O que dizem os tambores? A macumba e o samba como poéticas da subversão

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O que dizem os tambores? A macumba e o samba como poéticas da subversão Conferência realizada na Universidad Nacional de las Artes (UNA), Buenos Aires, Argentina. 10 de outubro de 2017 MARCOS RAMOS

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Agradeço a presença dos senhores aqui hoje, agradeço especialmente ao professor Eduardo Corbo Zabatel, a Cátedra Livre de Estudos Brasileiros e as pessoas desta Universidade que tornaram possível este encontro. Para iniciar esta exposição que será seguida de uma conversa, gostaria de dizer que se por um lado meu objetivo é apresentar certos aspectos que constituem a formação cultural do Brasil, com ênfase nos elementos africanos presentes nesse amálgama;; por outro lado, há um objetivo político e urgente de denúncia internacional do atual cenário de discriminação religiosa e racial presentes no país. No mês de setembro, no Brasil, pelo menos dois vídeos foram amplamente compartilhados nas redes sociais expondo casos de violência por motivação racial e religiosa. No primeiro deles, um homem adepto à religião de matriz africana é obrigado a arrebentar todos os colares que simbolizam sua devoção religiosa, o que chamamos de guias, e é terrivelmente ameaçado: “É só um diálogo que estou tendo com você”, afirma o agressor portando um bastão de madeira, e completa: “Da próxima vez eu mato”. Em outro vídeo, uma Ialorixá é obrigada a quebrar todas as imagens presentes no espaço onde se realiza o ritual. Segundo o agressor, as imagens precisam ser quebradas porque assim “Todo o mal será desfeito, em nome de Jesus”. As casas de cerimônia onde os vídeos foram gravados estão situadas em uma região do Rio de Janeiro chamada Baixada Fluminense que compreende os municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford Roxo, Queimados e Mesquita, todos ao norte da capital. Esses municípios tem uma característica em comum: receberam um enorme contingente de ex-­escravizados, e descendentes de escravizados, com origem na região nordeste do Brasil. Estamos falando da região que comporta parte substância da população negra e pobre do estado do Rio de Janeiro. Foi justamente a imigração desses negros e pobres (o que nos países construídos sob o signo da escravidão é quase um sinônimo) que favoreceu a formação de polos religiosos de matrizes africanas.

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É importante esclarecer que esses casos não são isolados. A intolerância na Baixada Fluminense não é uma exceção, tampouco a violência dirigida ao povo negro no Rio de Janeiro é uma exceção. Há um projeto de extermínio da população negra, assim como há um projeto de aniquilação da população indígena, em curso no Brasil. Esse projeto começa com a apropriação da terra, passa pela inviabilização da cidadania e termina com o aniquilamento do corpo – sem se esquecer da destituição dos bens culturais. É sintomático que mais de 200 peças retiradas de casas de candomblé e de umbanda ao longo da Primeira República no Brasil (1889-­1930) permaneçam até hoje sob o domínio da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Isso significa que, caso alguém dessa plateia queira conhecer um vasto acervo da religiosidade afro-­brasileira, terá que se dirigir ao Museu da Polícia Civil. É mais sintomático ainda que, até 2010, as imagens de orixás e os instrumentos utilizados em cerimonias religiosas tenham sido expostos ao lado de armas, falsificações e bandeiras nazistas apreendidas. Popularizou-­se no Brasil, pelo menos desde as publicações dos célebres livros Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Casa-­Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, uma leitura equivocada de que o brasileiro é cordial e que o processo de colonização é fruto de uma pretensa “democracia racial”. Os livros foram publicados na década de 30 e se comparado ao fascismo italiano ou ao nazismo alemão, o Brasil, em 1930, ainda que comandado pelas mãos de ferro de Getúlio Vargas, parecia para muitos intelectuais brasileiros a terra da prosperidade. O problema é que essa comparação ocultou o fato de que existiu, e persiste, uma violência institucionalizada no país. E foi essa brutalidade institucionalizada que, no passado, assassinou de maneira infame Zumbi dos Palmares, o mais importante símbolo da insubmissão do negro escravizado;; assassinou, em Salvador, no ano de 1835, africanos, e descendentes de africanos, de origem muçulmana temendo um haitianismo;; e arruinou, há 120 anos, Canudos, a segunda maior cidade da Bahia, degolando toda comunidade, receando um poder paraestatal. Apesar desse quadro tão cruel quanto incompleto, um estudante brasileiro nunca leu em um livro de História do Brasil a expressão Guerra Civil. Não falamos em Guerra Civil quando o Rio Grande do Sul se separou por dez anos do Brasil, na Cabanagem, na Sabinada, não falamos em Guerra Civil na Balaiada, não falamos em Guerra Civil na Revolução de 32 de São Paulo, e continuamos sem falar em Guerra Civil quando em junho de 2013 o Estado brasileiro repreendeu com grande brutalidade manifestantes que foram às ruas lutar por melhorias sociais;; quando no final de 2015 jovens estudantes pobres e negros foram violentados durante a ocupação das escolas públicas;; quando a mesma Polícia Militar brasileira assassinou Wesley, Wilton, Carlos, Roberto e Cleiton,

