestrado
Orientadora: Ilana Strozenberg Doutora em Comunicação Social
Rio de Janeiro 2003
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O ESPETÁCULO DA TRADIÇÃO: Um estudo sobre as escolas de samba e a indústria cultural
Inês Teixeira Valença
Dissertação submetida ao corpo docente da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Prof.________________________
Orientadora
Ilana Strozenberg (Doutora em Comunicação Social)
Prof.________________________
Prof.________________________
Rio de Janeiro
2003
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Para Vitor “a nossa força vem da humildade”
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À professora Ilana Strozenberg, agradeço a dedicação na orientação e o envolvimento com o tema deste trabalho;
Rachel e Suetônio, responsáveis pelo início da paixão que moveu este trabalho, agradeço por me ensinarem a gostar do diferente;
Aos amigos Bernardo Araújo, Flávia Lima e Waltinho Honorato, que compartilham comigo o amor pelas escolas de samba, agradeço a ajuda na produção deste trabalho;
Máslova e Ronaldo, pelo incentivo, a orientação e a paciência; Aos profissionais entrevistados para este trabalho – João Lara, Marcelo Legey, Milton Cunha, Neide Coimbra e Renata Mondelo agradeço a colaboração e os depoimentos.
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VALENÇA, Inês Teixeira. O Espetáculo da Tradição: Um estudo sobre as escolas de samba e a indústria cultural. Orientadora: Ilana Strozenberg. Rio de Janeiro : UFRJ/ECO, 2003. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social).
Estudo sobre a participação dos meios de comunicação nas transformações por que passou o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro em seus 71 anos de existência. A partir da constatação de que os meios de comunicação fazem parte do mecanismo estruturante das escolas de samba cariocas, este estudo analisa três momentos pontuais da história do desfile carnavalesco em que a lógica dos meios de comunicação influenciou diretamente em mudanças apresentadas no espetáculo produzido pelas escolas de samba, a saber: o início da transmissão dos desfiles pela televisão, a construção do Sambódromo e o advento dos enredos patrocinados. Além de matérias de jornais e da análise da transmissão dos desfiles, este estudo vale-se de depoimentos de profissionais envolvidos na produção do carnaval carioca para investigar a relação da escolas de samba com os meios de comunicação.
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RESUMO EM INGLĂŠS
This dissertation deals with the impact of media on the transformation process of Rio de Janeiro samba-school parades throughout their 71 year-old existence. Based on the fact that the means of communication are part of the structuring mechanism of the carioca samba schools, this study examines three specific moments of the Carnival parade history, during which their logic had a direct influence on the changes in the samba-school performances. These moments are: the beginning of television broadcasts of parades, the building of the "Sambadrome", and the emergence of the so-called sponsored plots. Besides making use of newspaper articles and coverage, and analysing the parade broadcasting, this study also relies on statements by professionals involved with the production of the carioca Carnival, in order to investigate the relationship between the samba-schools and the means of communication.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
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2. CAPÍTULO 1 – Uma relação visceral 2.1 As escolas de samba e suas tradições inventadas
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2.1. O samba vira notícia
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2.2 A mídia e a sociedade brasileira 3. CAPÍTULO 2 – Do flerte ao namoro firme
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3.1. A transmissão do desfile - Uma nova linguagem para as escolas de samba 30 3.2 O reconhecimento do poder público e a construção do Sambódromo
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3.3 Os novos patronos
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3.4 O patrocínio que vale
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4. CAPÍTULO 3 – Uma questão de ponto de vista
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4.1 A Transmissão dos desfiles
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4.2 O Sambódromo
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4.3 Os Enredos patrocinados
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5. CONCLUSÃO
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6. ANEXO 1 – NEIDE COIMBRA
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7. ANEXO 2 – MARCELO LEGEY
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8. ANEXO 3 – MILTON CUNHA
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9. ANEXO 4 – JOÃO LARA E RENATA MONDELO
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10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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11. BIBLIOGRAFIA
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INTRODUÇÃO Seria incapaz de relatar como foi meu primeiro contato com o carnaval. Desde que nasci, ele esteve lá. Minhas recordações de infância são povoadas de apartamentos abarrotados de fantasias, de amigos confeccionando adereços tendo os sambas de enredo do ano como fundo musical, da luta contra o sono para assistir ao desfile de mais uma – só mais uma – escola pela televisão. Nessa época de poucas preocupações, a quarta-feira de Cinzas ganhava disparado o título de dia mais triste do ano, sempre marcada pelo lançamento da campanha da fraternidade pelo rádio. Era o dia mais distante daquilo de que mais gostava: o desfile das escolas de samba. Quando completei dez anos de idade, meus pais permitiram que desfilasse pela primeira vez em uma escola de samba. Confesso que esperei a data com mais ansiedade do que o aniversário de 18 anos, que me permitiu, entre outras liberdades, tirar carteira de motorista. Cinco anos mais tarde, a agenda carnavalesca crescia. Passei a assistir ao desfile habitualmente do setor 11 do Sambódromo. Antes disso, já havia acompanhado a apresentação de muitas escolas ao vivo, mas somente no carnaval de 1989 passei a assistir na íntegra ao desfile de todas as integrantes do grupo principal do carnaval carioca. Em todos os anos desta trajetória de paixão pelo desfile das escolas de samba, cujo início nem eu mesma sei onde mora, houve uma coisa que sempre me incomodou. Por que os meios de comunicação, apesar de sempre darem grande destaque ao evento, veiculavam insistentes críticas que preconizavam o fim do desfile as escolas de samba ou, pior do que isso, apressavam-se em dizer que ele já tinham acabado? Como era possível aceitar que uma das grandes alegrias da minha vida e da de tantas outras pessoas estivesse fadada ao fim? Com o passar dos anos, comecei a compreender melhor a dubiedade do mecanismo que cercava a relação das escolas de samba com a mídia e a opinião pública: quanto mais pessoas se interessassem pela apresentação das escolas das de samba, quanto mais disputa houvesse pelos ingressos, quanto mais caras se tornassem as fantasias, quanto mais elaborados fossem os carros alegóricos, mais críticas o desfile recebia. Estava
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descaracterizado, não era mais como antes, diziam seus críticos. Eu, que não conhecera o desfile de “antes”, achava que ele estava melhor a cada ano. Em 1992, ingressei no curso de Jornalismo da Escola de Comunicação da UFRJ. A partir daí, tomei contato com teorias que me fizeram entender que o movimento por que passavam as escolas de samba se estendia a tantos outros fenômenos culturais. A idéia de que a popularização de determinado gênero é sempre nociva e pode levá-lo a uma descaracterização irreversível não era exclusividade das escolas de samba. A esta altura, meu próprio gosto pelas escolas de samba já passava por transformações. O desfile das escolas de samba do Grupo Especial não era mais meu principal foco de interesse no carnaval carioca. Continuava, sim, assistindo à apresentação das superescolas de samba, mas preferia a simplicidade das agremiações menores, que eram obrigadas a preparar seus desfiles com menos recursos. Mais prazeroso do que assistir ao desfile propriamente dito era acompanhar o dia-a-dia das escolas. Neste processo, passei a me interessar especialmente pelo concurso de escolha do samba-enredo oficial das escolas, que acontece geralmente entre os meses de agosto e outubro, e acabou se tornando tema da minha monografia de conclusão do curso de graduação. Apesar desta mudança de foco de interesse, sempre resisti a me render ao velho prognóstico de que as escolas de samba teriam acabado, ou que estariam muito próximas disso. Talvez por trauma de infância, procurava evitar repetir o discurso que tanto me incomodara anos atrás. Pensava, principalmente, naqueles que naquele momento travavam seu primeiro contato com as escolas de samba e certamente em nada se incomodavam com o caráter espetacular que os desfiles haviam tomado. Também considerava particularmente absurdo decretar o fim de algo que se encontrava em pleno apogeu do ponto de vista mercadológico. Passei a desconfiar de que havia algo de peculiar no processo de popularização das escolas de samba. Apesar de repetirem, sim, o movimento de muitos outros fenômenos culturais, as escolas de samba pareciam ter uma relação diferente com a indústria cultural, que não era, como acreditava, de usurpação. Após a conclusão do curso de graduação, fui trabalhar na grande imprensa como repórter de um jornal popular do Rio de Janeiro. Aos conhecimentos adquiridos na universidade agreguei a prática do dia-a-dia das redações de jornal e passei a observar com olhos bastante críticos a cobertura que a mídia fazia do desfile das escolas de samba.
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Participei como repórter da cobertura do desfile das escolas de samba do carnaval de 1997 e, em 2000, passei a escrever uma coluna sobre samba em outro jornal popular do Rio. Estas experiências me trouxeram novos dados que me fizeram acreditar que havia uma forte participação dos meios de comunicação no enigma que faz com que as escolas de samba não percam seu mecanismo estruturante, apesar de terem se tornado cada vez mais populares a ponto de se transformar em identidade do próprio país. Este é precisamente o objetivo deste trabalho: apreender e dimensionar a participação dos meios de comunicação, em especial a televisão, no processo histórico de popularização do desfile das escolas de samba e das transformações ocorridas no corpo das agremiações. A partir da abordagem da dinâmica das relações sociais entre as escolas de samba e os meios de comunicação de massa – objeto teórico deste trabalho – defendo a hipótese de o apoio dos meios de comunicação, embora muitas vezes dúbio e até contraditório, ter sido determinante para a sobrevivência das escolas de samba. No corpo deste estudo, procuro mostrar que as escolas de samba já nasceram com o apoio da mídia e que isto foi determinante, nos primeiros anos, para a sua sobrevida, já que até então o samba parecia viver em uma condição marginal na sociedade carioca. Neste primeiro momento, além da bibliografia específica sobre a história das escolas de samba, utilizo como base a visão antropológica do desfile trazida por Roberto Da Matta, em Carnavais, Malandros e Heróis, e por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em Carnaval Carioca: dos Bastidores ao Desfile. A estes autores, relaciono as idéias de patrimônio cultural presentes em A Retórica da Perda, de José Reginaldo dos Santos Gonçalves, e de construção do discurso da tradição, apresentada por Eric Hobsbawn e Terence Ranger, em A Invenção das Tradições. Analisado este primeiro momento da história das escolas de samba, o trabalho se deterá em três momentos da história das escolas de samba – que se constituem nos objetivos específicos deste estudo – em que os meios de comunicação tiveram participação decisiva nas transformações que o desfile sofreu. São eles: a transmissão dos desfiles pela TV, a construção do Sambódromo e o advento dos enredos patrocinados. A escolha desses três episódios consumiu grande parte dos dois anos e meio de pesquisa e estudos que resultaram neste trabalho. Para chegar a cada um deles deparei com diferentes dificuldades. Com relação ao estudo do televisionamento do desfile, foi
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necessário, antes de tudo, compreender as questões técnicas e artísticas ligadas à transmissão. Observei que não apenas as escolas de samba sofreram alterações a partir do momento que viram um novo público agregado ao processo, como me parecia óbvio. Se as agremiações passaram a apresentar novos recursos visuais e, podemos até mesmo dizer, uma nova linguagem que fosse mais interessante para a TV e para os milhares de espectadores que acompanhavam o desfile através dela, também as emissoras foram obrigadas a se adaptar a este espetáculo artístico tão peculiar. Para compreender melhor como esta adaptação se deu, utilizo sobretudo, os estudos de Gilles Deleuze sobre a nova montagem cinematográfica apresentada pelo Construtivismo russo, e a teoria defendida pelos cineastas do Primeiro Cinema, presentes no trabalho de Ismail Xavier. Além de utilizar o cinema como base de compreensão para esta nova linguagem que a TV criou para a transmissão do desfile, o trabalho apresenta uma leitura de Marshall McLuhan, através dos estudos de Derrick de Kerckhove, sobre a dificuldade da manutenção de autonomia diante da televisão. O segundo momento da história das escolas de samba destacado neste trabalho é a construção de uma passarela definitiva para o desfile. Este sempre me pareceu ser um claríssimo divisor de águas na trajetória das escolas de samba. Minha dúvida, no entanto, residia na real participação dos meios de comunicação no processo que resultou na construção do Sambódromo. A ausência de livros que relatem com precisão o que a obra arquitetônica representou para o samba e, mais do que isso, que tipo de discussão ela fomentou na sociedade à época de sua concepção, fizeram com que esta dúvida persistisse durante longo período de preparação deste trabalho. Foi necessário recorrer aos jornais publicados à época da construção do Sambódromo e às fitas de vídeo com a transmissão do desfile de 1984 – o primeiro realizado na Passarela do Samba – para ter certeza de que os meios de comunicação, novamente eles, tiveram participação decisiva em mais este capítulo da história das escolas de samba cariocas. A este material, o trabalho adiciona os conceitos de Félix Guattari, em Caosmose, e Andreas Huyssen, em Seduzidos pela Memória, sobre a arquitetura como construtora de afetos. O terceiro episódio da trajetória das escolas de samba analisado neste trabalho é o advento dos enredos patrocinados. Neste caso, a dificuldade encontrada não foi a de
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associar este movimento aos meios de comunicação, já que o que estamos assistindo no carnaval carioca contemporâneo é precisamente a transformação das escolas de samba em próprio espaço de mídia. Os enredos patrocinados seriam, portanto, o momento de maior proximidade entre as escolas de samba e os meios de comunicação. A transformação em namoro firme daquilo que durante anos foi flerte. A grande dificuldade de analisar este capítulo da história das escolas de samba reside em sua contemporaneidade. Os enredos patrocinados são um fenômeno bastante recente, que ainda se encontra em pleno curso. A parceria entre a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio e a Companhia Vale do Rio Doce, caso analisado com mais profundidade neste trabalho, que parece ser um grande marco no processo de transformação das escolas de samba em mídia, data do ano corrente. Portanto, até mesmo afirmar sua importância e representatividade pode ser extremamente perigoso. Para melhor compreender o mecanismo de troca dos enredos por patrocínio instituído recentemente pelas escolas de samba, recorri novamente aos autores Sérgio Cabral e Hiram Araújo, cuja bibliografia específica sobre a história do carnaval carioca me acompanhou durante os dois anos e meio de pesquisa. Além disso, busquei em Marcel Mauss, Thorstein Veblen e Marshall Sahlins a base teórica para compreender a lógica presente aos gastos aparentemente injustificados das escolas de samba. Diante de tantas dúvidas, foram de extrema relevância as entrevistas realizadas com os profissionais ligados tanto à produção do desfile quanto aos meios de comunicação envolvidos no processo. Através de suas palavras, constatei que a hipótese levantada por este trabalho de que a mídia ocupa lugar decisivo na história das escolas de samba – da sobrevivência à popularização – apresenta grande pertinência. Muitas das questões levantadas
pelo
trabalho
foram
espontaneamente
abordadas
pelos
profissionais
entrevistados por este trabalho, a saber, a presidente da escola de samba Império Serrano, Neide Coimbra, o carnavalesco Milton Cunha, o editor de imagens da Rede Globo de Televisão, Marcelo Legey, e os publicitários João Lara e Renata Mondelo, da Companhia Vale do Rio Doce. Este trabalho pretende ser uma abordagem das relações entre as escolas de samba e os meios de comunicação, que utiliza, sobretudo, a teoria da comunicação e o estudo da cultura de massa e da indústria cultural como base, sem deixar de apresentar certo caráter
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interdisciplinar, ao buscar na Antropologia respostas para questões presentes no corpo das escolas de samba modernas. Se, por um lado, espero com este trabalho ter conseguido decifrar parte do enigma das escolas de samba, comprovando que a mídia faz parte da própria lógica do desfile apresentado anualmente durante o carnaval carioca, há ainda aspectos que permanecem obscuros dentro do vastíssimo corpo destas agremiações. O mais intrigante deles é, para mim, a forma quase que religiosa de relação entre os fãs – ou seriam seguidores? – do gênero, que em nada se abala diante de um outro tipo de relação, mais comercial e circunstancial, que a maior parte do público tem como as escolas de samba. É curioso pensar o que faz das escolas de samba manifestações tão vastas a ponto de agregar sem maiores conflitos tantos tipos de interesse.
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CAPÍTULO 1 Uma relação visceral No início do século passado, o centro da cidade do Rio de Janeiro viu nascer o que anos mais tarde se tornaria o principal traço de identificação da sociedade brasileira. A comunidade negra que se concentrava nessa área à época foi a responsável pelos primeiros passos na criação do samba. Apesar de inicialmente não despertar o interesse que conquistou com o passar dos anos, o samba já mostrava ser bem mais do que um novo gênero musical. Tratava-se do nascimento de um movimento cultural genuinamente popular, carioca, que, por isso, demonstrava um forte traço de resistência social. As escolas de samba, criadas poucos anos após o nascimento do samba, passaram a centralizar e reunir os que participavam desse movimento cultural. Transformaram-se em verdadeiros núcleos de resistência da cultura negra. A própria adoção do termo “escola de samba” demonstra a proposta de resistência e inversão que havia por trás daquilo que, para muitos, parecia ser apenas uma prática de lazer dos negros cariocas, que viviam alijados da cultura produzida pela elite da cidade. Em entrevista ao jornalista Sérgio Cabral, publicada no livro As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, Ismael Silva, um dos fundadores da pioneira Deixa Falar, nascida no bairro do Estácio, conta ao autor como criou a denominação, ao ser perguntado sobre o responsável pela adoção do termo: “Fui eu. É capaz de você encontrar quem diga o contrário. Mas fui eu por causa da escola normal que havia no Estácio. A gente falava assim: ‘É daqui que saem os professores.’ Havia aquela disputa com Mangueira, Osvaldo Cruz, Salgueiro, cada um querendo ser melhor. E o pessoal do Estácio dizia: ‘Deixa falar, é daqui que saem os professores’. Daí é que veio a idéia de dar o nome de escola de samba. O prédio onde era a escola normal ainda continua lá, na esquina da Rua Joaquim Palhares com a Rua Machado Coelho. Agora é uma escola primária”. (CABRAL, 1996, p.241)
Como núcleos de resistência e proponentes de inversão social, as escolas de samba rapidamente chamaram a atenção da imprensa local e do poder público. O fato é curioso e merece registro, já que os sambistas, antes de se organizarem em agremiações, eram
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vítimas constantes e preferenciais da polícia da época, como revelou, em depoimento ao jornalista Hermínio Belo de Carvalho, o compositor Donga: “O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior. Isso que estou lhe contando é verdade. Não era brincadeira, não. O castigo era seriíssimo. O delegado te botava lá umas 24 horas”. (Ibid., p.27)
Curiosamente, ao se organizarem em escolas de samba, os sambistas passaram, gradativamente, a ganhar o respeito da polícia e da sociedade carioca. Para isso, contribuiu o interesse que os meios de comunicação da época demonstraram pela produção cultural oriunda destas agremiações. As emissoras de rádio constantemente abriam espaço para os compositores das escolas de samba e a relação das agremiações com os jornais rapidamente extrapolou a mera cobertura dos eventos organizados por elas. Em 1932, o jornal Mundo Sportivo patrocina o primeiro desfile competitivo das escolas de samba. No ano seguinte, o jornal O Globo assume o posto deixado pelo Mundo Sportivo, em virtude do encerramento das atividades do jornal, e, dois anos mais tarde, a prefeitura do Rio de Janeiro oficializa o desfile das escolas de samba. Com esta oficialização, as escolas passam a receber subvenção do poder público e a fazer parte do calendário oficial de carnaval da cidade, elaborado pelo Departamento de Turismo da prefeitura, com dia e local pré-estabelecidos para o desfile. Apesar da significativa trajetória, iniciada com aceitação meteórica, e dos 71 anos de vida, o desfile das escolas de samba viu-se perseguido desde sua origem pela idéia de um fim iminente. Desde suas primeiras apresentações, as escolas de samba foram alvo de críticas ao que produzem e, mais do que isso, ameaçadas por teorias e previsões que prenunciam a sua morte. Contrariando as previsões, com o passar dos anos, o desfile das escolas de samba transformou-se em um espetáculo extremamente popular, no que diz respeito à abrangência de seu público, e bem-sucedido do ponto de vista econômico. Mais do que isso, as escolas de samba tornaram-se sinônimo de identidade nacional, representantes da cultura popular brasileira por todo o mundo.
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Para compreender como as escolas de samba conseguiram abrigar em sua história o discurso do ocaso e a antagônica realidade do sucesso mercadológico, é preciso pensar o que está na base da tese da ameaça de extinção que persegue as principais expoentes do carnaval brasileiro. A justificativa central para a suposta decadência e possível ocaso das escolas de samba se concentra na idéia de que as agremiações estariam perdendo seu mecanismo estruturante. Esta perda se daria, principalmente, pela entrada e presença de componentes alheios às comunidades que deram origem às escolas de samba, trazidos, sobretudo, pelos meios de comunicação de massa. Para se pensar até que ponto a perda deste mecanismo de fato se deu no curso da história das escolas de samba é preciso analisar o que estaria presente nas agremiações pioneiras e foi se perdendo com o passar dos anos e com a crescente exposição do samba carioca na mídia. Refletir, portanto, sobre quais seriam as engrenagens presentes neste mecanismo estruturante da escola de samba primitiva. Em seu livro Carnavais, Malandros e Heróis, o antropólogo Roberto Da Matta sugere pensar o carnaval não apenas como um simples momento de inversão da sociedade brasileira, tão hierarquizada e tão plena de escapes de uma realidade segmentada. Para Da Matta, a lógica estruturante do carnaval se baseia na inversão permitida. “A posição escolhida foi a de tomar o carnaval como um reflexo complexo, um comentário complicado sobre o mundo social brasileiro, e não como um reflexo direto de sua estrutura social. Desse modo, reflexo e realidade são como as duas faces de uma mesma moeda, cada um esclarecendo o outro. (...) Ou seja, o Carnaval – como o teatro, o futebol, o jogo e as situações fechadas em geral – inventa seu espaço social que, muito embora possa estar determinado, é um espaço com suas próprias regras, seguindo sua própria lógica”. (DA MATTA, 1981, p.68)
Da Matta nos propõe tomar o carnaval para além da simples idéia do momento de inversão, em que integrantes das classes populares, fantasiados de nobres, assumem o comando da situação. Bem mais do que isso, o autor vê o carnaval como mais uma face desta nossa sociedade que, apesar de extremamente hierarquizada e desigual, permite-se constantes momentos de escape e inversão e até mesmo se alimenta deles.
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Uma prova de que a inversão permitida se constitui em uma forte característica social brasileira é que não apenas as escolas de samba seguem esta lógica. É dela também que se constituem a engrenagem e a magia do futebol e dos cultos afro-brasileiros. Assim como nas escolas de samba, o comando de ambos está, em geral, nas mãos de integrantes de classes sociais menos favorecidas. O Brasil aprecia esta inversão permitida. Pode-se até mesmo interpretar a recente eleição de um ex-retirante, ex-metalúrgico, oriundo das camadas mais pobres da população, para o principal cargo executivo do país, como uma explícita manifestação desta lógica tipicamente brasileira.1 Para Da Matta esta é a ordem presente na essência das escolas de samba. Ainda em Carnavais, Malandros e Heróis, ao comparar o carnaval brasileiro, em especial a festa realizada no Rio de Janeiro, ao carnaval americano da cidade de Nova Orleans, o autor mostra que as duas sociedades apresentam durante os festejos situações opostas das que vivem como realidade no resto do ano. “O Carnaval verdadeiramente inclusivista, aberto e ‘democrático’, seria o brasileiro; o aristocratizante, exclusivista e discriminatório seria o americano. De fato, a questão fundamental parece ser a seguinte: como é possível ter um Carnaval aristocrático em uma sociedade igualitária e ter – no caso brasileiro – precisamente o inverso, ou seja: um Carnaval igualitário, numa sociedade hierarquizada e autoritária?”. (Ibid., p.131)
Para esclarecer a questão por ele levantada, Da Matta nos mostra que, assim como no caso brasileiro, em que a sociedade demonstra, através do ritual carnavalesco, sua essência de inversão permitida, o carnaval aristocrático de Nova Orleans também fala muito sobre a essência da sociedade americana. “O Carnaval de Nova Orleans parece recriar, no plano do ritual, as verdades mais profundas dos exclusivismos de classe, numa sociedade que pretendeu banir do seu meio a hierarquia. A única diferença é que o 1
Esta hipótese certamente exigiria um estudo mais complexo para figurar entre as possíveis mostras do país como um articulador de situações de inversão permitida. No entanto, por não se constituir como parte do objeto de estudo proposto por este trabalho, não será desenvolvida em seu corpo.
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Carnaval, conforme temos acentuado neste livro, é um momento planificado pela sociedade, e assim controlado”. (Id.)
Diante das observações de Da Matta, podemos admitir que o carnaval brasileiro, através do seu ritual, demonstra ter por estrutura um dos pontos-chave de nossa sociedade: a inversão permitida, a igualdade restrita a um momento específico e controlado, como escape. A partir desta conclusão, não é difícil compreender por que a mistura social, que aparece como base para o discurso do ocaso das escolas de samba, é, na verdade, parte integrante da natureza das escolas de samba. Ao invés de desestruturar as escolas de samba, a presença de elementos alheios às comunidades que originaram e sustentam as agremiações é, de fato, parte de seu próprio mecanismo. É preciso compreender que as situações de inversão social só se consolidam com a participação de mais de um segmento da sociedade. O carnaval carioca não seria marca de mudança nos papéis de dominante e dominado se ambos não fossem incluídos na cena. Se observarmos o cenário carnavalesco da época do surgimento das escolas de samba, teremos mais uma comprovação de que a mistura de classes é parte da essência destas agremiações. No livro Carnaval Carioca: dos Bastidores ao Desfile, a antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti traça um panorama do carnaval quando da criação das escolas de samba. “As escolas de samba surgiram no Rio de Janeiro por volta de 1920. A crônica do carnaval descreveu o cenário então existente na cidade de forma nitidamente estratificada: a cada camada social, um grupo carnavalesco, uma forma de brincar o carnaval. As Grandes Sociedades, nascidas na segunda metade do século XIX, desfilavam com enredos de crítica social e política, apresentados ao som de óperas, com luxuosas fantasias e carros alegóricos e eram organizadas pelas camadas sociais mais ricas. Os Ranchos, surgidos em fins do século XIX, desfilavam também com um enredo, fantasias e carros alegóricos ao som de sua marcha característica e eram organizados pela pequena burguesia urbana. Os Blocos, forma menos estruturada, abrigavam grupos cujas bases situavamse nas áreas de moradia das camadas mais pobres da população, os morros e
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subúrbios cariocas. O surgimento das escolas de samba veio desorganizar essas distinções”. (CAVALCANTI, 1994, p.23)
O relato histórico demonstra o que a escola de samba representou para o carnaval da época. Sua principal contribuição – e, portanto, sua maior identidade – foi a ruptura da lógica que determinava que classes sociais distintas tivessem diferentes maneiras de brincar o carnaval. Ao contrário das outras manifestações carnavalescas da época, a escola de samba era democrática por essência. Logo, a idéia de que elementos alheios às comunidades não eram bem-vindos e, mais do que isso, a disposição de responsabilizá-los por possíveis fracassos das agremiações, é um equívoco. O discurso de perda que cerca as escolas de samba não encontra, portanto, respaldo na história. Logo, é possível que seja uma extensão do discurso de perda que cerca o patrimônio cultural nacional como um todo. O fenômeno é amplamente analisado pelo antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves em A Retórica da perda. Para o autor, os movimentos para proteção do patrimônio funcionam como um resgate para a identidade da nação. Além disso, o autor contesta a idéia de que processo de deterioração seria inerente à própria existência do patrimônio cultural, que não identifica as modificações sofridas por ele com perdas. “Nos discursos sobre patrimônios culturais, a ‘perda’ é uma imagem por meio da qual as diferenças e a fragmentação são colocadas para fora das práticas de apropriação, como algo que lhes é totalmente externo. Operando desse modo, esses discursos asseguram que o objeto principal dessas práticas, a cultura nacional ou o ‘patrimônio cultural’, permaneça ilusoriamente como algo coerente, íntegro e idêntico a si mesmo. Desse modo, a perda e a fragmentação são projetadas para fora do discurso, como se representassem uma violência externa. No entanto, o que os intelectuais nacionalistas associados aos chamados patrimônios culturais chamam de ‘perda’ é, na verdade, o efeito de diferenças que, por sua vez, são précondições existentes no interior mesmo das práticas de apropriação, no interior
das
culturas
nacionais
(GONÇALVES, 1991, p.24)
enquanto
culturas
apropriadas”.
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Como elemento cultural de mais forte identificação com a nação, as escolas de samba podem ter se tornado vítimas preferenciais do discurso da perda. Como nos propõe o autor, ao buscar defender uma unidade para as escolas de samba, a sociedade procura defender a idéia de coesão para o próprio conceito de nação brasileira. “O patrimônio é concebido como uma ‘expressão’ da identidade nacional em sua integridade e continuidade. Ao mesmo tempo, o patrimônio é concebido, numa relação metonímica, como sendo a própria realidade que ele expressa. Ameaças ao patrimônio são ameaças à própria existência da nação como uma entidade presente, auto-idêntica, dotada de fronteiras bem delimitadas no tempo e no espaço”. (Ibid., p.33)
No caso das escolas de samba, a busca de coesão, incentivada pela tentativa de se construir uma integridade para a identidade nacional, contraria, novamente, a própria estrutura lógica desta manifestação cultural. Além de esclarecer que as escolas de samba sempre primaram pela mistura social, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti defende ainda que a escola de samba não é algo estático, e que, assim, possa sofrer intervenções deteriorantes. Trata-se, ao contrário, de um fenômeno cultural em constante transformação, que se alimenta justamente desta eterna capacidade de reciclar-se. Portanto, apesar de serem a manifestação cultural mais identificada com o conceito de nação brasileira, as escolas de samba não se encaixam no modelo de patrimônio cultural puro e coeso. “Nunca houve uma forma escola de samba pronta, que tivesse sua natureza originariamente instituída e, a partir de então, modificada por elementos exógenos. A adoção de elementos formais dos ranchos e das grandes sociedades, que participa da configuração das escolas de samba, corresponde a um processo de interação de diferentes camadas sociais. Na expressão de (Edison) Carneiro, uma escola de samba ‘é o samba quando ele desce do morro’, ou seja, uma escola é o produto da interação do samba, e seu universo social em expansão, com outras camadas da sociedade. A leitura de sua crônica evidencia a permanente evolução formal das escolas, que se encontram, hoje como ontem, em plena transformação. As escolas acompanharam o seu tempo. Sua vitalidade como fenômeno cultural reside
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na vasta rede de reciprocidade que elas souberam articular, em sua extraordinária capacidade de absorção de elementos de transformação”. (CAVALCANTI, op. cit., p. 24)
Para se compreender como o discurso da perda conseguiu se perpetuar, apesar de inverossímil, ao longo da história das escolas de samba, é preciso compreender que espaço a cultura da mistura ocupou na imagem que se cristalizou a respeito das agremiações e que elementos apareceram em seu lugar, como sendo a verdadeira essência das escolas de samba.
As escolas de samba e suas tradições inventadas
Já vimos que, de partes integrantes do mecanismo fundamental das escolas de samba cariocas, a mistura de classes e o caráter mutante presente nas agremiações transformaram-se em alvo de críticas e assumiram o rótulo de responsáveis por uma suposta decadência dos desfiles. Para dar base de sustentação a este discurso – que atribui principalmente à popularização trazida pelos meios de comunicação a chegada de elementos exógenos às escolas de samba – e ocupar o lugar deixado por eles na construção da identidade das escolas de samba, foram forjadas tradições, que nem sempre, como veremos, estavam presentes nos desfiles primitivos. Ao assistir a qualquer desfile de escola de samba atual, pode-se pensar que as senhoras integrantes da ala de baianas ou que a dança do casal de mestre-sala e portabandeira fazem parte de um conjunto de tradições que estão na base da estrutura sobre a qual se formaram as escolas de samba. O espectador diria que a presença de “brancos” seria decorrência do sucesso das escolas de samba, algo incorporado ao longo da história dos desfiles. No entanto, ao se voltar à origem das escolas de samba, observamos que as conclusões a que se chega nos dias de hoje são diametralmente opostas à história dos fatos. Enquanto os elementos alheios às comunidades de origem das escolas de samba sempre estiveram presentes ao desfile, como já foi constatado, alas de baianas, casais de mestre-
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sala e porta-bandeira e outros elementos característicos das escolas de samba sofreram profundas modificações no decorrer destes 71 de existência do desfile competitivo. Recentemente, a decisão de algumas de escolas de samba de trocar as integrantes mais idosas de suas alas de baianas por jovens causou intensa polêmica no carnaval carioca. A discussão em torno do assunto extrapolou os limites das quadras de ensaios e ganhou as páginas de jornal e o noticiário da TV. As escolas de samba que adotaram jovens componentes para a ala das baianas justificaram a medida alegando que a falta de preparo físico das mais idosas tornou-se incompatível com a evolução, o peso da fantasia e o tempo de desfile fixo exigidos pelo regulamento e pelos critérios de julgamento do carnaval moderno. A decisão despertou ira em segmentos mais conservadores das escolas de samba, que consideraram a mudança um desrespeito a uma tradição do carnaval. Curioso, no entanto, é observar que a prática de trazer senhoras idosas na ala de baianas não estava presente nas escolas de samba pioneiras. Em sua origem, as agremiações desfilavam com homens fantasiados de baianas, conforme relata Hiram Araújo: “Como já foi dito, no início os homens saíam travestidos de baianas, alinhados pelas laterais, a fim de proteger a escola de possíveis violências. Somente em 1960 é que as baianas tiveram uma ala própria com as características de hoje. E foi a Mangueira a primeira escola a sair com Ala das Baianas, hoje constituída exclusivamente por mulheres”. (ARAÚJO, 2000, p.353)
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Baianas em três momentos da história do carnaval carioca comprovam que tradição é a mudança: Heitor dos Prazeres, na década de 1930, com a fantasia que já foi característica masculina (FOTO 1); ala de baianas na década de 1960 em evolução espontânea (FOTO 2); baianas contemporâneas apresentam nova tendência, ao desfilarem em fileiras que reproduzem formação militar e com coreografias ensaiadas à exaustão (FOTO 3)
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Assim como a ala de baianas, a dança do casal de mestre-sala e porta-bandeira, considerada outra tradição das escolas de samba, sofreu profundas alterações ao longo dos anos. Na origem dos desfiles, quem carregava o estandarte da escola era uma figura masculina, a exemplo do que acontecia nas apresentações dos ranchos. Em seguida, os homens passaram a “guardar” a bandeira, a esta altura já empunhada por mulheres, com o auxílio de uma faca ou canivete, já que à época era comum o roubo dos pavilhões entre escolas rivais durante os desfiles. Com o tempo, à medida que o ataque às bandeiras perdeu a força entre as escolas, a arma deixou de fazer sentido e foi substituída pelo leque ou bastão. A dança que o mestre-sala apresenta nos dias de hoje é uma evolução dos passos e golpes que os sambistas de outrora usavam para proteger a bandeira da escola. Em A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1984, p.9) mostram que “muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”. Acredito que este é precisamente o caso de alas de baianas, dança do casal de mestre-sala e porta-bandeira e comissões de frente. O que estes segmentos apresentam de tradicional dentro da trajetória das escolas de samba é, justamente, sua capacidade de transformação, mudança e adaptabilidade, estas, sim, características históricas – até o momento intocadas – das agremiações. Tais elementos se encaixaram e se perpetuaram no espaço das tradições das escolas de samba por sua capacidade de modificar-se. Ao analisarmos por que esse fenômeno se deu, veremos que mais uma vez os meios de comunicação aparecem como elementos transformadores e protagonistas na criação e desenvolvimento da história das escolas de samba.
O samba vira notícia
Como já vimos, a relação dos meios de comunicação com as escolas de samba foi caso de amor à primeira vista. Os primeiros desfiles foram patrocinados por jornais, que não só dedicavam espaço em suas páginas ao evento durante os quatro dias de carnaval, como, ao longo do ano, davam destaque aos principais envolvidos na preparação da festa. As rádios também contribuíram fortemente para arrefecer a marginalização que sofriam os sambistas da época.
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Para se entender e analisar as relações entre os meios de comunicação e as escolas de samba ao longo de 71 anos de existência, que será o objeto de estudo dos próximos capítulos, é preciso, antes de mais nada, pensar na causa para esta atração tão imediata e duradoura entre ambos. Para as escolas de samba, as boas relações com a mídia da época representavam duas grandes e explícitas conquistas, que não deixam muito espaço para especulações sobre a motivação desta relação, do ponto de vista das agremiações: o fim da marginalidade e a oportunidade de atrair e expandir seu público. Já para os meios de comunicação, pode-se pensar em algumas motivações que justifiquem o interesse quase que imediato pelas escolas de samba, levando-se em conta o conceito de notícia e a estrutura social da época. As escolas de samba representaram o aparecimento de uma nova forma de brincar de carnaval. Este fato, por si só, poderia justificar que os desfiles recebessem cobertura dos jornais, compatível à destinada às demais manifestações carnavalescas da época. No entanto, mais do que uma simples novidade na cena carnavalesca carioca, tratava-se de uma forma mais democrática e abrangente de brincar carnaval. Ao dar cobertura e, mais do que isso, patrocinar as escolas de samba, os jornais e as rádios estavam falando, pela primeira vez, a um público diversificado, o que não acontecia até então quando os meios de comunicação destinavam espaço a outras manifestações carnavalescas. A possibilidade de atingir um público maior pode ser apontada como primeiro fator de atração vislumbrado pelos jornais nas escolas de samba. Patrocinar e cobrir os desfiles das escolas de samba representava para os jornais e rádios da época a chance de atingir, pela primeira vez com um evento carnavalesco, integrantes de diferentes classes sociais. O que em um primeiro momento pareceu ser uma parceria promissora, uma chance inédita de falar a um público diversificado – para os meios de comunicação – e uma possibilidade de atrair novos adeptos – para as escolas de samba – revelou-se um negócio bem mais amplo para ambos os envolvidos. Os meios de comunicação encontraram nas escolas de samba um manancial de notícias como poucos eventos conseguiram ser. Por não possuírem um modelo pronto, fechado, estático, as escolas de samba são capazes de se
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recriar a cada ano. E esta capacidade de eterna renovação faz das escolas de samba prodigiosas produtoras de leads2. Apesar de o evento ser basicamente o mesmo todo ano – as escolas de samba promovem uma disputa festiva entre si, a partir da apresentação de desfiles – os meios de comunicação não se cansam de noticiar as “novidades” e “surpresas” que cada agremiação apresentará, como arma para a conquista do título de campeã do carnaval carioca. Isto se dá, basicamente, porque apesar de obedecer a uma estrutura rígida, calcada em normas e critérios de julgamento que se alteram muito lentamente ao longo dos anos, as escolas de samba possuem espaços vitais de seu corpo que se modificam a cada ano, como o enredo, o samba-enredo, os carros alegóricos, as fantasias. Isto garante que os meios de comunicação tenham sempre algo novo a dizer sobre aquele tão conhecido espetáculo. Como não só de novidade vive a boa notícia3, as escolas de samba também apresentam em sua estrutura outro elemento de extremo interesse para os meios de comunicação: as tradições. Conforme já dito, tradições que nem sempre encontram respaldo de existência histórica, e é possível mesmo que tenham sido criadas e alimentadas pelos próprios meios de comunicação, a julgar pelo interesse que demonstraram em noticiálas. Por fim, as personalidades e estrelas de cada agremiação completam a estrutura que faz com que o desfile das escolas de samba seja um espetáculo de tanto interesse para os meios de comunicação. Neste quesito, o grande charme do espetáculo está em produzir estrelas nascidas não só dentro das próprias comunidades, mas também artistas e personalidades que possuem destaque fora do período carnavalesco e se juntam à festa numa troca por espaço na mídia. O artista ganha espaço nos meios de comunicação porque desfila em determinada escola de samba e a agremiação ganha espaço na mídia porque abriga determinado artista.
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Na linguagem jornalística, lead é o nome dado ao primeiro parágrafo de uma matéria. Nela, o jornalista deve reunir as principais informações que seu texto apresentará e as novidades apuradas em relação ao que já foi publicado sobre o assunto. Neste contexto, o termo lead está utilizado como sinônimo de notícia. Para o jornal, se não há lead, não há notícia. Sobre o tema ver: ERBOLATO, Mário L. Técnicas de Codificação em Jornalismo – Redação, Captação e Edição no Jornal Diário. São Paulo : Editora Ática, 1991. 3
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Sobre o tema ver: ERBOLATO, Mário L. Op. cit GARCIA, Luiz (org.). O Globo – Manual de Redação e Estilo. São Paulo : Editora Globo, 1992. GAY, Marco Antônio; REIS, Cláudia (orgs.). Manual de Redação O Dia. Rio de Janeiro : Editora O Dia, 1996.
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A cobertura jornalística do desfile das escolas de samba é calcada, portanto, em três pilares: as novidades e surpresas do espetáculo, as tradições e as personalidades, integrantes ou importadas pelas comunidades de cada escola de samba. Esta estrutura, constituída espontaneamente durante esses 71 anos de existência do desfile das escolas de samba, desafia a criatividade de tantos promotores de eventos, que lutam por espaços para divulgar seus clientes nos meios de comunicação. Poucos eventos conseguem ser tão atraentes para a mídia. A mídia e a sociedade brasileira A constatação da importância dos meios de comunicação na origem histórica e no desenvolvimento das escolas de samba aponta para uma interessante questão: pode-se dizer que este papel preponderante que a mídia desempenhou na evolução dos desfiles é passível de ser estendido a outras relações sociais brasileiras? Embora não seja o propósito deste trabalho analisar o papel dos meios de comunicação na construção das relações sociais no Brasil, o questionamento vem à tona a partir da proposta de Da Matta de se pensar o carnaval como um ritual e, portanto, um discurso que fala sobre a nossa sociedade. “É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se penetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de valores. Tudo isso porque é o ritual que permite tomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus rituais ‘eternos’”. (DA MATTA, op. cit. p.24)
É curioso pensar que uma sociedade que tem no carnaval – seu ritual mais significativo – uma festa em que os meios de comunicação desempenham papel determinante, seja também a sociedade da busca pela fama, em que as boas relações com a mídia são muitas vezes mais valiosas do que o sucesso financeiro. Mais do que isso, tratase de uma sociedade em que a fama se tornou uma nova via para o aumento do poder aquisitivo.
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Assim como em nossa sociedade, no desfile das escolas de samba, os meios de comunicação apareceram como forma de acesso para a aceitação social de seus participantes, em um primeiro momento, e para a fama e para os ganhos financeiros dos mesmos, mais recentemente. Podemos concluir que, ao identificarmos a importância que os meios de comunicação desempenham na formulação do carnaval carioca, revelamos também a medida participativa da mídia na lógica que estrutura nossa sociedade, ao vermos, como propõe Da Matta, o carnaval como ritual revelador do Brasil.
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CAPÍTULO 2 Do flerte ao namoro firme As relações entre os meios de comunicação e as escolas de samba estão presentes desde os primeiros desfiles das agremiações do Rio de Janeiro, conforme vimos no capítulo anterior4. No entanto, em alguns momentos da história dos desfiles, a lógica da mídia determinou mudanças evidentes na estrutura das escolas de samba. Estas modificações e a análise de sua relação com os meios de comunicação serão expostas a seguir, com ênfase em três momentos dos 71 anos de história do desfile competitivo entre as escolas de samba cariocas. A apresentação destes três episódios da vida das escolas de samba não se desenvolverá a partir de uma ordem cronológica. Apesar de estarem ligados muitas vezes por uma relação de articulação, os temas abordados a seguir não seguem, necessariamente, uma linha evolutiva. A opção por uma visão historicista destes três episódios poderia acarretar um empobrecimento do estudo, já que nas raízes de cada um destes capítulos da trajetória das escolas de samba se encontram inúmeras causas que geraram, conseqüentemente, diversos desdobramentos. A primeira grande transformação causada pelos meios de comunicação se deu a partir da transmissão dos desfiles pela TV. Um novo modelo de escola de samba emergiu, sobretudo do ponto de vista visual, a partir do momento em que a transmissão dos desfiles tornou-se regular. À medida que a participação da TV no espetáculo se fez crescente, as escolas de samba tiveram de se adaptar ao novo público que era trazido por ela. Até hoje, encontram-se em curso modificações nos desfiles, tentativas das escolas de samba de se tornarem mais atraentes para o veículo e seu público. A mais evidente e rápida mudança apresentada pelas escolas de samba a partir da transmissão dos desfiles pela TV foi o crescimento e o enriquecimento das fantasias e dos carros alegóricos. Esta modificação tornou-se a principal propulsora de um processo de aumento de circulação de capital em torno do desfile das escolas de samba, que culminou
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Desde o primeiro desfile competitivo entre as escolas de samba, o evento só deixou de merecer cobertura da imprensa no ano de 1944, em virtude da Segunda Guerra Mundial. No ano seguinte, o desfile das escolas de samba voltou às páginas de jornal, não nas seções carnavalescas, que continuavam suspensas em razão da
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com a recente aproximação do modelo administrativo das agremiações do de empresas. Se antes da transmissão, a maioria dos desfiles podia ser produzida apenas com os recursos provenientes de ensaios e doações de pequenos comerciantes, com este salto dimensional que foram induzidas a dar, as escolas de samba passaram a buscar em outras fontes subsídios para a produção do evento5. O luxo das fantasias, a nova escala de tamanho dos carros alegóricos e a própria participação da TV no desfile das escolas de samba conferiram ao que antes era apenas uma manifestação da cultura popular o caráter de espetáculo. Neste momento, cresceu o interesse dos meios de comunicação pelos desfiles, que passaram a ter ainda mais destaque nos noticiários. O mercado consumidor do desfile já não se limitava às fronteiras nacionais: os turistas estrangeiros passaram a fazer parte da festa. Este novo enfoque dado pela mídia ao desfile fez as escolas de samba passarem pela segunda grande modificação em sua história. Desta vez, o grande marco é a construção da Passarela do Samba, um espaço definitivo para a apresentação das agremiações. Mais do que isso, o Sambódromo é um símbolo do reconhecimento do poder público ao espetáculo que era produzido pelas escolas de samba e ao que elas representavam para a sociedade e para a economia do Estado do Rio de Janeiro. Como veremos adiante, os meios de comunicação tiveram papel crucial no fomento do debate que se deu antes da construção do Sambódromo. Assim como a transmissão dos desfiles pela TV, a Passarela do Samba também impôs às escolas de samba uma mudança de escala. Iniciou-se, então, entre as agremiações, mais um processo de busca por aumento de receita, necessário para suprir financeiramente a nova realidade de custos dos desfiles. É neste contexto que se dá o nascimento da relação entre agremiações carnavalescas e empresas, marco inicial da terceira modificação estrutural por que passaram as escolas de samba. Nesta aproximação, os enredos viraram moeda de troca. As escolas de samba passaram a apresentar em desfile enredos patrocinados por administrações públicas, em um primeiro momento, e por empresas, mais recentemente. guerra, mas no espaço destinado à crônica policial, devido a um grande conflito entre integrantes de duas agremiações. Sobre o tema ver: CABRAL, Sérgio. Op. cit. 5 A escola de samba Portela pode ser apontada como uma exceção a esta regra, já que recebia ajuda financeira do banqueiro do jogo do bicho Natal já no fim da década de 40. A atuação de Natal à frente da Portela voltará a ser abordada oportunamente.
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Novamente, o desfile é estreitamente influenciado pela mídia – desta vez, transformado em espaço publicitário. A grande novidade deste processo é que as escolas de samba deixam de ser objeto de acesso para os meios de comunicação e se tornam a própria mídia. As relações entre escolas de samba e empresas interessadas em patrocinar os desfiles em troca de espaço publicitário não declarado são um fenômeno bastante recente, cujo curso está bem longe do fim. Este novo tipo de negócio sofre ajustes de contrato a cada ano, o que confirma não só o caráter mutante das escolas de samba, como se traduz em prova de que a história das escolas de samba prossegue sendo escrita segundo a lógica da comunicação de massa. O interesse dos meios de comunicação em transformar o desfile das escolas de samba em mais um produto a ser noticiado causou mudanças profundas e visíveis nesta manifestação carnavalesca carioca. Não o objetivo deste trabalho analisar se esta aproximação pode ser considerada nociva às escolas de samba. Cabe, no entanto, ressaltar que a relação entre a mídia e as escolas de samba não é impositiva para nenhum dos envolvidos. Se o estreitamento das relações com meios de comunicação trouxe mudanças para o desfile consideradas negativas por muitos, foi também a grande responsável pela manutenção das escolas de samba em evidência durante seus 71 anos de existência. Ao mesmo tempo que a força da mídia transformou o espetáculo sob muitos aspectos, teve papel fundamental para a popularização das escolas de samba e contribui até hoje para que elas se mantenham em destaque. A transmissão do desfile – Uma nova linguagem para as escolas de samba
A primeira transmissão do desfile das escolas de samba foi feita, por flash, pela TV Continental, em 1960. Pode-se dizer, no entanto, que só a partir do carnaval de 1971, quando as emissoras de TV já possuíam recursos técnicos e com a instituição do tempo limite para o desfile das escolas de samba, inicia-se uma parceria que perdura até os dias de hoje, extremamente lucrativa para ambas as partes. Uma prova disso é o contrato assinado para o carnaval de 2000, entre a Rede Globo de Televisão e a Liga Independente das Escolas de Samba, responsável pela organização e direção artística do evento desde 1992, que fixa exclusividade na transmissão para a emissora pelos próximos 15 anos.
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Nestas duas décadas de transmissão, as TVs oscilaram na fórmula utilizada em busca do melhor formato para levar ao telespectador a emoção e a beleza dos desfiles, que conquistam o público presente à Marquês de Sapucaí. Superadas as limitações técnicas dos primeiros anos de transmissão, o que se pôde observar foi um conflito teórico de forma e ideologia entre dois modos básicos de transmissão que se revezaram no comando do espetáculo televisivo. De um lado, está a transmissão linear, com uma controlada intervenção da edição, que prioriza o entendimento do enredo pelo telespectador. Este tipo de transmissão se vale do fato de o próprio enredo conter uma narrativa, o que faz com que cortes e montagens excessivos de imagens comprometam a história que se propõe contar cada escola. O outro formato adota princípios similares aos defendidos e apresentados pelos cineastas da primeira fase do cinema de origens. Uma vertente não-narrativa do cinema, que defende ser o modelo de pensamento uma narrativa não obrigatoriamente linear. Em sua origem, o Primeiro Cinema tem em cada cena uma peça autônoma em si. Tom Gunning, professor da Northwestern University, em Illinois, Estados Unidos, um dos mais destacados pesquisadores do cinema de origens, em entrevista concedida ao cineasta Roberto Moreira e aos pesquisadores Ismail Xavier e Fernão Pessoa Ramos, fala de uma “tendência ao espetáculo”, que dominou os passos iniciais do Primeiro Cinema. Neste ‘Cinema de Atrações’, que sintomaticamente nomeia o período que compreende a produção cinematográfica até aproximadamente o ano de 1910, prevalece a estética da feira, do carnaval, do show. Estes são os preceitos que norteiam a transmissão dos desfiles de forma não-linear. Cada carro alegórico, cada fantasia, cada baiana e passista seriam conjuntos que se autoexplicam e se tornam atraentes por si sós. Não precisam, portanto, estar inseridos em uma macronarrativa, que seria o enredo apresentado em desfile. Assim como Tom Gunning, que não considera que o cinema de mostração se oponha ao cinema narrativo, modelo que passa a ganhar força com a montagem, a filmagem não-linear dos desfiles torna cada segmento da escola uma pequena atração, com uma história própria a ser contada. Na proposta da transmissão não-linear do desfile, a edição desempenha papel semelhante ao da montagem na obra do cineasta Dziga Vertov e em todo o Construtivismo Russo: dar um novo sentido à realidade. Assim como em O Homem da Câmera (1929), em
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que Vertov ignora o roteiro clássico e usa a própria relação entre as imagens para construir sua narrativa, a edição das imagens de um desfile de escolas de samba cria seu próprio roteiro, que embora não se desfaça daquele proposto pelo carnavalesco em seu enredo, não se deixa escravizar por ele. Esta é, precisamente, a idéia trabalhada por Gilles Deleuze (1985, p.107). O autor chama a atenção para uma “pseudocontradição entre a criatividade (da montagem) e a integridade (do real)”. “O que a montagem faz, segundo Vertov, é conduzir a percepção às coisas, pôr a percepção na matéria, de modo tal que qualquer ponto do espaço perceba, ele próprio, todos os pontos sobre os quais age ou que sobre ele agem, seja qual for a extensão dessas ações e reações”. (DELEUZE, 1985, p. 107)
Parece-me ser esta a idéia presente na transmissão não-linear do desfile. Não acredito ser possível classificá-la como oposição ao modelo linear de transmissão, como perda de realidade do desfile. O que ela cria, na verdade assim como a transmissão com poucas intervenções da mesa de corte da TV, é um novo espetáculo, uma nova percepção, para usar um termo adotado por Deleuze. A diferença entre elas não me parece estar na manutenção ou não de uma realidade que apenas o público presente ao desfile – ou nem mesmo ele – é capaz de apreender, mas sim no formato com que cada uma delas constrói esta nova percepção. Enquanto a transmissão não-linear se detém mais em pontos aleatórios para a apreensão da matéria, a transmissão com poucas intervenções aposta na força do conjunto para chegar ao mesmo fim. A transmissão não-linear do desfile se sobrepôs ao modelo roteirizado pelo enredo durante a maior parte dos anos em que as emissoras de TV levaram aos lares brasileiros e estrangeiros o espetáculo das escolas de samba. A mudança de tratamento do evento pela TV é relatada pelo editor de imagens da Rede Globo de Televisão, responsável pela transmissão do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro desde 1998, Marcelo Legey: “No início, realmente, antes de eu começar a fazer, era simplesmente uma transmissão do que estava acontecendo. Agora não. Tem
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a primeira parte, que como eu te falei tem esses cortes artísticos. A gente aproveita e põe a letra da música, esse negócio todo, para a pessoa se ambientar com o que está havendo na Avenida. Depois a gente passa a contar a história”. (LEGEY, 2003)
A defesa do modelo de transmissão que preserva o roteiro do enredo encontra como principal resistência a dificuldade de ser fiel ao evento. Mesmo que fosse feita com uma câmera estática, do alto de uma das arquibancadas do Sambódromo, a TV não conseguiria reproduzir para o telespectador a perspectiva visual – sem falar, é claro, nas experiências emotivas – que tem o público presente à Marquês de Sapucaí. A constatação desta dificuldade se encontra presente no discurso dos profissionais envolvidos na atual transmissão dos desfiles. “Nós nos preocupamos em transcrever o que é o show na Avenida. Que você se sinta em casa na Avenida. Essa é a nossa preocupação. Mas é muito difícil. É muito difícil”. (Ibid.). Em A Pele da Cultura, Derrick de Kerckhove explicita mais claramente esta impossibilidade de o espectador conseguir uma autonomia da perspectiva visual frente à TV, embora a perspectiva interpretativa se mantenha preservada individualmente. “McLuhan comentou que não pode, literalmente, haver um ponto de vista em frente à TV. Para além do fato de, como sucede com qualquer meio usando filme ou vídeo, o ponto de vista ser inevitavelmente fornecido pela câmera, existe também a impossibilidade de mudar o ângulo de visão em frente a um ecrã bidimensional. O ecrã de TV é um quadro de prescrição perceptiva rigorosa, porque, de uma vez só, enquadra todas as dimensões de tudo o que houver para ver, foca o olhar e atenção do espectador e condiciona absolutamente a forma como a informação é processada e distribuída”. (KERCKHOVE, 1997, p.50)
É certo, portanto, que diante da impossibilidade de se reproduzir as impressões que se tem ao vivo, a transmissão de TV deve apegar-se à idéia do novo olho, que pode ver aquilo que uma pessoa, ao vivo, não veria.
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É preciso, então, apresentar ao telespectador um novo ponto de vista do desfile, – que só se conseguirá a partir de uma edição, da criação de uma nova percepção – uma nova série de atrações que têm como matriz o espetáculo das escolas de samba. Ainda que atualmente as TVs se preocupem mais em preservar a linearidade do enredo, reservam parte da transmissão aos cortes livres, que Legey sintomaticamente denominou de “cortes artísticos”. Segundo o editor de imagens, o modelo de televisionamento atual é dividido em dois bloqueios. Na primeira etapa, que dura até a escola atingir o meio da pista de desfiles, não há preocupação com a linearidade. Já o segundo bloqueio é ditado pela história do próprio enredo de cada escola. Nesta hora, as imagens devem coincidir com a narração dos apresentadores e comentaristas escalados pela TV. “Nós dividimos em dois bloqueios. O primeiro bloqueio é um corte livre. Nós mostramos detalhes plásticos. Câmeras embaixo, detalhezinhos. Não tem uma regra para a transmissão deste primeiro bloqueio. O segundo bloqueio, que é o maior, quando chega um pouco antes da metade da Avenida, nós passamos a contar... Aí o pessoal começa a contar a história do tema da escola, do que está se passando. Aí nós vamos passando ala a ala. Conforme eles vão narrando, nós vamos mostrando a imagem e viceversa”. (LEGEY, 2003)
Assim como a TV teve de buscar um modelo para a transmissão do desfile, as escolas de samba também fizeram e ainda fazem ajustes para se tornarem mais atraentes aos telespectadores, que hoje representam um público da ordem de cem vezes maior do que o presente à Passarela do Samba. A mais evidente e veloz transformação se deu nos quesitos ligados ao visual: fantasias, alegorias e adereços tornaram-se mais luxuosos e de maior porte. O canto e a dança, que antes de a TV se interessar pelo produto carnaval eram fatores muito mais importantes para o bom desempenho de uma escola de samba do que os quesitos ligados ao visual, aparecem hoje em segundo plano, frente ao valor dado aos elementos que ajudam a compor a parte plástica de uma escola de samba. Esta modificação na hierarquia de valores artísticos do desfile se deu por motivos claros: a emoção contida no canto e na dança das apresentações é mais dificilmente reprodutível pela TV do que os
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valores visuais das escolas de samba. Por isso, pouco a pouco a parte plástica do desfile foi se sobrepondo a outros quesitos de julgamento e hoje pode ser considerada a principal responsável pela conquista de um título por uma escola de samba. Não há registros concretos que comprovem esta força do visual diante dos demais quesitos na hora do julgamento de uma escola de samba. No entanto, por se tratar de quesitos menos subjetivos do que aqueles ligados ao canto e à dança, acabam influenciando o julgamento da escola como um todo. Assim, a agremiação que apresenta um carnaval mais luxuoso acaba sendo beneficiada não apenas nos quesitos ligados ao visual. A riqueza das alegorias, adereços e fantasias coloca a escola em espiral positivo e este sucesso termina por se estender às notas dos demais quesitos, cujo julgamento é bem mais subjetivo. Prova da valorização dos componentes visuais de uma escola de samba é o destaque dado ao carnavalesco dentro do processo de preparação e apresentação de uma escola de samba. Os carnavalescos são os profissionais mais bem-remunerados de uma escola de samba. Se antes as grandes estrelas de uma escola de samba eram passistas, compositores, porta-bandeiras ou ritmistas, vemos hoje os holofotes se voltarem para o carnavalesco, comprovando que os quesitos ligados ao visual são os mais representativos na trajetória de sucesso de uma escola de samba. Se levarmos em conta que o sucesso de uma agremiação com o telespectador e na própria disputa pelo título de campeã do carnaval se deve hoje muito mais aos quesitos visuais do que aos atributos de componentes de outros segmentos, veremos que a remuneração diferenciada dos carnavalescos é mais do que justa e compreensível, sob a lógica da competitividade e do mercado. Outra mostra da relação entre a transmissão do desfile pela TV e a valorização da figura do carnavalesco é a crescente participação no carnaval carioca de profissionais com ampla experiência na preparação de figurinos e cenários para a TV. Hoje, muitos dos responsáveis pela coordenação visual do desfiles de uma escola de samba realizam também, nos períodos de entressafra carnavalesca, trabalhos de cenografia para peças de teatro ou programas de TV, o que mostra uma clara interseção nos dois tipos de trabalho realizados pelo mesmo profissional. A familiaridade dos carnavalescos com o veículo televisão é apresentada por Legey como um diferencial de determinados desfiles, no que diz respeito ao aspectos visuais.
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Questionado sobre a possibilidade de alguns carnavalescos produzirem suas alegorias e fantasias pensando também no resultado que elas podem ter para o público que assiste ao desfile pela TV, o editor de imagens da Rede Globo de Televisão declarou: “Eu acho que tem pessoas que trabalham em função do público, ali do ao vivo e tem pessoas que trabalham mais em função... Principalmente os carnavalescos que passaram por televisão, como o Chiquinho Spinoza6 que inclusive trabalha ainda em televisão. Eles trabalham muito em função da imagem, do que vai render para televisão. Porque às vezes tem certos materiais que não dão aquele brilho, não dão aquela... não transmitem a realidade do que realmente é aquele carro alegórico vendo pela televisão. Não consegue passar a grandiosidade do que é ao vivo. Do brilho do que foi ao vivo. Você vendo lá você vê muito melhor”. (Ibid.)
Além das mudanças nos quesitos visuais, a transmissão pela TV trouxe ao desfile das escolas de samba outra transformação estrutural, consolidada mais recentemente. Tratase da teatralização de diversos setores do desfile, que obedece à lógica de se criar pequenas atrações dentro do espetáculo maior – a apresentação das escolas de samba. O primeiro sintoma do fenômeno de teatralização dos desfiles foi a criação das alas coreografadas, que trocavam a espontaneidade do sambista por passos ensaiados à exaustão antes da apresentação oficial das agremiações. Recentemente, as coreografias foram substituídas por encenações e deixaram de ser exclusividades de alas. Comissões-de-frente e figuras de composição de carros alegóricos inteiros aderiram à tendência. A questão apareceu pela primeira vez debatida na imprensa através de um artigo do jornalista Cláudio Vieira, publicado no jornal O Dia de 14 de fevereiro de 2001, com o título de O carnaval da virada concentra tendências que devem provocar mudanças na análise dos desfiles das escolas de samba para um futuro bem próximo. “Mais do que um desfile, como era visto até o início dos anos 80, o espetáculo assume proporções cada vez mais características de opereta. É como se um gigantesco elenco de quatro mil figurantes, cenografia, coro e
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Atual carnavalesco da Mocidade Independente de Padre Miguel.
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orquestra se deslocassem diante dos olhos do público – este sim, o único a ocupar posição fixa no imenso anfiteatro. Portanto, se tudo é mutante nesse megashow, por que tentar enxergá-lo através de conceitos impostos há mais de 40 anos? Há de se notar que a exibição da comissão-de-frente assumiu proporções muito maiores que a de apresentar a Escola ao público e julgadores. Atualmente, esse grupamento tem a função de causar o primeiro impacto num grande show de abertura, integrado também por duas ou três alas e tendo como pano de fundo o carro abre-alas. Ao longo de uma década, a comissão-de-frente da Imperatriz Leopoldinense, ensaiada por Fábio Melo, ditou regra de bom-gosto e criatividade. Atualmente, porém, a da Mangueira, coreografada por Carlinhos de Jesus, vem-se destacando como a melhor da cidade. É a mais inventiva em todos os níveis, desde a fantasia. No show de abertura como um todo, da comissão-de-frente ao abrealas, a Mocidade Independente se supera a cada ano. Graças, principalmente, à performance da Intrépida Trupe e a criatividade do cenógrafo Renato Lage. Parece que, mais uma vez, ela se manterá na dianteira nesse primeiro impacto. Ao meu ver, a principal mudança na linguagem do desfile vem sendo desenvolvida pela Beija-Flor. Laíla, mestre em harmonia, sempre preocupado com os efeitos que podem ser produzidos por todo o conjunto, vem investindo na dramatização encenada nas alegorias. Cada carro funciona como um palco e, sobre ele, se desenvolve uma trama do enredo. O Navio Negreiro7 foi o melhor momento do Carnaval 2000, concordam? Se a narrativa do desfile era conduzida através do samba-enredo, das fantasias e alegorias, agora ganha mais uma vertente, através da expressão corporal – a quarta linguagem. Ainda bem, porque a principal delas, o samba, vem perdendo a qualidade ano a ano”. (VIEIRA, 2001)
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O jornalista refere-se a um dos carros alegóricos apresentados pela escola de samba Beija-Flor de Nilópolis no carnaval de 2000. Na alegoria, que representava um navio de transporte de escravos, as velas eram formadas por destaques negros fantasiados de escravos. Na parte de trás do navio, três destaques representavam cena do estupro de uma escrava.
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Dentro do esclarecedor artigo de Cláudio Vieira, é interessante ressaltar o fato de o jornalista ter feito referência ao carnavalesco Renato Lage como cenógrafo e de ter chamado atenção para a criação de um ‘grupamento de abertura’ – formado pelo abre-alas, comissão de frente e primeiras alas – que ajudaria a reforçar a idéia de conjuntos independentes dentro da escola de samba. O mais interessante, no entanto, é o surgimento daquilo que o jornalista chamou de uma quarta linguagem – a expressão corporal – que estaria ocupando um espaço deixado pelo samba-enredo. Esta pode ser vista como uma modificação trazida pela TV, já que, através da tela, a representação talvez seja um fator mais atraente do que o canto, que perde a força do coro da escola amplificado pelas caixas de som. De 2000, data de publicação do artigo de Cláudio Vieira, ao último carnaval houve grande evolução dentro da tendência de teatralização, apesar de poucos anos terem se passado desde a análise do jornalista. No carnaval de 2003, a comissão de frente da Mangueira, precursora da tendência no segmento, ainda coreografada por Carlinhos de Jesus, foi além da simples encenação: fantasiado de Moisés, o bailarino levitou do alto de uma pedra, cercado pelos outros integrantes da comissão de frente. A encenação incrementada pelo efeito especial foi o maior expoente da tendência no último carnaval, marcado por muitas outras manifestações da teatralização dos desfiles. A campeã Beija-Flor se valeu do recurso em vários segmentos do corpo da escola. Em uma alegoria que reproduzia uma praça da cidade, sambistas fantasiados de mendigos encenaram o dia-a-dia da população de rua. A última ala da escola desfilou em forma de procissão, representando o enterro de uma criança. Além do cortejo fúnebre, dois grupos teatrais representaram cenas de violência dentro do desfile da escola. O primeiro mostrava pivetes armados assaltando motoristas. Já o segundo foi responsável pela grande polêmica pré-carnavalesca de 2003, conforme antecipou a matéria Beija-Flor ensaia coreografia incendiária, de Luciano Dias, veiculada no site Globonews, em 03 de fevereiro. “Deus e o diabo na terra da Beija-Flor. Ao som da bateria do mestre Mestre Plínio, Cristo desce da cruz e, com um revólver na mão, se encontra com o demônio e um dos dois atira em uma menina de rua. Ela morre e o corpo é velado por um grupo de mendigos. Jesus retorna à cruz e Satanás volta a se arrastar pelo chão. Não é Cinema Novo. É parte do desfile
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teatralizado que a escola de Nilópolis promete levar à Marquês de Sapucaí para narrar o enredo O povo conta a sua história: Saco vazio não pára em pé - A mão que faz a guerra faz a paz. (...) A cena do Cristo simulando um assassinato virá no sétimo carro e representará a chacina da Candelária, em 1993, quando 23 menores foram mortos por grupo de extermínio. (...) Os 157 atores produziram suas fantasias com roupas e adereços velhos e sacos de lixo. [Hilton de] Castro [diretor da Companhia Le Monde de Teatro] explica que grupo de atores estará dividido em três. Além do crime da Candelária, eles estarão no carro abre-alas interpretando a Divina Comédia de Dante Alighieri e, no segundo carro (Apocalipse), que representa o pesadelo e os torturados”. (DIAS, 2003)
A veiculação pela mídia dos planos da Beija-Flor para o desfile acabou gerando forte reação da sociedade, sobretudo da Igreja Católica, que fez com que a escola modificasse a cena. No desfile, o grupo se apresentou na pista, e não no carro alegórico, conforme noticiado pelo site, e a encenação sofreu pequenos ajustes: a menina de rua era assassinada pelo demônio e, em seguida, Jesus descia da cruz para ressuscitá-la. Polêmicas à parte, as encenações em desfile trazem para a discussão uma interessante constatação: são muito mais adequadas ao público que assiste ao desfile pela TV do que para os presentes à Marquês de Sapucaí. A representação de pequenas cenas não tem o mesmo efeito para o público que acompanha o desfile ao vivo, que quase sempre tem a compreensão da cena prejudicada pela evolução da escola. De acordo com o andamento do desfile, é possível que determinada cena se inicie em um setor da Avenida e só vá ser concluída em outro, prejudicando o entendimento do público. No caso da levitação do coreógrafo Carlinhos de Jesus, muitos presentes ao Sambódromo no carnaval de 2003 sequer viram o efeito especial, que acontecia apenas em frente aos módulos de jurados do quesito comissão de frente. Já os espectadores que assistiram ao desfile pela TV acompanharam cada detalhe das encenações trazidas pelas escolas de samba no carnaval de 2003. A este trabalho não cabe julgar ou analisar o mérito artístico da teatralização no desfile das escolas de samba, apenas apresentá-lo como uma forma de adequação aos
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interesses e à linguagem televisiva. As escolas de samba buscam uma forma de representação própria para se adequar ao telespectador, assim como o teatro, o cinema e a
A teatralização em alta em quatro momentos do carnaval 2003: no desfile da Beija-Flor, encenação polêmica do assassinato de uma menina de rua (FOTO 4); simulação de assalto a motorista (FOTO 5), e cortejo fúnebre (FOTO 6). Na Mangueira, Carlinhos Jesus levitou representando Moisés (FOTO 7). Nem todo o público presente à Marquês de Sapucaí viu as cenas apresentadas nos desfiles
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ópera possuem suas representações corporais – distintas umas das outras, conforme atesta Gilles Deleuze (1990, p.238): “A cada vez, a estilização das atitudes forma uma teatralização de cinema bem diferente da teatral”. No caso das escolas de samba, esta teatralização busca mais do que nunca agradar a dois públicos distintos, que têm visões diferentes do desfile: o presente à Marquês de Sapucaí e o que está em casa, assistindo ao espetáculo pela TV. Demonstra, assim como sugere Deleuze, a busca de uma atitude e representação de desfile diferenciada para públicos que apreendem o espetáculo de maneira distinta, assim como no caso da representação para o cinema e o teatro. Este novo formato, no entanto, não parece ser unanimidade entre as escolas de samba. Em entrevista à autora, a presidente da escola de samba Império Serrano, Neide Coimbra, e o carnavalesco Milton Cunha fazem ressalvas à teatralização dos desfiles. “[A teatralização é] mais um passo para a perda da espontaneidade, para a perda do sucesso individual dos passistas. O interessante do desfile é que ele... Ali podem surgir pessoas que não devem estar presas a uma coreografia. Então, coreografar um carro, tá bom. Mas deixa o resto descoreografado. Uma ala, tá bom. Mas no dia em que padronizarem tudo, a gente perdeu o espetáculo de alegria e soltura que o carnaval é”. (CUNHA, 2003)
Apesar de se declarar contra a teatralização, a dirigente do Império Serrano mostrase descrente quanto ao fim da tendência. Para Neide Coimbra, será difícil resistir ao modelo. “Apesar que agora o samba está mudando muito. Está virando um teatro. E você é obrigada a acompanhar. Agora você acha que isso é certo, que isso é samba? Isso não é samba. Samba no pé, de raíz. (...) Então vai ser o caminho de todo mundo também. Ou vai ou fica para trás. Ou você acompanha ou você se dá mal”. (COIMBRA, 2003)
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Em última análise, a transmissão pela TV trouxe mais uma novidade ao desfile: o crescente interesse de atores e celebridades em participar do espetáculo. Ao se interessar em transmitir o desfile, a TV transformou as escolas de samba em uma grande vitrine, que gera novas musas e celebridades a cada carnaval. Utilizando-se deste contexto tão favorável, que a transmissão do desfile pela TV tornou ainda mais atraente com o crescimento vertiginoso de público, estrelas emergentes e consagradas passaram a adotar o carnaval carioca como grande evento de divulgação. É claro que muitas celebridades de fato se interessam pela vida das escolas de samba ao longo do ano, sem se limitar a participar exclusivamente do desfile. A grande maioria, no entanto, restringe sua atuação à temporada pré-carnavalesca e ao desfile, quando os holofotes da mídia se voltam para as escolas de samba. É claro que esta relação entre celebridades e escolas de samba não é unilateral. Da mesma forma que estrelas se aproximaram das agremiações em busca de visibilidade nos meios de comunicação, as escolas de samba passaram a abrigar famosos pela mesma razão. Novamente, as escolas de samba se destacam por sua relação de equivalência e de extrema consciência de seu poder no jogo de interesses com os meios de comunicação de massa. Neste contexto, é interessante ressaltar que muitos setores das escolas de samba já rechaçam a participação de artistas que não se interessam pelo dia-a-dia da escola, prova da consciência que as agremiações têm de que, com seus desfiles, estão oferecendo mais do que recebendo8. A análise das relações entre as escolas de samba e a televisão nos mostra, portanto, que não apenas a TV teve de buscar uma nova fórmula para transmitir o desfile. Ao longo destes mais de trinta anos de parceria, as escolas de samba também tiveram de buscar uma adequação ao meio, para se tornarem um produto ainda mais interessante para aqueles que acompanham o espetáculo através da tela.
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Este tema voltará a ser discutido no terceiro capítulo deste trabalho, a partir dos depoimentos prestados à autora pelos profissionais envolvidos na elaboração do desfile à autora.
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O reconhecimento do poder público e a construção do Sambódromo
As bases oferecidas pela transmissão integral do desfile pela TV, no início da década de 1970, iniciaram uma verdadeira revolução na contabilidade das escolas de samba. Para se ter uma idéia da mudança com relação à circulação de capital por que passou o desfile, é interessante fazer um breve histórico da liberação de verbas para o carnaval. O pesquisador Hiram Araújo (op.cit., p.283) esclarece que em seus primeiros anos de vida, as escolas de samba sobreviviam da ajuda espontânea de foliões e comerciantes dos subúrbios próximos às sedes das agremiações. Em 1935, a Prefeitura convoca as escolas de samba e, após registrá-las como grêmios recreativos, concede subvenções a cada uma das participantes do desfile. Estas primeiras verbas destinadas às escolas de samba, considerando o porte do evento, foram suficientes para que as escolas se apresentassem mantendo suas tradições, segundo Hiram Araújo (Id.). Já na década de 1970, que não por acaso coincide com o início da transmissão integral do desfile pela TV e com o conseqüente aumento de porte e de competitividade na festa, a receita das escolas tornou-se insuficiente para arcar com os gastos. "Em 1970, as escolas de samba do desfile principal receberam NCR$ 23.400,00 (vinte e três mil e quatrocentos cruzeiros novos) de subvenção e gastaram com o carnaval competitivo cerca de R$ 350.000,00 (trezentos e cinqüenta mil cruzeiros novos). Em 1972, para uma subvenção de apenas Cr$33.840,00, foram gastos nos carnavais competitivos mais de Cr$ 250.000,00. Em 1974, as escolas de samba do Grupo 1 receberam da Riotur Cr$ 46.800,00 (150 salários mínimos) e fizeram seus orçamentos de gastos em torno de Cr$ 500.000,00. A luta pelo aumento das subvenções se intensificou. O carnaval carioca era um sucesso internacional. Os ingressos para os desfiles se esgotaram rapidamente. Foram ocupados 40.000 lugares nas arquibancadas
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e camarotes. O Poder Público, pressionado, alegou que não podia atender às pretensões dos sambistas, pois as despesas dos carnavais eram maiores do que as receitas. Em 1975, as escolas de samba conseguiram 200 salários mínimos (Cr$ 75.360,00), mas continuaram gastando muito mais”. (Ibid., p.284-285)
Diante da incômoda situação econômica em que se encontravam nos anos de 1970, as escolas de samba foram obrigadas a buscar recursos em outras fontes. É neste contexto que se populariza a figura do patrono9, quase sempre um contraventor ligado à prática do jogo do bicho, que se une a determinada agremiação e sua comunidade para colaborar com os gastos na produção do desfile, em troca de certo status e reconhecimento social10. A principal reivindicação dos sambistas se centrava na construção de uma passarela definitiva para a realização dos desfiles, sob a alegação de que a montagem e o desmonte da estrutura tubular das arquibancadas era muito dispendioso. Em 1983, atendendo a esta antiga solicitação dos sambistas, o então governador do Rio de Janeiro, Leonel de Moura Brizola, autoriza a construção de um espaço definitivo para o desfile. Projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, a Passarela do Samba é inaugurada após quatro meses de obras, prazo bastante exíguo para a execução de uma obra deste porte11. Para se ter uma idéia do aumento de receita que as escolas de samba tiveram a partir da construção do Sambódromo 9
Antes deste movimento de aproximação entre bicheiros e escolas de samba, a Portela já contava com a ajuda financeira de um contraventor, o banqueiro do jogo do bicho Natalino José do Nascimento, o Natal. A relação entre a agremiação de Madureira e seu patrono, no entanto, apresenta, além do pioneirismo, especificidades em relação às demais parcerias entre escolas de samba e jogo do bicho desenvolvidas posteriormente. A escola de samba Portela foi fundada na casa de Natal e de seu pai, em 11 de abril de 1923, fato que mostra que a relação do bicheiro com a agremiação se deu antes mesmo de ele ingressar no mundo da contravenção. O início das atividades de Natal como bicheiro datam da década de 1940 e estão relacionados ao acidente ferroviário por ele sofrido, aos 25 anos de idade, que acabou resultando na perda do braço direito. Desempregado e sem indenização, Natal encontrou como única opção de ocupação o trabalho ligado ao jogo do bicho. Seu nome se consolidou entre 1951 e 1958, quando a zona de Madureira, onde Natal estabeleceu sua banca, tinha mais movimento do que todas as outras bancas da cidade juntas. Sua aproximação financeira da escola que nasceu em sua casa se deu em 1949, após a morte do amigo Paulo da Portela. Apesar de ter conquistado extremo prestígio na região de Madureira devido à sua participação na Portela, não é possível afirmar que Natal tenha se aproximado da escola exclusivamente com este objetivo, já que sua relação com a agremiação é anterior ao início de suas atividades como banqueiro de bicho. Sobre o tema ver: JÓRIO, Amaury; ARAÚJO, Hiram. Natal, O Homem de um Braço Só. Rio de Janeiro : Guavira, 1975. 10 O papel do bicheiro dentro das escolas de samba será discutido com mais ênfase ainda neste capítulo. 11 Sobre o assunto, o jornal O Globo publicou, em 2/3/84, data da inauguração da Passarela do Samba, o seguinte comentário: “Não há notícia, na história da engenharia mundial, de uma obra dessa dimensão ter sido construída em período tão curto. Para se ter uma idéia, a Torre do Rio Sul – edifício mais alto da América Latina – levou quatro anos para ser erguida e usou apenas sete mil metros cúbicos de cimento a mais do que a Passarela do Samba”.
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em relação aos anos anteriores, em 1984, o quadro financeiro foi o seguinte: receita de 643.269,25 ORTN, despesa de 306.630,71 ORTN e lucro de 336.638,54 ORTN. A situação financeira das escolas de samba e sua capacidade de geração e circulação de capital para o estado do Rio de Janeiro foram, curiosamente, os argumentos mais utilizados pelo governador Brizola para justificar a obra. É interessante observar que já à época da construção do Sambódromo as escolas de samba eram vistas como indústrias geradoras de recursos e empregos, que deveriam ser, portanto, tratadas com tais. Em entrevista ao Jornal do Brasil, o então secretário municipal de Turismo, Nestor Rocha, citou os gastos com a construção das arquibancadas temporárias como justificativa para a construção da passarela definitiva: “Sempre se falou muito em sambódromo e no meio das inúmeras discussões sobre o carnaval de 84, o Governador teve a brilhante idéia de acabar com aquele ‘monta e desmonta’ que levava oito meses e custava uma fortuna aos cofres públicos”. (GROPILLO, 1983) Um mês depois, dando início às obras de construção do Sambódromo, Brizola deu a seguinte declaração à imprensa: “Hoje é um dia de alegria porque estamos construindo simultaneamente uma obra de arte, um complexo que servirá à principal indústria do Rio, que é a do carnaval, e o nosso maior centro educacional”. (BRIZOLA, 1983) Apesar de simbolizar o reconhecimento do poder público em relação às escolas de samba e representar uma solução para a crise financeira por que passava a festa, o Sambódromo acabou por revelar diversos equívocos e motivar uma série de novas modificações estruturais no desfile. Neste capítulo da história das escolas de samba, a participação dos meios de comunicação também foi decisiva. Desta vez, como agente fomentador de uma discussão pouco produtiva em relação à real eficiência do espaço para o qual a Passarela do Samba se destinava. De meados de 1983, quando Brizola demonstrou interesse de tornar realidade o projeto de uma passarela definitiva para os desfiles, até a inauguração do Sambódromo, no carnaval de 1984, a discussão apresentada pela imprensa se centrou no aspecto político da obra. Nas inúmeras matérias destinadas ao tema, pouco se falou sobre as questões técnicas ligadas ao Sambódromo, ou seja, se a nova passarela seria adequada ao desfile. A principal preocupação da imprensa era com a prestação de contas relativas ao projeto. Neste item, se enquadra não só a discussão sobre a legitimidade de se gastar um
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montante considerado pela imprensa elevado para a obra em relação aos seus benefícios para a população12, mas também de se chegar ao verdadeiro valor aplicado na construção da Passarela do Samba. Em um primeiro momento o governo do estado declarou que a construção custaria Cr$ 3 bilhões13 aos cofres públicos, mas após o primeiro carnaval da Passarela do Samba, o governador Leonel Brizola revelou que o custo da obra chegara a Cr$20,6 bilhões14. Para explicar as altas cifras investidas na construção da Passarela do Samba, além do já citado retorno financeiro, o poder público muitas vezes se valeu do que chamou de “vontade do povo” para justificar a escolha do investimento. “O povo do Rio ficará contente e feliz com o sucesso de sua maior festa”15. “A escolha foi do próprio povo. Como homenagem do governo ao povo, nós teremos o Sambódromo, palavra, aliás, que não considero muito adequada”16. Além da discussão acerca dos gastos com a Passarela, os jornais questionaram com freqüência os prazos de conclusão para a obra. A maioria das matérias publicadas na imprensa carioca duvidava que a Passarela pudesse ficar pronta a tempo do desfile do carnaval de 1984. Pouco menos de um mês antes do início das obras para a construção do Sambódromo, as escolas de samba chegaram a manifestar-se dispostas a desfilar em outro espaço no carnaval de 1984, em troca de uma passarela definitiva, caso o projeto não fosse concluído a tempo17. Apesar dos questionamentos da imprensa – chegou-se a falar na inviabilidade da obra devido ao tipo de terreno da Rua Marquês de Sapucaí e à existência do Rio Papa12
Em entrevista ao jornal O Globo, publicada em 18/11/ 83, o presidente da Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos do Estado do Rio de Janeiro, Afonso Canedo, afirma que o governador Brizola deveria ter dado prioridade às obras de saneamento básico da Baixada de Jacarepaguá. Segundo Canedo, com apenas Cr$ 2 bilhões, seria possível realizar as obras de drenagem das águas fluviais e de pavimentação do núcleo urbanizado da Barra. 13 Dados da matéria Templo do Samba, publicada pela revista Veja, em 21/09/83. 14 Dados da matéria Brizola revela custo da Passarela: 20,6 bilhões, publicada no jornal O Globo, em 09/04/84. 15 Declaração do então governador Leonel Brizola, publicada na matéria Brizola faz considerações sobre custos da Passarela, do jornal O Globo, de 26/02/84. 16 Declaração do então secretário municipal de Obras, Sérgio Braz, publicada na matéria Sérgio Braz: Única obra grande será a passarela do samba, do jornal O Globo, em 17/09/83. 17 De acordo com a matéria Brizola e Haddad prometem que a Avenida do Samba fica pronta para desfile de 84, publicada pelo Jornal do Brasil, em 29/09/83, o então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Jamil Haddad, declarou: “Quando o presidente da Associação das Escolas de Samba nos disse que, não havendo tempo suficiente para aprontar a obra, os sambistas concordavam em desfilar em outro lugar, pela alegria de ter sua passarela permanente, sentimos que estava tudo bem”.