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cinco jovens de periferia, anônimos para o mundo, no Complexo da Pedreira, em Costa Barros, com 111 tiros;; ou quando uma jovem foi estuprada por 30 homens no Complexo da Praça Seca, zona oeste do Rio de Janeiro. Hoje, a intolerância racial e religiosa no Brasil é mais um quadro dessa guerra civil não declarada. Segundo a Secretaria de Direitos Humanos (Disque 100), de 2014 a 2016, no Brasil, houve um aumento superior a 273% das denúncias. É preciso dizer que não se trata, pois, de uma violência ampla e irrestrita, ao contrário, estamos falando de uma violência programática e dirigida. Em 2016, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, publicou que 70% dos casos documentados de violência tinham como alvo as religiões afro-­brasileiras. Ou seja: é o povo negro e pobre que permanece sendo alvo privilegiado. A violência não é uma novidade para esse povo, quer no Brasil ou em qualquer parte do mundo, mas quero começar essa conversa destacando que as formas como a intolerância tem se revelado, pelo menos a partir de 2013, só encontra precedentes nas ditaduras e na escravidão do período colonial. E, longe de ser um problema particular ou nacional, a intolerância racial e religiosa que apavora o Brasil hoje é uma das frentes do extermínio protagonizado pelo recrudescimento do conservadorismo no Mundo. Um conservadorismo que elege Donald Trump, que potencializa partidos de extrema-­direita na Europa, que apoia a ascensão de políticos fascistas na América do Sul e a condição em que se encontram Santiago Maldonado, na Argentina, ou Rafael Braga, no Brasil. Um conservadorismo que promove diariamente linchamentos nas redes sociais, a idolatria de figuras como Jair Bolsonaro, e que vai às ruas, em nome de Deus, da família e dos bons costumes, exigir o retorno de uma ditadura militar. Portanto, se estamos aqui esta noite para conversar sobre as religiosidades afro-­ brasileiras e o samba, é porque entendo que estamos no outro time. No time daqueles que acreditam na soberania do povo, no valor da pluralidade cultural, étnica, religiosa, e de gênero, no time daqueles que sabem que tolerar é pouco, é preciso transformar tolerância em admiração. Por tudo isso, é com grande satisfação que estou aqui partilhando esse momento.

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II De modo geral, falar em religiosidade afro-­brasileira significa lidar com cosmogonias, mitos, poemas, músicas, danças e, naturalmente, práticas rituais, originadas na diáspora africana no Brasil. Antes é preciso considerar que os africanos escravizados que aportaram no Brasil são originários das mais distintas etnias. A historiografia identifica quatro ciclos distintos do tráfico negreiro: durante o século XVI, o ciclo da Guiné;; a partir do século XVII, o ciclo de Angola e Congo (bacongos, ambundos, benguelas, ovambos e outros);; no século XVIII, o ciclo da Costa da Mina, centrado no atual Benin, antigo Reino do Daomé (iorubas, jejes, minas, hauças, etc);; e o último ciclo, o período de tráfico ilegal entre 1831 e 1851, que incluiu, além dos já mencionados, o trafico de moçambicanos. Esse panorama breve ainda é superficial, mas permite vislumbrar a imensa pluralidade linguística, religiosa e cultural da diáspora. Traduzindo em números, sabemos hoje que entre os séculos XVI e XIX, mais de 12 milhões de africanos foram escravizados e vendidos, e mais de 5 milhões desses africanos desembarcaram no Brasil. Os dados atualizados são do Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos.