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Couve, assoreado na região – o poder público assegurava a viabilidade de se construir “um maracanã em quatro meses”18. Como garantia para a conclusão da obra, o engenheiro José Carlos Sussekind, responsável técnico pelo projeto, valia-se da horizontalidade da Passarela e de sua concepção modular. “Foi uma idéia muito feliz do Niemeyer. Se algum dos dez módulos ficasse atrasado, o Governo poderia exigir velocidade da empreiteira e até excluí-la da obra, sem prejuízo do resto da estrutura”. (UM ‘SHOW’, 1984)
Além de uma terceira discussão dominante nos meios de comunicação, com relação à desapropriação dos moradores das cercanias da Rua Marquês de Sapucaí em virtude da construção do Sambódromo, pouquíssimo espaço na mídia impressa se destinou à voz do sambista. Quando era chamado a depor sobre o assunto, o sambista quase sempre partia em defesa da obra. Ameaçado pelo debate dicotômico que foi promovido pela construção do Sambódromo – do tipo Passarela do Samba: a favor ou contra – o sambista parece ter optado por adotar a postura de defesa da construção, mesmo que, uma vez alinhado a ela, pouco espaço sobrasse para questionamentos e discussões sobre o projeto. Justamente esta pequena participação de sambistas e profissionais envolvidos na produção do desfile na preparação do projeto da Passarela do Samba pode ser considerada um dos responsáveis pelas falhas do Sambódromo. Nos raros registros jornalísticos que abordaram o tema, fala-se na criação de uma comissão para estudar o assunto, que, sem maiores explicações, foi desfeita, antes de o projeto ser entregue ao arquiteto Oscar Niemeyer. “Em março deste ano, uma comissão de arquitetos, sambistas, carnavalescos, gente que entende de samba, se reuniu diversas vezes para discutir tudo sobre o carnaval de 84. Dessa comissão, saiu um relatório, que deveria ser encaminhado à Prefeitura, mas que, ao que parece, desapareceu. Ninguém sabe informar o que foi feito dele e dos dois projetos para o sambódromo que dele constavam.
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Expressão usada pelo então secretário Municipal de Obras, Sérgio Braz, publicada na matéria Secretário: Faremos um ‘Maracanã’ em 4 meses, de O Globo, em 20/09/83.
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A partir daí muito se falou e discutiu. Idéias como o desfile no Maracanã ou sua volta à Presidente Vargas foram levantadas sem que, em nenhum momento, a questão fosse tratada com a seriedade e rapidez que o tempo exigia. Em setembro o assunto volta então às manchetes, com a apresentação do projeto do Arquiteto Oscar Niemeyer, cujo talento e apego às questões populares não sofrem contestação de ninguém. Mas os autores de um projeto para o sambódromo, anteriormente encaminhados – os arquitetos Alfredo Brito e Joca Serran – questionam a atitude de um Governo que determina a criação de uma comissão para o assunto mas que depois não leva em conta suas resoluções”. (PINTO, 1983)
Único membro das entidades representativas das escolas de samba ouvido pelos jornais sobre a participação dos sambistas no projeto Sambódromo, o então presidente da Associação das Escolas de Samba da cidade do Rio de Janeiro, Alcione Barreto, apostava no discurso mais comumente usado para justificar a ausência de participação do sambista na construção do Sambódromo. Alcione baseava-se na genialidade de Niemeyer e em sua intimidade em executar projetos voltados para o povo para posicionar-se a favor do projeto: “Esse projeto do samba foi uma surpresa agradável. Não fomos consultados antes, mas estamos na expectativa de que a genialidade de Oscar Niemeyer, um dos maiores arquitetos do mundo, encontre soluções que atendam às necessidades de todos”. (GROPILLO, 1983) “As pessoas não estão acostumadas à genialidade e pensam que uma figura como a dele é inacessível. Eu, pessoalmente, tive o prazer de constatar o contrário. (...) A gente tem que acreditar, pois o samba merece uma obra dessas”. (HONSE, 1983) Entusiasmado com a possibilidade de ter uma passarela definitiva para o desfile – mesmo que ela fosse projetada à sua revelia – e assustado com o vulto tomado pelas críticas ao Sambódromo, o sambista optou por tomar a defesa do projeto. O resultado foi uma bela obra do ponto de vista arquitetônico – autofinanciável e concluída dentro do prazo, conforme prometido pelas autoridades que a conceberam –, mas que, no entanto, revelou problemas técnicos para a realização do desfile.
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O principal deles é a Praça da Apoteose, por ironia, símbolo máximo da nova construção. A idéia da apoteose contraria a própria essência da apresentação das escolas de samba. Inspirado nas procissões religiosas, o desfile deve ser acompanhado pelo público não apenas no momento em que os componentes estão à frente das arquibancadas, mas em toda a extensão do cortejo. Portanto, o recuo das arquibancadas da Praça da Apoteose, – as maiores da Passarela19 – que impede que o povo assista a aproximação das escolas – retira um dos grandes pontos de interesse do desfile: a visão do conjunto da agremiação.
foto 9
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As arquibancadas da Praça da Apoteose têm capacidade para abrigar 15 mil pessoas cada. No ano em que foi construída, segundo informações do próprio Oscar Niemeyer, a Passarela do Samba oferecia espaço para 120 mil espectadores, entre arquibancadas, camarotes e gerais (posteriormente abolidas, tinham capacidade para 60 mil pessoas, que assistiam aos desfiles em pé). O segundo maior módulo de arquibancadas do Sambódromo, o setor 1, fica no extremo oposto à Apoteose, ao lado da Avenida Presidente Vargas, e tem capacidade para 10 mil pessoas. Os outros seis módulos de arquibancadas abrigam um total de 54 mil pessoas. Nos camarotes, no ano da inauguração do Sambódromo, a estimativa de capacidade era de seis mil pessoas.
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Dados apresentados pela matĂŠria Em 700 metros, 120 mil espectadores, publicada pelo jornal O Globo, em 02/10/83.
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Os meios de comunicação e a construção do Sambódromo: jornais levantaram questões pouco relevantes sobre a principal obra da administração Brizola e deixam os sambistas de fora do debate. Em matérias publicadas pelo Jornal do Brasil (FOTO 8), O Globo (FOTO 9) e Veja (FOTO 10), Niemeyer apresenta o projeto da Passarela do Samba
A polêmica da Apoteose foi abordada por dois jornais, apenas no dia da inauguração da Passarela do Samba. Além de fazer referência aos problemas de visibilidade enfrentados pelo público, ambos citam a dificuldade das escolas de samba de se adaptar à inovação de Niemeyer. “A praça de dez mil metros quadrados – quase o dobro da Nossa Senhora da Paz, em Ipanema – no fim da pista, introduziu automaticamente uma polêmica novidade na exibição das escolas: a chamada apoteose, modalidade que obrigou os sambistas a encerrar o desfile com uma explosão, no melhor estilo grand finale, como nas óperas tradicionais. Uma justificativa para esta alteração, teria sido o gosto pessoal do arquiteto. Ele declarou a um jornal, em dezembro passado, que ‘o desfile das escolas de samba é monótono’. Sussekind nega que Niemeyer tenha dito isto, mas evidentemente é incapaz de contestar o Vice-Governador Darcy Ribeiro, que admitiu ter mexido na tradição: ‘sou um inovador’. Para muitos, o capítulo apoteose foi o exemplo mais que suficiente de que o arquiteto teria desenhado a Passarela sem sequer saber como é um desfile de carnaval do Rio de Janeiro – já que, como ele mesmo confessara, nunca havia assistido às escolas na avenida. Seu calculista assegura o contrário: – Niemeyer ouviu todo mundo – comenta Sussekind – O Alcione, presidente da Associação das Escolas de Samba, estava todo dia com ele. Outros sambistas da velha guarda também foram consultados. Oscar prestou atenção no que diziam e absorveu essas informações como uma esponja”. (BALTAR; PESSÔA, 1984) “Na passarela das dúvidas, as mais salientes dão a entender que o discutido projeto de Niemeyer não só consolidou para sempre alguns dos defeitos das antigas arquibancadas de metal (falta de visão e proteção contra
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chuva, difícil acesso aos sanitários), como teria acrescentado outro: a apoteose em que todas as escolas terão de se esmerar ao cabo do desfile, na praça contígua à pista. Niemeyer nega a falta de visão, passa por cima dos apertos fisiológicos dos espectadores e apóia-se no testemunho do ‘expert’ Maurício Sherman, diretor da TV Manchete, para defender a apoteose como auge do espetáculo – no mínimo, por ser um final diferente. ‘As escolas estão cuidando disso – garante o arquiteto – Com a apoteose, o desfile ficará mais rico.’ A primeira parte confere. A segunda também: a Beija-Flor é a escola que mais vem treinando para a apoteose. (...) De qualquer modo, das arquibancadas que limitam a praça não vai dar para se apreciar o desfile, apenas a apoteose. ‘A praça não tem visibilidade – explica Niemeyer – nem era para ter porque ela é autônoma. Quando começamos a trabalhar o projeto, a idéia era fazer uma pista de quinhentos metros para a passarela e também uma praça, onde ficaria o Museu do Samba. Como a faixa de terreno onde se ergueria a praça era muito estreita, ela, que só podia ser naquele lugar, acabou ficando ligada à passarela. E, estando a passarela ligada à praça, surgiu a idéia de inserir a praça no desfile.’”. (AUGUSTO, 1984)
Durante a transmissão dos desfiles do carnaval de 1984, a equipe de comentaristas, formada pelos jornalistas Albino Pinheiro, José Carlos Rego e Sérgio Cabral, e pelo carnavalesco Fernando Pamplona, também contesta a grande novidade do carnaval. A principal preocupação dos especialistas dá conta de um possível e provável aumento de contingente das escolas de samba, que não teriam àquela altura um número de componentes suficiente para preencher a imensidão da Apoteose. Em seu comentário de encerramento da transmissão do primeiro dia dos desfiles, Albino Pinheiro declarou que “A Apoteose é um equívoco que precisa ser corrigido. Estão destruindo a forma como as escolas de samba desfilam há 40 anos”. Assim como a Praça da Apoteose, os vãos entre as arquibancadas e a dessimetria do projeto são falhas estruturais do Sambódromo que, somados a problemas de acústica causados pelo excesso de concreto, tornaram a Passarela do Samba um problema para o poder público e para as escolas de samba, que ano a ano fazem pequenas reformas no
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espaço em busca de uma solução para o local do desfile. Mais uma vez, a falta de um diálogo com sambistas parece estar na origem dos problemas acima citados. Com relação aos vãos, Niemeyer considera-os fundamentais ao projeto, e não meros detalhes decorativos: “As arquibancadas são separadas uma das outras para deixar espaço livre para respirar”. (SOBRAL, 1994) Apesar da utilidade apresentada por Niemeyer, os vão representam um problema para a escola: no momento em que se encontra em frente a qualquer um dos espaços vazios entre as arquibancadas, o desfilante tende a desanimar, já que não há com quem trocar sua euforia e empolgação. Logo, os vãos entre as arquibancadas desconsideram a importância que o público tem na evolução e harmonia dos desfiles da escolas de samba. Os problemas de acústica, apresentados por alguns estudiosos das escolas de samba e pelo público em geral como as falhas mais graves oriundas da construção da Passarela da Samba, foram levantados por especialistas no tema, ainda na fase de estudos do projeto. A primeira idéia de Niemeyer era construir a Passarela do Samba em aço, aproveitando uma proposta da Companhia Siderúrgica Nacional. No entanto, o alto custo do projeto, acabou levando Niemeyer a optar pelo concreto pré-fabricado, que reduziu o custo da obra à metade. A partir do momento em que foi divulgado o projeto definitivo da Passarela do Samba, todo em concreto e sem as antigas estruturas vazadas que ajudavam o som a se propagar, especialistas alertaram para os possíveis problemas de acústica. Em matéria publicada no jornal O Globo, o presidente da Associação Brasileira de Acústica, Alberto Vieira de Azevedo, declarou sua preocupação com a acústica da nova passarela de desfiles: “No vazio, entre os vãos da estrutura tubular, o som se dissipava no espaço. Mas uma estrutura de concreto, sem o tratamento adequado, pode ocorrer ressonância e o samba vai atravessar. É possível fazer um bom tratamento acústico, mas isto leva tempo, pois é um trabalho que tem de estar integrado ao projeto arquitetônico”. (HONSE, 1983)
O arquiteto Oscar Niemeyer, no entanto, mostrou-se, através de matéria publicada no jornal O Globo, pouco disposto a discutir o assunto com o presidente da Associação Brasileira de Acústica: “Não vou perder tempo discutindo com ninguém”. (DARCY, 1983)
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Apesar de ter sido construída sob o discurso de reconhecimento da importância do carnaval carioca, a Passarela do Samba não representa a parcela social envolvida na festa. Não apenas por ter sido projetada e construída sem a participação dos que usariam o espaço, mas também porque era de se esperar que não servisse a fim algum, a partir do momento em que é preparada para atender a vários senhores. Talvez o principal equívoco do projeto seja sua função multiuso: no carnaval, espaço para o desfile das escolas de samba; durante o resto do ano, local de shows, a serem realizados na Praça da Apoteose20, e de aulas da rede pública de ensino21. O engenheiro José Carlos Sussekind, responsável técnico pela obra, chegou a admitir, no dia da inauguração da Passarela do Samba, que a função multiuso do Sambódromo foi o principal desafio do projeto. Mais do que isso, revelou que a principal intenção do governador com a obra era construir um grande complexo de ensino. “É difícil combinar três finalidades totalmente distintas numa mesma obra. Com esta afirmação, o engenheiro José Carlos Sussekind comenta o nível de complexidade do projeto que alia a pista de desfile de escola de samba à grande estrutura de um centro educacional e à construção de um dos maiores anfiteatros do mundo (para 30 mil pessoas). Apesar do cronograma da obra ter sido dirigido em função do carnaval, esta não foi a prioridade: como determinou o Governador Brizola, a utilização fundamental do espaço físico da Passarela vai ser a da educação de 16 mil crianças”. (BALTAR; PESSÔA, 1984)
Logo, cai por terra a idéia de que a Passarela do Samba é exclusivamente uma forma de reconhecimento governamental ao espetáculo produzido pelos sambistas, ou a realização de um anseio do povo, vendida à época de sua construção. No entanto, é curioso observar que, para o poder público, a idéia de unir em um mesmo espaço o desfile das escolas de samba à escola formal é símbolo de status para as agremiações. Jamais de
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Com capacidade para 70 mil pessoas, segundo dados da matéria Brizola e Haddad prometem que Avenida do Samba fica pronta para desfile de 84, publicada pelo Jornal do Brasil, em 29/09/83. 21 As duzentas salas de aula do centro educacional funcionam embaixo dos dois grandes módulos de arquibancadas da Praça da Apoteose, ocupando área de dez mil metros quadrados. Os dados constam da matéria Secretário: Faremos um ‘Maracanã’ em 4 meses, publicada no jornal O Globo, em 20/09/83.
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demérito, como podemos comprovar analisando o discurso do então governador do Rio, em matéria publicada no jornal O Globo: “A cidade vai ganhar um complexo da maior importância para sua vida social. Ressalto a circunstância de que através do carnaval e de seus rendimentos estaremos assistindo permanentemente 15 mil crianças e adolescentes, além de oferecermos ao País inteiro espetáculos culturais de primeira grandeza, os quais espero venham ser transmitidos pela Rede Globo22.”. (BRIZOLA, 1984)
Na solenidade de inauguração do Sambódromo, Brizola volta a demonstrar que a passarela multiuso representa, sim, reconhecimento ao espetáculo produzido pelas escolas de samba. Em um trecho do discurso proferido durante o evento, publicado pelo jornal O Globo, o governador afirmou que: “De agora em diante, a Passarela será o local ‘onde vão funcionar as escolas dos sambistas e das crianças” (Id.) Em artigo publicado pela revista Domingo, do Jornal do Brasil, em 1993, como box da matéria O novo templo da folia, Darcy Ribeiro, que à época da construção do Sambódromo era vice-governador do Rio de Janeiro, explicita claramente o caráter ambíguo que cercou a decisão do poder público de construir um espaço multiuso para o desfile das escolas de samba. Se por um lado, Darcy deixa claro que as autoridades consideravam inviável projetar um espaço exclusivamente para a apresentação das agremiações, demonstra que a solução encontrada – de unir em um mesmo local o carnaval, a educação e outras opções de lazer para a população – deve ser interpretada como motivo de orgulho para as escolas de samba e demonstração de reconhecimento ao espetáculo que produzem. “A construção do Sambódromo provocou uma grande dúvida: como construir um Maracanã para a celebração de uns poucos dias de carnaval? A dúvida se dissipou quando surgiu a idéia de criar duzentas salas de aula debaixo das arquibancas. Assim, o Sambódromo virou também um Escolódromo. A obra de Oscar Niemeyer hoje é um grande orgulho
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arquitetônico e um novo símbolo do Rio de Janeiro. E também o maior espaço de shows do Brasil, graças à sua Praça da Apoteose, que se abre no fim da passarela. Ali, o ritmo e a graça da coreografia em que se desdobram as alas ao redor da bateria acontecem como nas quadras. Isso foi o que fez a Mangueira no desfile inesquecível da inauguração do Sambódromo.23 Uma beleza!” (GERHEIM, 1993)
O texto de Darcy Ribeiro – o principal mentor da Passarela do Samba, que chegou a receber, no carnaval de 1984, o título de vice-rei momo da cidade do Rio de Janeiro, pelo incentivo à construção do Sambódromo – deixa bem claro que para as escolas de samba merecerem um espaço definitivo para a realização de seus desfiles seria necessário agregar ao projeto uma outra função. Ao projetar o Sambódromo como obra multifuncional, o Poder Público mostra que o desfile das escolas de samba continua sem merecer um espaço especialmente pensado para ele e representativo da subjetividade de seus idealizadores, mas que percebe claramente as escolas de samba como espaço de articulação que demonstram ser desde as suas origens. A idéia de que os espaços arquitetônicos das cidades produzem subjetividade é uma das tônicas de Caosmose. Na obra, de Félix Guattari, as cidades são qualificadas de megamáquinas produtoras de subjetividade, que povoam nossas pulsões inconscientes. “Não seria demais enfatizar que a consistência de um edifício não é unicamente de ordem material, ela envolve dimensões maquínicas e universos incorporais que lhe conferem sua autoconsciência subjetiva. Pode parecer paradoxal deslocar assim a subjetividade para conjuntos materiais, por isso falaremos aqui de subjetividade parcial; a cidade, a rua, o prédio, a porta, o corredor... modelizam, cada um por sua parte e em composições globais, focos de subjetivação”. (GUATTARI, 1992, p.161-162)
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A referência à Rede de Globo de Televisão deve ser interpretada como mais um capítulo da famosa animosidade entre o governador e o dono da emissora de TV, Roberto Marinho. 23 Darcy faz referência à evolução da Mangueira na Praça da Apoteose. Naquele ano, a escola de samba, que era a última a desfilar no carnaval, optou por utilizar a Apoteose como espaço para manobra de seus carros alegóricos e componentes e acabou retornando pela passarela, no fim de sua apresentação, em sentido contrário ao que havia desfilado. Com o enredo Yes, Nós Temos Braguinha, a Mangueira acabou sendo escolhida supercampeã do carnaval de 1984.
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O autor vai além. Lembra que os espaços arquitetônicos são capazes de produzir “climas” e que isto não pode ser ignorado por aqueles que os projetam. As construções são máquinas enunciadoras, determinantes para os tipos de relação que se desenvolvem dentro delas e ao seu redor. “Poder-se-ia falar aqui de uma transferência arquitetural que, evidentemente, não se manifestaria através de um conhecimento objetivo, de caráter científico, mas por intermédio de afetos estéticos complexos”. (Id.) No caso da Passarela do Samba, é de se supor que a ausência do clima de carnaval que o espaço apresenta se dê por sua função multiuso. Mas é preciso lembrar que qualquer espaço projetado de forma aleatória, sem consulta àqueles que farão uso do local, com remotas possibilidades de mutação24, apresentará os mesmos problemas que o Sambódromo revelou ter. Mais do que por suas falhas técnicas, a Passarela do Samba peca por sua incapacidade de aconchego ao sambista e ao desfile. A obra não foi capaz de traduzir o espírito e o clima, para usar o termo adotado por Guattari, do carnaval carioca. “Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação. Um bairro pobre ou uma favela fornece-nos um outro discurso e manipulam em nós outros impulsos cognitivos. (...) O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido,
de
sensação,
máquinas
abstratas
funcionando
como
o
‘companheiro’ anteriormente evocado, máquinas portadoras de universos incorporais que não são, todavia, Universais, mas que podem trabalhar 24
Após sua inauguração, o Sambódromo passou por algumas alterações definitivas e outras provisórias. A principal delas – a construção de novos módulos de camarote entre as arquibancadas – encontrou forte resistência do arquiteto Oscar Niemeyer. Ainda na década de 1980, foram extintos as gerais e os recuos da Praça da Apoteose (o espaço vazio entre as arquibancadas dos setores 6 e 13 e a pista de desfile foi preenchido com cadeiras de pista). Para o carnaval de 1994, a Riotur decidiu construir camarotes provisórios nos vãos entre as arquibancadas, que seriam usados como cabines de jurados. Insatisfeito com a alteração de seu projeto original, o arquiteto Oscar Niemeyer decidiu entrar na Justiça contra a Prefeitura para impedir a obra. A polêmica acabou após o carnaval, com um convite da Prefeitura para que o arquiteto desenhasse módulos definitivos para os jurados. Os novos camarotes ficaram prontos no ano seguinte. Esta foi a única modificação definitiva da Passarela do Samba em seus 19 anos de existência.
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tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma resingularização liberadora da subjetividade individual e coletiva”. (Ibid.,
p.157-158)
A partir das idéias de Guattari, passemos a analisar os rumos que o desfile das escolas de samba tomou após a construção da Passarela do Samba. Podemos intuir que a participação do Sambódromo nas transformações estruturais da apresentação das agremiações foi bem mais próxima do “esmagamento uniformizador” do que da “resingularização liberadora da subjetividade individual e coletiva”. O gigantismo e a auto-suficiência visual da Passarela do Samba causaram um novo aumento de tamanho dos carros alegóricos. Alegorias e fantasias que outrora desfilavam soberanas pela Marquês de Sapucaí tornaram-se fora de escala diante da nova passarela. A grandiosidade da obra arquitetônica de Oscar Niemeyer determinou um progressivo aumento de tamanho dos carros alegóricos e das fantasias, que parece ainda estar em curso. A tendência de crescimento dos carros alegóricos foi imediatamente detectada pelo carnavalesco Joãosinho Trinta: “Minhas preocupações são com a bateria, a iluminação e a torre de televisão25. As alegorias cresceram muito porque a arquibancadas foram elevadas. As escolas acompanharam a dinâmica de tempo e espaço”. (GROPILLO, 1983) Além do crescimento das arquibancadas e do fim do limite de altura para os carros alegóricos imposto pelos antigos andaimes de TV, o alargamento da pista26 também facilitou o aumento do porte das alegorias. À época da construção da passarela definitiva de desfiles, o carnavalesco Joãosinho Trinta comemorou a ampliação do espaço do desfile: “Poderemos criar em cima desse espaço e construir carros alegóricos ainda mais espetaculares”. (Id.) Um novo sistema de som também precisou ser adotado pelas escolas de sambas a partir da criação do Sambódromo27. Se antes o desfile era viável apenas com a voz do puxador, propagada por um carro de som, e o coro dos componentes da escola – já que a
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O carnavalesco refere-se à torre de televisão de 13 metros de altura, erguida sobre a passarela entre os setores 11 e 13, que o projeto de Niemeyer incluía. Sobre a torre de TV, o arquiteto declarou, para a mesma matéria: “Nesse projeto, procuramos evitar tudo que parecesse provisório. Até os andaimes que antes sustentavam a televisão e eram baixos demais limitando a altura das alegorias foram aumentados”. 26 O Sambódromo é três metros mais largo do que a antiga pista da Rua Marquês de Sapucaí. 27 A empresa Instalson foi a responsável pelo sistema de som do primeiro ano de desfiles do Sambódromo.
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estrutura tubular vazada das arquibancadas não impedia o som de se propagar –, com a criação da Passarela do Samba fez-se necessário espalhar ao longo do desfile caixas de som para corrigir o eco causado pelas paredes de concreto do Sambódromo. Como este novo sistema de som torna indiferente o fato de os componentes cantarem o samba de sua escola, acabou facilitando a entrada de desfilantes alheios às comunidades que formam as bases das agremiações. “Antes você tinha que cantar. Tinha que cantar. E se você vê que o que você está cantando está sendo abafado por aquilo, você se sente meio que um doido, um maluco, entendeu? Para que eu vou cantar se já está tão alto isso aqui? Né? E o fato de você realmente a plenos pulmões cantar, isso te ajuda na alegria. Isso te ajuda a suar. Isso bota o teu corpo para cima”. (CUNHA, 2003)
A Passarela do samba tornou a participação do público presente ao desfile menos importante do que os fatores estético, tecnológico e financeiro das escolas de samba. Mais do que nunca, os desfiles das escolas de samba aproximam-se do espetáculo, do show. No capítulo de seu livro Carnaval – Seis Milênios de História, dedicado à criação do Sambódromo, Hiram Araújo comenta: “Desde que o segmento de vanguarda das escolas de samba ampliou a faixa que era somente folclórica e enfatizou o aspecto da ‘relação mercado/grande estética’, mudaram os comportamentos. Em atendimento a certas necessidades do ‘mercado’, os desfiles partiram para adaptarem-se às novas propostas. Novas técnicas foram introduzidas, em atendimento à opção do espetáculo. Dentro dessas características, as escolas de samba modernas começaram a produzir arte de multidões, elaborada em espetáculos de massa, nos quais os fortes efeitos especiais eram uma das bases”. (ARAÚJO, op. cit., p.274)
Não apenas as questões técnicas ligadas à construção do Sambódromo contribuíram para a modificação do desfile. Um importante fator para a aproximação do evento da realidade do showbusiness foi o significativo aumento de receita que a Passarela do Samba
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propiciou. Além de não haver mais a necessidade de se custear a montagem e o desmonte da estrutura tubular das arquibancadas, a construção da Passarela coincidiu com a divisão do desfile das escolas de samba do grupo principal em dois dias de apresentação. A modificação foi sugerida pelo então vice-governador do estado do Rio, Darcy Ribeiro. A idéia de Darcy era dividir a competição em dois dias com uma finalíssima no sábado seguinte, com as quatro escolas mais bem classificadas no domingo e na segundafeira de carnaval, conforme explicou ao jornal O Globo: “Seria um autêntico supercampeonato do samba. Poderíamos oferecer, nos três dias de desfile, mais de 300 mil lugares nas arquibancadas. Muito mais gente teria a oportunidade de ver o espetáculo”. (GOVERNADOR, 1983) Em um primeiro momento, Brizola mostrou-se cauteloso em relação à inovação. Em declaração ao jornal O Globo, o então governador pronunciou-se da seguinte forma sobre o assunto: “É um ponto de vista. Vamos ouvir todos os interessados para que não digam que tomamos uma decisão unilateral. O carnaval deve ser analisado de acordo com as exigências de sua tradição”. (Id.) Apesar de reticente à primeira vista, Brizola acatou a sugestão de Darcy. O governador também acabou por desconsiderar a opinião popular28 e a vontade das grandes escolas de samba29. Pesou sobre a decisão do governador o temor de o desfile de 1984 ficar muito longo, com a exibição de 14 escolas, já que no ano anterior nenhuma agremiação fora rebaixada. O aumento de renda das escolas de samba motivado pela divisão do desfile em dois dias de apresentação também permitiu que houvesse um maior investimento em alegorias, fantasias e um enorme aparato tecnológico impensável até então para o carnaval carioca. Somando-se a esta nova circulação financeira as necessidades estruturais impostas pela Passarela do Samba, temos recriada a realidade que motivou a segunda grande modificação na estrutura do desfile das escolas de samba. 28
O jornal O Globo realizou pesquisa sobre o assunto (BALTAR, T; PESSÔA, I., 1984) com 52.279 pessoas, em outubro de 1983. Entre os entrevistados, 29.955 declararam-se favoráveis à manutenção do desfile principal em apenas um dia. 29 Segundo dados apresentados na matéria Passarela, a obra polêmica, será inaugurada hoje, de Isa Pessôa e Tarcísio Baltar, publicada pelo jornal O Globo, em 02/03/84, as grandes escolas rejeitaram a divisão do desfile em dois dias, mas os dirigentes das pequenas agremiações apoiaram a inovação. As grandes escolas alegavam que uma terceira apresentação para a definição da escola campeã exigiria gastos extras para recuperação de fantasias carros alegóricos.
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Assim como no caso da primeira, em que o início da participação televisiva na festa foi o estopim da modificação, as transformações trazidas pela Passarela do Samba tiveram influências dos meios de comunicação em sua origem, devido ao tipo de discussão fomentado pelos mesmos, a partir do interesse do poder público em construir um palco definitivo para o desfile. Analisadas vinte anos depois, podemos constatar a impertinência das questões levantadas pela imprensa. Se, por um lado, as críticas feitas não se concretizaram – a Passarela do Samba foi concluída dentro do prazo estipulado e a construção de fato representou um grande avanço do ponto de vista financeiro – houve uma lacuna de debate em torno dos pontos que mais tarde se mostraram problemáticos em relação ao Sambódromo, como a Praça da Apoteose, o excesso de concreto e a mínima participação dos sambistas no processo de elaboração da Passarela do Samba. .
Os novos patronos
A terceira mudança por que passou o desfile das escolas de samba sob a ótica dos meios de comunicação de massa ainda se encontra em curso. A aproximação entre escolas de samba e empresas, que acabou gerando os enredos desenvolvidos sob encomenda em troca de patrocínio, encontra-se na ordem do dia quando o assunto é carnaval carioca. No entanto, as bases para este processo, como veremos a seguir, foram lançadas bem antes de serem dados os passos mais concretos para a aproximação entre escolas de samba e mídia, o que mostra a dificuldade de se usar uma base historicista para o estudo do tema. Para melhor compreender o processo que resultou nos enredos patrocinados por empresas, é interessante conhecer a evolução da estrutura administrativa e financeira das escolas de samba e do espetáculo que produzem. Embora tenha em seu setor artístico o grande motor produtivo do desfile, uma escola de samba é formada também por um setor administrativo, responsável pelo gerenciamento de seu patrimônio e pela arrecadação dos recursos necessários à preparação do carnaval.
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“As escolas são grêmios recreativos regidos por estatutos sociais. A Assembléia Geral é o poder soberano da agremiação. Participam da mesma os sócios quites e maiores de 18 anos. A Assembléia Geral é convocada na forma dos Estatutos da Escola e elege o Conselho Deliberativo, formado, em geral, por trinta sambistas-sócios. O conselho deliberativo elege a diretoria administrativa”. (ARAÚJO, op. cit., p.277)
O modelo descrito acima, em que a diretoria administrativa é composta por presidente, vice-presidente, secretário, tesoureiro, diretor de patrimônio, diretor social, diretor de esportes, relações públicas, diretor de carnaval e conselho fiscal, é o adotado pela maioria das agremiações, com pequenas variações surgidas ao longo da história das escolas de samba, que serão descritas mais adiante. Nos primeiros anos de desfile, as escolas de samba sobreviveram da arrecadação nas quadras de ensaios e da colaboração de pequenos comerciantes. Pouco a pouco, esta receita foi agregando outras fontes: venda de LPs com a gravação dos sambas das agremiações, venda de ingressos para o desfile, direitos autorais de veiculação dos sambas nas rádios e contrato firmado com a TV para a transmissão do espetáculo. Além disso, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro manteve durante sessenta anos, desde 1935, subvenção oficial às escolas de samba. A ruptura definitiva da relação do poder público com a administração do espetáculo aconteceu em 1995, cercada de alguma polêmica, através de resolução do então prefeito Cesar Maia. A justificativa apresentada pelo prefeito, que será parcialmente transcrita a seguir, interessa a este trabalho menos pelo debate político em torno do papel do poder público em relação ao carnaval do que como prova da independência financeira e administrativa conquistada pelas escolas de samba e do caráter mercadológico que a festa adquiriu: “Vem-se interpretando – a nosso ver de forma incorreta – as medidas que a Prefeitura adotou em relação ao desfile das escolas de samba para o carnaval de 1995. Foram medidas absolutamente racionais, que só aumentam a soberania do poder público no comando do carnaval e, em especial, deste grande evento que é o desfile das escolas de samba. (...) Há alguns anos foi tomada a decisão de responsabilizar as escolas de samba
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pelo desfile. Era deprimente o espetáculo de um burocrata do governo lendo as notas dadas por um corpo de jurados escolhidos por este mesmo governo. Deprimente e ridículo, na medida em que as vaias – naturais – dos perdedores encontravam alvo certo e aliviavam a responsabilidade da Liga das Escolas de Samba. Como se sabe, a Liga foi criada para contratar com a Riotur a transmissão por TV, após o ano em que uma emissora sentiu-se discriminada. Cômodo seria se a Liga atuasse apenas como instrumento para o contrato com as TVs, deixando que as escolas fossem financiadas por patronos, enquanto a qualidade e o resultado do desfile recaísse sobre o governo. Seria como se um juiz de futebol errasse ou um campeonato se perdesse e o governo fosse o culpado. O contrato de gestão de 1992 alocou às escolas a responsabilidade pelo espetáculo, como deveria ser. Nossa administração deu dois importantes passos à frente. O primeiro, de fundo comercial, foi desenvolver um sistema de venda e captação de recursos – direta e indiretamente – em torno do desfile que permitisse o autofinanciamento das escolas, liberando-as de qualquer tipo de dependência financeira, seja de bicheiros-patronos, seja de outro tipo de mecenato. (...) Em 1995, esta agressividade comercial será ainda maior. Todas as escolas poderão contar com autofinanciamento, se agregarmos ao desfile os ensaios nas quadras, a venda de fantasias, o aluguel de espaço nas quadras para esta ou aquela empresa de bebidas, o disco... (...) Com isso, separamos inteiramente as funções públicas – responsabilidade com o evento e o equipamento – das funções particulares e de responsabilidade exclusiva das escolas, como já há muitos anos acontece com os clubes de futebol. (...) Pela primeira vez, as águas estão separadas e os sambistas ganham autonomia e responsabilidade pelo espetáculo que é deles, o governo volta a ser governo e o resultado comercial é maximizado para todos, com a Liga tendo riscos se os ingressos não forem inteiramente vendidos. Daí serem incompreensíveis estas conclusões que desdobram expectativas e não compreendem os fatos”. (ARAÚJO, 2003, p.251-253)
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No ano 2000, em razão da homenagem que as escolas de samba prestaram aos 500 anos de descobrimento do Brasil, cada agremiação do Grupo Especial recebeu ainda, além da receita gerada pela venda de ingressos, venda do CD e direitos de transmissão para a TV, verba de R$ 500 mil da Prefeitura do Rio. Apesar de a doação ter sido mantida pela Prefeitura nos anos seguintes, o que poderia ser interpretado como a volta da subvenção oficial ao carnaval, a ruptura determinada em 1995 pelo então prefeito Cesar Maia deve ser vista como um marco de independência administrativa das escolas de samba, cujo processo foi iniciado em 1984, com a criação da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Até o carnaval de 1984, as escolas de samba cariocas tinham como órgão representativo a Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ). Por ser formada por 44 escolas de samba, nem todas com a mesma representatividade para o carnaval carioca, a AESCRJ sofria pela falta de unidade de interesses de seus filiados. Com a construção da Passarela da Samba, e conseqüente aumento de receita, esta disparidade se tornou mais evidente e incômoda para as escolas ditas de primeiro time. Apesar de serem as grandes responsáveis pela geração de receita do carnaval, as grandes escolas eram obrigadas a dividir seus lucros com todas as filiadas da AESCRJ, por serem minoria em plenário. Como solução para o impasse, as dez agremiações que integraram no carnaval de 1983 o grupo principal de desfile decidiram criar a Liesa, que em seus primeiros anos de existência dividiu a administração artística e financeira do desfile das escolas de samba do primeiro grupo com a Riotur, órgão vinculado ao poder público. Pouco a pouco, a Liesa aumentou seu domínio sobre a administração do espetáculo produzido pelo grupo de elite – a partir de 1991, chamado de grupo especial – como vimos no parecer do prefeito Cesar Maia. Em um primeiro momento, passou a responder exclusivamente pela gerência artística da apresentação, tornando-se responsável pela indicação do corpo de jurados e critérios de julgamento. Em seguida, expandiu seu domínio para a administração financeira do evento, culminando com o já citada ruptura com o poder público, determinada pelo prefeito Cesar Maia. Este processo, ditado pela lógica do capital, mostra que o desfile das escolas de samba, inicialmente uma manifestação cultural sem fins lucrativos, passou a ser gerenciado a partir de um modelo empresarial. Seu sucesso passa a ser medido por sua capacidade de
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gerar lucro. A partir desta constatação, poderemos mergulhar com mais embasamento na questão dos enredos patrocinados, o mais contemporâneo elo da relação entre mídia e escolas de samba. Como já vimos, em muitos momentos da história do carnaval carioca a receita gerada pelo desfile das escolas de samba não foi suficiente para a elaboração do espetáculo, obrigando as escolas de samba a buscar fontes alternativas para cobrir este déficit. O caminho encontrado mais recentemente foi a troca do enredo – tema que as escolas desenvolvem em desfile – por patrocínio. Esta solução, que tomou corpo nas últimas décadas, tem gerado forte reação de setores mais conservadores das escolas de samba. Este trabalho não se deterá na análise das alterações artísticas que o advento do enredo patrocinado trouxe para o desfile. Seu interesse no tema reside na transformação da escola de samba em espaço de mídia. Ao contrário da teoria defendida por determinados setores envolvidos na produção do carnaval carioca, a troca de enredo por patrocínio, realizada entre as escolas de samba e as empresas, não parece interessar às escolas de samba apenas do ponto de vista financeiro. O enredo patrocinado, que a princípio parecia ser apenas uma forma de se engordar a receita das agremiações, tornou-se uma forma de diferenciação e marca de status entre as escolas de samba. Além de garantia de luxo, hoje tão importante quanto o próprio samba para as agremiações na disputa pelo campeonato, coloca as escolas em pé de igualdade nas negociações com empresas. Comprova, definitivamente, que as escolas são geridas de acordo com um modelo empresarial semelhante a de suas possíveis patrocinadoras. Antes de se chegar a este ponto, é interessante avançar um pouco mais nesta realidade do carnaval carioca ainda em formação e indagar por que o enredo foi eleito pelos atuais administradores das escolas de samba como possível moeda de troca com as empresas. Como veremos no breve histórico que se desenvolverá a seguir, o enredo não faz parte da estrutura original das escolas de samba e sempre foi, de alguma forma, espaço de troca. Nos primeiros anos do desfile competitivo, as escolas de samba não apresentavam enredos. Somente a partir de 1946, quatorze anos depois do primeiro concurso carnavalesco, as agremiações passam a adotar de forma sistemática um tema para seus desfiles. Até então, as escolas cantavam, durante o desfile, sambas formados por uma
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estrofe fixa, que se alternava com versos compostos durante a própria apresentação. Em geral, estes sambas tratavam de temas cotidianos e ligados ao universo das próprias escolas. A Estação Primeira de Mangueira é a primeira escola de samba a apresentar em desfile um samba com tema definido, em 1933. No entanto, apesar de o samba Homenagem ser temático – enaltecia os poetas Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias – não foi composto a partir de um enredo previamente determinado pela escola nem ditou a concepção das fantasias apresentadas pelos componentes, que não demonstravam qualquer relação com o assunto abordado pelo samba. A inovação passou despercebida à época e não encontrou eco nas demais escolas de samba. Os desfiles continuaram a ser embalados por sambas improvisados pelos compositores de cada escola, ao sabor do momento, até o carnaval de 1946, quando o Prazer da Serrinha, que no ano seguinte daria origem ao Império Serrano, decide promover um concurso de sambas antes do carnaval, a partir de um tema escolhido pela escola, como relatou em entrevista ao jornal Correio da Manhã o compositor Silas de Oliveira: “Até então as escolas iam disputar na Praça Onze com seus sambas de terreiro. Nós resolvemos fazer o contrário, estabelecer o enredo e escolher o samba. Assim surgiu Conferência de São Francisco. Até então os sambas só tinham primeira parte. Ao final dela, se improvisavam os versos conforme a circunstância do momento. Nós fizemos o primeiro samba com segunda parte, historiando um só acontecimento”. (REGO, 1972)
A inovação introduzida pela escola de samba de Madureira pode ser considerada a primeira mudança substancial no desfile das escolas de samba. Além disso, comprova que o enredo não faz parte da estrutura original de uma escola de samba, esta, sim, mantida quase que integralmente nestes setenta anos de existência. Ao compararmos a estrutura original de uma escola de samba, descrita pelo pesquisador Hiram Araújo no livro Carnaval – Seis Milênios de História, veremos que os elementos apresentados nos primeiros desfiles continuam presentes até os dias de hoje, sofrendo apenas pequenas adaptações ao longo dos anos.
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“1. Pede Passagem (abre-alas): tabuleta com o símbolo, o nome da escola e o tema, agradecimento às autoridades e à imprensa falada e escrita. Às vezes, precedendo o abre-alas, alguns figurantes fantasiados faziam a abertura do cortejo. 2. Comissão de Frente (linha de frente): formada pelos mais importantes integrantes da agremiação. 3. Primeiro Mestre-Sala e Primeira Porta-Bandeira: desenvolvendo dança característica. 4. Primeiro Mestre de Canto e Primeiro Versador: O Mestre de Canto ajuda o coro na primeira parte do samba e o versador improvisa os versos, alternando-se na segunda parte com outro versador. 5. Carramanchão: onde ficavam algumas figuras convidadas da escola. 6. O Coro: geralmente formado por vozes femininas, evoluindo em torno do carramanchão. 7. Segundo Mestre de Canto e Segundo Versador: tinham funções idênticas às dos primeiros. 8. Bateria: composta por instrumentos de percussão, tendo à frente o seu diretor. 9. Baianas de Linha: ladeando as escolas, baianas iam protegendo a agremiação. Em geral eram homens, levando navalhas nas pernas”. (ARAÚJO, op. cit., p.266-267)
A constatação de que o enredo não faz parte da estrutura primitiva da escola de samba nos leva à reflexão sobre sua efetiva relação com o universo do sambista. Para se investigar a questão, é interessante pensar nas mudanças dos temas apresentados pelas escolas de samba. Durante aproximadamente duas décadas, prevaleceram, quase absolutos, enredos que contassem a História oficial do Brasil. Não há registro ou depoimentos que expliquem esta tendência, mas é provável que ela esteja relacionada ao próprio fundamento que determinou a criação das escolas de samba. No início do século XX, os negros que ocupavam o centro da cidade do Rio de Janeiro e iniciaram a produção musical que deu origem ao samba sofriam constantes perseguições da polícia. Para legitimar os encontros que promoviam, – inicialmente ligados
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a cultos afro-brasileiros – e a produção artística que neles era consolidada, um grupo de sambistas do Estácio decide criar uma agremiação e, assim, diminuir a opressão policial de que eram vítimas. Como se reuniam nas proximidades de uma Escola Normal, decidiram, por sugestão do compositor Ismael Silva, adotar o termo escola de samba, conforme visto no primeiro capítulo deste trabalho. Acredito que esta necessidade de se aproximar da cultura e do saber formal tenha motivado as escolas de samba a adotar a História oficial do Brasil como temática preferencial para ilustrar seus sambas e desfiles. Esta constatação demonstra que desde a sua origem o enredo aparece como espaço de troca para o sambista. Não como troca por capital, já que em um primeiro momento a verba não era primordial para a organização de um desfile, mas como troca por prestígio, artigo tão caro para os sambistas da época. Esta tendência começa a se modificar apenas na década de 1960. Não por acaso, o período em que se situa a introdução de um novo estilo de enredos e da figura do carnavalesco é também o que marca a popularização das escolas de samba entre as classes dominantes e, conseqüentemente, o aumento do fluxo de capital gerado pelo carnaval. A escola de samba Acadêmicos do Salgueiro foi a primeira agremiação a convidar um profissional da área acadêmica, alheio à comunidade, para desenvolver os setores ligados às artes plásticas de seu carnaval. Esta inovação, conforme nos conta Hiram Araújo, acabou por iniciar não apenas uma nova corrente dentro do formato dos enredos, mas a introdução de novos materiais e a profissionalização do carnaval carioca. “Nelson de Andrade, que havia assumido a presidência da escola em fins da década de 1950, convidou os artistas plásticos Dirceu e Marie Louise Nery para fazerem o carnaval Debret, em 1959, e conseguiu o segundo lugar. O julgador Fernando Pamplona ficou encantado com a apresentação da escola. Nelson, então, o convidou para nela desenvolver um trabalho artístico. Fernando organizou sua equipe com Arlindo Rodrigues, Nilton Sá, Dirceu e Marie Louise Nery e iniciou uma verdadeira revolução na temática e no tratamento plástico-visual. Seu primeiro carnaval, o Quilombo dos Palmares, desencadeou uma série de conseqüências: os temas deixaram os limites da História oficial do Brasil, outros materiais foram introduzidos, as alegorias, adereços
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e fantasias mudaram de estilo. Uma nova era se abriu. Aos poucos, os artesãos das comunidades cederam seus lugares para artistas e trabalhadores especializados (os aprendizes do Teatro Municipal, da Escola de BelasArtes e, posteriormente, também da cenotécnica da televisão)”. (Ibid., p.272-273)
A chegada de Fernando Pamplona ao Salgueiro conferiu também um novo status às escolas de samba. Mais do que nunca, elas deixavam de ser produção cultural vinda de guetos e passavam a ter maior inserção nas classes dominantes, fato para o qual muito colaborou o início da transmissão do desfile das escolas de samba. Como já vimos no setor deste trabalho dedicado a este tema, a presença da TV representou uma diversificação e aumento representativo do público das escolas de samba. Dentro desta nova realidade, os enredos históricos perdem seu sentido primordial. Pelo contrário, poderiam soar inocentes e desinteressantes ao novo público das escolas de samba. A vertente criada por Fernando Pamplona ganha força e os enredos afro-brasileiros sobressaem na cena carnavalesca. Uma vez consolidada, esta nova concepção de desfile, fundada em enredos com uma visão histórica extra-oficial e em carros alegóricos e fantasias mais elaborados, traz para as escolas de samba um novo entrave. Como já dito anteriormente, os recursos financeiros individuais dos próprios sambistas e o incentivo dos pequenos comerciantes das regiões próximas a cada escola de samba deixam de ser suficientes para a produção de um desfile. Se por um lado as dificuldades financeiras enfrentadas pelas escolas de samba colocaram em pauta a discussão sobre a necessidade de se criar um espaço definitivo para o desfile, foram as propulsoras do surgimento de um novo personagem no carnaval carioca. É neste contexto que entra na cena carnavalesca o banqueiro de jogo do bicho que desempenhará a função de patrono da escola de samba. Os contraventores estabelecem com as agremiações uma nova forma de comércio. Trocam o capital acumulado através da prática ilícita do jogo do bicho pelo prestígio de verem seus nomes vinculados às agremiações que, a esta altura, já haviam conquistado status de fomentadoras da cultura popular junto às classes dominantes, imprensa e formadores de opinião. A idéia de que o relacionamento entre os banqueiros do bicho e as escolas de samba se baseia nesta troca está presente no livro Carnaval Carioca – Dos Bastidores ao Desfile,
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em que a antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti dedica um capítulo à presença dos contraventores no carnaval carioca: “De fato, o desfile mobiliza uma ampla rede de relações, e o dinheiro do bicheiro integra-o a essa rede de forma positiva. Ao longo da pesquisa que realizei, os bicheiros viam a si mesmos como ‘esses loucos que estão por trás do desfile, que põem dinheiro no carnaval, enquanto outros põem na Suíça (...)’. Por sua vez, aqueles que com eles, ou para eles, trabalhavam na confecção de um carnaval expressavam muito claramente sua visão do desejo de prestígio social que movia o mecenato: era o ‘preço da vaidade’, ‘a única maneira de aparecer nas colunas sociais e não na página policial’, ‘a única forma de estar entre os seus iguais’. O mecenato do jogo do bicho era assim fruto de uma generosidade interessada, tornando socialmente aceitável, e mesmo benvinda, a extraordinária riqueza do bicheiro; favorecendo simultaneamente o controle clandestino da organização do jogo do bicho sobre um determinado território”. (CAVALCANTI, op. cit., p.33)
Na grande maioria dos casos, os bicheiros não interferem na escolha do enredo das escolas que dominam. Deixam o trabalho a cargo dos carnavalescos, neste contexto figuras já consolidadas no carnaval carioca. No entanto, vem de uma escola emergente da Baixada Fluminense fortemente influenciada pela figura de seu patrono, uma demonstração de enredo como novo espaço de propaganda. Em meados da década de 1970, a Beija-Flor de Nilópolis, escola de samba patrocinada pelo banqueiro de bicho Aniz Abraão David, o Anísio, apresenta três enredos enaltecendo o regime militar e salta, em quatro anos, do segundo lugar do grupo de acesso ao primeiro do grupo principal. Em 1973, com Educação para o Desenvolvimento, a agremiação conquista o segundo lugar do grupo de acesso e o direito de desfilar entre as grandes escolas de samba do Rio de Janeiro. Nos dois anos seguintes, com Brasil Ano 2000 (1974) e O Grande Decênio (1975), mantém-se entre as escolas principais com novas odes ao regime militar para, no ano seguinte, conquistar seu primeiro título no primeiro grupo do carnaval, seguido por outros dois campeonatos, todos sob a batuta do carnavalesco Joãosinho Trinta.
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Não há registros ou depoimentos que comprovem a participação do banqueiro de bicho Anísio na escolha dos enredos políticos apresentados pela Beija-Flor ou mesmo a concreta influência dos temas na ascensão da escola dentro do cenário do carnaval carioca. No entanto, é possível supor que o contraventor, em busca de legitimação para sua atividade e de trégua com a polícia e a Justiça, tenha utilizado o enredo da escola de samba que patrocinava para promover propaganda política do regime militar. Sobre o sucesso conquistado pela Beija-Flor, vale lembrar que os enredos escolhidos faziam parte do imaginário social do momento e colocavam em evidência uma escola até então desconhecida do grande público. A entrada do bicheiro na engrenagem da escola de samba – também ela trazida pela mídia – contribuiu em grande parte para adoção de um sistema empresarial pelas mesmas. A própria essência do jogo do bicho, baseada na filosofia do “só vale o escrito”, demonstra o respeito a um contrato, que apesar de não legitimado pelo poder público, vale tanto quanto o acerto contratual entre empresas. Em sua pesquisa, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti atesta que a entrada do mecenato do jogo do bicho na escola de samba está associada a uma racionalização da administração das agremiações. Para a antropóloga, esta nova filosofia está na base de formação da Liesa, que reuniu em sua diretoria a cúpula do jogo do bicho. “A Liga teria permitido às escolas realizar um bom carnaval, dando condições ‘para o concorrente da comunidade do morro ou da favela, ou de onde for, ter condições de desfilar. (...) Face ao discurso modernizador da Liga, é importante distinguir as diferente dimensões de sua atuação, e perceber sua dubiedade: essa suposta autonomia foi organizada pelos próprios patronos em seu benefício indireto. A Liga certamente racionalizou financeira e administrativamente aspectos importantes da organização do desfile: imprimia seu próprio disco, recebia parte da renda relativa à vendagem dos ingressos, vendia diretamente para os canais de televisão os direitos para a transmissão do desfile, repassando o montante desta renda às escolas do grupo especial. Ela tomou para si a coordenação do julgamento, escolhia os jurados, discutia os quesitos, detendo, em suma, a ‘coordenação artística do espetáculo’. Internamente, as
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escolas também organizaram sua administração e comercializaram seu funcionamento. Todo esse movimento entretanto reforça o controle da rede do jogo do bicho sobre seus territórios. (...) A moeda prestígio (assim como o talento e a competência em outros contextos) no carnaval tem tanta circulação e relevância quanto o dinheiro”. (Ibid., p.38-39)
Como vimos, muito antes de as escolas de samba pensarem em trocar seus enredos por ajuda financeira de empresas ou administradores públicos, a escolha do tema que desenvolvem já era, de alguma forma, influenciado por um interesse. Como discurso, precisa interessar tanto ao emissor quanto a seu interlocutor. É curioso pensar por que o enredo patrocinado gerou e ainda gera tamanha resistência de certos setores ligados à produção do desfile. Quase sempre essa crítica se baseia, além do cerceamento do tema – já refutado pela própria história das escolas de samba –, na idéia de que as escolas de samba são capazes de produzir seus desfiles apenas com os recursos repassados pela Liga, arrecadação de ensaios e contribuição de empresários que não exijam como retorno a veiculação de suas marcas na Avenida. Não há dúvida de que é possível fazer carnaval com uma verba mais modesta. No entanto, esta tendência iria contrariar a lógica estruturante do carnaval, já que nunca houve justificativa para os gastos das escolas de samba e de seus componentes na preparação do desfile, independentemente do investimento que isto significasse. As escolas de samba são uma manifestação da cultura brasileira calcada na dança, na música, no canto e também no gasto injustificado de dinheiro. Durante um ano inteiro as escolas se preparam e investem cifras que ultrapassam em muito R$ 1 milhão para um objetivo efêmero. Cada uma delas se exibe em desfile por, no máximo, 90 minutos. Em troca, ganham apenas o regozijo do próprio desfile. A ausência de uma lógica prática que justifique os gastos do desfile das escolas de samba não se encerra neste caso específico. Em Cultura e Razão Prática, Marshall Sahlins discute a idéia de que o consumo não se relaciona com os conceitos de utilidade e praticidade nas culturas humanas. A motivação e a racionalidade que estão por trás dos gastos de cada ser humano são simbólicas e variam de cultura para cultura. “Nenhum
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objeto, nenhuma coisa é ou tem movimento na sociedade humana, exceto pela significação que os homens lhe atribuem.”(SAHLINS, 1979, p.189) A mesma impressão de ausência de lógica e racionalidade que o carnaval carioca pode causar apresenta, certamente, pares em outras culturas. Qualquer sistema de consumo é restrito a uma sociedade específica, podendo, portanto, causar estranhamento fora dela. A necessidade real individual não é mensurável, nem mesmo pelo valor que se atribui a cada objeto ou serviço pela própria sociedade que a produz. O supérfluo é um conceito subjetivo. “Assim, foi Marx quem ensinou que os homens nunca produzem absolutamente, isto é, como seres biológicos num universo de necessidade física. Os homens produzem objetos para sujeitos sociais específicos, no processo de reprodução de sujeitos por objetos sociais”. (Ibid., p.188)
O consumo faz parte de um sistema social: ganha significados através das relações que se estabelecem dentro de cada grupo. Em Pour une critique de l’économie politique du signe, Jean Baudrillard o compara ao sistema da linguagem, jamais autônomo e absoluto. Assim como a linguagem, o consumo é uma troca de significados. Neste sistema, a utilidade prática do objeto consumido é posterior ao que ele diz aos pares sociais do consumidor. “Assim como é verdade da comunicação do discurso, também é verdade dos bens e produtos: o consumo é troca. Um consumidor nunca está isolado, como um orador. É neste sentido que precisamos fazer uma total revolução na análise do consumo. Da mesma maneira que não há uma linguagem simplesmente por causa da necessidade individual de falar, mas antes de tudo a linguagem – não como um sistema absoluto, autônomo, mas como uma estrutura contemporânea de troca de significado, ao qual é articulada a interação individual da fala – no mesmo sentido, também não há consumo por causa de uma necessidade objetiva e consumir, uma intenção final do sujeito em relação ao objeto. Há uma produção social, um sistema de troca de materiais diferenciados, de um código de significados e valores constituídos. A funcionalidade dos bens vem depois, se auto-
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ajustando, racionalizando e ao mesmo tempo reprimindo esses mecanismos estruturais fundamentais”. (BAUDRILLARD, 1972, p.76-77)
Parte integrante de um sistema de consumo, o carnaval não pode, portanto, ser julgado a partir do conceito de supérfluo. A motivação prática para os exorbitantes gastos do carnaval carioca inexiste. Se formos mais longe, veremos que não existe motivação sequer para gasto algum ligado à folia. No entanto, como negar a importância – mesmo que não prática – do carnaval e dos desfiles das escolas de samba para as comunidades que os produzem? Como fechar os olhos para o papel fundamental que os gastos excessivos desempenham neste contexto social? É curioso observar o enorme valor que os componentes mais humildes das escolas de samba dão ao luxo das fantasias e dos carros alegóricos. O desejo de investir em um traje para o carnaval – que não será exibido em desfile por mais de uma hora – o que se ganha em meses de trabalho é inexplicável do ponto de vista prático, e mais uma prova de que o carnaval – que sempre foi a festa dos excessos carnais – é hoje, principalmente, a festa da orgia financeira. O carnavalesco Fernando Pamplona, crítico constante dos enredos patrocinados, pôde constatar, em seu primeiro contato profissional com uma escola de samba, o apreço de seus componentes ao luxo e à riqueza das fantasias. Em 1960, ao desenvolver o enredo Quilombo dos Palmares na escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, encontrou resistência dos sambistas, que, acostumados a fantasiar-se de reis e rainhas, estranharam os trajes de escravos propostos por ele. Em entrevista ao jornalista Sérgio Cabral, publicada no livro As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, Pamplona nos dá a medida da resistência que encontrou entre os sambistas: “Édison Carneiro não concordou com as fantasias de escravo e eu quis saber a razão pela qual os negros se fantasiam com as roupas dos senhores nas escolas de samba, no maracatu e nas congadas. Mas ele não tinha uma explicação e nós especulamos, achando que, nesses casos, o traje tem mesmo a função de fantasia. Ou seja: a roupa africana era o traje do escravo. Nos festejos, portanto, fantasiam-se com a roupa que representava o poder. O pessoal das escolas de samba gostava muito de sair com as
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roupas dos nobres que eram chamadas sempre de ‘Luís XV’, qualquer época que representassem”. (CABRAL, op. cit., p.369)
Não apenas o luxo das fantasias, mas também os gastos excessivos da escola de samba em sua totalidade, podem ser interpretados sob a ótica do consumo conspícuo. Gastar em excesso é, acima de tudo, uma forma de comprovar prosperidade. Em A Teoria da Classe Ociosa, Thorstein Veblen mostra que o consumo do supérfluo se constitui em forma de distinção entre a classe trabalhadora e a classe ociosa, que usa festas e cerimônias coletivas como prova de prosperidade. “Para o homem ocioso, o consumo conspícuo de bens valiosos é um instrumento de respeitabilidade. À medida que acumula riqueza, ele é incapaz, sozinho, de demonstrar a própria opulência pelo consumo conspícuo. Recorre por isso ao auxílio de amigos e concorrentes, dandolhes presentes valiosos e convidando-os para festas e divertimentos dispendiosos. É verdade que festas e divertimentos se originaram provavelmente no simples sentimento ingênuo de ostentação; bem cedo, todavia, adquiriram aquela utilidade de consumo conspícuo, retendo até hoje esse caráter: assim, essa utilidade há muito é o fundamento substancial do seu uso. Os divertimentos custosos, tais como potlatch (festa dada em certas tribos de índios americanos pelo aspirante à chefia), e o baile, são especialmente próprios para tal fim. O concorrente, com o qual quer o dono da festa instituir uma comparação de opulência, é usado deste modo como um meio para aquele fim; ele consome vicariamente por seu anfitrião, serve ao mesmo tempo de testemunha do consumo dos bens valiosos que o anfitrião tem em excesso e não pode consumir sozinho, e presencia o seu refinamento de etiqueta. Naturalmente, outros motivos existem, de espécie mais generosa, para os divertimentos dispendiosos. O costume de reuniões festivas se originou provavelmente em sentimentos de sociabilidade e religião; tais sentimentos também se encontram mais tarde, mas já não são os únicos sentimentos presentes. As festividades da classe ociosa, no seu pleno desenvolvimento,
continuam
provavelmente
determinadas,
muito
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ligeiramente, por motivos religiosos, e em grande parte por sentimentos de recreio e convívio; mas elas têm também o fim aludido de comparação quanto ao consumo conspícuo, e com não menor eficácia, apesar da base estranha daqueles motivos mais confessáveis. O efeito econômico de tais amenidades sociais não diminui com isso, quer quanto ao consumo vicário de bens quer quanto à exibição de conhecimentos de etiqueta, difíceis e onerosos”. (VEBLEN, 1985, p.51-52)
O desfile carnavalesco deve ser entendido a partir das considerações de Veblen: trata-se de uma disputa entre as escolas de samba pelo título de campeã carioca, a partir dos quesitos que analisam não apenas o canto e dança, mas também, mesmo que indiretamente, a riqueza de cada uma delas. Neste ponto, assemelham-se ao potlatch citado por Veblen, cuja apresentação encontra-se em Sociologia e Antropoligia, de Marcel Mauss. Trata-se de prática comum a tribos norte-americanas riquíssimas, que atravessam o inverno realizando opulentas festas, que funcionam, ao mesmo tempo, como assembléias.Segundo Mauss, o nome chinook potlatch, que se integrou à linguagem corrente de brancos e índios de Vancouver aoAlaska, significa “alimentar”, “consumir”. Além dos gastos aparentemente injustificados, o potlatch das tribos norteamericanas assemelha-se às escolas de samba também pela rivalidade presente às festas e rituais promovidas por seus integrantes. “O que é notável nessas tribos, porém, é o princípio da rivalidade e do antagonismo que domina todas essas práticas. Vai-se até a batalha, até a morte de chefes e nobres que assim se enfrentam. Por outro lado, vai-se até a destruição puramente suntuária de riquezas acumuladas para eclipsar o chefe rival, ao mesmo tempo associado (de ordinário avô, sogro ou genro)”. (MAUSS, 1974, p.46)
Mauss classifica o potlatch como sistema de prestação total, ou seja, uma prática ritual de troca de bens e riquezas desenvolvidas entre coletividades. “O que trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas economicamente úteis. Trata-se, antes de tudo, de
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gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos momentos em que e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais permanente”. ”. (Ibid., p.45)
Como vemos, as escolas de samba, assim como o potlatch, se adequam à classificação do sistema de prestação total. Diante disso, seria difícil convencer as agremiações a abrir mão da verba oriunda do patrocínio, mesmo que isso signifique uma negociação envolvendo o enredo, que não se revelou tão importante quanto o prazer da ostentação. A verdade é que as eventuais exigências temáticas do patrocinador pouca interferência tiveram sobre aquilo que parece ser o assunto central abordado, de uma forma ou de outra, por todas as escolas de samba. O conteúdo dos enredos não parece ter sido modificado em seu tema básico com o advento dos patrocínios. Mesmo diante da imposição temática, as escolas de samba continuam a apresentar em desfile uma fala sobre o Brasil e a nação brasileira, a partir de diferentes pontos de vista localizados. Este movimento de temática unificada das escolas de samba aparece retratado em O Brasil do Samba-Enredo, um estudo da psicóloga francesa Monique Augras sobre o gênero musical típico das escolas de samba. Na obra, a autora nos mostra que a obrigatoriedade de abordar em desfile enredos de temática nacional surgiu em 1938 e, ao contrário do que é perpetuado pela imprensa e por muitos estudiosos do tema até os dias de hoje, a exigência nasceu entre os próprios sambistas e não por decreto do poder público. De acordo com Augras, em 1938, o então presidente da União das Escolas de Samba, Eloy Antero Dias, do Império Serrano, criou o regulamento que não permitia às escolas de samba apresentar em desfile “histórias internacionais em sonhos ou imaginação” (COSTA, apud AUGRAS,1998, p.45). A proibição, que chegou a desclassificar da competição carnavalesca a escola de samba Vizinha Faladeira, em 1939, não foi criada pelo governo ditatorial instalado no país àquele momento, como entrou para a história. “Não são apenas os jornais que perpetuam a lenda. Até excelentes pesquisadores também o fazem. Por que será? Parece haver, nessa repetição, a presença de um estereótipo: tudo o que há de ruim no Brasil é
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culpa da ditadura, getulista para os anos de 30 e 40, militar para as décadas mais recentes. (...) O estereótipo, além da aparente facilidade da explicação reducionista, parece também alimentar o romantismo vigente no discurso de ponderável vertente das ciências sociais que vê, na cultura popular, a expressão de uma heróica resistência às injunções dos dominadores. Atribuir a exigência de ‘temas nacionais’ à ditadura permite exaltar o valor dos sambistas que, apesar de tudo, lutaram para preservar a ‘autenticidade’ de sua cultura. Mas reconhecer que foram as mais ilustres figuras da galeria dos sambistas históricos que, por assim dizer, se adiantaram aos possíveis desejos dos donos do poder para impor normas aos seus filiados não significa necessariamente fazer uma apreciação desfavorável. Ao contrário, é possível louvar o pragmatismo que, por meio de tantas alianças, garantiu a sobrevivência das escolas de samba”. (AUGRAS, op. cit., p.47-48)
Na história da imposição de temática nacionalista às escolas de samba, há outro fato curioso, além do presente no início do processo, descrito acima por Augras, que demonstra que a existência de enredos que façam referência ao Brasil está muito mais ligada a um apreço das próprias agremiações pelo assunto do que a qualquer tipo de exigência externa. Trata-se do momento em que as escolas de samba viram-se desobrigadas de apresentar em desfile enredos nacionais. A imposição deixou de existir no carnaval de 1997. No entanto, desta data até o último carnaval, apenas uma escola de samba optou por fazer um enredo “internacional”. No mesmo ano de 1997, a Acadêmicos da Rocinha, que integrava o grupo especial do carnaval carioca, apresentou uma homenagem a Walt Disney. Curiosamente, o título do enredo desenvolvido pela Rocinha era A Viagem Encantada de Zé Carioca à Disney. Prova de que mesmo na única vez, após a liberação temática, em que uma escola de samba carioca apresentou um enredo supostamente sem vínculos à história da nação brasileira, o fez tendo base um personagem tipicamente brasileiro. Este discurso sobre a nação brasileira, talvez a efetiva presença temática no mecanismo estruturante das escolas de samba, certamente não desapareceu com o advento dos enredos patrocinados. As escolas de samba não o perderam de vista quando iniciaram o movimento de negociação em busca de maiores receitas para produzir suas apresentações.
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Conforme veremos a seguir, a temática nacionalista nunca se viu ameaçada nas negociações feitas pelas agremiações em troca de mais verba. O primeiro movimento das escolas de samba em busca de recursos para fazer carnavais mais luxuosos foi a tentativa de trocar espaço para a exposição de logomarcas de empresas em carros alegóricos e fantasias por patrocínio. No entanto, a iniciativa das agremiações esbarrou no regulamento do desfile, que limita o merchandising às camisas dos empurradores de carros alegóricos (formigões). Mesmo diante da pressão, a Liesa e a Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro liberaram o uso de logos em carros alegóricos apenas a partir do ano de 199530, somente entre as escolas dos grupos de acesso. A polêmica que cerca a mudança é retratada pela imprensa: “Uma galinha azul como principal personagem do carro abre-alas, incluída num enredo que fala da felicidade. Para o público, isto pode não ter nenhum significado, mas para a escola de samba Acadêmicos da Rocinha esse personagem de dois metros de altura é uma verdadeira galinha dos ovos de ouro. Sem ela, seria difícil desfilar na Passarela do Samba. A personagem em questão, que representa o caldo de galinha Maggi, é responsável por 50% dos gastos da Acadêmicos da Rocinha neste carnaval. A partir deste ano, as agremiações da Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo de Acesso (antigo Grupo I) estão autorizadas a usar merchandising em todas as alegorias, além dos instrumentos de bateria, camisetas dos empurradores e pessoal de apoio. A mudança do regulamento é polêmica. Uma das maiores dificuldades tem sido convencer os carnavalescos a inserir as logomarcas, sem ferir o enredo. (...) A Rocinha é a agremiação que mais avançou nessa área. Associada ao caldo de galinha desde o ano passado, acabou deflagrando o processo de mudança no regulamento da Liga do Grupo de Acesso. Este ano, muitas escolas não conseguiram vender seu produto, mas o tesoureiro da entidade,
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Esta é a data sugerida pela matéria publicada no jornal O Globo, transcrita a seguir. No entanto, pesquisa realizada em outras fontes mostra que, antes disso, escolas dos grupos de acesso já haviam utilizado logomarcas em carros alegóricos. A primeira escola a se valer do recurso foi a São Clemente, em 1993, no desenvolvimento do enredo O Pão Nosso de Cada Dia. No desfile, um dos carros alegóricos da agremiação era forrado por embalagens de pão de forma da marca Plus Vita. No ano seguinte, a escola de samba Unidos do Cabuçu apresentou, no mesmo grupo, uma garrafa de molho shoyo da marca Sakura como carro alegórico. O enredo da escola era Brajiru – Meu Japão Brasileiro, sobre a influência da cultura nipônica no Brasil.
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Régi Luiz dos Santos, revela que a intenção é abrir o mercado. Ele prevê para o ano que vem a utilização do merchandising de uma forma mais profissional, como a Rocinha faz. Além da Maggi, a escola tem outros quatro
patrocinadores,
que
também
vão
merecer
destaque”.
(BEAUREPAIRE, 1995)
Outra alternativa para a falta de recursos encontrada pelas escolas de samba foi recorrer à Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet). As escolas de samba passaram a oferecer como contrapartida para seus patrocinadores os benefícios fiscais previstos pela lei. No entanto, para se enquadrarem em seus requisitos, precisavam levar ao ministério da Cultura (Minc) projetos que explicitassem a relevância cultural do espetáculo que apresentariam. A primeira escola a ser considerada pela Cnic (Comissão Nacional de Incentivo Cultural), com base no parecer de técnicos do ministério, apta a captar recursos com empresas interessadas em patrociná-la foi a Acadêmicos da Rocinha, em 1994, com o enredo Humor pra dar e vender.Depois de ter seu enredo enquadrado pelo Minc na lei, a Rocinha usou seus mecanismos para captar recursos com a iniciativa privada. Também em busca de verba para produzir seus desfiles, as escolas de samba iniciaram outro movimento de captação de recursos. Neste caso, a parceria se fez com governos estaduais e municipais, que destinavam parte da verba pública de suas administrações às escolas de samba que apresentassem enredos que fizessem referências à história e às belezas naturais de seus patrocinadores. A partir da descoberta desta nova fonte de recursos, as escolas de samba tentaram adaptar seus enredos aos desejos de potenciais patrocinadores ou saíram em busca de ajuda financeira depois de escolher seu tema, iniciando nova tendência temática, que transformou o desfile em um passeio por cidades e estados do Brasil. A parceria, no entanto, não teve final feliz para todas escolas de samba que propagandearam o que seus patrocinadores queriam. A maioria ficou sem receber os benefícios acertados. A exceção foi a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, que em 1995 firmou parceria com o governo do Ceará para o desenvolvimento do enredo Mais Vale um Jegue que me Carregue do que um Camelo que me Derrube... Lá no Ceará, em troca de R$ 200 mil, e no ano seguinte buscou patrocínio do governo do Áustria, ao apresentar o enredo A Imperatriz Leopoldinense Honrosamente Apresenta “Leopoldina A Imperatriz do Brasil”.
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Além de conseguir concretizar a ajuda de custo acertada com seus patrocinadores, a Imperatriz saiu na frente das demais escolas de samba do grupo especial também no formato de desenvolvimento dos dois enredos. Em ambos os casos, o patrocinador não se transformou diretamente em tema, mas em inspiração para o mesmo. O momento acima descrito foi retratado pelo jornalista Cláudio Vieira, em matéria publicada no Jornal O Dia: “Os bandeirantes, que ampliaram as fronteiras do país, já foram enredo de diversas escolas de samba. A coragem e o espírito aventureiro destes desbravadores foram cantados em verso e prosa. Hoje, acontece o inverso. É o samba que se inspira na História e parte em busca de outras fontes de receita, tentando expandir os limites do carnaval carioca. Quem ensinou
o
caminho
das
pedras
foi
a
Imperatriz
Leopoldinense, no ano passado. Boa parte dos recursos que sustentaram o luxo da escola de Ramos veio lá do Ceará. O governador Tasso Jereissati entendeu que o enredo criado pela carnavalesca Rosa Magalhães, contando a expedição que envolveu até camelos em solo nordestino, seria um bom apelo de mídia para o seu estado. E não se arrependeu. Ganhou o Ceará, que foi badalado durante um bom tempo, e ganhou a própria Imperatriz, que conquistou o bi. Em março, várias outras concorrentes do Grupo Especial puseram o pé na estrada. (...) Ninguém arrumou nada. À exceção da Imperatriz, todas as outras escolas estão na expectativa, torcendo para que governadores, prefeitos e empresários levantem o polegar. Mas, pelo andar da carruagem, está difícil. Embora a Liga Independente ainda não tenha uma previsão, a divisão de direitos de venda dos ingressos, transmissão de TV e merchandising, não deverá render menos do que R$ 400 mil a cada escola. Mas os gastos com alegorias e fantasias destinadas às alas vestidas pelas agremiações (baianas, bateria, comissão de frente e comunidade), dentro dos atuais níveis de disputa, exigem o dobro deste montante, pelo menos. Como os ensaios nas quadras não têm rendido muito, o jeito é recorrer aos patrocinadores. (...)
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Enquanto a maioria das escolas de samba se espalhou pelo país, outras arriscaram projetos mais ousados, por mares nunca navegados. A Imperatriz acertou na mosca, novamente. Aproveitou as comemorações do primeiro milênio da Áustria para assegurar um belo patrocínio e, de lambujem, contar a história de Dona Leopoldina, a princesa austríaca que casou-se com D. Pedro I, tornando-se imperatriz do Brasil”. (VIEIRA, 1996)
Os desacertos enfrentados pelas escolas de samba nos primeiros anos de busca por patrocínio foram, pouco a pouco, sendo substituídos por acordos mais profissionais com os interessados em investir no carnaval. Os contratos firmados com o poder público se expandiram e chegaram às empresas. Nos carnavais seguintes, não apenas governos apoiaram financeiramente escolas de samba em troca de visibilidade, mas também grandes companhias, como Varig, Tam e Vale do Rio Doce. Uma prova da expansão na área dos patrocínios foi o advento da figura do corretor de enredos ou captador de recursos, profissional encarregado de negociar o enredo com empresas interessadas em patrocinar o desfile. Em troca do acerto, o captador recebe um percentual do valor acordado pelas partes envolvidas na transação. A forma de atuação do captador de recursos, no entanto, acabou sendo desvirtuada e, nos últimos carnavais, muitos se associaram previamente a carnavalescos. Desta forma, segundo nos conta o carnavalesco Milton Cunha, os corretores de enredos vinculam o patrocínio conseguido ao profissional que desenvolverá o carnaval na escola. “Eu estou detestando essas figuras que estão vendendo enredos por aí, esses chamados captadores. (...) Estes captadores de recursos já estão se associando a carnavalescos e eles sempre vendem a dobradinha. Ah! Tem que ser este o carnavalesco. Quer dizer, até isso... É meio uma prostituição. (...) Porque cada escola tem um perfil, cada escola tem um carnavalesco que tem a sua cara. Então, você não pode impingir um carnavalesco, um artista a uma escola por ter dinheiro. Então, eu acho que cabe aos presidentes das escolas peitarem estes captadores de recursos”. (CUNHA, 2003)
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Apesar das fortes reações aos enredos patrocinados, oriundas de alguns setores do carnaval, a parceria entre escolas de samba e empresas parece estar em pleno desenvolvimento. O motivo para a ascensão do movimento é simples: tem agradado aos dois lados envolvidos na negociação. A satisfação é garantida principalmente pela já citada aproximação do modelo de administração das escolas de samba ao modelo empresarial, o que torna a negociação das agremiações com grandes companhias interessadas em investir em carnaval igual a qualquer outro contrato firmado entre empresas. Com a facilidade de negociação garantida, as escolas de samba tornaram-se excelente espaço de mídia. Assim como investem em campanhas publicitárias para divulgar seus produtos, as empresas passaram a buscar o carnaval para o mesmo fim. A partir daí, as escolas de samba dão um salto dentro da sua escalada de aproximação dos meios de comunicação de massa. Se, em um primeiro momento, sobreviveram graças a eles e tiveram sua história ordenada por sua lógica, e, posteriormente, tornaram-se garantia de acesso para os que queriam chegar à mídia, com o advento dos enredos patrocinados as escolas de samba transformam-se no próprio meio de comunicação. Hoje, o carnaval carioca é também espaço de mídia. Uma prova desta nova etapa da relação das escolas de samba cariocas com os meios de comunicação é o aprimoramento das formas de patrocínio apresentadas em desfile. A tendência que se anunciava há alguns anos, que transformou a apresentação das escolas de samba em um passeio pelos estados e cidades do Brasil, parece já ultrapassada para as grandes agremiações do carnaval carioca31. A oportunidade de divulgar seu produto através do carnaval, em substituição ou complemento às campanhas veiculadas através de espaço publicitário tradicional, tem atraído diferentes segmentos. O formato de patrocínio primitivo, entre escolas e administrações púbicas – muitas vezes mal sucedido tanto sob o aspecto do cumprimento do acordo financeiro firmado entre as partes envolvidas quanto no que diz respeito ao desenvolvimento temático – se aperfeiçoou. Os montantes investidos pelas empresas nas escolas de samba cresceram e a imposição temática do patrocinador se disfarçou sob uma ótica mais carnavalesca. O
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A tendência ainda se mostra bastante presente entre as escolas de samba dos grupos de acesso. No carnaval de 2003, das 12 escolas do grupo de acesso A, quatro foram patrocinadas por administrações públicas, inclusive a campeã do grupo, São Clemente.
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patrocínio passou a ser mais do que simples fonte de renda para escolas de samba. Transformou-se em marca de status.
O patrocínio que vale
Talvez o melhor exemplo desta nova forma de patrocínio tenha sido o acordo firmado entre a Companhia Vale do Rio Doce e a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, no carnaval de 2003. A agremiação do município de Duque de Caxias recebeu R$ 2,5 milhões32 da Vale do Rio Doce para desenvolver enredo sobre mineração. A ajuda de custo para a escola de samba foi apenas parte da política de marketing utilizada pela segunda maior empresa brasileira tendo o carnaval carioca como base. Além de patrocinar o enredo O Nosso Brasil que Vale, desenvolvido pelo carnavalesco Joãosinho Trinta, a Vale do Rio Doce comprou todos os camarotes do setor 9 da Passarela do Samba – 450 metros quadrados e capacidade para trezentas pessoas –, além de dez frisas no mesmo setor (apenas para o domingo de carnaval, dia do desfile da Grande Rio), com entrada exclusiva. Como a adesão dos convidados estrangeiros superou a expectativa da comissão organizadora do evento, a empresa teve que arrematar o camarote do governo do Estado, leiloado pela governadora Rosinha Matheus. Para os cem empregados da empresa e seus respectivos acompanhantes que vieram de todo o Brasil participar do desfile da Grande Rio, a Vale do Rio Doce ofereceu entradas para a arquibancada do setor 9. A empresa, que também bancou passagem aérea, hospedagem e transporte até o Sambódromo, preparou 22 tipos de pacotes de programações diferentes para seus 1.070 convidados. A mais completa incluiu quatro dias de hospedagem no Rio de Janeiro no Hotel Sofitel, jantar no sábado de carnaval no Forte de Copacabana, almoço comemorativo, na segunda-feira de carnaval, e visita ao Porto de Tubarão, em Vitória, e jantar de encerramento, na terça-feira de carnaval, além do convite para o camarote da Vale do Rio Doce, na Marquês de Sapucaí, e disponibilização de fantasias em quatro alas da Acadêmicos do Grande Rio.
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Valor divulgado pela matéria Samba se vira sem patrocínio, publicada em 26/02/2003, no Jornal do Brasil. Segundo matéria Vale do Rio Doce Compra Camarotes de um Setor Inteiro, veiculada pelo site de notícias Globo On line no dia 3 de fevereiro, o patrocínio da Vale do Rio Doce foi de R$ 2 milhões. Em entrevista à
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Além dos convidados estrangeiros, a CVRD aproveitou sua participação no carnaval para desenvolver uma campanha fortíssima de marketing interno. A empresa promoveu um concurso entre seus funcionários para eleger os cem empregados de todo o Brasil que iriam desfilar na Grande Rio e representar a Vale na Sapucaí, como conta o gerente de Marketing Institucional da empresa, João Lara. “Foi uma loucura. Começou os empregados contra. A divulgação aconteceu pela mídia em junho, que era época de negociação coletiva. Então, naturalmente nesta época os ânimos ficam acirrados, os empregados questionando por que a empresa estava gastando dinheiro no carnaval, em vez de reverter estes recursos em benefícios e facilidades. (...) Cada gerente da área de Comunicação viajou, foi para as áreas operacionais divulgar, explicar o que era o projeto carnaval, que não era um projeto isolado, que fazia parte de um projeto maior de reposicionamento de marca. (...) E conseguimos vender isso e quando começou a campanha para os cem empregados, o que a gente decidiu fazer? Cada unidade operacional da Vale vai ter um determinado número de fantasias de acordo com o número de empregados. E esses empregados serão escolhidos pelo voto direto. Então, isso permitiu campanhas, permitiu concursos, permitiu todo tipo de ação que envolveu a empresa aí, durante trinta, quarenta dias, em carnaval. A pessoa chegava no restaurante para almoçar, tinha alguém na porta sambando com um cartaz ‘Vote em mim para ir ao Rio representar Itabira’. A menina veio para o Rio, foi a um ensaio da Grande Rio, tirou uma foto com o Joãosinho Trinta, mandou fazer uma camiseta: ‘Joãosinho me quer na Sapucaí. Vote em mim’. E assim por diante. Altamente criativos, altamente bem feitos, e envolvendo um número enorme de empregados. Isso acabou revertendo essa resistência inicial para apoio total”. (LARA, 2003)
Com relação ao público externo, a campanha da Vale do Rio Doce para o carnaval envolveu seis anúncios de quatro páginas na revista Veja – usando como garotos-
autora, concedida em 04/06/2003, o gerente de Marketing Institucional da Companhia Vale do Rio Doce, João Lara, confirmou que o patrocínio à escola de samba Grande Rio foi de R$ 2,5 milhões.