MAPA: Volume e direção do tráfico de escravos transatlântico, de todas as regiões africanas a todas as regiões americanas

Este mapa resume e reúne os muitos caminhos diferentes pelos quais os cativos partiam da África e chegavam às Américas. Embora houvesse fortes conexões entre determinadas regiões de embarque e desembarque, não era raro que os cativos de qualquer uma das principais regiões africanas desembarcassem em praticamente qualquer grande

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região das Américas. Mesmo os cativos vindos do sudeste da África, a região mais afastada das Américas, podiam desembarcar na América do Norte continental, no Caribe ou na América do Sul. Os dados deste mapa são baseados em estimativas do total do tráfico de escravos, e não em partidas e chegadas documentadas. (http://www.slavevoyages.org)

Se a diversidade cultural trazida do continente africano já era enorme, temos que considerar ainda os processos de trocas, intercâmbios e sincretismos, não apenas entre as diferentes etnias africanas, mas também entre as etnias africanas, as culturas indígenas e as europeias. Esse amálgama cultural é de tal forma amplo e complexo que seria impraticável aqui realizar um mapeamento completo das variadas formas de religiosidades resultantes. Cito algumas, à título de curiosidade, mas sem nenhuma pretensão de esgotá-­las: Candomblés de Nação Ketu, Candomblé de Nação Jeje, Candomblé de Nação Congo-­Angola e o Candomblé de Caboclo, presentes principalmente na Bahia e na região sudeste do Brasil;; a Encantaria da região amazônica;; o Jarê da Chapada Diamantina;; o Catimbó-­jurema e o Xambá, do Recife;; o Catimbó baiano;; o Batuque e a Linha Cruzada, no sul;; a Umbanda e o Omolocô cariocas;; e o Tambor de Mina, no Piauí, Maranhão e Amazonas. Todas essas formas de religiosidade, muitas vezes chamadas de maneira indistintas de macumbas, apresentam sistemas próprios e complexos de ritual, que englobam, além das culturas africanas, muitas vezes, informações provenientes do catolicismo ibérico, das crenças indígenas e do espiritismo europeu. A tabela a seguir elenca algumas manifestações religiosas de matrizes africanas, mas não expõe a totalidade de divindades cultuadas em cada uma dessas religiões, todavia, considerando apenas um dos aspectos fundamentais de cada religião, deixa claro a dimensão da diversidade.

Candomblé Candomblé de Candomblé Jeje banto (Bahia e origem nagô (Bahia e Sudeste do (Bahia) Maranhão) Brasil)

Umbanda (Rio de Janeiro)

Xambá (Recife)

Tambor de Mina (Piauí, Maranhão e Amazonas)

Obatalá

Mawu

Nzambi Mpungu

Zambi/Obatalá

Exu

Doçu

Oxalá

Lissá

Aluvaiá

Oxalá

Ogum

Averequete

Nanã

Nanã

Bombo Njila

Nanã

Odé

Euá

Iemanjá

Agbê

Ngunzu

Iemanjá

Bêji

Acóssi

Oxum

Aziri

Kabila

Oxum

Nanã

Sakpatá

Logunedé

Agassu

Mutalambô

Oxumaré

Obaluaiê

Nanã

Ossâim

Agué

Gongobira

Omolu

Euá

Xapanã

Euá

Ayizan

Ketendê

Ogum

Xangô

Ogm

Oxumaré

Dangbé

Nzazi

Oxóssi

Oyá

Xangô

Omolu

Sakpatá

Kaviungo

Iansã (Oiá)

Obá

Badé

Loco

Loko

Nsumbu

Xangô

Afrekete

Iemanjá

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Ogum

Gu

Hongolo

Exú e Pomba Giras

Oxum

Lissá

Oxóssi

Possum

Kindembu

Caboclos

Yemanjá

Naeté

Iansã (Oiá)

Heviossô

Kaiango

Preto Velhos

Orixalá

Sogbó

Xangô

Sogbô

Matamba

Crianças (Erês)

Irmãs Turcas

Obá

Tobossi

Kisimbi

Dom Luís Rei da França

Exú

Legbá

Ndanda Lunda

Dom João

Erê

Mikaia

Ibeji

Bessém

Zumbá

Dom Sebastião Rei da Turquia

As colunas não estabelecem relações de equivalência/sincretismo.