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propaganda funcionários da empresa e estrelas da escola de samba Grande Rio, como o carnavalesco Joãosinho Trinta, o puxador Vander Pires e o mestre de bateria Odilon – quatro filmes de trinta segundos veiculados na Rede Globo de Televisão, faixas para avião, front-light no aeroporto e broadside. Como também foi patrocinadora da Liesa, a Vale inseriu sua logomarca nos 210 mil ingressos e credenciais do carnaval carioca de 2003.
Personalidades da escola de samba Grande Rio e funcionários da Vale: garotospropaganda da empresa na campanha publicitária veiculada pela revista Veja antes e durante o carnaval de 2003 O investimento total da CRVD no carnaval permanece nebuloso. De acordo com matérias publicadas na época do carnaval, os custos da ação publicitária da Vale teriam somado R$ 6 milhões33. Já a publicitária Renata Mondelo, integrante do setor de Atendimento da Companhia Vale do Rio Doce, em sua entrevista a este trabalho, afirma que as cifras do projeto chegaram a R$ 8 milhões. Embora não tenha precisado o valor exato do investimento, João Lara afirmou, também em entrevista à autora, que o montante gasto no carnaval suplantou as cifras divulgadas pelos jornais. “Olha, eu prefiro não falar nisso, mas foi um pouco mais de R$ 6 milhões. Porque R$ 6 milhões... A gente planejou R$ 6 milhões, né? Nós demos R$ 2,5 para a escola e o resto seria para custear os outros aspectos
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Informações publicadas nas matérias Os bons Negócios feitos em Ritmo de Samba, de Erica Ribeiro, publicada no jornal O Globo de 27 de fevereiro de 2003, e Vale do Rio Doce Compra Camarotes de um Setor Inteiro, veiculada pelo site de notícias Globo On line no dia 3 de fevereiro.
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do projeto. Mas o projeto começou a entusiasmar tanto a empresa, tanto, tanto, que a gente foi aumentando, a gente foi agregando novos programas, novas ações dentro do projeto e com isso ele cresceu”. (Ibid.)
Campanha interna de marketing da Vale do Rio Doce: funcionários mobilizados para ganhar fantasias para o desfile da Grande Rio (FOTOS 11, 12, 13 e 14) Cartaz elaborado
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pelo setor de marketing da empresa convoca funcionários para o concurso interno (FOTO 15) Além de representar um montante investido bem superior às quantias acertadas nos primeiros anos de patrocínio, a parceria entre a Vale do Rio Doce e a escola de samba Grande Rio apresenta outros pontos de diferenciação em relação aos contratos de patrocínio firmados até então: pela primeira vez, a parceria com uma escola de samba é utilizada por empresa de uma forma tão ampla. A troca de apoio financeiro pelo enredo foi apenas um braço da campanha de marketing da empresa, que tinha como principal objetivo reposicionar a marca Vale do Rio Doce no mercado. A idéia de se associar ao carnaval carioca para modificar sua imagem no mercado nasceu depois que a empresa realizou uma ampla pesquisa com seus públicos de interesse. O resultado colhido pela pesquisa mostrou que, apesar de conhecida e respeitada, a Vale do Rio Doce não era uma empresa querida, como conta Renata Mondelo: “Ninguém sabe o que é uma mineradora e confundiam muito a gente com a CSN, com a siderurgia. (...) Nós somos a maior empresa brasileira, junto com a Petrobras, então, somos motivo de orgulho, sim, e a gente tem que fazer o brasileiro sentir orgulho da gente, porque ele não sentia. Na pesquisa que a gente fez ele não seria capaz de defender a Vale, e ele mesmo colocou isso na pesquisa, porque eu não conheço a Vale do Rio Doce. Como é que eu vou defender uma coisa que eu não conheço? Então, começamos por aí. A Vale queria ser motivo de orgulho para os brasileiros”. (MONDELO, 2003)
Para reverter esta imagem, o setor de Comunicação cogitou várias estratégias de marketing, como investir na festa de reveillon de Copacabana. A opção por associar a imagem da CVRD ao carnaval como forma de popularizar a empresa gerou forte resistência da maioria dos setores da Vale. “A gente teve muita crítica. ‘Por que a Vale está inventando de patrocinar o carnaval? Associar a Vale a bumbum, a jogo do bicho?’”.
(Ibid.)
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“A Vale é uma empresa conservadora. Foi preciso três abordagens, vamos dizer assim, junto à diretoria para conseguir passar.”(LARA, 2003)
Para convencer a empresa de que o carnaval seria o melhor momento para se iniciar a estratégia de reposicionamento da marca Vale do Rio Doce no mercado, o setor de Comunicação solicitou textos ao pesquisador de MBP Ricardo Cravo Albim e ao antropólogo Roberto Da Matta sobre a importância do carnaval e do samba para a sociedade brasileira. “Antes de levar o assunto à diretoria, nós consultamos dois grandes especialistas brasileiros em cultura popular. Pedimos pareceres para o Ricardo Cravo Albim e pro Roberto Da Matta, para saber o que é que eles achavam de uma empresa com o perfil da Vale estar patrocinando o carnaval. E os dois foram unânimes em dizer que o carnaval é a mais legítima manifestação da cultura popular brasileira. A Vale é uma empresa eminentemente brasileira, que era um casamento perfeito, que isso poderia, eventualmente, consagrar a marca Vale”. (Ibid.) “A gente queria se associar aos atributos do carnaval. O carnaval é uma festa eminentemente brasileira, que tem valor lá fora. É reconhecido o nosso trabalho, nossa capacidade de realização. A gente foi vendo tudo que a gente se parecia. O carnaval é alegre, é bem aceito. A gente queria ser igual ao carnaval. A gente quer ser alegre, quer ser bem aceito”. (MONDELO, 2003)
Rejeitado por três vezes, o projeto foi finalmente aceito pela diretoria da CVDR. A se julgar pelo lucro e pela enorme repercussão que a parceria com a escola de samba alcançaram, a empresa parece realmente ter investido no campo certo. “Nós temos absoluta certeza [de que os investimentos no projeto foram revertidos para a empresa]. Primeiro porque todos os clientes, todos os formadores de opinião, todos os prospects queriam, adoraram o evento. Nós recebemos elogios lá, durante o evento, depois do evento, cartas. (...) Não só isso. Mas negócios mesmo foram fechados durante o carnaval. (...)
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Nós assinamos um contrato com uma empresa chinesa, no valor de US$ 200 milhões, se não me falha a memória, no domingo de carnaval. Então, a empresa considera que o retorno foi muito, muito positivo e o investimento plenamente justificado”. (LARA, 2003)
“Como o João34 falou, esse projeto foi apresentado quatro vezes. Ele foi gongado, gongado, gongado e aceito na quarta. A diretoria executiva e algumas áreas eram muito contra. Disseram que a gente estava gastando dinheiro à toa, que isso nunca seria revertido. No primeiro dia, o Roger35 fechou o contrato de US$ 200 milhões de dólares. (...) Depois, no dia seguinte, ele fechou outros. Mas isso aqui já paga tudo. É tudo. A gente gastou R$ 8 milhões e o contrato que ele fechou, além de tudo isso aqui, ele fecha um contrato de US$ 200 milhões. Então, Roger ficou encantado. Ele quer fazer carnaval todos os anos”. (MONDELO, 2003)
A estratégia de marketing adotada pela Companhia Vale do Rio Doce demonstra claramente que o enredo da escola de samba ocupa hoje espaço semelhante ao desempenhado
pelo
espaço
publicitário
tradicional,
comprovando,
portanto,
a
transformação do desfile em meio de comunicação. A escolha de personagens ligados à escola de samba para desempenhar a função de garotos-propaganda da empresa também comprova que os ganhos das escolas de samba com o patrocínio transcendem o apoio financeiro e aproximam o sambista do status buscado desde os primórdios das escolas de samba. A este comprovado símbolo de status conseguido através da parceria, o patrocínio trazido pela Vale do Rio Doce, assim como aconteceu nos pioneiros acordos firmados pela Imperatriz Leopoldinense, não foi impositivo quanto à forma de desenvolvimento do tema. Utilizando a mineração como base, o carnavalesco da Grande Rio conseguiu enaltecer seu patrocinador sem se prender exclusivamente a ele. A parte mais explícita da homenagem lembrou os programas ambientais da empresa e de defesa da cultura indígena. De acordo com João Lara, a interferência da empresa no desenvolvimento do enredo se restringiu a um único momento.
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Lara, gerente de Marketing Institucional da Companhia Vale do Rio Doce.
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“Nós participamos em um momento. O Joãosinho Trinta tinha colocado que a Vale, nos seus programas sociais, atuava em educação, cultura e esportes. A Vale não atua em esportes. Nós pedimos para ele tirar isso. Foi a única interferência da Vale no enredo”. (LARA, 2003)
Além do megaparceria desenvolvida entre a CVRD e a escola de samba Grande Rio, o desfile das escolas de samba no carnaval de 2003 apresentou outro curioso exemplo de patrocínio que demonstra a aproximação do espetáculo produzido pelas agremiações do espaço publicitário. Trata-se do acordo firmado entre a escola de samba Estação Primeira de Mangueira36 e a comunidade judaica. O diferencial deste convênio está no fato de o patrocinador não ser uma empresa ou administrador público. Neste caso, a motivação da ajuda de custo está em promover uma causa étnica. Este tipo de acordo, em cuja base está a promoção de uma ideologia, não é novidade no carnaval. Em 1993, a escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz recebeu colaborações do sindicato dos petroleiros para execução do enredo Quo Vadis – Meu Negro de Ouro, no grupo de acesso. Dois anos antes, a própria comunidade judaica deu ajuda de custo para a Unidos do Cabuçu, outra escola de samba do grupo de acesso, que em 1991 homenageou Adolfo Bloch com o enredo Aconteceu, Virou Manchete. O diferencial apresentado pelo acordo firmado entre a Mangueira e a comunidade judaica está no montante investido, bem superior às doações acertadas pelas escolas do grupo de acesso. Empresas da comunidade contribuíram com a escola, via Lei Rouanet, com R$ 800 mil para o desenvolvimento do enredo Os Dez Mandamentos: O Samba da Paz Canta a Saga da Liberdade. Em troca, “encomendaram” um desfile que tratasse da busca dos povos pela paz, o que se constitui em outro ponto curioso da parceria. O desfile apresentou um enredo com pouquíssimas referências explícitas ao seu patrocinador. Os patrocínios acertados pelas escolas de samba Grande Rio e Mangueira no carnaval de 2003 demonstram uma clara e veloz evolução em relação aos acordos firmados na década passada. O carnavalesco Milton Cunha, que fez ressalvas aos enredos patrocinados em entrevista a este trabalho, destacou a parceria da Vale do Rio Doce com a Grande Rio como um exemplo a ser seguido no carnaval carioca: 35 36
Agnelli, presidente da Companhia Vale do Rio Doce. Em 2003, conquistou o vice-campeonato entre as escolas de samba do grupo especial.
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“A guinada da Vale do Rio Doce parece ser uma divisora de águas. Porque uma empresa interessante, um enredo interessante, a mineração, as riquezas do país, tudo muito interessante. E além da dinheirama da escola investida, fez-se uma entourage de Marquês de Sapucaí deslumbrante. Ou seja, a Vale do Rio Doce abre portas para que outras empresas percebam o poder de divulgação disso. (...) É todo um projeto muito bem elaborado de visibilidade internacional. Quer dizer, trazendo os diretores das grandes multinacionais que compram da Vale, e apresentando a estes senhores um espetáculo popular vibrante, a empresa capta prestígio cultural, né? Que não é prestígio comercial, porque eles podiam ter pego esses seis milhões e ter dado para cada diretor desse internacional um presente de duzentos mil reais. Só que eles não agregariam o valor do espetáculo cultural de um povo. Porque aquilo é impagável. Quando esses gringos viram aquela gente terceiro-mundista dançando e cantando como reis, algo muda na cabeça desses empresários internacionais. E para sempre eles vão carregar o convite da Vale do Rio Doce em sua cabeça. (...) É uma forma de você ganhar o cliente, e isso é comércio puro, mas você ganha o cliente através do toque de emoção. Então, me parece ser esta a visão boa do diretor de marketing do terceiro milênio”. (CUNHA, 2003)
De fato, o acordo firmado entre a CVDR e a escola de samba Grande Rio aponta para uma nova perspectiva de negociação entre as agremiações e seus patrocinadores. As escolas de samba parecem estar mais conscientes de seu poder de divulgação e de sua nova função, próxima à dos meios de comunicação, que se traduzem em uma situação mais igualitária na hora das negociações com eventuais patrocinadores.
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CAPÍTULO 3 Uma questão de ponto de vista O desfile das escolas de samba é resultado da atuação de muitas forças distintas. Ao ver uma escola se apresentando, o público, muitas vezes, não tem dimensão do número de variáveis presentes naquele espetáculo. A começar pela gama de profissionais envolvidos na preparação do desfile, realidade retratada pelo compositor Martinho da Vila, em um antigo samba-enredo da Unidos da Vila Isabel: “São escultores, são pintores, bordadeiras/ São carpinteiros, vidraceiros, costureiras/ Figurinista, desenhista e artesão/ Gente empenhada em construir a ilusão.37” Os interesses, tanto de quem faz a festa como de quem a admira, são muitos. Para se ter um exemplo de como o corpo de uma escola de samba pode abrigar muitos sentidos, imaginemos um fictício grupo de cinco admiradores do espetáculo produzido pelas escolas de samba do Rio de Janeiro e de sua vida social. O primeiro freqüenta as quadras de ensaio e os desfiles por ser fã ardoroso do gênero samba-enredo. A ele interessam os concursos de samba-enredo, promovidos todos os anos pelas escolas de samba para a escolha do hino oficial da agremiação, a riqueza das melodias e a originalidade das letras. Para o nosso segundo fã fictício, o fator de atração de uma escola de samba é a sua bateria. A peculiaridade da marcação de cada escola, o solo dos repiniques, o naipe dos tamborins, o vigor dos surdos e o improviso dos taróis fazem com que nosso personagem dedique parte de suas horas de lazer às escolas de samba. Já para o nosso terceiro admirador das escolas de samba, o grande ponto de interesse está no samba como dança. É a ginga e o improviso dos passistas, as rebuscadas coreografias das comissões de frente e a leveza, a graça, a imponência e o jogo-de-cena dos casais de mestre-sala e porta-bandeira que o fazem acompanhar com fervor cada ensaio e cada desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. A riqueza das fantasias, o luxo e a originalidade dos carros alegóricos e o bom gosto dos adereços são os grandes mobilizadores de atenção do nosso quarto personagem. Para ele, mais importante do que o canto e a dança em uma escola de samba é o seu aspecto 37
Versos do samba Pra Tudo se Acabar na Quarta-feira, de Martinho da Vila, apresentado pela escola de samba Unidos de Vila Isabel, em 1984.
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visual. O bom trabalho desenvolvido por um carnavalesco é capaz de emocioná-lo. Tão importante quanto ver o resultado plástico da escola na avenida é acompanhar o processo de criação do carnavalesco, através das festas de apresentação de protótipos38 e o trabalho nos barracões. Por fim, a vida social e política de uma agremiação é o que realmente interessa ao nosso quinto fã das escolas de samba cariocas. Para ele, fundamental é acompanhar as festas e eventos sociais promovidos pelas escolas e sua vida política, incluindo aí o processo eleitoral de cada agremiação. O desfile propriamente dito é apenas um reflexo e uma conseqüência das atividades desenvolvidas no resto ano. Os bastidores da festa são sua verdadeira paixão. Por abrigar em sua estrutura gostos e interesses tão diversos, as escolas de samba apresentam uma tensão estrutural. A melhor forma de atender a tantas demandas talvez seja um de seus maiores desafios. Se algum dos pontos de vista acima citados – e ainda há muitos outros presentes no corpo de uma escola de samba – predominar sobre os outros, o espetáculo sem dúvida sairá perdendo. Esta regra pode ser transposta aos três momentos escolhidos para análise neste trabalho: a transmissão televisiva do espetáculo, a construção do Sambódromo e os enredos patrocinados. Para melhor dimensionar os pontos de conflito existentes nessas três conjunturas da história das escolas de samba, e de que forma elas têm buscado equacionálos de modo a que haja equilíbrio de forças, analisaremos, neste capítulo, o discurso e os interesses de quatro vozes construtoras do espetáculo. Os depoimentos apresentados a seguir são de representantes das quatro forças mais diretamente influentes e afetadas pelas mudanças ocasionadas pela mídia, a saber: os dirigentes das escolas de samba, os carnavalescos, a televisão e os patrocinadores. É claro que seus discursos nem sempre traduzem a opinião uníssona da classe que representam. No entanto, ouvir o que têm a dizer sobre os três capítulos da trajetória das escolas de samba escolhidos para análise neste trabalho talvez seja a forma mais fiel de compreender que forças atuam na construção do espetáculo. 38
As festas de apresentação dos protótipos tornaram-se, nos últimos anos, parte do calendário anual das escolas de samba. Neste encontro, o carnavalesco da agremiação prepara um desfile com um modelo de cada fantasia de todas as alas que levará para a Avenida, além dos figurinos da ala de baianas, das crianças, bateria e passistas. Em geral, os protótipos das fantasias de comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira, destaques e composições não são apresentados na festa, para não acabar com a surpresa do dia do desfile.
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Para representar os dirigentes das escolas de samba, analisaremos os aspectos levantados pela presidente da escola de samba Império Serrano. Neide Coimbra está em seu segundo mandato à frente da agremiação. Antes de ocupar o principal cargo executivo da escola, a presidente foi destaque do Império Serrano e teve funções administrativas em todas as diretorias da escola desde 1969, com exceção dos anos 1990, 1991e 1992. O depoimento do carnavalesco Milton Cunha será a voz de sua classe na defesa de pontos de vista que se apresentarão neste capítulo. O primeiro trabalho de Milton Cunha como carnavalesco foi na escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, em 1994. Também desenvolveu carnavais na União da Ilha do Governador e na Unidos da Tijuca. No ano que vem, fará sua estréia na São Clemente. Para melhor compreendermos os interesses da TV com relação às escolas de samba e a dimensão que possuem do espetáculo, analisaremos o depoimento do editor de imagens Marcelo Legey, há seis anos responsável pelas imagens transmitidas pela Rede Globo de Televisão durante o desfile das escolas de samba. Economista de formação, Legey trabalha há 23 anos em televisão, sendo 21 deles na TV Globo. Os depoimentos da publicitária Renata Mondelo e do gerente de Marketing Institucional da Companhia Vale do Rio Doce João Lara serão apresentados como a análise do patrocinador em relação ao desfile das escolas de samba. A dupla esteve à frente do projeto de patrocínio que a Companhia Vale do Rio Doce desenvolveu com a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio no carnaval deste ano. A escolha dos entrevistados para este trabalho obedeceu a diferentes critérios. Com relação aos dois representantes das escolas de samba – Neide Coimbra e Milton Cunha –, foram levados em conta depoimentos previamente dados por eles aos jornais sobre os temas de interesse para o trabalho. Para analisar o discurso da TV em relação ao espetáculo, a opção pelo depoimento do responsável pela edição de imagens, em detrimento de outros profissionais envolvidos na transmissão, foi feita por acreditar que o real foco de interesse do trabalho é a análise do produto visual final veiculado pela televisão. Por fim, com relação à escolha do discurso dos patrocinadores, o caso Vale do Rio Doce mostrou, até o momento, ter sido a mais completa parceria entre empresa e escola de samba já apresentada no carnaval carioca, conforme explicitado no capítulo anterior.
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O diálogo entre os depoimentos que se apresentará a seguir obedecerá à mesma divisão temática do capítulo anterior: transmissão televisiva dos desfiles, construção do Sambódromo e enredos patrocinados. A íntegra das entrevistas concedidas à autora encontra-se no fim deste trabalho, em anexo.
A transmissão dos desfiles
Conforme vimos no capítulo anterior, a transmissão do desfile das escolas de samba representou a busca de uma nova linguagem tanto para a televisão, que teve de se adaptar às peculiaridades do espetáculo, quanto para as agremiações, que, pouco a pouco, foram incluindo em seu corpo modificações para se tornarem mais atraentes ao veículo. A preocupação em encontrar uma fórmula para a transmissão é explicitada pelo editor de imagens Marcelo Legey em sua entrevista. Legey nos conta que nas transmissões primitivas era utilizado um modelo que em nada se preocupava em preservar a narrativa do enredo das escolas de samba. Esta fórmula, ou a ausência dela, perdurou até o início da década de 1990, aproximadamente, sendo substituída por uma transmissão que mescla imagens livremente registradas do desfile, em um primeiro momento, com cenas que retransmitam ao espectador a história de cada enredo em desfile. “Houve uma leitura, que hoje em dia, a gente aperfeiçoa. Nós, diretores de imagem, nós fazemos uma reunião, coisa e tal. De repente, a gente muda uma lente, uma câmera, mas a filosofia básica é a mesma”. (LEGEY, 2003) A adoção de uma fórmula específica para a transmissão, que atualmente divide o desfile em dois bloqueios, além de privilegiar o enredo narrado pela escola, facilita o trabalho do editor de imagens, que opera em uma noite um total de 18 câmeras ao vivo. Seis delas ficam concentradas no primeiro bloqueio. Das outras 12, há uma câmera virtual, que insere, a pedido do editor, imagens gráficas de animação no decorrer do desfile; uma câmera fixada em um morro no bairro de Santa Teresa, usada apenas para encerrar o desfile; uma câmera colocada em trilho, na extensão do setor 2, formado exclusivamente por camarotes; e uma câmera aérea, que faz tomadas de um helicóptero ou dirigível que sobrevoa a Passarela do Samba.
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“Então, esse segundo bloqueio você tem mais ou menos uma regra. Porque são muitas câmeras. Você trabalha com 18 câmeras hoje em dia. Então se você não tiver um mecanismo para trabalhar com elas, você se perde no meio delas. Então, você segue mais ou menos uma fórmula para chegar ao produto. Segue uma fórmula ali. (...) Então eu trabalho, por exemplo, seis câmeras estão no primeiro bloqueio. Então essas seis no segundo bloqueio eu já não olho mais. Então eu só vou trabalhar com 12 no segundo bloqueio. Dessas 12, eu tenho uma que é virtual”. (Ibid.)
Ao citar em sua entrevista o aparato técnico utilizado durante a transmissão do desfile, o editor de imagens frisa a dificuldade de se realizar o trabalho de levar a emoção da Avenida aos telespectadores. Além do número de câmeras e da imensa equipe – são 300 pessoas, entre montagem, cenografia, engenharia e produção – sob a batuta do diretor Aloísio Legey, irmão de Marcelo, as pressões por bons resultados são grandes. Muitos diretores da emissora desfilam em escolas de samba, além das estrelas da casa. Essas imagens não podem deixar de ser transmitidas. Para não deixar que a caracterização de uma maquiagem ou fantasia mais inusitada traia os olhos dos câmeras e editores de imagens, a equipe recebe previamente um croqui que destrincha o desfile que cada escola de samba apresentará e especifica quem serão seus principais destaques. A esta equipe responsável pelo que Legey chamou de “parte artística do desfile” somam-se os jornalistas que trabalham na Avenida, encarregados de levar ao telespectador todas as informações que envolvem o desfile. Se algum destaque passa mal, se um carro quebra, se a escola extrapola o tempo-limite determinado para o desfile, entra em cena a equipe de jornalismo. Apesar do grande número de profissionais envolvidos na transmissão e da declarada preocupação desta equipe de TV em manter a narrativa do enredo durante a transmissão, para os responsáveis pela parte artística do desfile, o esforço do trabalho não se traduz em visibilidade. O carnavalesco Milton Cunha não vê a fórmula criada para o segundo bloqueio transformar-se em realidade. Ao ser questionado sobre se pensava em algum momento no público que assistia ao desfile pela TV ao conceber um desfile, o carnavalesco respondeu:
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“Olha, não, não. Eu só penso lá ao vivo. (...) A transmissão, ela é tão lá deles que não teria... Só se eles desenvolvessem com a gente um trabalho de parceria. Pra gente compreender o que eles querem, como eles querem. Só que eu acho que aí a gente estaria invertendo as coisas. Porque eles têm que estar a nosso serviço. Eles que se virem para mostrar da melhor maneira possível e eles não têm conseguido. Porque eles picotam muito. Então, se você for ver a Unidos da Tijuca39 desse ano, o acidente da Neuza Borges40 fica em cena 20 minutos. E os carros não são mostrados. Então, eu nem penso na transmissão na hora em que eu estou fazendo. Eu só penso no ao vivo. Porque eu acho que é muito específica a linguagem da TV e os interesses da TV e o que eles querem mostrar. Eu não vejo neles grande preocupação em narrar a história: ala tal, ala tal, ala tal, ala tal, carro tal, ala tal... Não passa nessa seqüência, não passa. É picote. Então já que é picote deixa eu fazer o meu conjuntão completo ao vivo e o picote vai ser o picote. Porque se chove, se alguém cai do carro, muda tudo. Muda tudo, o teu enredo vai para o espaço. Se pega fogo no carro, vai tudo pro espaço. Então, seria muita ansiedade investir em uma coisa que já nasce perdedora. Não vai dar certo. Na hora eles vão mostrar... Se uma moça tira o biquíni só vai dar ela”. (CUNHA, 2003)
De fato, o editor de imagens da TV Globo admite que nem sempre consegue ser absolutamente fiel ao desenvolvimento do enredo da escola, apesar de esta ser a diretriz da direção do espetáculo. Para explicar a eventual perda de seqüência de desfile, Legey cita as falhas no andamento das próprias escolas. Um carro quebrado ou um acidente, como o mencionado pelo carnavalesco Milton Cunha, podem causar atropelos na transmissão. Diante destes transtornos e imprevistos, a TV se vale do recurso das imagens gerais do desfile, tomadas da câmera situada no trilho acima dos camarotes do setor 2 da Avenida ou do helicóptero, para retomar a seqüência do enredo em desfile. Para o telespectador, os contratempos das escolas representam a perda da seqüência lógica do desfile. 39
O carnavalesco foi o responsável pela criação e desenvolvimento do enredo Agudás, os que Levaram a África no Coração e Trouxeram para o Coração da África, o Brasil, apresentado pela escola no carnaval de 2003. A Unidos da Tijuca foi classificada em nono lugar no grupo especial. 40 A atriz Neuza Borges caiu de um dos carros alegóricos da Unidos da Tijuca durante o desfile da escola.
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“Aquela [câmera que fica presa ao trilho situado em cima dos camarotes do setor 2 da Passarela do Samba] eu uso durante [o desfile] . Principalmente quando a escola começa a correr demais e aí você começa a perder o controle da escola. E acontece de a gente perder o controle da escola. Acontece de a gente perder o controle da escola às vezes... Aí eu entro com aquela câmera do trilho, que ela me dá uma passagem direta da Avenida. Ou a do helicóptero. Que me dá uma situação, me dá tempo para eu reorganizar as coisas e voltar a fazer a escola. Às vezes, a escola atrasa, começa a correr e você começa a perder o pique da historinha. Aí você pula uma ala, pula duas alas, que não vão fazer muita diferença... alas pequenininhas. Aí você vai para o carrinho, para dar o passeio na escola todinha, mostra a escola, coisa e tal, naquele trilho, ou no helicóptero, aí situa e vamos nessa de novo”. (LEGEY, 2003)
Legey é ainda mais explícito ao declarar que um desfile com incidentes resultará em um mau televisionamento, enquanto a escola que se apresentar sem percalços terá também melhores resultados pela TV. Além dos atropelos técnicos, o editor de imagens lembra que os imprevistos do desfile representam um desgaste para a equipe da emissora que se encontra na Avenida. “É mais fácil para a gente transmitir uma escola que ela venha regrada, ou seja, ela venha no mesmo tempo, ela venha no mesmo compasso sempre, sem buraco, sempre no mesmo ritmo. E aí você se acostuma naquele ritmo. Você vai pau, pau, pau, cortou pra cá, pra lá, pra cá, pra lá, pra lá, pra cá, e mostramos a escola. Aquela escola que vem nesse compasso, e de repente começa o diretor das alas a mandar andar, e começa a abrir espaço, buraco, aí corre pra cá, aí corre. E aí não dá pra gente mostrar direito. Daí a gente corta aqui, depois corta para o geral porque ela já correu, porque a escola tá correndo, aí corta para o geral aqui, o cara não dá para correr com aquela câmera andando atrás... A gente tá mostrando a passista, aí vem o diretor da escola e empurra a passista. Empurra o nosso câmera, porque não querem perder o tempo, porque senão eles perdem ponto no tempo da passagem da escola”. (LEGEY, 2003)
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O discurso técnico da TV e dos que participam da preparação do desfile também é dissonante quando o assunto é a presença de artistas e celebridades no carnaval carioca. Enquanto Legey defende uma transmissão mais voltada para o registro da presença dos famosos, Milton Cunha e Neide Coimbra queixam-se da falta de espaço destinada aos “verdadeiros” integrantes das escolas de samba. “Mostrar artistas, sim. Os destaques geralmente são artistas. Então nós mostramos. (...) Até que me provem o contrário, eu acho que a pessoa que está em casa quer ver a pessoa famosa. Eles não estão interessados naquele povo. Você vê a baiana. A baiana é um charme, é uma marca do carnaval. Aquela baiana rodando, coisa e tal. Mas você vê uma, viu todas. O artista não. O artista não. Cada coisa é uma coisa. Cada artista é um artista, independente da emissora que ele venha. Isso eu acho que o público está interessado”. (LEGEY, 2003)
Para os integrantes das escolas de samba, no entanto, falta espaço na mídia para as figuras que são da comunidade. Neide Coimbra, presidente do Império Serrano, e o carnavalesco Milton Cunha concordam que a transmissão deve dedicar mais tempo às personalidades das escolas que não freqüentam o espaço televisivo no resto do ano. O discurso de ambos converge para a idéia de que é justamente o desfile a grande oportunidade para os artistas do carnaval carioca estarem na mídia, conforme defende Neide Coimbra: “Você quer minha opinião verdadeira? Acho que os artistas da escola é a nossa comunidade, que está no dia-a-dia aqui. Esses artistas que só aparecem no carnaval para desfilar, para aparecer, esse negócio todo... (...) Eu acho que nossos artistas é nossa comunidade. São as pessoas que estão aí, que estão lutando pela escola. Não tô dizendo que sou contra [a presença de artistas]. Na televisão, você vê que não passa mais a comunidade, não passa mais a escola. Só passa artista, só modelo, só isso, só aquilo. Eu acho que não tem nada a ver”. (COIMBRA, 2003)
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O carnavalesco Milton Cunha entende, assim como Legey, que o público quer ver os artistas televisivos. No entanto, o carnavalesco pleiteia uma divisão de espaço mais uniforme entre este grupo e as estrelas ligadas às escolas de samba. Para Milton, esta seria a melhor forma de promover também as personalidades do carnaval e não apenas aqueles que já são conhecidos do grande público e, assim, libertar a cobertura carnavalesca do que classificou de círculo vicioso. “A cobertura é em cima do padrão global. A cobertura é Rede Globo. Então, quem está na mídia é quem a Globo elege para mostrar e vira um círculo vicioso. Porque o público, que não é alertado para a existência de legítimas mulheres através da cobertura, aplaude suas estrelas de televisão. Só que não percebe que no crivo de quem escolheu as imagens, o fotógrafo do jornal, o editor de imagens da televisão, não foi dado a ele a oportunidade de aplaudir uma segunda opção. Quer dizer... Claro! O público quer seus artistas. Só que se ao lado do artista nós equilibrarmos e mostrarmos sambistas que o público não conhece, mas que nós temos certeza de que ele aplaudirá. (...) Mas aí não dá tempo. Tem que fazer um critério de escolha. E entre a passista e a modette, sai a modette. Pelo menos que a mídia acordasse para a necessidade do equilíbrio. Não vamos pedir que eles ignorem os artistas, porque o público também quer ver seus ídolos, mas vamos tentar criar ídolos do carnaval. (...) E o público brasileiro ele é muito generoso, no sentido de que ele sabe que precisa aplaudir o povão. E eles aplaudiriam”. (CUNHA, 2003)
É interessante destacar que, apesar de concordarem que o público tem, sim, interesse em ver em desfile artistas já eleitos pela mídia, Legey e Milton Cunha discordam no que diz respeito à existência de espaço para outros ídolos, ligados exclusivamente às escolas de samba. Enquanto Legey afirma que o público não está interessado “naquele povo todo”(LEGEY, 2003), Milton aposta na generosidade do brasileiro ao defender “que ele sabe que precisa aplaudir o povão”. (CUNHA, 2003) O embate de idéias apresentado pelos dois personagens entrevistados para este trabalho recai sobre uma conhecida discussão do campo da comunicação social. Ao escolher a sua preferência, o público teria recebido todas as informações necessárias antes
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de fazer sua opção? Ou o universo apresentado ao público como possibilidade de escolha já teria sido restringido pelos meios de comunicação? Trata-se de um questionamento que não se aplica apenas ao universo de estudo deste trabalho. A idéia de que uma pré-seleção de informações comprometeria a escolha verdadeira do grande público está presente em muitas discussões ideológicas relacionadas aos meios de comunicação. Não existe uma resposta concreta e absoluta para esta questão e, ao tentar buscá-la, este trabalho poderia correr o risco de chegar a um veredicto simplista para o assunto. No entanto, parece-me claro que a queixa apresentada tanto pelo carnavalesco Milton Cunha quanto pela presidente do Império Serrano, Neide Coimbra – as duas personalidades ligadas às escolas de samba escolhidas para dar depoimentos sobre o papel da mídia nas escolas de samba para este trabalho – não pode ser ignorada. De fato, a mídia poderia abrir mais espaço em sua cobertura para o aparecimento de personalidades ligadas essencialmente ao trabalho apresentado no carnaval carioca. Uma prova de que o discurso de Milton Cunha e Neide Coimbra é pertinente e em nada excludente em relação à presença de artistas no desfile das escolas de samba é que ambos fazem ressalvas aos famosos que participam da vida social da agremiação fora do carnaval. Em seu depoimento, Neide Coimbra cobra dos artistas que desfilam no Império uma atuação mais presente na divulgação da escola. A presidente não poupa nem mesmo a compositora Dona Ivone Lara, tradicional integrante da escola. “Olha, a própria Dona Ivone Lara. Nós sabemos que ela é Império Serrano. Mas eu pergunto: o que ela faz pelo Império Serrano? Ela não faz nada. Ela não divulga. Ela não faz nada. Não é o caso do Jorginho do Império. O Jorginho em qualquer lado que ele chega ele fala em Império Serrano. A Dona Ivone não. A Dona Ivone ela canta os sambas do Império Serrano, mas dificilmente você vê ela falar do jeito que o Jorginho fala e do jeito que o Roberto Ribeiro falava. Então, nós sabemos que tem muitos artistas que dizem que são Império Serrano, mas você não vê, não comentam, não falam nada, entendeu? Então, não faço questão de convidálos. Eu, Neide, eu não faço”. (COIMBRA, 2003)
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Milton Cunha também acha que a relação entre artistas e escolas de samba deve ser equivalente no que diz respeito à divulgação na mídia. Nem as escolas de samba devem usar o artista para se promover nem o contrário deve ser aceito. “Se esses artistas freqüentarem as quadras, se esses artistas conhecerem a escola, eu acho louvável que eles emprestem sua notoriedade para a escola. Se eles usarem o lado contrário, a escola para a autopromoção e a auto-divulgação, tô fora. Não quero, não aceito, não permito. Acho muito legal você ter artistas que gostem da escola, que vivam da escola, que vão nos ensaios, que cumprimentem... Porque tem gente que só chega com seguranças, na hora, sobe, não fala com ninguém. E na verdade, a energia não é boa, não é de troca. Isso aí é só se utilizar do queijo, do lugar no carro para se exibir”. (CUNHA, 2003)
Esta relação de equivalência parece ser a tônica do discurso das escolas de samba sobre a participação televisiva no desfile. Ao cobrarem uma maior participação dos artistas na vida extra-desfile das escolas de samba e uma cobertura mais fiel da televisão, as agremiações demonstram ter extrema consciência do seu poder enquanto meio de divulgação. Mais do que isso, as escolas de samba mostram ter tomado consciência de que há muito tempo deixaram de ser simplesmente manifestação cultural para se tornarem produto extremamente interessante para os meios de comunicação.
O Sambódromo Resgatar a história da construção da Passarela do Samba e o que ela representou para o carnaval carioca não é tarefa das mais fáceis. Os livros dedicados às escolas de samba pouco falam deste capítulo da trajetória do carnaval do Rio de Janeiro. Por isso, para entender como a dupla Sambódromo-meios de comunicação atuou como modificadora do espetáculo foi preciso resgatar as matérias jornalísticas sobre o assunto publicadas à época de sua inauguração e rever as transmissões do desfile da extinta TV Manchete – a única responsável pelo trabalho no ano de 1984 – para recuperar o discurso dos comentaristas e dos envolvidos no carnaval daquele ano sobre o tema.
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Uma vez apresentado este material, parte do capítulo anterior deste trabalho, é preciso ouvir o que os envolvidos com o carnaval atual têm a dizer sobre o Sambódromo. Entre os entrevistados escolhidos pela autora, apenas a presidente do Império Serrano, Neide Coimbra, já participava profissionalmente da organização do desfile das escolas de escolas de samba à época da construção do Sambódromo. Neide confirma que a construção de uma passarela definitiva representou uma grande vitória para as escolas de samba. No entanto, deixa claro em seu depoimento que a Passarela do Samba não é o local mais adequado para a realização do desfile. “Eu acho que aquilo ali era um sonho das pessoas de carnaval, das escolas de samba, dos componentes. Acho que aquilo ali era um sonho. Ter uma passarela, um lugar para fazer o carnaval. Mas esse sonho foi bom enquanto durou, porque agora está pequeno. A realidade agora é que o carnaval cresceu muito e o Sambódromo ficou pequeno”. (COIMBRA, 2003)
Neide defende a transferência do desfile das escolas de samba para outro espaço. É interessante observar que a justificativa usada pela presidente em defesa da mudança de local para a apresentação das agremiações se baseia em argumentos mercadológicos prioritariamente. Neide Coimbra associa a grande procura de ingressos à ausência dos “verdadeiros sambistas” na passarela, que não poderiam pagar pelos ingressos o mesmo valor que é cobrado atualmente ao grande público. A solução para o impasse, no entanto, não passa pelo barateamento dos ingressos nem por uma possível restrição à presença de “não-sambistas” ao desfile. Para Neide Coimbra, está, sim, no aumento do número de arquibancadas, que garantiria lugar para todos. “Eu acho que ele [o desfile] teria que sair dali agora para uma coisa com mais conforto, maior. Você vê que rapidinho as pessoas querem comprar ingresso, ver as escolas. E outra coisa: teria que ter um local para os sambistas. Porque você tem muito sambista que não pode assistir, não vai. Então, teria que ser num outro lugar, que colocasse arquibancada para os sambistas... Porque você vê que o sambista fica... Quem pega
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arquibancada 1, tudo bem, mas quem pega lá atrás não vê nada41. Quer dizer, os donos do carnaval não têm direito de nada. Porque ali são os familiares das pessoas que estão desfilando. (...) Aí tem que ficar lá no setor 6, no setor 13... (...) Porque, olha, você vê muito turista. Nós passamos e fica tudo frio. Você passa ali naquela parte dos turistas, nossa, mas é frio demais! Para eles é um show. Eles ficam parados, olhando. E no desfile das escolas de samba nós precisamos do calor, calor humano das arquibancadas”. (COIMBRA, 2003)
Ao citar o excesso de turistas nas arquibancadas e relacioná-lo à falta de espaço e à ausência de sambistas na Passarela do Samba, a presidente Neide levanta um interessante ponto de discussão sobre o papel do público no espetáculo das escolas de samba: a participação da platéia tem extrema relevância no sucesso dos desfiles. Ao contrário de outros tipos de espetáculos, em que o público tem um desempenho mais passivo, na apresentação das escolas de samba a interação entre platéia e agremiação em desfile é vital para o seu êxito. Ao privilegiar a presença de pessoas com pouca familiaridade com as escolas de samba em detrimento dos “verdadeiros sambistas”, a organização do desfile retira do público o modelo de comportamento de platéia para este tipo de espetáculo. O público resultante desta ausência de mistura entre pessoas ligadas às escolas de samba e elementos alheios a elas aparece como problema também para o carnavalesco Milton Cunha. Ao ser perguntado sobre o que acha do Sambódromo, o carnavalesco declarou: “Acho distante, acho frio, acho longe... Acho longe. Vejo só pontos de alfinete, cabecinhas... Não muito animados... Não muito animados”(CUNHA, 2003) Embora a falta de animação da platéia seja constantemente citada como o principal resultado de um público formado quase que exclusivamente por pessoas com pouco ou nenhum envolvimento com as escolas de samba, talvez seu principal efeito seja justamente o inverso. Além de não vibrar com os desfiles, a platéia também perdeu o hábito de vaiar as escolas que considera ruins por não ter mais este modelo comportamental. Portanto, a frieza
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No Sambódromo, há três setores de arquibancadas vendidos a preços populares. O setor 1, que fica na área de concentração do desfile, foi comercializado no carnaval de 2003 por R$ 20. Já as arquibancadas 6 e 13, da Praça da Apoteose, que ficam no fim do desfile e são prejudicadas pelo recuo em relação aos demais setores,
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do público, apresentada como problema tanto por Milton Cunha quanto pela presidente do Império Serrano, não se caracteriza apenas pela falta de vibração com o bom desfile. O resultado de uma platéia homogênea, que não mistura pessoas ligadas e distantes do universo das escolas de samba, se constitui na falta de participação – seja ela de aprovação ou reprovação ao espetáculo que está sendo apresentado. As críticas ao Sambódromo não se encerram no comportamento da platéia que a nova passarela formou e passam também pelas questões técnicas. Marcelo Legey nos conta em sua entrevista que a estrutura técnica que a televisão utiliza é montada em sua totalidade pela Rede Globo de Televisão. Apesar da obrigação de importar todo o aparato necessário para a transmissão do desfile, Legey destaca que o fato de o Sambódromo ser um espaço fixo colabora para este trabalho. Para o editor de imagens, a marca arquitetônica criada por Niemeyer também é um ponto positivo do Sambódromo para a TV. “O Sambódromo, quer dizer, a estrutura da televisão, é praticamente feita por nós, não é feita pelo Sambódromo. O Sambódromo deixou um espaço para fazermos a nossa estrutura, que a TV Globo estrutura muito bem. (...) Nós fazemos realmente uma minicidade. Nós temos tudo ali. (...) Um lugar fixo, um lugar preparado, eu acho que foi uma boa idéia. No governo Brizola, eu não me lembro se a idéia foi realmente dele, mas aquilo de aproveitar para colégios, esse negócio todo. Eu achei uma ótima idéia. Porque você tem um lugar preparado para fazer o desfile da escola, um lugar marcante pela aquela arquitetura do Niemeyer, que você já posicionou”. (LEGEY, 2003)
Outras questões técnicas ligadas ao advento do Sambódromo foram levantadas pelos entrevistados deste trabalho. Em seu depoimento, o carnavalesco Milton Cunha fala das dificuldades de se trabalhar com a nova luz, que vem sendo instituída pela Riotur, em parceria com a TV, segundo nos conta o editor de imagens da Rede Globo de Televisão Marcelo Legey.
foram vendidas no último carnaval por R$ 5. Estas arquibancadas apresentam sérios problemas de visibilidade para seus freqüentadores, conforme descrito no capítulo anterior.