Cada uma dessas manifestações religiosas tem um sistema de símbolos, de mitos, rituais, uma congregação de divindades e uma língua-­cerimonial, que muitas vezes combina idiomas africanos, como quicongo, quimbundo, ioruba e o fon, com línguas indígenas e o português;; cada religiosidade exige ainda uma culinária, um conjunto de vestimentas, de adereços, exige uma fauna doméstica sacrificial, uma vasta diversidade de folhas e flores e exige uma música-­ritual. Antes de seguir, gostaria de definir melhor o termo “macumba” que utilizo no título dessa conferência. Em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, Nei Lopes define o termo como um nome genérico usado para designar as religiões afro-­brasileiras, especialmente o candomblé e a umbanda. Apesar de reconhecer a origem controversa da palavra, Nei Lopes opta pela etimologia da língua quicongo, assim, makumba seria o plural de kumba “feitiços”, “fatos miraculosos”. No Brasil, o termo também originou um instrumento musical similar ao reco-­reco. A maneira como utilizo o termo tem maior relação com a primeira definição. Em resumo, considero como “macumba” justamente o produto dessa mistura entre as mais variadas culturas religiosas (afros, indígenas e cristãs) que vigoraram no Brasil. Apontar um tipo de religiosidade afro-­brasileira como mais “pura” é incorrer em contradições, porque, afinal, nenhuma manifestação religiosa (ou cultural, de modo mais amplo) está privada de processos de transformação. Mas podemos dizer que se encontra principalmente na Bahia a religião que mais manteve vínculos e semelhanças com as práticas africanas e que através dos fluxos migratórios em direção ao sudeste do Brasil levou suas divindades. Trata-­se do candomblé de origem Ketu, também chamado de Nagô ou Ioruba. A maior parte das considerações a seguir tomam essa variedade de candomblé como objeto de análise. É verdade que existem espaços de culto doméstico aos ancestrais africanos desde o primeiro século de colonização, os chamados calundus, de origem banto (congo-­

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angolana). No entanto, a estruturação dos rituais e a criação dos espaços consagrados aos rituais data do século XIX, a partir da intensificação do tráfico de escravos sudaneses. Depois de 1850, principalmente, o Brasil recebeu um número muito grande de africanos do Benin e da Nigéria, esses africanos vão ocupar sobretudo a região do Pelourinho, em Salvador, na Bahia. Uma região muito especial porque povoada também por escravos libertos fundadores da Igreja da Barroquinha. Sabe-­se que já no séc. XVIII uma escrava de origem ioruba, da cidade de Ketu, no Benin, chamada Danãdana, teria iniciado ali o culto a seus ancestrais, trazendo para o Brasil o Assentamento, isto é, a materialização do lugar-­ritual, da divindade patrono de sua cidade, Oxóssi. A partir de então um grupo cada vez maior de africanos e descendentes iniciou sua congregação. A primeira compra de terreno efetivamente documentada com fins de sediar uma casa-­ ritual, isto é, a primeira casa de candomblé do Brasil (e das Américas), data de 1830. Trata-­se de um terreno no bairro Engenho Velho, em Salvador, batizado com o nome Ilê de Mãe Nassô, ou Casa de Mãe Nassô. O termo nassô, na cidade iorubana de Oyó, cujo patrono é Xangô, significa “aquela que cuida dos rituais”. Essa casa de candomblé, que no futuro se chamaria Ilê Axé Iyá Nassô Oká, ou Casa Branca do Engenho Velho, nasceu das reuniões da Confraria Feminina Nossa Senhora da Boa Morte – um grupo de senhoras descendentes de africanos, ainda presente no recôncavo baiano, na cidade de Cachoeira. Um dos objetivos da confraria era comprar terras e fixar grupos religiosos de origem africana. Ainda no séc. XIX, surgem outros terreiros de grande importância para a cultura brasileira, como o Alaketu. Vale a pena observar que, como cada grande cidade iorubana é consagrada a uma divindade (em Iré, Ogum;; em Oyó, Xangô;; em Oshogbô, Oxum, etc.), as casas de candomblé fundadas neste lado do Atlântico trazem no nome também um patrono homenageado. Cito apenas dois exemplos de templos tradicionais, o Ilê Axé Opô Afonjá, sediado em Salvador e no Rio de Janeiro, consagrado a Xangô Afonjá, e o Ilê Axé Oxumaré, também de Salvador, consagrado a Oxumaré. É preciso compreender que mais do que um lugar de rituais, essas casas de candomblé (ou terreiros) são espaços onde os africanos exilados e os afrodescendentes podem pensar a liberdade, falar sua língua, contar a história dos seus ancestrais, entoar seus orikis, e novamente encontrar uma condição de humanidade perdida na escravidão. O terreiro de candomblé é ainda hoje o lugar em que essas culturas foram melhor preservadas. E porque a instituição da escravidão promoveu o estilhaçamento dos laços familiares, os terreiros são espaços privilegiados da sua reconstrução. Os zeladores dos terreiros são chamados de Pais ou Mães de Santo, os iniciados são intitulados Filhos de Santo, e