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“Não sei se você reparou, mas neste último ano a luz vem mudando com as cores da escola. Isso é uma concepção da direção geral. Ela está indo junto com as escolas fazer uma transformação do show. Transformar em mais show. (...) Isso é uma transformação até chegar ao produto final. Porque a televisão está evoluindo. Porque dentro de mais três, quatro, cinco anos, nós vamos estar com o HDTV, que é a televisão de high definition. Então, as coisas vão ser muito mais verdadeiras. Ou seja, o que você vai ver em casa é muito mais próximo da realidade. Você vai ter uma definição de imagem tão boa ou melhor do que a película. (...) Então, esta transformação é para chegarmos aí. E transformar isso em show. (...) Agora, as câmeras já têm uma sensibilidade de luz muito maior. Mas antigamente era muito menor essa sensibilidade de luz, a gente precisava trabalhar com muita luz branca. O chão é pintado de branco para refletir também a luz e dar mais ganho, também, de vídeo. Com HD a gente pode diminuir isso, transformar em show. (...) É um elemento a mais. Eles [os carnavalescos] vão trabalhar com luz, como alguns carros já trabalharam este ano, dentro dos carros”. (Ibid.)
Dentro do depoimento de Legey sobre a nova luz do Sambódromo, há que se destacar a justificativa apresentada pelo editor de imagens para a inovação: “Transformar o desfile em show. Transformar em mais show”. (Ibid.) Mais curioso ainda é que as escolas de samba não se opõem a esta tendência. As críticas feitas pelo carnavalesco Milton Cunha à nova luz não se aproximam de um discurso conservador, mas meramente técnico e artístico. “Eu acho que a intensidade do branco ainda não é boa. Na hora que eles acendem tudo, o nível de lux, de intensidade de luz, ainda é penumbra. Eu acho que eles têm que triplicar a quantidade de holofotes. O primeiro ano foi 90. Tava horrível. No segundo ano, subiu para 130. Não tá bom. O nível de branco batido não é bom”. (CUNHA, 2003)
A mesma tônica se repete nas críticas levantadas pelo carnavalesco ao som do Sambódromo, último ponto a ser levantado pelos entrevistados deste trabalho no que diz
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respeito às transformações trazidas para o desfile pela Passarela do Samba. Ao usar termos bastante mercadológicos para tratar do assunto – como investimentos e espetáculo – Milton Cunha se mostra afinado com a atual realidade industrial das escolas de samba. “Mas se eu não gosto da luz, eu odeio o som. Eu odeio o som! O som me descabela! Um espetáculo que depende do canto e aquele som que explode. Você viu esse ano? Explodiu o som logo no começo, quando ia abrir o espetáculo. Um horror! Então, se o nível de branco da luz ainda não me resolve, mas pelo menos ela não é tão trágica, a luz, quanto o som. O som precisa de investimentos urgentes”. (Ibid.)
Ao afastar novamente suas críticas ao Sambódromo, assim como no caso da transmissão da TV, do discurso conservador, os representantes das escolas de samba demonstram uma eficiente capacidade de diálogo com os elementos agregados ao carnaval carioca pela espetacularização do desfile. Suas reivindicações demonstram total consciência de que o desfile das escolas de samba, que sempre andou de braços dados com a mídia, transformou-se em produto da indústria cultural e que sua sobrevivência depende de que seja tratado e aprimorado como tal.
Os enredos patrocinados O ponto mais polêmico das relações das escolas de samba com a mídia desenvolvidas ao longo da história do carnaval carioca é, sem dúvida, o advento dos enredos patrocinados. A esta dificuldade causada pela sua inerente controvérsia, soma-se o fato de tratar-se de um fenômeno bastante recente e que, por isso, ainda se encontra em pleno desenvolvimento. Se já é difícil chegar a um consenso entre todos os envolvidos na preparação de um desfile com relação aos pontos já apresentados, o enredo patrocinado parece ser a questão mais distante de uma concordância de opiniões. Enquanto os dirigentes se queixam da falta de recursos para a realização de um desfile competitivo, os carnavalescos reagem à imposição temática dos patrocinadores que, por sua vez, não se mostram dispostos a investir nas escolas de samba sem ter como contrapartida o poder de decisão sobre os enredos. Neste jogo de interesses que parece estar
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longe do fim, não existe uma regra clara que defina até onde vão os direitos e deveres de cada um dos envolvidos na negociação. Ao que parece, como em qualquer outro tipo de negócio, o segredo para se chegar ao melhor resultado para os três principais núcleos envolvidos na transação é o poder de barganha e convencimento. A parceria mais bem-sucedida entre empresas e escolas de samba no que diz respeito a enredo patrocinado parece ter sido a acordada entre a Grande Rio e a Companhia Vale do Rio Doce no último carnaval, conforme descrito no capítulo anterior deste trabalho, o que mostra a possível aproximação de um final feliz para os conflitos criados em torno do tema. Este parece ter sido o primeiro caso em que todos os envolvidos na negociação se mostraram satisfeitos com o resultado do acordo. Para a escola de samba, a parceria com a CVDR representou um acréscimo de receita de R$ 2,5 milhões, o status de ter seu nome vinculado ao de uma grande empresa e a melhor colocação de sua história 42. Já o carnavalesco da agremiação, Joãosinho Trinta, teve a chance de desenvolver um enredo que há tempos estava nos seus planos, com uma verba muito superior à das demais escolas concorrentes, graças ao acordo de patrocínio. A Vale do Rio Doce, por sua vez, obteve êxito total com o seu plano de marketing. Além de reposicionar sua marca no mercado, a empresa lucrou, graças ao projeto carnaval, mais de US$ 200 milhões, com um investimento de aproximadamente R$ 8 milhões43. Esta satisfação para todos os envolvidos na transação, no entanto, não é a regra das negociações que envolvem o patrocínio de enredo. Os principais prejudicados neste tipo de acordo parecem ser os carnavalescos, que são obrigados, na maioria das vezes, a desenvolver enredos que não foram criados por eles. Avesso à imposição temática do patrocinador, o carnavalesco Milton Cunha afirma que é possível conseguir apoio financeiro de empresas, sem, necessariamente, desenvolver um enredo estipulado por elas. “Eu sempre fiz o caminho inverso. A partir da escolha do enredo que eu considero de relevância cultural, eu saio à cata de patrocinadores. 42
A Grande Rio conquistou o terceiro lugar entre as escolas de samba do Grupo Especial. Pela primeira vez, se apresentou no desfile das campeãs, que reúne as seis escolas mais bem-colocadas no sábado seguinte ao carnaval. 43 Segundo a publicitária Renata Mondelo, da CVRD, as matérias espontâneas publicadas em jornais geradas pelo desfile da Grande Rio representariam um investimento da empresa de R$ 38 milhões em espaço pago.
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Tenho encontrado alguns. O enredo mais bem-sucedido em relação a patrocínio foi O Mundo da Língua Portuguesa44, quando nós conseguimos captar, através da Lei Rouanet, em Furnas. Furnas nos deu 500 mil reais. Nós conseguimos captar com a Tap, Transportes Aéreos Portugueses, 200 mil dólares. E nós conseguimos captar com um dono de cassinos em Portugal e em Macau. (...) Então, eu juntei o útil ao agradável. Eu consegui captar e... Agora, eu jamais faria um enredo que partisse do inverso. Milton, tome R$ 2 milhões e faça Vera Loyola. Não quero. Obrigado. A Vera Loyola que vá cantar em outra freguesia. Porque eu só me interesso pelas coisas que façam a minha cabeça. Então, eu preciso ser movido pela informação de cultura. Eu acho que os patrocinadores têm que compreender que associando seu nome ao de uma escola de samba com um grande enredo, aí sim eles vão estar ajudando o carnaval a se manter. Porque eu acho que se o patrocinador que tem o dinheiro se meter na parte artística ele está sendo o túmulo da festa. (...) Então, agora, hoje, eu decidi então fazer este ano O Boi Voador Sobre o Recife45. A partir disso, eu preparo um projeto, ligo para o governador de Pernambuco, marco uma hora, e vou até ele captar recursos. E com isso eu me sinto mais forte para enfrentar o patrocinador, porque eu decidi a importância cultural deste produto a ser patrocinado. Então, eu acho que a escola de samba tem que encontrar um equilíbrio entre captação de dinheiro e relevância cultural. Eu acho que se essa balança pesar para o lado do dinheiro a festa perde. Eu acho que a festa perde muito. Porque o mecenato ele é bonito quando ele está a serviço do artista, da cultura. Agora, o mecenato que quer se autodivulgar, se autopromover... Isso não é mecenato. (...) Porque isso vai virar um mercado. Isso vai virar um produto. É uma lata de sardinha... É o enredo. Você compra. Você paga”. (Ibid.)
Se para os carnavalescos o ideal seria um mecenato livre da imposição temática, os patrocinadores ainda parecem reticentes em investir cifras significativas sem ter como 44
O carnavalesco refere-se ao enredo O Sol Brilha Eternamente Sobre o Mundo de Língua Portuguesa, de sua autoria, apresentado pela escola de samba Unidos da Tijuca, em 2002. A escola ficou classificada em 10º lugar no grupo especial. 45 O Boi Voador Sobre o Recife: Cordel da Galhofa Nacional é o título do enredo que o carnavalesco está desenvolvendo na escola de samba São Clemente, para o carnaval de 2004.
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retorno um enredo-exaltação. Mesmo no bem-sucedido acordo da CVRD com a Grande Rio, a empresa, através do depoimento de seu gerente de Marketing Institucional, João Lara, não afirmou se teria interesse em ajudar financeiramente uma escola que não apresentasse um enredo com referências à mineração:“Olha, eu não sei. A impressão que eu tenho, quer dizer, a certeza que eu tenho é que teria que ter uma ligação muito forte com alguma atividade da empresa. Mineração é a nossa principal atividade. Então, você falar de mineração a princípio interessa para a Vale”. (LARA, 2003) O mais curioso é que a palavra final na negociação entre carnavalescos e patrocinadores é dada por um terceiro personagem envolvido na questão. É o dirigente quem escolhe o enredo a ser desenvolvido por sua escola e decide se aceitará ou não a imposição do patrocinador. A julgar pela entrevista concedida pela presidente do Império Serrano, Neide Coimbra, a dificuldade financeira de se levar uma escola para a Avenida acaba pesando na decisão. “Para se conquistar um título hoje está muito difícil. Uma escola do porte da nossa, não é que a gente não possa. Em matéria de samba no pé, samba raiz, isso tudo nós temos. Então, uma coisa que nós não temos. nós não temos patrocínio. Nós não temos uma pessoa que nos ajude em nada. Nada, nada. Então isso fica difícil. Por quê? Você quer fazer uma coisa, mas custa tão caro que não dá. O dinheiro que você tem não dá. Você não pode receber R$ 1,3 milhão e fazer um carnaval de R$ 3 milhões, R$ 4 milhões, que é o que está acontecendo por aí. (...) Porque existe um ditado muito certo que diz que dinheiro atrai dinheiro. Então, por exemplo, a Beija-Flor rapidinho arruma patrocínio. O Império Serrano não. É difícil. É muito difícil. Você vê: o Império Serrano com o enredo de Ariano Suassuna46 ficar em nono lugar. Pô, não tem nem comparação... É cultura ou é grana? Então eu vou fazer Casa da Moeda47”. (COIMBRA, 2003)
Apesar de as dificuldades financeiras pesarem, a dirigente afirma que nem sempre a ajuda do patrocinador é determinante na sua decisão. Neide deixa claro que não troca o 46
Em 2002, o Império Serrano apresentou o enredo Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino – Ariano Suassuna. 47 Depoimento da presidente do Império Serrano, Neide Coimbra, concedido à autora em 29/04/2003.
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enredo pela verba prometida, se julgar que o tema imposto pelo patrocinador não resultará em um bom desfile para a escola. “O Império estaria [aberto a trocar seu enredo pelo patrocínio impositivo]. Dependendo do enredo também... Tem coisa que não dá. Dependendo do enredo eu trocaria. Agora, enredo que eu visse que não dá para desenvolver, não. Que nem aquele ali que foi da São Clemente, que a São Clemente desceu... Guapimirim48. Ele esteve aqui, mas eu não quis. Me ofereceram 200 mil, mas eu não quis. Tem enredo assim que não vale a pena. Tem dinheiro, mas não vale a pena. ‘Ah! Mas com dinheiro você faz tudo!.’ Nem sempre...Você pode ter dinheiro, mas você não sabe o que você vai dizer, não tem argumento. É que nem agora. Vai ter uma escola falando de Hebe Camargo e a outra falando de Xuxa49. Você acha que tem qualidade? Nem a Xuxa tem. Você não pode revirar a vida da Xuxa. E nem ela vai deixar. Ela vai deixar falar de agora, porque a imagem dela está presa nas crianças. Então ela não vai deixar falar da vida. Então são coisas que não valem a pena”. (COIMBRA, 2003)
A consciência de que o patrocínio nem sempre vale a pena se baseia, sobretudo, no temor de uma má colocação após o desfile. O carnavalesco Milton Cunha, que afirma em sua entrevista já ter enfrentado problemas com os dirigentes devido à sua posição contrária ao patrocínio, nos conta que, na hora de defender um enredo sem imposição temática, usa como argumento uma possível retaliação do corpo de jurados ao enredo patrocinado. “Eu tento calmamente dizer: ‘Escute, o senhor vai ser julgado por enredo. O senhor vai receber uma nota de sete a dez. Então, o senhor tem que ter noção de que o dinheiro está entrando por uma porta, mas a sua nota está saindo pela outra. O que o senhor quer? Ganhar R$ 1 milhão, mas tirar sete em enredo? É isso?’. Aí, neste momento eles tremem. Neste momento 48
A presidente se refere ao enredo Guapimirim, Paraíso Ecológico Abençoado pelo Dedo de Deus, apresentado pela escola de samba São Clemente no carnaval de 2002. A escola ficou classificada em último lugar e foi rebaixada para o grupo de acesso. 49 A Caprichosos de Pilares desenvolverá, para o carnaval de 2004, um enredo em homenagem à apresentadora Xuxa. Já a apresentadora Hebe Camargo foi cogitada para enredo da escola de samba Tradição, que, no entanto, decidiu-se por outro tema.
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eles tremem. Porque aí você mostra um outro lado, não é? Então, a menos que a escola tenha muito nome, capaz de assustar o júri, ela vai ser canetada.”(CUNHA, 2003)
Apesar de o julgamento ainda funcionar como um freio para a escolha de determinados enredos patrocinados, o mecanismo não tem funcionado como deveria, segundo os envolvidos na produção do carnaval. Enquanto a presidente do Império queixase das notas obtidas no quesito enredo pelo Império Serrano no carnaval de 2002, em que apresentou um desfile sem imposição temática em homenagem ao escritor Ariano Suassuna, o carnavalesco Milton Cunha afirma que o rigor dos jurados com relação ao tema patrocinado só funciona para as escolas consideradas de menor porte. “O peso do nome e da importância da escola realmente na hora da nota pesa. Então, não tem sido justo [o julgamento]. Tem sido conforme o peso da escola que está sendo julgada. E isso é público e notório. Enredos muitos ruins em grandes escolas tiram 10. E tenho certeza que aqueles intelectuais que estão ali no júri julgando, eles percebem que não há grandeza cultural, mas não podem dar nota menor porque trata-se de uma força no samba. Então, eles deixam para julgar corretamente as menores. Então, ali eu acho que eles julgam corretamente. Eles dizem: ‘Esse enredo tem que tirar menos de 10’. E eles canetam mesmo. Mas só em seis escolas. Nas outras oito, não”. (Ibid.)
Outro ponto polêmico que surge na discussão com relação aos enredos patrocinados diz respeito à real necessidade de se engordar a receita que as escolas já recebem através da subvenção oficial e à falta de controle dos recursos oriundos do patrocínio. Tanto o carnavalesco Milton Cunha quanto a presidente do Império Serrano, Neide Coimbra, afirmam que a ausência de controle oficial com relação ao valor que as escolas recebem de seus eventuais patrocinadores pode gerar conflitos dentro das escolas de samba. A presidente do Império Serrano afirma que, embora não acompanhe a prestação de contas das escolas de samba com relação à verba conseguida através de patrocínio, a Liesa tem ciência dos recursos utilizados pelas agremiações na produção de um desfile.
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“Não [existe controle da Liga sobre o que a escola faz com dinheiro que ganha do patrocinador]. Mas, por exemplo, se eu tivesse conseguido um patrocínio de R$ 300 mil, eles sabem. Eles sabem direitinho. Olha, no meu primeiro ano, eu recebi R$ 30 mil de Pernambuco50. Mas eu recebi depois do carnaval. Porque aí eu sabia que o dinheiro tinha saído, só não tinha vindo para mim. Aí eu comecei a procurar, catar, cobra daqui, cobra dali. Mandei uma carta para o Marco Maciel, aí você já viu, né? Rapidinho os R$ 30 mil apareceram. E a Liga ficou sabendo”. (COIMBRA, 2003)
Neide aprova o controle informal da Liga às verbas captadas pelas escolas através do patrocínio e, a julgar pela crítica que faz ao presidente da escola de samba Tradição, Nésio Nascimento, pelo desfile apresentado no último carnaval, não acredita que o dirigente tenha utilizado todos os recursos disponibilizados pelo patrocinador: “Eu acho [positivo o controle da Liga]. Eu acho porque você fica muito calçada. É um dinheiro que entra e eles tomam conhecimento. Depois você não pode dizer nada. Dizem que a Tradição arrumou R$ 2 milhões51. Cadê o carnaval para R$ 2 milhões?”(Ibid.) O carnavalesco Milton Cunha confirma a teoria levantada por Neide Coimbra de que muitas escolas não apresentam desfiles compatíveis com os patrocínios que recebem. Em seu depoimento, no entanto, o carnavalesco mostra um ponto de discordância em relação ao discurso da dirigente. Ao contrário da presidente do Império Serrano, que declara ser muito difícil apresentar um desfile competitivo com a verba oriunda da Liga, o carnavalesco afirma ser possível fazer um “carnaval bonito”(CUNHA, 2003) com a subvenção oficial. “Eu já vi várias vezes o enredo entrar para o bolso do dirigente. Porque com o dinheiro da Liga consegue-se fazer o carnaval, bonito, e o patrocínio é desviado para interesses particulares. (...) Na medida em que ele é um contrato à parte feito pelo captador, então você tem várias formas de desviar este dinheiro. Então, quer dizer, você vê que se já tem R$ 1,7
50
Em 2000, o Império Serrano apresentou, no grupo de acesso, o enredo Os canhões de Guararapes, sobre o estado de Pernambuco.
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milhão da Liga e entra mais R$ 1 milhão, você teria que apresentar um carnaval de R$ 2,7 milhões. Quer dizer, isto é de um poder, de uma grandeza, e quando você vê, não! É um carnaval daquele dinheiro da Liga. E é engraçado, porque além disso, no meio da transação comercial, as partes desse dinheiro vão ficando. Não sei quantos por cento para o contato lá... Então, você vai pulverizando o dinheiro, e o que era R$1 milhão não é R$ 1 milhão. O que chega até o orçamento da escola, o que entra, é R$ 100 mil. É dez por cento. Porque foi ficando na mão de várias partes envolvidas. Já vi. Já vi acontecer isso e a gente na Avenida perguntar: ‘Mas cadê? Cadê o grande empresário que patrocinou?’”. (Ibid.)
Ao se observar tantos conflitos em torno de um mesmo tema, fica difícil acreditar que em algum momento se pudesse chegar a um consenso que representasse um acordo de patrocínio plenamente satisfatório para todos os envolvidos na transação. O caso Grande Rio/ Vale do Rio Doce, além de mostrar que este acerto é possível, aparece no discurso dos envolvidos com o carnaval carioca cercado de grande expectativa, como sendo um possível exemplo a ser seguido pelas escolas de samba e empresas interessadas em investir em carnaval: Tinha muita gente torcendo para isso dar certo. As pessoas estavam vendo que podia ser uma mudança de conceito em relação a carnaval. Naturalmente isso abre um caminho enorme, enorme, pro samba no Rio de Janeiro”. (LARA, 2003) Mesmo sendo um defensor da liberdade de escolha do carnavalesco em relação ao enredo, Milton Cunha, em sua entrevista, citou espontaneamente o acordo firmado entre a Grande Rio e a Vale do Rio como um bom exemplo de patrocínio. Assim como o gerente de Marketing Institucional da CVRD, o carnavalesco acredita que o negócio poderá abrir portas para outras empresas interessadas em investir em carnaval, nos mesmos moldes do acordo do último carnaval. “O primeiro passo já foi dado para que as empresas percebam a visibilidade comercial do espetáculo Marquês de Sapucaí. (...) Eu acho que todo mundo vai ganhar. O samba vai ganhar, a empresa vai ganhar, os
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O patrocínio teria sido conseguido para o desenvolvimento do enredo O Brasil é Penta, R é 9, o Fenômeno Iluminado, em homenagem ao jogador de futebol Ronaldinho. A escola ficou classificada em penúltimo lugar.
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clientes dele vão ganhar. Eu acho que ganha o Brasil. Ganha a festa do carnaval”. (CUNHA, 2003)
De fato, os dois profissionais da Vale do Rio Doce envolvidos no projeto de patrocínio à Grande Rio que prestaram depoimentos a este trabalho confirmam que o acordo deve render frutos. Ambos nos contam que têm sido procurados por outras empresas, também interessadas em patrocinar escolas de samba, para relatar como foi a experiência de investir no carnaval carioca. Segundo Renata Mondelo, integrante do setor de Atendimento da Companhia Vale do Rio Doce, o apoio da CVDR à escola de samba Grande Rio foi decisiva para que outras empresas se interessassem em investir em carnaval: “Na semana passada eu estava jantando e atrás de mim estava um dos diretores da Liesa. Mas ele não estava me vendo. E ele estava vendendo o carnaval para um empresário. Eu não sei quem era. E ele falava: ‘você não viu como foi pra Vale do Rio Doce investir no carnaval?’. Aí olhei assim e ele me viu. Mas, enfim, ele estava usando o exemplo da Vale pra vender o projeto dele. E vende, porque você vê que ali fica a marca da Kwat, Brahma, camarote da Brahma, enfim, todo mundo quer tirar proveito. Porque, assim, uma empresa como a Vale do Rio Doce investir no carnaval levanta a bola de qualquer um. O Windows está lançando a nova plataforma dele através de uma escola, não sei se é a Caprichosos52. O Roger53 está sendo abordado por vários empresários, pra gente contar como foi essa história. Deu muito certo”. (MONDELO, 2003)
O gerente de Marketing Institucional da CVRD, João Lara, que também confirma estar sendo procurado por empresas interessadas em investir em carnaval, se diz satisfeito por poder incentivar outros potenciais patrocinadores de escolas de samnba: “Amanhã, eu vou almoçar com o consulado da China, que está sendo procurado por uma escola para patrocinar um enredo este ano. O consulado me procurou para saber que relação foi essa. Como é que foi a 52 53
Escola de samba Caprichosos de Pilares. Agnelli, presidente da Companhia Vale do Rio Doce.
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experiência da Vale no carnaval. Felizmente, eu vou poder dizer: ‘Olha, foi muito boa’”. (LARA, 2003)
É interessante destacar que um dos pontos citados pelo gerente de Marketing Institucional da CVDR como sendo responsável pelo sucesso da negociação foi o profissionalismo demonstrado pelos dirigentes da escola de samba. “A relação com a escola foi muito boa. Isso eu acho que vale a pena ressaltar. A escola de samba foi de uma correção... (...) Nós fizemos um patrocínio, um acordo de patrocínio mesmo. Onde nós daríamos uma determinada quantia em troca de contrapartidas. (...) E a escola respeitou não só essas contrapartidas, mas todo pedido que a Vale fez a escola atendeu. Com a Liesa também. A Liesa ajudou profundamente a Vale. Tudo que nós pleiteamos nós conseguimos. A relação aí era mais comercial também. Mas todo tipo de facilidade, de idéias, do que é que possível, do que não é. (...) [Houve uma postura] Muito, muito, muito profissional”. (Ibid.)
Novamente, a visão empresarial dos envolvidos no carnaval com relação à festa aparece como caminho e principal tônica das relações das escolas de samba com os meios de comunicação. Se com relação à transmissão televisiva e à busca de um espaço adequado para a realização dos desfiles este conceito profissional aparece já bastante consolidado, no que diz respeito aos enredos patrocinados as escolas de samba parecem ainda estar buscando uma boa fórmula de negociação. No entanto, usando como base as entrevistas apresentadas neste capítulo, pode-se perceber que a visão mercadológica do desfile dita as formas de contato entre escolas de samba e meios de comunicação nos três momentos escolhidos para análise neste trabalho.
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CONCLUSÃO Se houvesse registros em vídeo que nos permitissem comparar os desfiles das pioneiras escolas de samba com os atuais espetáculos apresentados pelas agremiações cariocas durante o carnaval, certamente observaríamos poucos pontos em comum entre os dois momentos. As diferenças já são visíveis quando analisamos comparativamente os desfiles contemporâneos e os que aparecem nos primeiros registros dos arquivos das TVs – o mais antigo a que tive acesso durante a elaboração deste trabalho data do ano de 1977. Apesar de a estrutura do desfile ter se mantido a mesma – com sua divisão por alas intercaladas por alegorias – houve uma substancial modificação no porte das fantasias e dos carros alegóricos, no aparato de som disponibilizado para as escolas de samba e no andamento da bateria e dos sambas enredo. Como vimos no decorrer deste trabalho, os meios de comunicação tiveram participação decisiva em tais mudanças, sobretudo nos três momentos da história do carnaval carioca escolhidos para análise neste estudo. No entanto, é importante destacar que estas mudanças não aconteceram de forma impositiva, como quase sempre é alardeado pelas análises e críticas feitas ao desfile das escolas de samba. Os meios de comunicação sempre fizeram parte da estrutura essencial das escolas de samba, o que faz com que a entrada das mesmas na lógica da indústria cultural apresente peculiaridades em relação a tantos outros fenômenos culturais. Ao se tornarem o grande espetáculo nacional, identidade brasileira no exterior, símbolo do país que funciona e encanta, as escolas de samba estão bem mais próximas do objetivo que sempre buscaram alcançar – a popularização que pusesse fim às perseguições policiais e determinassem a integração social de seus primeiros componentes – do que da fluidez de essência inerente ao processo de transformação em cultura de massa. Acredito que esta peculiaridade esteja associada ao fato de os desfiles das escolas de samba sempre terem andado de braços dados com a mídia. Como vimos no corpo deste trabalho, o desfile produzido pelas escolas de samba sempre recebeu cobertura da imprensa e, mais do que isso, teve suas primeiras edições patrocinadas por jornais. Esta afinidade podemos atribuir a uma interessante relação de troca: se por um lado os jornais encontravam nas escolas de samba um excelente produto a ser noticiado, as agremiações conseguiam através do apoio da imprensa o respaldo social que tanto almejavam.
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A relação de equivalência manteve-se presente nos três momentos analisados no decorrer deste trabalho, que representaram também um estreitamento das relações das escolas de samba com a mídia. Ao nos debruçamos sobre a questão do televisionamento dos desfiles, vemos que não apenas as escolas de samba passaram por transformações – sobretudo nos aspectos visuais – uma vez decretada a parceria com as TVs. As emissoras também foram obrigadas a buscar uma nova linguagem para melhor transmitir os desfiles. Semelhante relação de igualdade esta presente no capítulo da história das escolas de samba que marca a construção de uma passarela definitiva para o desfile. Apesar do equívoco da obra e, o que mais interessa a este trabalho, do tipo de discussão fomentada pela mídia, a construção do Sambódromo representa o momento em que as escolas de samba foram vistas como importante peça para a sociedade e a economia do Estado do Rio de Janeiro. Apesar de ainda estar em curso, o terceiro momento analisado por este trabalho – o advento dos enredos patrocinados – também tem se encaminhado para uma relação de igualdade. Se nos primeiros contratos de patrocínio as escolas de samba se mostravam tímidas nas negociações, parecem atualmente já ter se dado conta do seu poder de divulgação e, por conseqüência, de sua posição de igualdade com as empresas interessadas em investir no carnaval em troca de visibilidade para sua marca. Talvez ainda seja precipitado tentar vislumbrar os rumos que os enredos patrocinados tomarão no carnaval carioca, mas é certo que neste capítulo da história das escolas de samba observamos o mais profundo estreitamento de relações com a mídia. Se esta relação de transformação aparece no início da transmissão dos desfiles pela TV – que tornou as escolas de samba excelente espaço de divulgação para artistas – e na construção do Sambódromo – que colocou as escolas de samba no centro de uma discussão política sobre a importância do carnaval carioca para o estado do Rio de Janeiro – o advento dos enredos patrocinados representa a transformação dos desfiles das escolas de samba em mídia. Como vimos através do estudo de caso do contrato de patrocínio acertado entre a Companhia Vale do Rio Doce e a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio no carnaval de 2003, a empresa escolheu o carnaval carioca como instrumento para iniciar uma nova política de Comunicação e reposicionamento de marca no mercado. Poderia ter optado por
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uma campanha publicitária através de jornais, do rádio ou da TV. Preferiu investir em um novo meio de mensagem – a escola de samba – e não se arrependeu. Os meios de comunicação aparecem quase sempre no centro das críticas ao modelo contemporâneo das escolas de samba. A eles se atribui erroneamente a chegada de elementos alheios às comunidades que estão na base da preparação dos desfiles das escolas de samba. No entanto, ao analisarmos a história das escolas de samba sob a ótica da Comunicação, podemos concluir que, assim como a mídia, também a presença de tais elementos estava prevista e era mesmo objetivo das escolas de samba originais. O samba sempre quis ser popular. É bem verdade que esta constatação não elimina possíveis críticas ao atual modelo do desfile das escolas de samba. Apesar de terem conseguido alcançar a popularização que sempre almejaram, as escolas de samba também agregaram problemas com este movimento. Acredito, no entanto, que a melhor forma de pensar em solução para estas questões não passe por um discurso excludente em relação à mídia e aos elementos que foram agregados por ela. Mas sim por uma negociação igualitária entre as escolas de samba e os meios de comunicação, que já me parece estar sendo travada há alguns anos, sob a ótica dos valores de mercado que o desfile adquiriu.
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ANEXO 1 Neide Coimbra Entrevista com a presidente do Império Serrano, Neide Coimbra, realizada na quadra da escola, em 29 de abril de 2003. Componente do Império Serrano desde 1969, Neide tornou-se presidente da escola em agosto de 1999 e está em seu segundo mandato.
Como foi seu primeiro contato com o carnaval? O que atraiu a senhora na escola de samba? Eu comecei no carnaval há 34 anos atrás, aqui no Império Serrano. Antes, eu já fazia parte, desfilava em ranchos, no Aliados de Quintino. Agora, escola de samba, a primeira que eu freqüentei foi o Império Serrano, há 34 anos atrás. Eu entrei, eu desfilei no abre-alas. Era um grupo de mulheres. O Ernesto54, ao olhar o meu trabalho, três meses depois do carnaval, ele me chamou para trabalhar com ele na área social da escola. Aí eu comecei a fazer parte da diretoria e cheguei a presidente da escola. Vim trabalhando em todas as diretorias. Só não trabalhei na diretoria do senhor Oscar Lino55. No restante, com todos os presidentes de lá para cá eu trabalhei.
E a senhora está à frente da escola há quantos anos? Eu estou à frente da escola desde agosto de 99. Esse é o meu segundo mandato.
Quando a senhora começou a desfilar no Império, imaginou que chegaria à presidência? Não. Nunca almejei ser presidente escola. Eu tinha medo, sabe? Eu ficava assim: eu não tenho dinheiro, não sei como vou fazer. Mas resolvi me candidatar por causa de um desafio. O Geraldo, que é assessor do Beto Carrero56, ele, conversando com o ex-presidente57, falou para ele: “Por que você não coloca a Neide, não indica a Neide para ser presidente?”. E a resposta desse ex-presidente foi que eu era só uma fachada, que eu não fazia nada, que o 54
Nascimento, carnavalesco do Império Serrano à época. Presidente do Império Serrano nos anos de 1990, 1991 e 1992. 56 Homenageado pelo Império Serrano no carnaval de 1997, com o enredo O Mundo dos Sonhos de Beto Carrero. A escola ficou classificada em 15º lugar no grupo especial e foi rebaixada ao grupo de acesso. 55
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pessoal se iludia muito comigo. Então, o Geraldo me convidou para almoçar um dia, porque precisava conversar comigo. Ele falou para mim: “Olha, a gente confia muito no seu trabalho, mas ele disse que você é apenas uma fachada. Mas se eu fosse você eu me candidatava”. Aí eu disse: “Olha eu não gosto de desafio comigo. Então, você pode esperar. Porque eu quero ser candidata, mas eu quero ser somente eu e ele”. Quando eu ganhei, eu cheguei em casa, num domingo, todo mundo alegre, aquela coisa toda. Eu botei a minha cabeça no travesseiro e falei: “O que eu vou fazer agora?” Porque eu ajudar as pessoas é uma coisa. Ser presidente é outra. O meu primeiro desafio como presidente foi naquelas festas que tinha em todas as escolas. Aquelas de cantar samba-enredo, que tinha aqueles almoços. Eu estava em uma festa dessas, na Tradição. Aí o Waltinho chegou, da Liesa58, e falou assim para mim: “Vamos fazer uma dessas no Império?”. Eu falei para ele: “Eu quero”. Eu tô pensando que eles davam o almoço, davam tudo. O Império não tinha nada. “Quero”. “Ah! Tá legal, então. Vou arrumar para você fazer uma no Império”. Eu pensei: “Pô, legal. Vai encher a escola”. Ia ser a minha primeira festa. Aí ele foi lá no microfone e anunciou: “Daqui a 15 dias, no Império Serrano. Sábado, dia tal”. E eu falei: “Ih! Olha lá, ele tá anunciando daqui a 15 dias”. Quando ele voltou, eu falei: “Vem cá, como é que é a história do almoço? Vocês bancam?”. E ele disse que era tudo por conta da escola: almoço, cerveja... Eu não perdi a pose, não. Meu marido olhou para a minha cara e eu: “O que é que é?”. Isso foi num sábado. Na segunda-feira, liguei para todo mundo e convoquei uma reunião para a noite. “Olha, a gente não pode ficar por baixo de ninguém. É um desafio, nós vamos ter que enfrentar.” Aí já viu... O pessoal correu atrás e fizemos festa. E não vou te enganar, não. Foi uma das melhores festas. Nós nos demos ao luxo de servir strogonoff em cima e tripa lombeira embaixo. E apareceu tanta coisa, tanta gente. Foi o meu primeiro desafio como presidente. Depois, você já viu, né?
E para o carnaval, na Avenida? O que é mais difícil preparar? O que é fundamental para conquistar um título no carnaval de hoje? Para se conquistar um título hoje está muito difícil. Uma escola do porte da nossa, não é que a gente não possa. Em matéria de samba no pé, samba raiz, isso tudo nós temos. Então, uma coisa que nós não temos, nós não temos patrocínio. Nós não temos uma pessoa que 57
Marquinhos dos Anéis, presidente do Império Serrano nos anos de 1996, 1997 e 1998.
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nos ajude em nada. Nada, nada. Então isso fica difícil. Por quê? Você quer fazer uma coisa, mas custa tão caro que não dá. O dinheiro que você tem não dá. Você não pode receber R$ 1,3 milhão e fazer um carnaval de R$ 3 milhões, R$ 4 milhões, que é o que está acontecendo por aí.
Hoje a subvenção é mais ou menos isso? Mais ou menos um milhão e trezentos. Então, você vai vendo. Não dá para você competir com as escolas que tem patrono, que tem tudo. Não dá. Fica muito difícil. Agora, também não é impossível nós tirarmos um campeonato, não. Porque acho que depende também muito de garra, de tudo, entendeu? Porque às vezes a escola não vem com um carnaval caríssimo, mas chega. Dá uma sorte. É um dia que está todo mundo iluminado e arrebenta. Como naquele ano do Betinho59. Naquele ano do Betinho foi tudo modesto, mas de repente a escola cresceu na Avenida. Infelizmente, nesses últimos anos isso não vem acontecendo conosco. Nosso samba está crescendo na quadra e não está rendendo na Avenida. Não está rendendo. Mas com esse Aquarela Brasileira acho que vai ser diferente.
Já está certo que o Império fará Aquarela Brasileira? A decisão de usar um samba já conhecido do público foi por isso? Não, porque foi lá na Liesa... O Capitão Guimarães60 distribuiu para todos os presidentes, os enredos todos, entendeu?, do Império, da Portela, de outras escolas, até da Unidos de Lucas, e tudo, porque era da vontade dele e do Cesar Maia fazer enredos antigos61. Só que os presidentes perguntaram sobre o patrocínio. Então ele falou que teria que conversar com o Cesar Maia, mas que também tinha muita escola que recebia patrocínio e não apresentava 58
Walter Teixeira, diretor da Liga Independente das Escolas de Samba. Em 1996, o Império Serrano homenageou o sociólogo Herbert de Souza, com o enredo E Verás Que um Filho Teu não foge à Luta. A escola foi classificada em 6º lugar no grupo especial. 60 Atual presidente da Liga Independente das Escolas de Samba. 61 No fim do carnaval de 2003, a Liga Independente das Escolas de Samba iniciou um processo de negociação com as escolas de samba do grupo especial e com a prefeitura do Rio para a reedição, no carnaval de 2004, de enredos e sambas já apresentados pelas agremiações. Para comemorar os vinte anos de existência da entidade e do Sambódromo, a Liga Independente pretendia fazer um desfile diferente. Cada escola escolheria um samba-enredo clássico, anterior ao ano de 1984, e daria uma nova roupagem ao enredo, adaptando-o aos atuais padrões do espetáculo. A proposta foi bem-aceita pela Prefeitura e pela TV Globo, que possui os direitos de transmissão do desfile das escolas de samba, mas encontrou resistência nas próprias escolas, que viram na reedição de enredos antigos um entrave para a negociação de patrocínio. A Liesa decidiu, então, tornar a reapresentação de sambas e enredos facultativa. O Império Serrano decidiu acatar a proposta da Liga e optou por reeditar o enredo e o samba Aquarela Brasileira, apresentado pela escola no carnaval de 1964. 59
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carnaval com o patrocínio que recebia. Então, por aí você já vê que ele já deu uma brecha: o patrocínio não era tão importante assim. Aí ele falou assim: “Olha, existe uma escola que, se ela quiser, ela arruma patrocínio em vários estados, porque tem um samba lindo”. E ficou ali, olhando para a minha cara. Aí eu fiquei quieta, não falei nada. Aí no dia seguinte, um amigo me ligou, ele é de televisão, e falou para mim: “Olha, você ontem recebeu uma mensagem”. E eu: “Uma mensagem?”. ‘Falaram para você, porque o Ivo Meireles estava lá e ele comentou, não falaram para você que existe uma escola, isso, isso e isso?”. Eles estavam falando de Aquarela Brasileira, que eu também acho que pode dar um grande enredo.