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usa-­se comumente a expressão Família de Santo para designar um grupo de iniciados na mesma casa. É interessante observar que inclusive as proibições sexuais familiares (o incesto) também serão reconstruídas simbolicamente nestes espaços. Pessoas que passam pelo processo de iniciação religiosa juntas – se diz: “iaôs do mesmo barco” – não podem ter relação sexual. Faz parte do preceito. Um aspecto fundamental do candomblé é a música. Na religião nagô ela não tem função estética apenas, há também uma função comunicativa primordial e é por isso que podemos afirmar que os tambores falam. A orquestra cerimonial do candomblé é composta por quatro instrumentos: o agogô, espécie de campânula única ou dupla, com toques altos e baixos, tocada com uma baqueta de metal, com a função de nortear ritmicamente os outros instrumentos, conferindo unidade, regularidade rítmica e estabilidade musical;; e os três tambores, chamados de atabaques. Os atabaques possuem tamanhos, nomes, sons e funções distintas. O mais grave é chamado de “rum”, o médio é chamado de “rumpi” e o agudo é intitulado “lé”. Devemos considerar que os atabaques não são, no candomblé, apenas instrumentos da orquestra cerimonial, são também divindades. Por isso, o mesmo instrumento utilizado nos rituais não pode ser utilizado em situações cotidianas e profanas, da mesma forma que um instrumento que não passar pela sacralização não será utilizado no candomblé. Além de sacralizado, o tambor no candomblé é vestido, alimentado e muitas vezes batizado com um nome. O rum da Casa Branca, em Salvador, por exemplo, é chamado de Sete de Setembro – provavelmente em função do dia em que foi usado pela primeira vez. Também não é qualquer pessoa que pode tocar o instrumento sagrado, apenas os alabês (donos do tambor) devem manuseá-­los e, no candomblé, essa função no ritual é exclusivamente masculina. Ao indagar a uma pessoa mais velha a importância do instrumento no ritual, é comum ouvir a resposta: “Sem música não existe candomblé”. O respeito ao instrumento é de tal forma grandioso que não raro se escuta entre os adeptos que se um atabaque cair no chão durante uma cerimonia, ela deve ser interrompida. Assim como o agogô tem a função de dar estabilidade rítmica, os atabaques rumpi e lé devem manter o mesmo padrão sonoro. Os três instrumentos servem como suporte para que o rum possa emitir suas frases, ou seja, “falar”. A música criada por essa orquestra de atabaques e o agogô é chamada nos terreiros de “toques”. Os toques de atabaques, no candomblé ketu, são executados com o auxílio de uma baqueta de madeira, geralmente de goiabeira, ingá ou pitanga, chamada de aguidavi. Se a música é fundamental no candomblé, por extensão, aos alabês é dado enorme respeito. Entre

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os três músicos responsáveis pelos atabaques, destaca-­se ainda aquele que toca o rum. Diante da importância desse instrumento, e da complexidade da execução, o instrumentista deve ser o mais experiente da orquestra. Os toques executados nas cerimonias tem diferentes funções, podem convocar os iniciados para o início do ritual, saudar uma divindade ou dialogar com os movimentos de danças, por exemplo. Os sons provenientes dos atabaques e do agogô produzem mensagens que podem ser dirigidas, portanto, aos iniciados dançarinos, aos próprios músicos e às divindades. Gostaria de me dirigir agora a uma função primordial dos tambores, a de promover a possessão. Como sabemos, a música como elemento propulsor do transe (ou da possessão) não é uma exclusividade do candomblé, mas talvez existam algumas características singulares. Na religião nagô, para que a música proporcione a possessão é preciso que os alabês emitam através dos tambores e do agogô uma mensagem e essa mensagem precisa ser reconhecida pelo grupo de iniciados para que possa promover o que chamamos “estado de santo”. Tive a oportunidade de observar muitas vezes nas cerimonias religiosas como cada toque, quase sempre associado a uma cantiga, tem o poder de provocar uma transformação no arranjo do ritual. Isso porque o alabê conhece o toque certo para provocar a presentificação de cada orixá e cada um dos seus movimentos. O poder da música é tão grande nessas cerimonias que ouvi algumas vezes que um alabê, ao executar um toque específico combinado a uma cantiga de guerra, pode provocar até a morte durante o ritual. Podemos elencar pelo menos 18 tipos de toques diferentes que fazem parte, por exemplo, das cerimonias na Casa Branca (como já foi dito, o primeiro terreiro de candomblé da Bahia), mas que são amplamente difundidos em outros terreiros de candomblé do país. A seguir poderemos ouvir alguns deles. Toribalé, Ramunha, Aderejá, Aderé, Agueré, Opanijé, Torin euê, Alujá, Xanxam, Ilú, Jicá, Batá, Ibim, Ijexá, Sató, Bravum, Runtó e Agabi. A tabela demonstra como cada um dos toques está associado a um tipo de função cerimonial.

Toques

Funções mais comuns

Toribalé

Se faz presente no máximo 2 vezes ao longo da cerimonia e sua função está dissociada do canto e da dança. Seu único objetivo é a saudação, em geral de pessoas importantes adentrando o espaço do terreiro.

Ramunha, avaninha, avamunha

Na maior parte das vezes, os três nomes se referem ao mesmo toque. Esse toque está associado à entrada e saída dos iniciados no espaço cerimonial, incorporados ou não

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Aderejá

Junto com o toque Aderé, este é um toque fundamental do orixá Ogum. Em função da constituição mítica do orixá Ogum, as frases musicais introduzidas pelo Rum nesse toque denotam sempre movimentos ligados às batalhas.

Aderé

Tem muita semelhança com o Aderejá. No entanto, há uma intenção tanto na construção das frases musicais quanto na coreografia de representação das andanças do orixá e não mais nas suas batalhas.

Agueré

É um toque caracteristico de Oxossi, o orixá da caça. Em função da força do toque, é notória também a sua função de atrair para o espaço cerimonial a presença de outros orixás

Opanijé

É um toque executada para Omolu. Segundo Pierre Verger, o termo significa "ele mata qualquer um e come". Omolu, o Deus da Terra, é o orixá da cura. Como é comum, a relação entre o toque e a coreografia é mediada pelos mitos correspondentes ao orixá.

Torin euê ou Korin Ewe

Korin Ewe significa "o canto das folhas" é um toque associado ao orixá Ossaim. Tem certa semelhança com o Aguerê de Oxossi, sua principal distinção reside da maneira com é tocado o Rum.

São toques associados ao orixá Xangô. São tocados juntos, em sequencia. Na África Alujá, tonibodê (e em Cuba) os toques Alujá e Tonibodê são executados por um tambor chamado Batá, e acacaumbó diferente dos atabaques mais populares no Brasil

Xanxam cu rundu

Provavelmente é um toque que só permanece sendo utilizado na Casa Branca, em Salvador. O toque tem certa similaridade rítmica com o Aguerê, está associado à Oxum e tem objetivo de representar através de suas frases musicais Oxum banhando-­se em um rio.