E vocês realmente estão buscando patrocínio? Agora que nós vamos começar. Vai ter uma moça, a Leila, que vai começar. Mas teve um estado que já ligou para mim. Ligou e perguntou se vai ser mesmo Aquarela Brasileira. Eu falei que vai. Ele pediu meu endereço e eu dei o endereço aqui da escola. Vai mandar uma correspondência aqui para mim. Eu acho que já tem alguma coisa. No ano em que o Império apresentou o enredo sobre Ariano Suassuna62, a senhora deu uma declaração, no fim da apuração, bem contundente. A senhora disse que tinha ficado muito insatisfeita com as notas do Império no quesito enredo e que no ano seguinte faria um enredo em homenagem à Casa da Moeda. É (risos)... Por causa do patrocínio...
O Império foi uma escola que resistiu à entrada dos bicheiros, que são uma forma de patrocínio. Mas a esta nova forma de parceria, que são os contratos com as empresas, tem como resistir? Olha, é muito difícil, entendeu? Porque existe um ditado muito certo que diz que dinheiro atrai dinheiro. Então, por exemplo, a Beija-Flor rapidinho arruma patrocínio. O Império Serrano não. É difícil. É muito difícil. Você vê: o Império Serrano com o enredo de Ariano Suassuna ficar em nono lugar. Pô, não tem nem comparação... É cultura ou é grana? Então eu vou fazer Casa da Moeda.
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A senhora acha que o patrocínio, além de dinheiro, traz um certo prestígio para a escola? Um certo prestígio para a escola. Depende muito da escola. Não é toda a escola que consegue patrocínio. Agora, o Nésio63, não sei o que ele tem, porque o Nésio consegue. Agora, os desfiles que ele faz...
Existe algum controle da Liga sobre o que a escola faz com dinheiro que ganha do patrocinador? Não. Mas, por exemplo, se eu tivesse conseguido um patrocínio de R$ 300 mil, eles sabem. Eles sabem direitinho. Olha, no meu primeiro ano, eu recebi R$ 30 mil de Pernambuco64. Mas eu recebi depois do carnaval. Porque aí eu sabia que o dinheiro tinha saído, só não tinha vindo para mim. Aí eu comecei a procurar, catar, cobra daqui, cobra dali. Mandei uma carta para o Marco Maciel, aí você já viu, né? Rapidinho os R$ 30 mil apareceram. E a Liga ficou sabendo.
Esse controle é bom? Eu acho. Eu acho porque você fica muito calçada. É um dinheiro que entra e eles tomam conhecimento. Depois você não pode dizer nada. Dizem que a Tradição arrumou R$ 2 milhões65. Cadê o carnaval para R$ 2 milhões?
Qual é a relação da escola com participação dos artistas? Você quer minha opinião verdadeira? Acho que os artistas da escola é a nossa comunidade, que está no dia-a-dia aqui. Esses artistas que só aparecem no carnaval para desfilar, para aparecer, esse negócio todo... Olha, a própria Dona Ivone Lara. Nós sabemos que ela é Império Serrano. Mas eu pergunto: o que ela faz pelo Império Serrano? Ela não faz nada. Ela não divulga. Ela não faz nada. Não é o caso do Jorginho do Império. O Jorginho em
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Em 2002, o Império Serrano apresentou o enredo Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino – Ariano Suassuna. 63 Nésio Nascimento é presidente da escola de samba Tradição. 64 Em 2000, o Império Serrano apresentou, no grupo de acesso, o enredo Os canhões de Guararapes, sobre o estado de Pernambuco. A escola foi campeã e conquistou o direito de voltar a desfilar no grupo especial.
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qualquer lado que ele chega ele fala em Império Serrano. A Dona Ivone não. A Dona Ivone ela canta os sambas do Império Serrano, mas dificilmente você vê ela falar do jeito que o Jorginho fala e do jeito que o Roberto Ribeiro falava. Então, nós sabemos que tem muitos artistas que dizem que são Império Serrano, mas você não vê, não comentam, não falam nada, entendeu? Então, não faço questão de convidá-los. Eu, Neide, eu não faço. Eu acho que nossos artistas é nossa comunidade. São as pessoas que estão aí, que estão lutando pela escola. Não tô dizendo que sou contra. Na televisão, você vê que não passa mais a comunidade, não passa mais a escola. Só passa artista, só modelo, só isso, só aquilo. Então, eu acho que não tem nada a ver. O samba é o quê? Apesar que agora o samba está mudando muito. Está virando um teatro.
Como a senhora vê essa transformação? Os desfiles que a Beija-Flor tem apresentado... E você é obrigada a acompanhar. Agora você acha que isso é certo, que isso é samba? Isso não é samba. Samba é no pé, de raiz.
Por que a senhora acha que aconteceu essa transformação do desfile em teatro? Você lembra do Bumbum66? Superescolas de samba S.A., superalegorias67? E daí foi que veio. Você vai vendo que o Bumbum foi uma crítica. Já estava começando, em 82. Ali já houve a crítica. É por isso também que eu não refiz o Bumbum. Porque é uma crítica ao carnaval de hoje. Superalegorias, superescolas de samba... Quais são as superescolas de samba? É Beija-Flor, é Grande Rio, é essa aí de Ramos, a Imperatriz, entendeu? Você vai vendo. As escolas que vieram depois foram as que criaram... Ou elas criavam esse meio ou elas não davam para encostar na gente. Mangueira... Até que agora a Mangueira está também... Ela deu uma reviravolta e está indo por outro caminho também... Então vai ser o caminho de todo mundo também. Ou vai ou fica para trás. Ou você acompanha ou você se dá mal. 65
O patrocínio teria sido conseguido para o desenvolvimento do enredo O Brasil é Penta, R é 9, o Fenômeno Iluminado, em homenagem ao jogador de futebol Ronaldinho. A escola ficou classificada em penúltimo lugar. 66 A presidente se refere ao enredo Bumbum Paticumbum Prugurundum, apresentado pelo Império Serrano em 1982. A escola foi campeã do grupo principal do carnaval carioca. 67 A presidente se refere aos versos do samba-enredo Bumbum Paticumbum Prugurundum, do ano de 1982: “Superescolas de samba S.A./ Superalegorias/ Escondendo gente bamba/ Que covardia”.
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Qual é a maior dificuldade na administração de uma escola de samba? É difícil a falta de dinheiro. Olha, você quer ver uma coisa: eu tenho aqui uma receita de R$ 2 mil mensais e tenho uma folha de pagamento de R$ 3,5 mil, sem contar luz e telefone.
São funcionários do Império, sem contar os profissionais envolvidos no desfile? Só o dia-a-dia. Porque eu tenho três vigias. São dois no barracão. Um de dia e um de noite. E tenho um aqui na quadra. Cada vigia ganha R$ 500. Só aí já vai R$ 1, 5 mil. E os funcionários da quadra? Isso é um desafio, porque você tem menos e tem que arrumar mais. Aí fica no desespero, batalhando um dinheiro, tira daqui e dali para poder inteirar. Aí chega na hora da folha de pagamento você não tem. Por exemplo, o salário era duzentos. Eu não tinha duzentos, aí dava cem e na semana seguinte dava os outros cem. E assim aí a gente vai.
Então o mais difícil é administrar as finanças da escola? Ah! É. É difícil porque você não tem. Você trabalha com aquilo que você não tem, entendeu?
Diante dessas dificuldades, o Império estaria aberto a trocar o seu enredo pelo patrocínio, como o Salgueiro fez com a TAM, a Beija-Flor com a Varig... O Império estaria. Dependendo do enredo também... Tem coisa que não dá. Dependendo do enredo eu trocaria. Agora, enredo que eu visse que não dá para desenvolver, não. Que nem aquele ali que foi da São Clemente, que a São Clemente desceu... Guapimirim 68. Ele esteve aqui, mas eu não quis. Me ofereceram R$ 200 mil, mas eu não quis. Tem enredo assim que não vale a pena.Tem dinheiro, mas não vale a pena. “Ah! Mas com dinheiro você faz tudo!” Nem sempre...Você pode ter dinheiro, mas você não sabe o que você vai dizer, não tem argumento. É que nem agora. Vai ter uma escola falando de Hebe Camargo e a outra
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A presidente se refere ao enredo Guapimirim, Paraíso Ecológico Abençoado pelo Dedo de Deus, apresentado pela escola de samba São Clemente no carnaval de 2002. A escola ficou classificada em último lugar e foi rebaixada para o grupo de acesso.
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falando de Xuxa69. Você acha que tem qualidade? Nem a Xuxa tem. Você não pode revirar a vida da Xuxa. E nem ela vai deixar. Ela vai deixar falar de agora, porque a imagem dela está presa nas crianças. Então ela não vai deixar falar da vida. Então são coisas que não valem a pena.
Na época da construção do Sambódromo, a senhora fazia parte da diretoria do Império. Como a escola se preparou para aquele desafio? Eu acho que aquilo ali era um sonho das pessoas de carnaval, das escolas de samba, dos componentes. Acho que aquilo ali era um sonho. Ter uma passarela, um lugar para fazer o carnaval. Mas esse sonho foi bom enquanto durou, porque agora está pequeno. A realidade agora é que o carnaval cresceu muito e o Sambódromo ficou pequeno.
A senhora acha que o espaço precisa ser reformulado, ou que o desfile deve ir para outro lugar? Ah, eu acho que sim. Eu acho que ele teria que sair dali agora para uma coisa com mais conforto, maior. Você vê que rapidinho as pessoas querem comprar ingresso, ver as escolas. E outra coisa: teria que ter um local para os sambistas. Porque você tem muito sambista que não pode assistir, não vai. Então, teria que ser num outro lugar, que colocasse arquibancada para os sambistas... Porque você vê que o sambista fica... Quem pega arquibancada 1, tudo bem, mas quem pega lá atrás não vê nada70. Quer dizer, os donos do carnaval não têm direito de nada. Porque ali são os familiares das pessoas que estão desfilando. Quer dizer, as pessoas que ficam o dia-a-dia aqui na quadra, mas não podem desfilar porque têm uma perna doente, tem qualquer coisa, mas tem o prazer de ficar para aplaudir. Aí tem que ficar lá no setor 6, no setor 13...
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A Caprichosos de Pilares desenvolverá, para o carnaval de 2004, um enredo em homenagem à apresentadora Xuxa. Já a apresentadora Hebe Camargo está sendo cogitada para enredo da escola de samba Tradição, que até o momento não confirmou a homenagem. 70 No Sambódromo, há três setores de arquibancadas vendidos a preços populares. O setor 1, que fica na área de concentração do desfile, foi comercializado no carnaval de 2003 por R$ 20. Já as arquibancadas 6 e 13, da Praça da Apoteose, que ficam no fim do desfile e são prejudicadas pelo recuo em relação aos demais setores, foram vendidas no último carnaval por R$ 5. Estas arquibancadas apresentam sérios problemas de visibilidade para seus freqüentadores.
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A senhora acredita que se houvesse uma mudança no Sambódromo e essas pessoas voltassem a assistir ao desfile, isso poderia modificar o carnaval? Mudar o público poderia transformar o espetáculo? Eu acho que sim. Porque, olha, você vê muito turista. Nós passamos e fica tudo frio. Você passa ali naquela parte dos turistas, nossa, mas é frio demais! Para eles é um show. Eles ficam parados, olhando. E no desfile das escolas de samba nós precisamos do calor, calor humano das arquibancadas. Ou então aquele negócio: a Beija-Flor é poderosa, aluga quatro, cinco, seis camarotes. Aí vai o pessoal deles para lá e só se manifesta na hora da escola deles. Eu acho que deveria ser assim: por exemplo, Império Serrano. É a escola que vai fazer o show, então três camarotes tem que ser dados para o Império Serrano, três camarotes tem que ser dados para a Beija-Flor... Se quiser mais, aí compra. Eu acho que deveria ser dado. Como as cadeiras de pista também. Isso está dentro do espetáculo. Eles dão um número limitado de ingressos e o resto é tudo vendido. Camarote é vendido... Por isso que eu acho que deveria ser um lugar maior.
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ANEXO 2 Marcelo Legey Entrevista com o editor de imagens da Rede Globo de Televisão, Marcelo Legey, realizada no condomínio Parque das Rosas, na Barra da Tijuca, em 23 de maio de 2003. Formado em Economia, Legey trabalha há 23 anos em televisão, sendo 21 deles na Rede Globo. Há seis anos é um dos três responsáveis pela edição de imagens, durante a transmissão do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro pela TV Globo. No carnaval passado, também foi editor de imagens da transmissão do carnaval de São Paulo.
A transmissão do desfile é feita por dois setores da TV: o de jornalismo e o de produção. Como é feita essa divisão? Uma coisa complementa a outra. O jornalismo, ali dentro da concentração e na área de dispersão, nos dois pólos. Eles fazem as entrevistas, com os destaques, como é que foi, como é que não foi, o que está achando, ouve o puxador. Aquele negócio mais intimista. Depois, na Avenida, fica por conta da parte artística. Nós dividimos em dois bloqueios. O primeiro bloqueio é um corte livre. Nós mostramos detalhes plásticos. Câmeras embaixo, detalhezinhos. Não tem uma regra para a transmissão deste primeiro bloqueio. O segundo bloqueio, que é o maior, quando chega um pouco antes da metade da Avenida, nós passamos a contar... Aí entra aquele pessoal que fica ali em cima naquela bolha, nos últimos três anos teve aquela bolha71, que fica ali em cima. Aí o pessoal começa a contar a história do tema da escola, do que está se passando. Aí nós vamos passando ala a ala. Conforme eles vão narrando, nós vamos mostrando a imagem e vice-versa. O carro, o que é o carro, nós mostramos o carro, o destaque do carro, aí tem um mecanismo para desenvolver a escola.
Então existe uma preocupação em manter uma ordem cronológica do que o enredo apresenta? Porque, vendo carnavais antigos, a gente observa que isso não era uma preocupação. Prevalecia a idéia de que cada imagem era um espetáculo nela mesma. 71
Trata-se da cabine de transmissão da TV Globo, onde ficam os apresentadores do desfile, situada em cima dos camarotes do setor 2, em frente ao setor 9 das arquibancadas.
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Pelo que você falou, essa idéia se manteve na transmissão do primeiro bloqueio. Essa modificação no estilo da transmissão existiu? De alguns anos para cá já houve esta preocupação. No início, realmente, antes de eu começar a fazer, era simplesmente uma transmissão do que estava acontecendo. Agora não. Tem a primeira parte, que como eu te falei tem esses cortes artísticos. A gente aproveita e põe a letra da música, esse negócio todo, para a pessoa se ambientar com o que está havendo na Avenida. Depois a gente passa a contar a história. Tem aquela explosão, aquele negócio todo, a cortininha...72
Há quantos anos você trabalha na transmissão? Há seis anos.
Quantas profissionais aproximadamente participam da transmissão? Nós somos três diretores de imagem. Só na direção de imagem nós somos três. A equipe total que fica sob a direção do Aloísio Legey, meu irmão, é de trezentas pessoas. Entre montagem, produção... É muita gente.
Existe alguma peculiaridade no trabalho de edição do desfile de carnaval, além do tamanho da equipe? Essa proporção de pessoas... Geralmente, megaevento fica em torno disso: 260, 320 pessoas. É o que exigem essas megaproduções, que é o caso do carnaval, que é o caso do Criança Esperança, que é o caso do Rock in Rio, que são grandes eventos. Envolve isso pela montagem, cenografia, engenharia... É muita gente envolvida. Então, cada caso tem um caso. Na minha função, na direção de imagens, como na edição propriamente dita, quando há edição, no caso do carnaval é ao vivo, não há edição. A edição é feita no dedo. Então, cada caso é um caso. Cada um tem a sua peculiaridade. Uma novela tem um estilo, um show tem um estilo, o carnaval já é diferente, o reality show já é outra coisa. Cada caso é um caso.
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O editor se refere aos efeitos gráficos utilizados pela Rede Globo no último carnaval, que simulam a explosão de fogos de artifício e abertura de uma cortina de teatro, que marcam o que o editor chamou de segundo bloqueio.
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E no caso do carnaval, o que você tenta preservar ou modificar quando você faz este corte de imagens? Como eu tava te falando, o caso específico do carnaval é dividido em dois bloqueios. Então, esse segundo bloqueio você tem mais ou menos uma regra. Porque são muitas câmeras. Você trabalha com 18 câmeras hoje em dia. Então se você não tiver um mecanismo para trabalhar com elas, você se perde no meio delas. Então, você segue mais ou menos uma fórmula para chegar ao produto. Segue uma fórmula ali. Por isso que eu te falei: cada produto desses aí que eu te falei tem uma peculiaridade diferente. Quando você trabalha em um reality show, como o Big Brother, você trabalha com 36 câmeras. Mas é setorizado. Se você for olhar as 36, como no carnaval se for olhar as 18, principalmente no carnaval que é ao vivo, são 18 câmeras ao vivo... Então eu trabalho, por exemplo, seis câmeras estão no primeiro bloqueio. Então essas seis no segundo bloqueio eu já não olho mais. Então eu só vou trabalhar com 12 no segundo bloqueio. Dessas 12, eu tenho uma que é virtual. Nos últimos quatro, três anos, tem tido a câmera virtual.
O que é a câmera virtual? Que você põe uma bandeira, você põe a bonequinha que entra, aqueles negocinhos... É a câmera virtual. Eu fico no fone e entra o rapaz do computador, que ele fala que está pronta a arte e aí eu entro com a câmera virtual na hora em que eu acho conveniente entrar. Aí a imagem virtual está trabalhando com a gente. Então já caiu para onze. Aí tem umas que são gerais. Tem três que trabalham no chão. Então, na hora dos detalhes, da câmera de baixo, de dar a comissão de frente, passistas, porta-bandeira... Para aquele negócio de girar, tem o steadycam, que é aquela câmera que você anda e que você não treme. Quer dizer, essa é para você girar com o passista, aquele negócio todo. Quer dizer, existe um mecanismo.
Essa divisão que você faz, das seis câmeras para o primeiro bloqueio, e das outras 12, onze mais a virtual, para depois, é determinada pela posição na Avenida ou pelo tipo de câmera? É pela posição. As câmeras são basicamente as mesmas. Dependendo do local, eu trabalho com uma grande angular, ou trabalho com uma J-16 ou uma J-36, uma lente que eu venha buscar, ou tem aquele geralzão, que é no final só que eu uso, que fica lá em cima do morro.
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Fica lá no hospital, lá no morro, lá longe. Aquela ali é uma câmera plástica, para encerrar o desfile. Não uso no meio nunca. É só para finalizar. E aquela do trilho? Aquela eu uso durante. Principalmente quando a escola começa a correr demais e aí você começa a perder o controle da escola. E acontece de a gente perder o controle da escola. Acontece de a gente perder o controle da escola às vezes... Aí eu entro com aquela câmera do trilho, que ela me dá uma passagem direta da Avenida. Ou a do helicóptero. Que me dá uma situação, me dá tempo para eu reorganizar as coisas e voltar a fazer a escola. Às vezes, a escola atrasa, começa a correr e você começa a perder o pique da historinha. Aí você pula uma ala, pula duas alas, que não vão fazer muita diferença... alas pequenininhas. Aí você vai para o carrinho, para dar o passeio na escola todinha, mostra a escola, coisa e tal, naquele trilho, ou no helicóptero, aí situa e vamos nessa de novo. Tem um núcleo ali, que é onde tem o recuo da bateria. Aquilo ali é um núcleo, onde eu tenho ali o maior número de câmeras, onde a bateria entra. Ali eu tenho uma grua, eu trabalho com steadycam, trabalho com três câmeras de chão, trabalho com duas gruas, e as câmeras do geral e do helicóptero. No recuo da bateria, ali eu trabalho com seis câmeras, só ali.
Sobre essa fórmula de dividir o desfile em dois bloqueios, vocês chegaram a ela de forma empírica ou há uma diretriz da emissora? Houve uma leitura, que hoje em dia a gente aperfeiçoa. Nós, diretores de imagem, nós fazemos uma reunião, coisa e tal. De repente, a gente muda uma lente, uma câmera, mas a filosofia básica é a mesma. Vem sendo mudada agora, em função da luz. Não sei se você reparou, mas neste último ano a luz vem mudando com as cores da escola. Isso é uma concepção da direção geral. Ela está indo junto com as escolas fazer uma transformação do show. Transformar em mais show. Mas é uma transformação que está sendo feita paulatinamente, com os presidentes da escola, com a Riotur...
Para quem está assistindo em casa, a luz pode enriquecer o espetáculo? Isso é uma transformação que está havendo, mas ainda não é o produto final. Isso é uma transformação até chegar ao produto final. Porque a televisão está evoluindo. Porque dentro de mais três, quatro, cinco anos, nós vamos estar com o HDTV, que é a televisão de high
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definition. Então, as coisas vão ser muito mais verdadeiras. Ou seja, o que você vai ver em casa é muito mais próximo da realidade. Você vai ter uma definição de imagem tão boa ou melhor do que a película. A dimensão, as emendas, a fisionomia das pessoas, vão ser descritas na sua realidade. Como hoje você vê na novela uma mulher de 40 fazer papel de uma menina de 20, com maquiagem, com uma roupa, ou seja lá o que tiver, não vai ser possível mais, porque o HDTV dá realmente a noção da realidade. Então, esta transformação é para chegarmos aí. E transformar isso em show. Porque a luz branca, hoje em dia, na televisão, menos do que antigamente... Agora, as câmeras já têm uma sensibilidade de luz muito maior. Mas antigamente era muito menor essa sensibilidade de luz, a gente precisava trabalhar com muita luz branca. O chão é pintado de branco para refletir também a luz e dar mais ganho, também, de vídeo. Com HD a gente pode diminuir isso, transformar em show. Aproveitar as cores, dar mais vida às cores das escolas. Essa transformação está sendo feita aos poucos para não chocar e para as próprias escolas se adaptarem.
É, porque para o carnavalesco é um elemento novo... É um elemento a mais. Eles vão trabalhar com luz, como alguns carros já trabalharam este ano, dentro dos carros. Eles vão começar a usar isso também.
Você falou na preocupação de ser o mais fiel possível ao que se passa na avenida. Isso é uma preocupação ou quando a TV transmite está criando um novo show a partir do que as escolas apresentam? Nós nos preocupamos em transcrever o que é o show na Avenida. Que você se sinta em casa na Avenida. Essa é a nossa preocupação. Mas é muito difícil. É muito difícil. E eu vou também como telespectador. Quando entra outro diretor de imagens e vou para a Avenida e fico lá vendo.
Você gosta? Eu já acostumei. Já vi tanto, coisa e tal. Mas ver ali bem perto é muito bom. Muito gostoso. Sentir a bateria, principalmente, dá uma... É um advento que nós já conseguimos hoje muito. Em casa você bota, por exemplo, com a televisão estéreo, e com a nossa transmissão
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estéreo, em casa você já sente muito melhor isso. Você separa um instrumento, essas coisas. É a evolução da televisão.
Então a maior dificuldade de reproduzir o espetáculo para quem está em casa é em relação ao som? Também. Mas é tudo. É o som, é o detalhe da pedra da roupa, é o passista cantando, sambando.
A crítica mais comum que se faz em relação à transmissão é de que ela se preocupa muito em mostrar artistas e mulheres peladas. Você já deve ter ouvido muito isso. Você concorda? Eu acho que não procede. Vamos por partes. Mostrar artistas, sim. Os destaques geralmente são artistas. Então nós mostramos. Eu acho que... Até que me provem o contrário, eu acho que a pessoa que está em casa quer ver a pessoa famosa. Eles não estão interessados naquele povo. Você vê a baiana. A baiana é um charme, é uma marca do carnaval. Aquela baiana rodando, coisa e tal. Mas você vê uma, viu todas. O artista não. O artista não. Cada coisa é uma coisa. Cada artista é um artista, independente da emissora que ele venha. Isso eu acho que o público está interessado. Agora, a mulher pelada, ela bonita, quer mostra o corpo dela, e as pessoas querem ver. Os homens querem ver para agradá-las e as mulheres querem ver para criticá-las. Eu acho que é uma coisa... de uma forma ou de outra, querem ver. Até que me provem o contrário eu acho que é isso. Agora, nós temos muita restrição. No caso da TV Globo, da Rede Globo de Televisão, nós só podemos mostrar mulheres com pouca roupa depois da meia-noite. A gente tem essa preocupação, porque os juízes gostam de pegar muito no nosso pé, entendeu? Então você vê: às dez horas de noite, se você ligar, você está passando o Gala Gay, em outra emissora. Ninguém fala nada. Ninguém fala nada. Ninguém telefona. Nós mostramos uma mulher com o peito de fora antes da meia-noite, com uma roupa mais sexy assim, telefona logo meia dúzia de juiz. Telefona, vai sair, vai lá, vai fechar, vai acontecer, é um escarcéu danado, uma confusão danada que acontece.
E com relação ao suporte técnico do Sambódromo. Como você classificaria o suporte técnico do Sambódromo para quem trabalha em TV?
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O Sambódromo, quer dizer, a estrutura da televisão é praticamente feita por nós, não é feita pelo Sambódromo. O Sambódromo deixou um espaço para fazermos a nossa estrutura, que a TV Globo estrutura muito bem. Felizmente ou infelizmente, é a emissora que tem esse potencial. É a única emissora que tem esse potencial dentro do país para fazer essa estrutura. Nós fazemos realmente uma minicidade. Nós temos tudo ali. Tem um lugar para descansar, um lugar para beber, um lugar para sentar, a direção tem uma sala vip, é uma coisa bem organizada. Um lugar fixo, um lugar preparado, eu acho que foi uma boa idéia. No governo Brizola, eu não me lembro se a idéia foi realmente dele, mas aquilo de aproveitar para colégios, esse negócio todo. Eu achei uma ótima idéia. Porque você tem um lugar preparado para fazer o desfile da escola, um lugar marcante pela aquela arquitetura do Niemeyer, que você já posicionou. Nós posicionamos. Hoje em dia, como eu te falei, nós aperfeiçoamos. Posicionamento de câmera, troca de uma lente, é uma coisa ou outra. Voltando atrás para complementar uma pergunta que você me fez, que eu acabei não falando: o desfile das escolas foi realmente mudado de muitos anos atrás para cá. Com a concepção criada pelo meu irmão, que é o Aloísio Legey, que foi quem fez essa concepção. E hoje em dia nós aperfeiçoamos. Nós juntamos, fazemos algumas modificações, uma ou outra, e levamos a ele. A aprovação final sempre é dele. Essa concepção da luz ele também está mudando, junto com projeto de profissionais, como o Peter Gasper e o Césio Lima, que são os melhores iluminadores hoje do Brasil.
Um bom desfile ao vivo dá um bom desfile pela TV? Quando uma escola vai mal na Avenida, isso chega ao telespectador? Sem dúvida. É mais fácil para a gente transmitir uma escola que ela venha regrada, ou seja, ela venha no mesmo tempo, ela venha no mesmo compasso sempre, sem buraco, sempre no mesmo ritmo. E aí você se acostuma naquele ritmo. Você vai pau, pau, pau, cortou pra cá, pra lá, pra cá, pra lá, pra lá, pra cá, e mostramos a escola. Aquela escola que vem nesse compasso, e de repente começa o diretor das alas a mandar andar, e começa a abrir espaço, buraco, aí corre pra cá, aí corre. E aí não dá pra gente mostrar direito. Daí a gente corta aqui, depois corta para o geral porque ela já correu, porque a escola tá correndo, aí corta para o geral aqui, o cara não dá para correr com aquela câmera andando atrás... A gente tá mostrando a passista, aí vem o diretor da escola e empurra a passista. Empurra o nosso
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câmera, porque não querem perder o tempo, porque senão eles perdem ponto no tempo da passagem da escola. Então tem essa preocupação deles que nos atrapalha, com certeza.
Você acha que o trabalho de alguns carnavalescos é mais adequado a ver ao vivo do que pela televisão? Eu acho que tem pessoas que trabalham em função do público, ali do ao vivo e tem pessoas que trabalham mais em função... Principalmente os carnavalescos que passaram por televisão, como o Chiquinho Spinoza73, que inclusive trabalha ainda em televisão. Eles trabalham muito em função da imagem, do que vai render para televisão. Porque às vezes tem certos materiais que não dão aquele brilho, não dão aquela... não transmitem a realidade do que realmente é aquele carro alegórico vendo pela televisão. Não consegue passar a grandiosidade do que é ao vivo. Do brilho do que foi ao vivo. Você vendo lá você vê muito melhor.
Você gosta de fazer a edição de imagens do carnaval? Tem muita cobrança. Sempre vem um perguntar por que não apareceu isso ou aquilo, aquela ala. Mas eu gosto porque dá uma quebrada na rotina. É um trabalho mais artístico, diferente de novela, que eu não gosto de fazer, ou de reality show, que no caso do Big Brother... por exemplo, o Big Brother é diferente de um Amor a Bordo. O Big Brother acaba ficando igual de fazer. O primeiro foi legal de fazer, depois vai ficando a mesma fórmula. Eu gosto de fazer show, tipo um Criança Esperança, um carnaval. Porque é um trabalho mais artístico.
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Atual carnavalesco da Mocidade Independente de Padre Miguel.
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ANEXO 3 Milton Cunha Entrevista com o carnavalesco Milton Cunha, realizada no barracão da escola de samba São Clemente, em 26 de maio de 2003. Milton Cunha estreou como carnavalesco na escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, em 1994. Lá desenvolveu quatro enredos: Margareth Mee, a Dama das Bromélias (1994), Bidu Sayão e o Canto de Cristal (1995), Aurora do Povo Brasileiro (1996) e A Beija-Flor é Festa na Sapucaí (1997). Em seguida, mudou-se para a União da Ilha do Governador, onde foi o responsável por dois carnavais: Fatumbi, a Ilha de Todos os Santos (1998) e Barbosa Lima, 101 Anos do Sobrinho do Brasil (1999). Em 2002, desenvolveu o enredo O Sol Brilha Eternamente Sobre o Mundo de Língua Portuguesa e este ano, ainda na escola, apresentou Agudás, os que Levaram a África no Coração e Trouxeram para o Coração da África, o Brasil. Após o carnaval, trocou a Unidos da Tijuca pela São Clemente, onde desenvolverá o enredo O Boi Voador Sobre o Recife: Cordel da Galhofa Nacional, para o desfile do ano que vem.
Como foi seu primeiro contato com carnaval e como se tornou carnavalesco? Eu fiz um concurso na Beija-Flor, em 93, e fui classificado entre os três primeiros, e tive que ir lá defender, Margareth Mee74, e fui aprovado. É interessante porque eu vinha do mundo da moda, eu fazia moda na Rede Globo, com Cristina Franco, e eu desfilava como composição de alegoria. Eu desfilava no chão, como destaque de chão. Então, eu tinha contato assim. E eu sou diretor e ator de teatro. Então, eu sempre me interessei pelo figurino, pelo cenário, pela montagem do espetáculo. Só que eu nunca tinha pensado em ser carnavalesco. Então, essa possibilidade que se abriu, essa janela da criação dos enredos... Para mim, eu acho que é a grande vitrine pro artista do Brasil, é o carnaval, mas ele chegou para mim de forma muito abrupta, surpreendente. Eu não esperava me tornar carnavalesco.
Você já desenvolveu algum enredo patrocinado, do tipo em que o patrocinador determina o tema? 74
Margareth Mee: a Dama das Bromélias, enredo do carnavalesco Milton Cunha, apresentado pela BeijaFlor de Nilópolis no carnaval de 1994. A escola de samba conquistou o quinto lugar no grupo especial.
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Não. Eu sempre fiz o caminho inverso. A partir da escolha do enredo que eu considero de relevância cultural, eu saio à cata de patrocinadores. Tenho encontrado alguns. O enredo mais bem-sucedido em relação a patrocínio foi O Mundo da Língua Portuguesa75, quando nós conseguimos captar, através da Lei Rouanet, em Furnas. Furnas nos deu R$ 500 mil. Nós conseguimos captar com a Tap, Transportes Aéreos Portugueses, US$ 200 mil. E nós conseguimos captar com um dono de cassinos em Portugal e em Macau. E ele então nos pediu que nós dedicássemos um setor a Macau, justamente uma possessão portuguesa que fala a língua portuguesa na China. E como já estava nos meus planos que Macau seria, junto com o Timor, Angola, Moçambique, já seria um lugar que eu realmente daria importância, então quando o enredo foi pro lado de Goa, na Índia, eu já pulei para Macau. Então, eu juntei o útil ao agradável. Eu consegui captar e... Agora, eu jamais faria um enredo que partisse do inverso. Milton, tome R$ 2 milhões e faça Vera Loyola. Não quero. Obrigado. A Vera Loyola que vá cantar em outra freguesia. Porque eu só me interesso pelas coisas que façam a minha cabeça. Então, eu preciso ser movido pela informação de cultura. Eu acho que os patrocinadores têm que compreender que associando seu nome ao de uma escola de samba com um grande enredo, aí sim eles vão estar ajudando o carnaval a se manter. Porque eu acho que se o patrocinador que tem o dinheiro se meter na parte artística ele está sendo o túmulo da festa. Eu acho muito chato esses enredos patrocinados que não têm relevância cultural. Então, agora, hoje, eu decidi então fazer este ano O Boi Voador Sobre o Recife76. A partir disso, eu preparo um projeto, ligo para o governador de Pernambuco, marco uma hora, e vou até ele captar recursos. E com isso eu me sinto mais forte para enfrentar o patrocinador, porque eu decidi a importância cultural deste produto a ser patrocinado. Então, eu acho que a escola de samba tem que encontrar um equilíbrio entre captação de dinheiro e relevância cultural. Eu acho que se essa balança pesar para o lado do dinheiro a festa perde. Eu acho que a festa perde muito. Eu estou detestando essas figuras que estão vendendo enredos por aí, esses chamados captadores, eu estou detestando porque eu acho que eles são... Porque o mecenato ele é bonito quando ele está a serviço do artista, da cultura. Agora, o mecenato que quer se autodivulgar, se autopromover... Isso não 75
O carnavalesco se refere ao enredo O Sol Brilha Eternamente Sobre o Mundo de Língua Portuguesa, de sua autoria, apresentado pela escola de samba Unidos da Tijuca, em 2002. A escola ficou classificada em 10º lugar no grupo especial. 76 O Boi Voador Sobre o Recife: Cordel da Galhofa Nacional é o título do enredo que o carnavalesco está desenvolvendo na escola de samba São Clemente, para o carnaval de 2004.
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é mecenato. Isso é troca de importância. Isso é troca de interesse. Mecenato é dar dinheiro para um grande artista trabalhar. Mas... dar dinheiro... Porque isso vai virar um mercado. Isso vai virar um produto. É uma lata de sardinha... É o enredo. Você compra. Você paga. Não acho bonito. Acho muito feio.
Você já se questionou por que o enredo foi escolhido dentro da escola de samba para ser este objeto de troca? Você acha que isso é um desrespeito ao trabalho do carnavalesco? Estes captadores de recursos já estão se associando a carnavalescos e eles sempre vendem a dobradinha. Ah! Tem que ser este o carnavalesco. Quer dizer, até isso... É meio uma prostituição. Você entendeu? É meio que uma venda. Porque cada escola tem um perfil, cada escola tem um carnavalesco que tem a sua cara. Então, você não pode impingir um carnavalesco, um artista a uma escola por ter dinheiro. Então, eu acho que cabe aos presidentes das escolas peitarem estes captadores de recursos. “Não. Você capta o seu recurso, você traz o seu dinheiro para a escola, mas eu quero manter a autonomia artística do meu trabalho.” Eu acho que cabe aos presidentes.
Essa sua posição já te trouxe algum problema com os dirigentes? Porque eles se queixam da falta de recursos... Vários. Vários. Vários problemas. Vários problemas. Aí eu tento calmamente dizer: “Escute, o senhor vai ser julgado por enredo. O senhor vai receber uma nota de sete a dez. Então, o senhor tem que ter noção de que o dinheiro está entrando por uma porta, mas a sua nota está saindo pela outra. O que o senhor quer? Ganhar R$ 1milhão, mas tirar sete em enredo? É isso?”. Aí, neste momento eles tremem. Neste momento eles tremem. Porque aí você mostra um outro lado, não é? Então, a menos que a escola tenha muito nome, capaz de assustar o júri, ela vai ser canetada.
Você acha que este julgamento tem sido justo com as escolas que trazem enredos patrocinados? Não, não tem sido justo, porque o peso do nome e da importância da escola realmente na hora da nota pesa. Então, não tem sido justo. Tem sido conforme o peso da escola que está
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sendo julgada. E isso é público e notório. Enredos muitos ruins em grandes escolas tiram 10. E tenho certeza que aqueles intelectuais que estão ali no júri julgando, eles percebem que não há grandeza cultural, mas não podem dar nota menor porque trata-se de uma força no samba. Então, eles deixam para julgar corretamente as menores. Então, ali eu acho que eles julgam corretamente. Eles dizem: “Esse enredo tem que tirar menos de 10.”. E eles canetam mesmo. Mas só em seis escolas. Nas outras oito, não.
Você já observou que algumas escolas podem receber o dinheiro do patrocínio e não usar isso no desfile? Eu já vi várias vezes isto. Eu já vi várias vezes o enredo entrar para o bolso do dirigente. Porque com o dinheiro da Liga consegue-se fazer o carnaval, bonito, e o patrocínio é desviado para interesses particulares. Eu já vi... Eu já vi. Porque... Na medida em que ele é um contrato à parte feito pelo captador, então você tem várias formas de desviar este dinheiro. Então, quer dizer, você vê que se já tem R$ 1,7 milhão da Liga e entra mais R$ 1 milhão, você teria que apresentar um carnaval de R$ 2,7 milhões. Quer dizer, isto é de um poder, de uma grandeza, e quando você vê, não! É um carnaval daquele dinheiro da Liga. E é engraçado, porque além disso, no meio da transação comercial, as partes desse dinheiro vão ficando. Não sei quantos por cento para o contato lá... Então, você vai pulverizando o dinheiro, e o que era R$ 1 milhão não é R$ 1 milhão. O que chega até o orçamento da escola, o que entra, é R$ 100 mil. É dez por cento. Porque foi ficando na mão de várias partes envolvidas. Já vi. Já vi acontecer isso e a gente na Avenida perguntar: “Mas cadê? Cadê o grande empresário que patrocinou?”. Por outro lado, esse ano, a guinada da Vale do Rio Doce77 parece ser uma divisora de águas. Porque uma empresa interessante, um enredo interessante, a mineração, as riquezas do país, tudo muito interessante. E além da dinheirama da escola investida, fez-se uma entourage de Marquês de Sapucaí deslumbrante. Ou seja, a Vale do Rio Doce abre portas para que outras empresas percebam o poder de divulgação disso. Agora, interessante é que na Vale foi um casamento feliz de um bom enredo com um bom dinheiro. O problema seria ruins enredos com bons dinheiros. Mas de qualquer forma o primeiro passo já foi dado para que as empresas percebam a visibilidade comercial do espetáculo Marquês de Sapucaí.
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Legal você ter citado este caso, porque eu também vou conversar com a Vale... E ver qual é o retorno, né?
É, porque eu também considero que foi um momento novo... Novo. Novo. O nível de injeção de dinheiro nunca visto.
Não é um simples patrocínio. Não. É todo um projeto muito bem elaborado de visibilidade internacional. Quer dizer, trazendo os diretores das grandes multinacionais que compram da Vale, e apresentando a estes senhores um espetáculo popular vibrante, a empresa capta prestígio cultural, né? Que não é prestígio comercial, porque eles podiam ter pego esses R$ 6 milhões e ter dado para cada diretor desse internacional um presente de R$ 200 mil. Só que eles não agregariam o valor do espetáculo cultural de um povo. Porque aquilo é impagável. Quando esses gringos viram aquela gente terceiro-mundista dançando e cantando como reis, algo muda na cabeça desses empresários internacionais. E para sempre eles vão carregar o convite da Vale do Rio Doce em sua cabeça. “Eles me proporcionaram este grande momento.” É uma forma de você ganhar o cliente, e isso é comércio puro, mas você ganha o cliente através do toque de emoção. Então, me parece ser esta a visão boa do diretor de marketing do terceiro milênio. Eu acho que as empresas poderosas, elas graças a Deus estão focando para a responsabilidade social, todas elas estão patrocinando suas comunidades, onde elas ficam, elas estão com preocupação ecológica. Todas as grandes empresas de terceiro milênio têm essa preocupação. E essa última, que é a que nos interessa, que é se associar a eventos de folclore, cultura popular, para respaldar a sua marca. Então eu acho que.. Que bom que estes diretores estão... Agora, se as empresas não têm enredos relacionados a si bons, que elas continuem patrocinando o carnaval através deste jeito. Você patrocina e traz os seus clientes para ver um bom espetáculo, independente de qual o enredo. Eu acho que todo mundo vai ganhar. O samba vai ganhar, a empresa vai ganhar, os clientes dele vão ganhar. Eu acho que ganha o Brasil. Ganha a festa do carnaval.