Ilú ou Daró

O termo "ilu" significa "atabaque", o termo "daró" significa "lamentar com saudade a ausência de alguém". Trata-­se de um toque executado para Iansã também conhecida como Oyá.

Jicá

É um toque executado para Iemanjá, orixá dos mares.

Batá

Como já foi dito, além de ser um toque, é o nome de um tambor africano que não é utilizado no candomblé. Enquanto toque, não se associa a um orixá específico. Tem a função de acompanhar a entrada dos orixás no espaço cerimonial depois de estarem vestidos e caracterizados com seus objetos.

Ibim

Ibim significa "caracol", mas para alguns autores, também designa um tipo específico de tambor. O toque de Ibim é muito lento sugerindo justamente o movimento do caracol. É um toque associado ao orixá Oxalalufã, uma qualidade de Oxalá velho.

Ijexá

É sem dúvida o toque mais popular do candomblé, pois foi amplamente divulgado pelos carnavais da Bahia. Diferente dos outros ritmos, esse toque é executado sem o aguidavi, ou seja toca-­se apenas com as mãos. Esse toque tem especial relação com Oxum, mas também se associa a Ogum e Oxaguiã, a qualidade de Oxalá jovem.

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Sató

É um toque, provavelmente, oriundo da tradição jeje e incorporado aos nagôs. Associa-­ se a Omolu, Obaluaê, Nanã e Oxumarê.

Bravum

Também é um toque de origem jeje e está associado ao orixá Oxumarê.

Runtó

Mais um ritmo de origem jeje para Oxumarê.

Agabi

Nesse toque, o rum é executado com as mãos enquanto os outros atabaques usam o aguidavi, o toque acompanha cantigas de Exu, Xangô e Ogum.

Como vocês têm observado até agora, quando nos referimos à música de candomblé, estamos falando de uma riqueza incrível e de uma complexidade enorme. Lembro a vocês que nossa análise até agora se limitou à música de apenas um tipo de religiosidade afro-­brasileira e cada uma delas guarda suas singularidades. Assim como as macumbas são muitas e têm muitas origens, o samba também não é único (há o samba de roda, o samba de partido-­alto, o samba de enredo, o samba de quadra, o samba canção, o samba-­jazz, a bossa nova, entre outros). Apesar dessa multiplicidade, é consenso entre os estudiosos e sambistas que o samba é uma manifestação cultural não-­religiosa, mas, muitas vezes, vinculada a determinados espaços de religiosidade. Na Bahia, o samba de roda, está muito associado ao candomblé;; no Rio de Janeiro, o samba de partido alto e o samba de enredo estão vinculados à umbanda, por exemplo. Pessoalmente, já ouvi muitas vezes de um dos compositores e pesquisadores da cultura afrobaiana mais importantes, Roque Ferreira, uma frase que ilustra a força desse vínculo: “Sambista que não se interessa por candomblé não é sambista de verdade, porque samba não é só uma música, é muito mais do que isso.” É curioso que essa vinculação, algumas vezes, como acontece na umbanda carioca, promove um intercâmbio tão intenso que uma música de carnaval pode extrapolar os limites do profano e ser entoada nos rituais. É o caso de Rádio Patrulha, um samba dos anos 50, de Silas de Oliveira, compositor do Império Serrano, usado na invocação de uma entidade da falange dos malandros, do grupo de entidades intituladas como exus catiços, Seu Pelintra. Na Bahia, e me refiro agora ao recôncavo, onde esta tradição permanece mais preservada, o samba de roda é o batuque trazido pelo negro banto, executado pelos atabaques iorubanos, pelos pandeiros mouros trazidos pelo colonizador, pela viola, pelo cavaquinho português, e pelo prato e faca. O samba de roda é por excelência o produto de um amálgama cultural e os instrumentos utilizados, os temas cantados e a própria