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O carnavalesco refere-se ao contrato de patrocínio firmado entre a Companhia Vale do Rio Doce e a escola
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Em uma entrevista ao jornal O Dia, você declarou certa vez que o desfile das escolas de samba estava chato. Você acha que ele continua chato, ou que talvez esteja ainda mais chato? Eu acho que o grande problema é a padronização das 14 escolas. Eu acho que quando descobriu-se que o júri só dá 10 para um modelo, todas as 14 focaram neste modelo e correram atrás disso. Com isso, você empobrece os ângulos possíveis de visão artística da festa. Seria bom se cada uma das 14 entrasse com um foco. Aí seria interessante porque aí o espetáculo fica como era: multifacetado. Onde nós tínhamos Fernando Pinto78, vindo com Tupinicópolis79, onde nós tínhamos Arlindo80, com o seu barroquismo, João81, com a sua maionese maravilhosa. Lage82 com o seu... Só que parece que esse amálgama... O funil foi fechando e as pessoas foram todas rumando em uma linha só. Parece que estamos redescobrindo os perfis. Parece que cada um está querendo voltar às suas linhas. Porque eu acho que esta é a única forma de, primeiro, o carnaval sobreviver como espetáculo interessante. Que o público não ache tudo igual. Que o público não diga: “Ai! Ai! Não! Mais cavalo! Mais palácio! Ai! Não! Não! Não! Cavalo, Não! Não quero rei, rainha! Não quero nada!”. E outra coisa: eu acho que vai chegar uma hora que só vai ganhar o prêmio do júri quem for alguma outra coisa. Então, eu acho que o júri mesmo já não está mais consolidando apenas um tipo de padronização. Eu acho que o próprio júri percebeu, e a Liga percebeu, que o espetáculo só vai para a frente... Porque nós temos o exemplo das Grandes Sociedades, não é? Que tombaram, não é? Então não pode tombar! Não pode! Então é preciso deixar os artistas viajar. É preciso manter os perfis de comunidades de cada escola. A Ilha tem que ser a alegre blocão maluca. A Beija-Flor tem que ser o peso de sua comunidade. A Mangueira tem que vir arrastando os chinelos. É importante. Os agogôs da bateria do Império. Isso tem que ser mantido. Tem que ser. Porque isso é a grandeza. Isso é a beleza, né? Mas a Portela está nos devendo um grande espetáculo de Portela, com perfil específico. Por exemplo, a Portela é um grande exemplo da perda de ângulo, de perfil. de samba Acadêmicos do Grande Rio, para o carnaval de 2003. 78 Carnavalesco, morto em 29/11/1986, em acidente de carro na Avenida Brasil. 79 Enredo do carnavalesco Fernando Pinto, apresentado pela escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, em 1986. 80 Rodrigues, carnavalesco, morto em 09/10/1987, de embolia pulmonar. 81 Milton Cunha refere-se ao carnavalesco Joãosinho Trinta, atualmente na escola de samba Acadêmicos do Grande Rio. 82 Renato Lage, atual carnavalesco do Acadêmicos do Salgueiro.
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Tínhamos uma coisa que tinha uma cara, que tinha um jeito, e perdeu-se. E temos visto que a própria comunidade não está satisfeita de ter se perdido no tempo. Então, as pessoas querem voltar ao perfil da Portela. E eu acho isso louvável. Eu acho que São Clemente tem que ser a crítica social, a irreverência que a notabilizou nos anos 80. Então, este ano estamos tentando voltar a um perfil que deu certo e que fazia com que o espetáculo fosse uma coisa diversificada, não é? Então, temos que voltar à diversificação.
O que você acha da presença dos artistas no carnaval? Se esses artistas freqüentarem as quadras, se esses artistas conhecerem a escola, eu acho louvável que eles emprestem sua notoriedade para a escola. Se eles usarem o lado contrário, a escola para a autopromoção e a autodivulgação, tô fora. Não quero, não aceito, não permito. Acho muito legal você ter artistas que gostem da escola, que vivam da escola, que vão nos ensaios, que cumprimentem... Porque tem gente que só chega com seguranças, na hora, sobe, não fala com ninguém. E na verdade, a energia não é boa, não é de troca. Isso aí é só se utilizar do queijo, do lugar no carro para se exibir. Então, o que mais me desespera é a falta da mulher de comunidade à frente da bateria. A passista real, a passista, a cabrocha do samba, tão importante, tão necessária, ela foi relegada ao amassa-amassa da ala de passistas. O lugar confortável, de visibilidade não tem. Não é verdade? Então, temos que manter essas mulheres neste lugar confortável, entendeu? Então, temos que ter mulheres de quadra, mulheres de quadra.
E isso é viável? É possível conter o assédio das modelos pelo posto à frente da bateria? Eu tenho visto assim exceções honrosas que acabam por justificar... Não é? A grande campeã deste ano, a Beija-Flor, traz uma menina de sua quadra, não é? Então, é honroso, né? A São Clemente traz à frente de sua bateria uma menina de quadra, uma menina que freqüenta todos os ensaios, que conhece todo mundo. Então, o que eu acho importante é a gente não sucumbir ao interesse passageiro do artista que quer usar a vitrine da Marquês de Sapucaí para se promover, e que não vive a festa, não vive a escola. Eu acho que a gente tem que bater nesta tecla. Então, na entrega do Prêmio Sambanet83, quando aquelas duas 83
O Prêmio Sambanet é entregue desde 1999 aos melhores do carnaval dos grupos de acesso A e B. Originário de uma lista de discussão sobre samba na Internet, o Sambanet premia um total de trinta categorias entre os grupos A e B. Em 2002, Milton Cunha foi convidado pelo corpo de jurados do prêmio, formado por
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legítimas representantes dos passistas brasileiros subiram no palco e tocaram neste assunto, Nilce, da Mangueira, e Aldione, da Vila Isabel, né? Duas mulatas legítimas, nascidas no samba, detentoras de vários prêmios, que dizem que as mulatas e os passistas estão relegados a um décimo plano na escola. Servem para tapar o buraco, quando a bateria entra. Não! O samba deve a essa gente respeito, como deve à Velha Guarda. São pessoas que sambam, que freqüentam a quadra, que animam. São vedetes. São vedetes. Vedetes no melhor sentido. As vedetes que desciam das escadarias do Carlos Machado, com seus plumeiros. Então, o confortável lugar da rainha de bateria tem que ser de uma Aldione, de uma Nilce. Essas mulheres sambam verdadeiramente. Deram a sua energia pro mundo do samba. Por que amassá-las na ala? Por que deixar a modette famosa confortável ali na frente? Incompreensível! Incompreensível! Eu já não aceito nem nos carros alegóricos, quanto mais naquele lugar confortável. Então, Deus salve a Beija-Flor, que faz isso. Maravilhoso!
Você acha que a imprensa pode ser responsável por este assédio de famosos, por eles privilegiarem os artistas na cobertura? A cobertura é em cima do padrão global. A cobertura é Rede Globo. Então, quem está na mídia é quem a Globo elege para mostrar e vira um círculo vicioso. Porque o público, que não é alertado para a existência de legítimas mulheres, através da cobertura, aplaude suas estrelas de televisão. Só que não percebe que no crivo de quem escolheu as imagens, o fotógrafo do jornal, o editor de imagens da televisão, não foi dado a ele a oportunidade de aplaudir uma segunda opção. Quer dizer... Claro! O público quer seus artistas. Só que se ao lado do artista nós equilibrarmos e mostrarmos sambistas que o público não conhece, mas que nós temos certeza de que ele aplaudirá. Porque eles não vão vaiar uma Aldione, uma Nilce. Mas aí não dá tempo. Tem que fazer um critério de escolha. E entre a passista e a modette, sai a modette. Pelo menos que a mídia acordasse para a necessidade do equilíbrio. Não vamos pedir que eles ignorem os artistas, porque o público também quer ver seus ídolos, mas vamos tentar criar ídolos do carnaval. Vamos tentar criar vedetes e estrelas para
17 membros, a apresentar a festa de premiação, exercendo a função desde então, ao lado do radialista Eugênio Leal.
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que o povo possa... “Olha a Sônia Capeta!84 Olha lá a Dona Iracema, do Salgueiro”. E o público brasileiro ele é muito generoso, no sentido de que ele sabe que precisa aplaudir o povão. E eles aplaudiriam. É claro que a mídia tem uma responsabilidade enorme em focar para o verdadeiro passista. Claro.
E com relação à teatralização do desfile? Deste modelo que se expandiu da comissão de frente? Mais um passo para a perda da espontaneidade, para a perda do sucesso individual dos passistas. O interessante do desfile é que ele... Ali podem surgir pessoas que não devem estar presas a uma coreografia. Então, coreografar um carro, tá bom. Mas deixa o resto descoreografado. Uma ala, tá bom. Mas no dia em que padronizarem tudo, a gente perdeu o espetáculo de alegria e soltura que o carnaval é. Então, é preciso manter a alegria e a soltura.
Quando você está preparando um carnaval, você pensa no público presente e também no que assiste pela TV? Olha, não, não. Eu só penso lá ao vivo. Eu só penso lá ao vivo. Porque é tão... A transmissão, ela é tão lá deles que não teria... Só se eles desenvolvessem com a gente um trabalho de parceria. Pra gente compreender o que eles querem, como eles querem. Só que eu acho que aí a gente estaria invertendo as coisas. Porque eles têm que estar a nosso serviço. Eles que se virem para mostrar da melhor maneira possível e eles não têm conseguido. Porque eles picotam muito. Então, se você for ver a Unidos da Tijuca85 desse ano, o acidente da Neuza Borges86 fica em cena vinte minutos. E os carros não são mostrados. Então, eu nem penso na transmissão na hora em que eu estou fazendo. Eu só penso no ao vivo. Porque eu acho que é muito específica a linguagem da TV e os interesses da TV e o que eles querem mostrar. Eu não vejo neles grande preocupação em narrar a história: ala tal, ala tal, ala tal, ala tal, carro tal, ala tal... Não passa nessa seqüência, não 84
Passista da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, foi madrinha da bateria da agremiação até o carnaval de 2002. 85 O carnavalesco foi o responsável pela criação e desenvolvimento do enredo Agudás, os que Levaram a África no Coração e Trouxeram para o Coração da África, o Brasil, apresentado pela escola no carnaval de 2003. A Unidos da Tijuca foi classificada em nono lugar no grupo especial. 86 A atriz Neuza Borges caiu de um dos carros alegóricos da Unidos da Tijuca durante o desfile da escola.
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passa. É picote. Então já que é picote deixa eu fazer o meu conjuntão completo ao vivo e o picote vai ser o picote. Porque se chove, se alguém cai do carro, muda tudo. Muda tudo, o teu enredo vai para o espaço. Se pega fogo no carro, vai tudo pro espaço. Então, seria muita ansiedade investir em uma coisa que já nasce perdedora. Não vai dar certo. Na hora eles vão mostrar... Se uma moça tira o biquíni só vai dar ela. Não penso neles, nunca.
E as luzes? Eu acho que a intensidade do branco ainda não é boa. Na hora que eles acendem tudo, o nível de lux, de intensidade de luz, ainda é penumbra. Eu acho que eles têm que triplicar a quantidade de holofotes. O primeiro ano foi 90. Tava horrível. No segundo ano, subiu para 130. Não tá bom. O nível de branco batido não é bom. E eu que dependo de luz, porque eu faço um carnaval explosivo, eu faço carnaval multicolorido. Então, ainda que esse ano eu vá fazer todo em preto e amarelo, mas os meus amarelos tendem para o laranja, e os meus pretos intensos vão dar o contraste com o branco. Então eu dependo de luz. E eu ainda não gosto da luz. Mas se eu não gosto da luz, eu odeio o som. Eu odeio o som! O som me descabela! Um espetáculo que depende do canto e aquele som que explode. Você viu esse ano? Explodiu o som logo no começo, quando ia abrir o espetáculo. Um horror! Então, se o nível de branco da luz ainda não me resolve, mas pelo menos ela não é tão trágica, a luz, quanto o som. O som precisa de investimentos urgentes.
O som torna indiferente o fato de as pessoas cantarem ou não. É verdade. Antes você tinha que cantar. Tinha que cantar. E se você vê que o que você está cantando está sendo abafado por aquilo, você se sente meio que um doido, um maluco, entendeu? Para que eu vou cantar se já está tão alto isso aqui? Né? E o fato de você realmente a plenos pulmões cantar, isso te ajuda na alegria. Isso te ajuda a suar. Isso bota o teu corpo para cima. Então... Mas há sérios problemas no desfile. As harmonias estão amassando demais as escolas. As pessoas não conseguem mais dançar. O tamanho dos esplendores não deixa rodar. Então, meu Deus... São tantas variantes abafando o sambista que puta que pariu, tá difícil, entendeu?
E com relação ao Sambódromo? Eu sei que você não fazia carnaval antes dele, mas...
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Não, não, mas acho longe, acho distante, acho frio, acho longe... Acho longe. Vejo só pontos de alfinete, cabecinhas... Não muito animados...Não muito animados. Então, acho complicado...
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ANEXO 4 João Lara e Renata Mondelo Entrevista com o gerente de Marketing Institucional da Companhia Vale do Rio Doce, João Lara, e com a publicitária Renata Mondelo, integrante do setor de Atendimento do Departamento de Comunicação Institucional da Companhia Vale do Rio Doce, concedida em 04 de junho de 2003, na sede da empresa.
Em primeiro lugar, eu gostaria de saber como foi o início da parceria com a Grande Rio. Foram vocês que procuraram a escola ou a escola que procurou vocês? JL – Eu prefiro começar antes até, se você não se importar. Na realidade é o seguinte: a Companhia Vale do Rio Doce, desde a privatização, vem passando por alguns momentos importantes. Sendo que o mais importante foi o descruzamento acionário, ou seja, a saída da CSN do bloco de controle da Vale. Com a saída da CSN, ficou a Bradespar e a Previ como os dois grandes controladores da empresa. Com isso, foi possível estabelecer um modelo de governância corporativa muito claro, com papéis muito bem definidos. O que o conselho faz: mudar a composição da diretoria executiva e trazer alguém de absoluta confiança dos controladores para presidir a empresa, que foi o Roger Agnelli. O Roger Agnelli chegou à presidência da Vale em julho, agosto de 2001. Em dezembro, no último dia útil do ano, ele dispensou o Carlos Pousa, que era o homem de Comunicação da Vale, que tinha feito um trabalho muito bom, muito reconhecido pela empresa, mas que a empresa julgou que era hora de mudar a comunicação da Vale. Ela contratou uma consultoria a LMS, de São Paulo, a empresa do Murilo Salles, e tal, para estudar a comunicação da Vale. Essa empresa ficou cinco anos trabalhando dentro da Vale, entendendo os negócios da Vale, os públicos da Vale, e entre as ferramentas que usou foi uma pesquisa qualitativa, feita por foco/grupo, de todos os públicos de interesse da Vale. Ela conversou com clientes, mercados financeiros, com a imprensa, com Ongs, com a opinião pública, pura e simplesmente, em várias praças importantes para a empresa, e a grande conclusão é de que a Vale era uma empresa conhecida, mas ninguém sabia o que é que a empresa fazia. Era uma empresa admirada, mas não era uma empresa querida. O principal atributo talvez é que a empresa era fechada, era distante do público, passava um
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certo ar de arrogância. E com isso a gente meio que... Essas pesquisas traçaram um caminho que a Comunicação teria que perseguir para se reposicionar, para reposicionar a marca Vale. RM – Ninguém sabe o que é uma mineradora e confundiam muito a gente com a CSN, com a siderurgia. Ninguém entendia o papel da mineração. A gente quer que o Brasil saiba que nós somos a empresa que mais contribui para a balança comercial brasileira. Nós somos a maior empresa brasileira, junto com a Petrobras, então, somos motivo de orgulho, sim, e a gente tem que fazer o brasileiro sentir orgulho da gente, porque ele não sentia. Na pesquisa que a gente fez ele não seria capaz de defender a Vale, e ele mesmo colocou isso na pesquisa, porque eu não conheço a Vale do Rio Doce. Como é que eu vou defender uma coisa que eu não conheço. Então, começamos por aí. A Vale queria ser motivo de orgulho para os brasileiros. JL – Bom, com isso, uma série de medidas foram tomadas. A área foi inteiramente reestruturada, novos perfis de profissionais foram traçados e buscados dentro e fora da empresa, e tal. Montou-se uma nova maneira de se fazer Comunicação na Vale. Conversando com, isso aí já eu, conversando com o Ênio Rodrigues, que era quem estava captaneando esta consultoria pela LMS aqui na Vale, a gente estava tentando bolar uma maneira de dar um kickoff, para todo esse processo de reposicionamento. Pensamos em reveillon, pensamos em várias alternativas e tal, e a Vale tinha já alguma experiência de carnaval. Não de patrocinar escola, não de um envolvimento grande, mas de levar cliente para ver o desfile, montar pequenos camarotes, ela própria, ou alugar espaço no camarote do Maurício Mattos87, enfim, e sempre com muito sucesso. Sempre agradou muito os clientes. Bom, uma das coisas que a Vale queria fazer era se aproximar da opinião pública mesmo, né? Então, decidimos pensar no carnaval como oportunidade de fazer isso: associar os atributos do carnaval aos atributos da Vale. A gente tinha informação de que o Joãosinho Trinta sempre quis fazer um enredo sobre o reino mineral. E aí procuramos o Joãosinho. O Joãosinho falou: “Pô, já tenho essa coisa encaminhada, inclusive. Já tenho estudos, já tenho idéias e tal, pá, pá, pá”. E a gente falou: “Dá uma pensada nisso que a gente quer levar isso
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para a diretoria para ver se a diretoria topa que a gente faça um projeto integrado de comunicação, tendo o carnaval como centro”. Fechamos esse projeto, que envolveria patrocinar uma escola que contaria a história da mineração no Brasil, que é... Fatalmente passa pela Vale. A partir da fundação da Vale é a história da mineração, e a história da Vale se mistura. E pensamos também em montar um grande camarote, trazer nossos principais parceiros do exterior, os principais formadores de opinião, enfim, os principais públicos de interesse da Vale para cá. A gente começou com uma estimativa de 150 pessoas para os três dias de carnaval e acabamos com 1.070. E fizemos um projeto muito grande. Um projeto envolvendo quatro dias de permanência com a Vale, para o público A, vamos dizer assim, e outros 21 tipos de convites aí, nesse meio tempo. Você tinha desde o convite para tudo até o convite para o Sábado das Campeãs.
E o que seria esse tudo? JL – Esses quatro dias nós daríamos hospedagem... O sujeito chegava do exterior, era recebido no aeroporto no sábado de manhã, levado para o Hotel Sofitel, que estava todo ele decorado com uma marca que nós criamos para o evento. Ele chegava no quarto dele, ele encontrava um bolsa de palha de jalapão, e tal, com camiseta no tamanho dele, sandália no tamanho dele, canga para a mulher, chapéu para o homem, bolsa, enfim... Uma série de itens de encantamento, né?, encontrava a programação do dia, encontrava o jornal sobre o Rio de Janeiro, com as principais coisas do carnaval no sábado, restaurantes, vários tipos de restaurantes, porque ele poderia sair para jantar desacompanhado, enfim... Recebia uma cópia do principal jornal do país de origem dele, tirada da Internet, e assim por diante. No sábado à noite, nós fizemos um gigantesco jantar no Forte de Copacabana, a Bel Gomes construiu duas tendas maravilhosas para nós. Mas tendas com... Eu nunca tinha visto nada igual, quer dizer, você fazer tendas com bancadas de mármore nos banheiros. Uma coisa sofisticadíssima, maravilhosa, tal. Isso seria o jantar de boas-vindas. Nesse jantar a gente exibiu um filme especialmente criado para este evento. Teve que ser projetado por três câmeras porque a proporção da tela, se não me falha a memória, era nove por 21, o que exigiu essa técnica para projetar. E essa técnica dava boas-vindas a um Brasil... Não um Brasil estereotipado, de mulheres bonitas, de samba, carnaval, praia, tal... Mas um Brasil 87
Empresário, dono da revista Rio, Samba e Carnaval, que todos os anos monta um camarote em toda a
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industrializado, um Brasil possante, um Brasil inserido na economia globalizada. Depois disso, o Roger Agnelli fez um discurso em português, legendado em inglês na tela. Escolheu a língua portuguesa para já... Ele começa o discurso dizendo: “Eu vou falar em português para que vocês se acostumem com a sonoridade e a musicalidade da nossa língua, tal, pá, pá, pá”. Depois, um show musical. Você tinha um praticado móvel no palco que veio da direita para a esquerda, começando com chorinho, passando por samba, passando por samba-canção, passando por bossa nova, até chegar no samba de raiz, para terminar com samba-enredo. Quando esse pequeno conjunto, acho que eram sete pessoas, entrava no samba-enredo, entrava a bateria da Grande Rio, os passistas, e tal, e fazia um pequeno show de 15 minutos no palco e depois descia para o chão do jantar, tiravam os convidados para dançar. Foi um sucesso delirante. RM – No meio dessa programação, na terça-feira, a gente colocou uma ida ao Porto de Tubarão, em Vitória. Por que aconteceu a ida ao Porto de Tubarão no meio do carnaval? Porque a área comercial solicitou pra gente que a gente fizesse uma programação de trabalho, porque os clientes poderiam não ter justificativa para vir pro Brasil. Tipo vou para o Brasil, carnaval, tal. Então, faz uma programação de trabalho no meio do carnaval. E por incrível que pareça, 80 pessoas foram ao Porto de Tubarão. A gente fretou uma nave, mas a gente achou que ninguém ia, né? Achou que todo mundo ia estar cansado. Mas os asiáticos queriam conhecer o porto e foram. Outra coisa superlegal: antes de ir para o Sambódromo, a gente fazia um coquetel de costumização. Isso foi o maior sucesso. O que era isso? A gente estava com aquela galera. Como é que a gente ia fazer pra todo mundo entrar no ônibus, ser tudo organizado? Então, a gente pegou maquiadores, costureiras, cabeleireiros, e fez um grande set de costumização. Com espelho... Aí a pessoa chegava lá e começava a se costumizar. “Eu quero que você rasgue a minha camisa. Eu quero que você coloque purpurina. Eu quero que você coloque flores.” Enquanto isso, a gente ia conseguindo fazer um grupo sair, outro grupo sair, outro grupo sair, sem a confusão. E esse foi o maior sucesso do carnaval. As pessoas não queriam sair do coquetel. Foi muito legal.
extensão do setor 5 da Passarela do Samba.
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JL – A ação no Sambódromo foi muito grande, foi inédita. Isso dito pelo próprio Capitão Guimarães88, pelo próprio coronel Hélio89, pessoal da Liesa. Nós compramos o pórtico de entrada do lado ímpar do Sambódromo e fizemos uma mina da Vale do Rio Doce, onde as gemas eram os instrumentos musicais, as fantasias do carnaval, com o indicativo “Aqui tem Vale do Rio Doce”. Na borda de alumínio de um tarol: “Aqui tem Vale”. No filamento de uma lâmpada: “Aqui tem Vale”. No caulim que tinge o couro de branco: “Aqui tem Vale”. E assim por diante. O camarote, nós fizemos o envelopamento mais grandioso da história do Sambódromo também. Envelopamos todo o setor 9. Dois corações de fundo preto e dois corações verde e amarelo escrito “Vale” pulsavam. No centro, uma baiana, que era a marca do evento, com o nome do enredo, O Nosso Brasil que Vale e o logo da Companhia. Fizemos um camarote simplesmente espetacular. Nunca houve nada parecido. Isso tudo... Por isso que a Vale às vezes dá impressão de passar uma certa arrogância (risos). Porque realmente quando faz, faz em uma escala tão grande, tão caprichada, tão cuidada, tão... que a gente acaba falando coisas desse tipo. Pelos próprios testemunhos das pessoas que estão acostumadas com o Sambódromo, desde o pessoal da Liesa até o próprio Maurício Mattos, que tem um camarote lindíssimo, falou: “Pô, o de vocês ficou realmente um espetáculo”.
Eu freqüento o Sambódromo há alguns anos e nunca vi nada igual... Além dos camarotes, vocês alugaram também as frisas do setor 9? RM – A gente pegou sessenta lugares ali embaixo, pra gente fazer a circulação. Até porque, na hora, a gente sabia que na hora do desfile, a gente queria colocar ali a diretoria executiva, o presidente ali, né? Vivendo o que estava acontecendo. JL – É importante dizer que no caso da Vale, pra levar o assunto à diretoria, antes de levar o assunto à diretoria, nós consultamos dois grandes especialistas brasileiros em cultura popular. Pedimos pareceres para o Ricardo Cravo Albim e pro Roberto Da Matta, para saber o que é que eles achavam de uma empresa com o perfil da Vale estar patrocinando o carnaval. E os dois foram unânimes em dizer que o carnaval é a mais legítima manifestação da cultura popular brasileira. A Vale é uma empresa eminentemente brasileira, que era um casamento perfeito, que isso poderia, eventualmente, consagrar a marca Vale. 88
Ailton Guimarães Jorge, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba.
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Como é que foi a adesão dos estrangeiros ao convite? RM – Olha, foi muito alta. A gente teve até problemas com isso. Porque a gente tinha trezentas pessoas para convidar. E todo mundo: “Pode convidar. O cara não vem, tá na China. Pode convidar”. E chegou uma hora que a gente teve que leiloar um outro camarote para usar os convites, porque a gente teve uma adesão maior do que a esperada. E a gente se viu em apuros, porque eu não posso falar: “Olha, não vem, não”. A gente teve maus momentos aí. A gente teve que leiloar o camarote do governo. A Rosinha estava leiloando o camarote dela. A gente aproveitou, pegou o camarote. Nós não usamos, mas para poder ter os ingressos. Porque a Riotur dá aquele número limitado. Não tem jeito. Não consegue mais.
E houve alguma reação da direção ou o projeto foi facilmente aceito? JL – Não foi. A Vale é uma empresa conservadora. Foi preciso três abordagens, vamos dizer assim, junto à diretoria para conseguir passar. Mas a gente tinha o melhor aliado do nosso lado que era o presidente. O presidente estava convencido que seria uma coisa muito boa para a empresa, que se a gente fizesse direito, a gente estaria marcando um grande ponto junto a todos os grupos de interesse. E para nós mesmos, criando uma nova cultura de atitude na empresa. E ele insistiu, insistiu, nós insistimos, ele apoiando, o presidente, a Carla Grassi, que é diretora de Recursos Humanos e Serviços Corporativos, que é diretora da área de Comunicação, deram um suporte enorme para isso e a gente conseguiu vender o projeto para a diretoria e pro conselho e foi um sucesso. RM – A gente teve muita crítica. “Por que a Vale está inventando de patrocinar o carnaval? Associar a Vale a bumbum, a jogo do bicho?”. Na verdade, isso depois ficou claro lá na frente com a campanha publicitária, que a Vale queria se associar não ao bumbum nem ao jogo do bicho. A gente queria se associar aos atributos do carnaval. O carnaval é uma festa eminentemente brasileira, que tem valor lá fora. É reconhecido o nosso trabalho, nossa capacidade de realização. A gente foi vendo tudo que a gente se parecia. O carnaval é
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Hélio Costa da Mota, diretor comercial da Liga Independente das Escolas de Samba.
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alegre, é bem-aceito. A gente queria ser igual ao carnaval. A gente quer ser alegre, quer ser bem-aceito. Então a gente pegou os atributos, com o que a gente queria se parecer.
Qual foi o investimento total? Os jornais falaram em R$ 6 milhões... JL – Olha, eu prefiro não falar nisso, mas foi um pouco mais de R$ 6 milhões. Porque R$ 6 milhões... A gente planejou R$ 6 milhões, né? Nós demos R$ 2,5 milhões para a escola e o resto seria para custear os outros aspectos do projeto. Mas o projeto começou a entusiasmar tanto a empresa, tanto, tanto, que a gente foi aumentando, a gente foi agregando novos programas, novas ações dentro do projeto e com isso ele cresceu. Pra você ter uma idéia, nós trouxemos cem empregados das áreas operacionais para desfilar.
E como é que foi essa participação dos funcionários? JL – Foi uma loucura. Começou os empregados contra. A divulgação aconteceu pela mídia em junho, que era época de negociação coletiva. Então, naturalmente nesta época os ânimos ficam acirrados, os empregados questionando por que a empresa estava gastando dinheiro no carnaval, em vez de reverter estes recursos em benefícios e facilidades. O próprio corpo gerencial tinha dúvidas. Mas nós da Comunicação fizemos um trabalho de corpo-a-corpo. Cada gerente da área de Comunicação viajou, foi para as áreas operacionais divulgar, explicar o que era o projeto carnaval, que não era um projeto isolado, que fazia parte de um projeto maior de reposicionamento de marca, e que a gente tava querendo trazer para a Vale determinados atributos, que não eram identificados com a empresa. E conseguimos vender isso e quando começou a campanha para os cem empregados, o que a gente decidiu fazer? Cada unidade operacional da Vale vai ter um determinado número de fantasias de acordo com o número de empregados. E esses empregados serão escolhidos pelo voto direto. Então, isso permitiu campanhas, permitiu concursos, permitiu todo tipo de ação que envolveu a empresa aí, durante trinta, quarenta dias, em carnaval. A pessoa chegava no restaurante para almoçar, tinha alguém na porta sambando com um cartaz “Vote em mim para ir ao Rio representar Itabira”. A menina veio para o Rio, foi a um ensaio da Grande Rio, tirou uma foto com o Joãosinho Trinta, mandou fazer uma camiseta: “Joãosinho me quer na Sapucaí. Vote em mim”. E assim por diante. Altamente criativos, altamente bemfeitos, e envolvendo um número enorme de empregados. Isso acabou revertendo essa
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resistência inicial para apoio total. Perto do carnaval, acho que todos os empregados da Vale já sabiam o samba-enredo, já tinham votado, já estavam torcendo. Foi uma coisa muito, muito bonita. E os empregados que vieram para o Rio foram tratados com toda a pompa e circunstância. Receberam um tratamento muito cuidadoso, e voltaram para as áreas muito felizes.
O que representam R$ 6 milhões no mercado de marketing? Se a gente quisesse fazer um paralelo, daria para fazer o que com esse valor? JL – Para você ter uma idéia, no carnaval nós veiculamos uma campanha, em revista e na televisão. Seguindo a mesma linha da escola, falando no Brasil que Vale, falando nesses atributos que a Vale queria trazer para perto de si. Essa campanha custou um pouco mais da metade dos R$ 6 milhões. Em torno de R$ 4 milhões. RM – O que saiu de matéria espontânea, a gente fez um estudo, e totalizou R$ 38 milhões, caso a gente fosse pagar.
Esse investimento todo foi revertido para a empresa? JL – Nós temos absoluta certeza. Primeiro porque todos os clientes, todos os formadores de opinião, todos os prospects, queriam, adoraram o evento. Nós recebemos elogios lá, durante o evento, depois do evento, cartas. E nós demos prosseguimento, inclusive, a esta questão do Brasil que Vale, né? Um mês depois do carnaval, nós mandamos um DVD para cada convidado mostrando os melhores momentos, vamos dizer assim, do programa. Não só isso. Mas negócios mesmo foram fechados durante o carnaval. Então... Acordos que estavam aí empacados, que estavam já adiantados, mas que não tinham sido fechados... Esses empacados andaram, os que estavam para ser fechados efetivamente foram fechados. Nós assinamos um contrato com uma empresa chinesa, no valor de US$ 200 milhões, se não me falha a memória, no domingo de carnaval. Então, a empresa considera que o retorno foi muito, muito positivo e o investimento plenamente justificado. RM – Como o João falou, esse projeto foi apresentado quatro vezes. Ele foi gongado, gongado, gongado e aceito na quarta. A diretoria executiva e algumas áreas eram muito
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contra. Disseram que a gente estava gastando dinheiro à toa, que isso nunca seria revertido. No primeiro dia, o Roger fechou o contrato de US$ 200 milhões de dólares. Isso logo no primeiro dia. Depois, no dia seguinte, ele fechou outros. Mas isso aqui já paga tudo. É tudo. A gente gastou R$ 8 milhões e o contrato que ele fechou, além de tudo isso aqui, ele fecha um contrato de US$ 200 milhões. Então, Roger ficou encantado. Ele quer fazer carnaval todos os anos.
Com relação ao investimento na escola, se a Grande Rio não desenvolvesse um enredo sobre mineração, vocês patrocinariam da mesma forma? JL – Olha, eu não sei. A impressão que eu tenho, quer dizer, a certeza que eu tenho é que teria que ter uma ligação muito forte com alguma atividade da empresa. Mineração é a nossa principal atividade. Então, você falar de mineração a princípio interessa para a Vale. Outra coisa, sinceramente não sei, teria que ser examinado. Quer dizer, a Vale não pretende fazer do carnaval a plataforma da sua Comunicação.
Então vocês não pretendem continuar investindo em carnaval? JL – Não, a Vale não pretende. Possivelmente, esse ano, a gente tenha um pequeno camarote, a gente tenha alguma presença no carnaval, mas não uma ação integrada como foi em 2003.
E com relação ao desenvolvimento do enredo? Vocês acham que foi satisfatório? JL – Nós participamos em um momento. O Joãosinho Trinta tinha colocado que a Vale, nos seus programas sociais, atuava em educação, cultura e esportes. A Vale não atua em esportes. Nós pedimos para ele tirar isso. Foi a única interferência da Vale no enredo. RM – O que a gente pediu para a escola isso aqui, tá?. A gente tinha que botar os empregados desfilando, a gente queria botar os clientes desfilando. Então, a gente pediu uma intervenção de alas. Então, a gente teve quatro alas representando os negócios da Vale, né?
E vocês gostaram do desenvolvimento do enredo?
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JL – Muito. O Joãosinho é genial, né? Conversou conosco em determinados momentos. “O que vocês acham disso? O que vocês acham daquilo?”. Nós palpitamos quando achamos que devíamos. Em muitos casos não palpitamos. “Você decide”. E achamos que foi um desfile maravilhoso, antológico. Ficamos na maior felicidade por a escola ter atingido um outro patamar de posicionamento.90
Foi a melhor colocação da Grande Rio... JL – E a relação com a escola foi muito boa. Isso eu acho que vale a pena ressaltar. A escola de samba foi de uma correção...
E como é que foi esse acordo? Vocês em algum momento tiveram o temor de que a coisa não fosse feita conforme o combinado? JL – Olha, não. Nós fizemos um patrocínio, um acordo de patrocínio mesmo. Onde nós daríamos uma determinada quantia em troca de contrapartidas. Mas não havia contrapartida do tipo “Nós queremos um desfile assim. Nós queremos um enredo assim”. A contrapartida era de que seria feito um enredo sobre mineração, que a Vale teria direito a tantos ingressos nos ensaios, que a Vale seria mencionada na divulgação na imprensa. Uma contrapartida muito simples e muito genérica. E a escola respeitou não só essas contrapartidas, mas todo pedido que a Vale fez a escola atendeu. Vale ressaltar que o Jayder Soares 91 e o Helinho de Oliveira92 foram absolutamente geniais. Quebraram vários... Resolveram situações aí... A partir de janeiro, todo sábado que tivesse um cliente da Vale no Brasil, a gente incluía o ensaio da escola de samba. E eles foram gentilíssimos com questão de camarote, segurança, infra-estrutura no Monte Líbano93. Toda vez que alguém quis ir ao barracão, qualquer dia da semana, tinha sempre alguém lá. Joãosinho Trinta visitou as áreas operacionais da Vale, fez palestras para os gerentes, conversou com os empregados, encantou as áreas operacionais da Vale. Nada disso estava previsto. Foi muito boa. Com a Liesa também. A Liesa ajudou profundamente a Vale. Tudo que nós pleiteamos nós conseguimos. A relação 90
Com o desfile O Nosso Brasil que Vale, a Acadêmicos do Grande Rio conquistou a terceira colocação no carnaval de 2003, a melhor colocação de sua história. 91 Presidente de Honra da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio. 92 Presidente Administrativo da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio. 93 Próximo ao carnaval, a Grande Rio promovia, aos sábados, ensaios no Clube Monte Líbano, na Lagoa, além dos ensaios na quadra da escola, em Duque de Caxias.
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aí era mais comercial também. Mas todo tipo de facilidade, de idéias, do que é possível, do que não é. Toparam tudo, e tal.
Então houve uma postura bastante profissional? JL – Muito, muito, muito profissional. Muito correta, né? Tivemos um apoio muito grande também da Ana Maria Maia, em nome da prefeitura do Rio de Janeiro. Tudo que foi preciso a Ana Maria ajudou. Tinha muita gente torcendo para isso dar certo. As pessoas estavam vendo que podia ser uma mudança de conceito em relação a carnaval. Foi a primeira vez, não só na minha lembrança, mas também na lembrança da Liesa, que se usou o carnaval institucionalmente. A Vale não tem varejo. Não é Bob´s, não é Brahma, não é... A Vale estava trabalhando a marca Vale. Naturalmente isso abre um caminho enorme, enorme, pro samba no Rio de Janeiro. Amanhã, eu vou almoçar com o consulado da China, que está sendo procurado por uma escola para patrocinar um enredo este ano. O consulado me procurou para saber que relação foi essa. Como é que foi a experiência da Vale no carnaval. Felizmente, eu vou poder dizer: “Olha, foi muito boa”.
Vocês acham que com este tipo de patrocínio o carnaval também sai da imagem do bumbum e jogo do bicho? As escolas de samba ganham com isso? RM – Muito. Vou te dar um exemplo: na semana passada eu estava jantando e atrás de mim estava um dos diretores da Liesa. Mas ele não estava me vendo. E ele estava vendendo o carnaval para um empresário. Eu não sei quem era. E ele falava: “Você não viu como foi pra Vale do Rio Doce investir no carnaval?”. Aí olhei assim e ele me viu. Mas, enfim, ele estava usando o exemplo da Vale pra vender o projeto dele. E vende, porque você vê que ali fica a marca da Kwat, Brahma, camarote de Brahma, enfim, todo mundo quer tirar proveito. Porque, assim, uma empresa como a Vale do Rio Doce investir no carnaval levanta a bola de qualquer um. O Windows está lançando a nova plataforma dele através de uma escola, não sei se é a Caprichosos94. O Roger está sendo abordado por vários empresários, pra gente contar como foi essa história. Deu muito certo.
94
Escola de samba Caprichosos de Pilares.
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O regulamento não permite a veiculação da logomarca. Vocês acham que isso dificultou? RM – Não. A gente teve... As regras do jogo foram colocadas bem no início. A gente colocou a gente quer isso, isso e isso. E eles foram claros: “Isso não pode, isso não pode, isso não pode”. O que tinha dúvida, a gente ia à Rede Globo e Liesa e tirava aquelas dúvidas na hora. A Liesa também é muito séria. A gente também não sabia disso. A gente ficou impressionado. É uma grande empresa funcionando.
E a escolha da Grande Rio foi por causa do Joãosinho Trinta? Quer dizer, vocês escolheriam a escola em que o Joãosinho estivesse? JL – A gente tinha uma pessoa que trabalhava conosco, que tinha uma facilidade de acesso a ele, foi ligar, marcar uma reunião... Na primeira reunião, conversamos. Ele falou: “Acho bom. Vou pro Jaider, Helinho, o que vocês acham?”. Vamos, vamos, foi.
Que ações foram feitas em torno do Sambódromo, além das que vocês já citaram? JL – Fizemos, naturalmente, uma especial para a revista Rio, Samba e Carnaval, bilingüe, porque interessava pra gente atingir o público do Sambódromo, estrangeiro e brasileiro. Nós fizemos na Liesa News. Nós fizemos essa ação do coração pulsante, que foi um sucesso total. Nós distribuímos 45 mil corações pulsantes. Isso foi feito por uma Ong de Caxias, que a gente contratou para fazer essa distribuição. Ficou muito bonito e foi um grande sucesso. Acho que essas são as principais ações. O envelopamento, a mina, do pórtico, a entrada, o envelopamento, os coraçõezinhos. O camarote propriamente dito. Um espetáculo. Serviço requintadíssimo. Padrão AA. O que mais? Aqui no Brasil, nós fizemos um jantar de chegada no Forte de Copacabana, um almoço na segunda-feira, na Casa das Canoas, uma feijoada. Fizemos um churrasco de despedida no Rio´s, com um show de outras danças típicas brasileiras, naquele pátio de fora, ali, dando para o Corcovado, em uma noite linda, de lua cheia. Deus ajudou também, porque tudo conspirou ao nosso favor. Ninguém foi assaltado, ninguém teve nenhum problema. O projeto era tornar a visita uma visita inesquecível através do encantamento que só o carnaval faz possível. Tem outros países com coisas maravilhosas, a gente sabe disso, mas carnaval só nós temos. A gente
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usou isso como uma base para enfrentar este público que está acostumando com o que há do bom e do melhor no mundo.
Quantas pessoas trabalharam nesse projeto? RM – Seiscentas. No top, no top, assim, no dia do carnaval, a gente estava com seiscentas pessoas trabalhando ao mesmo tempo. Tinha gente distribuindo coração nas arquibancadas, tinha gente do bufê, tinha gente da segurança, gente da limpeza... No top do evento, a gente tinha seiscentas pessoas trabalhando.
Quando vocês começaram isso, e tiveram o projeto quatro vezes recusado, vocês tinham noção que se transformaria num divisor de águas dentro do carnaval? RM – Não, não tínhamos. Não tínhamos mesmo. Na verdade, acho que a gente nem sabia o que ia acontecer, que ia ficar desse tamanho. Porque no meio do projeto a gente teve que chamar mais gente para trabalhar, porque a coisa foi crescendo, foi crescendo... A gente não sabia que ia ser assim, nunca. Nossa! Quando a gente via no jornal, a gente aparecendo, aparecendo. Porque o boom foi realmente na semana do carnaval. A gente não parava de aparecer. A gente não dormia. Foram dias intensos, ininterruptos de trabalho. E ao mesmo tempo o gás todo da satisfação de estar vendo que está tudo dando certo. Os clientes emocionados. Eu tenho um book de depoimentos, que todos que chegavam eu guardei. Várias pessoas dizendo: “foi o evento mais bem organizado que eu já participei na minha vida. Muda a minha visão de Brasil a partir desse evento. Muda a minha visão da Vale a partir desse evento”. A gente ficou muito feliz.
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