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estrutura rítmica são claros elementos de vinculação com o candomblé. É um consenso entre os pesquisadores que é justamente esse samba executado ainda hoje na Bahia a base para o samba que se desenvolveu e se popularizou no Rio de Janeiro do século XX. E porque há um amplo movimento de aniquilação do negro e da cultura afrodiaspórica no Brasil, o samba só se tornou oficialmente parte constitutiva da identidade brasileira, no século XX, durante a ditatura nacionalista de Vargas, porque passou por um processo de transformação – para muitos críticos, uma domesticação. Não temos tempo de desenvolver mais essa questão neste momento, caso seja do interesse, voltamos a ela na nossa conversa. Mas gostaria de dizer que mais importante do que destacar as maneiras como o samba ao longo da ditadura varguista foi domesticado talvez seja sublinhar as suas estratégias de resistência. Gostaria de narrar uma delas, estudada pelo historiador Luiz Antonio Simas, porque é muito significativa e simbólica. As escolas de samba tradicionais do Rio de Janeiro, assim como os terreiros de candomblé da Bahia e as cidades iorubanas, são consagradas a orixás patronos. A Mocidade Independente de Padre Miguel, por exemplo, consagrada a Oxóssi, e a Mangueira, consagrada à Iansã (Oyá), só para ficar entre as mais populares. Essa ligação entre as Escolas de Samba e o candomblé se manifesta não apenas em temas privilegiados (como a Mangueira homenageando Oyá, no carnaval de 2016), mas na estrutura rítmica da sua bateria. Pelo menos em sua origem, a célula rítmica em que se baseia o samba da Portela é a do toque de Agueré de Oxóssi, a bateria da Mangueira, por sua vez, tem como base o toque de Ilú, executado no candomblé para Oyá. Isso significa que mesmo quando, por pressões políticas da ditatura, as Escolas tiveram que se limitar a temas específicos como a exaltação de supostos heróis nacionais, a bateria permanecia louvando seus orixás. Essa é uma das formas de resistência e luta admiráveis que se manifesta nos vários níveis estruturais da musicalidade dos tambores. A seguir poderemos ouvir alguns exemplos. Encerro minha exposição reiterando que o tambor é um tempo, um espaço e uma língua de pertencimento do povo negro, mas é mais do que isso, o tambor é um instrumento de resistência, de evocação e convocação. O tambor, em seu sentido mais amplo – estou falando do batuque, da roda de samba, da capoeira, das macumbas, do carnaval, da batucada irrestrita –, é o epicentro da confraternização e do princípio dinâmico que transforma a festa em fresta. É preciso entender o tambor, pois, com uma dimensão poética e com uma dimensão política.

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Há ainda uma outra dimensão dos tambores, e agora no seu sentido mais restrito aos cultos de candomblé, sobre a qual não poderemos por hora nos estender, mas que precisa ser mencionada: a filosófica. As religiões de matrizes africanas têm sido vistas pelo senso comum de modo limitado como um conjunto de crenças e rituais. No entanto, o que pesquisadores como Roger Bastide, Juana Elbein dos Santos e Muniz Sodré, só para citar alguns, têm demonstrado é que existe um sistema filosófico amplo, sofisticado e coerente nessa cultura diaspórica. Frente a atual conjuntura dos estudos acadêmicos e a insurgência de movimentos que advogam pela descolonização do pensamento ou por aquilo que Boaventura de Souza Santos tem chamado Ecologia de Saberes, empreender um esforço de compreensão desse dado que é novo na história dos estudos acadêmicos e elaborar uma gramática do diálogo entre as sutilezas e singularidades dessa filosofia afrobrasileira e o vigente sistema filosófico eurocentrado é uma responsabilidade que a Universidade precisa assumir. Em outras palavras, não se trata mais de uma revelação sociológica e antropológica do valor dos aspectos simbólicos da religiosidade afrobrasileira, porque isso já foi feito, mas, no plano do que poderíamos perceber como um deslocamento epistemológico, reconhecer um sistema que podemos chamar filosófico. Mas isso, eu espero, ficará para um outro momento. Gostaria de dedicar esta conferência a meu pai, o alabê que me introduziu no mundo das religiosidades afro-­brasileiras, aos meus avós de quem também sou filho de Santo, Carlinhos e Helena da Oxum, aos meus amigos músicos percussionistas com quem tenho aprendido muito, especialmente nas rodas de samba da vida, Marcão Gabriel, Léo de Paula, Saulo Santos, Edu Sjzajnbrum e Robertinho Silva, por fim aos meus dois maiores professores na música, meus padrinhos Zé Moreira e Roque Ferreira. Obrigado por me ouvirem.

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