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INTRODUÇÃO À TESE

A proposta de estudo sobre a problemática da palavra liberdade inscrita nos sambas-enredos cariocas, aqui tratados como textualidade escrita no âmbito da literatura, surgiu da necessidade de investigar as formas de significações que essa palavra adquiriu, em contextos distintos, considerando que, desde os tempos primeiros, dos rituais agrários, das festas da Idade Média, ao Carnaval contemporâneo, aqueles eventos de celebração da vida podiam ser sentidos, percebidos e vivenciados como a festa da liberdade. Significativa e inevitável foi a escolha da cidade do Rio de Janeiro como locus de análise, levando-se em conta o início do Carnaval no Brasil. Nessa antiga capital do nosso país é que se formaram as primeiras Escolas de Samba, após um longo percurso iniciado

com

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o Entrudo, o Zé Pereira, os Cordões, os Ranchos Carnavalescas. e as grandes Sociedades

Há de se reconhecer, por isso,

o importante conjunto das manifestações carnavalescas e a simbologia que o Rio de Janeiro ocupa em nossa memória coletiva, enquanto lugar de produção e de representação. Acerca do espaço temporal, decidimos abranger o período de 1943, quando conseguimos coletar, para o nosso estudo, o primeiro samba-enredo em que se empregou a palavra liberdade, até 2013, sendo, portanto, 70 anos de produção escrita, todavia, sem antes de abordarmos, brevemente, a origem do Carnaval no mundo e no Brasil.

Nessa investida, adotamos a linha argumentativa da carnavalização, tão bem desenvolvida por Mikhail Bakhtin, em seus estudos acerca da cultura popular na Idade Média e no Renascimento:

O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significado incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. (BAKHTIN, 2002, p. 43)

Dessa forma, o teórico russo da linguagem confirma que o Carnaval é o lugar da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico e subvertem as regras hegemônicas, ainda que temporariamente. Nessa perspectiva, consideremos que as festas do Carnaval sempre foram um momento de transcendência, de evasão e que, inclusive, possibilitaram inverter posições liberando uma nova consciência, sobretudo, no processo de escrita dos sambas-enredos. Desse modo, compreendemos que a linguagem do Carnaval não visa unicamente ao entretenimento. Ela age. Assume posições, utilizando-se de processos variados. Assim, a

partir dos 232 sambas-enredos, coletados para a nossa pesquisa, verificamos a história e a memória como aspectos preponderantes no emprego da palavra liberdade, assegurando que esse vocábulo possui significado político e histórico. O significado político e histórico remete àquela tendência crítico-literária dos anos 80 e 90, que, segundo Armand Mattelart e Érik Neveu, na obra Introdução aos Estudos Culturais, surgiram recusando as hierarquias acadêmicas, privilegiando métodos de pesquisa capazes de perceberem as vidas comuns. Os autores questionam:

Como as classes populares se dotam de sistemas de valores e de universos de sentido? Qual é a autonomia desses sistemas? Sua contribuição à constituição de uma identidade coletiva? Como se articulam nas identidades coletivas dos grupos dominados as dimensões da resistência e de uma aceitação, resignada ou aflita da subordinação? (MATTELART e NEVEU, 2004, p. 63)

Consideramos, igualmente, no desenvolvimento dessa tese, a respeito da linguagem para a literatura, a oportuna reflexão de Roland Barthes, ao afirmar que a linguagem não pode continuar a ser instrumento cômodo ou cenário luxuoso de uma “realidade” social, passional ou poética. Ela é o “ser da literatura, o seu próprio mundo: a literatura está toda contida no acto de escrever, e já não no de ‘pensar’, ‘pintar’, ‘contar’, ‘sentir’”. O semiólogo francês argumenta que nenhuma linguagem é inocente e que a literatura é revolucionária, praticando a denominada “linguagem integral”. A ciência tem a necessidade da linguagem e ela não reside na linguagem (grifos do autor). “A ciência fala-se, a literatura escreve-se; uma é conduzida pela voz, a outra segue a mão; não é o mesmo corpo, e portanto o mesmo desejo, que está por detrás de uma e de outra”. (BARTHES, 1984, p. 14) Roland Barthes, também, conceitua texto de um modo fundamental para o desenvolvimento deste estudo. No entendimento dele, a reflexão sobre texto começa pela literatura, mas não se detém nela. “Há texto em toda parte onde uma atividade de significância é encenada segundo regras de combinação, de transformação e de deslocamento: nas produções escritas, é claro, mas também nos jogos de imagens, de signos, de objetos”. (BARTHES, 1984, p. 83) Nessa mesma linha, argumentam Fredric Jameson e Slavoj Zizek em Estudios Culturales, reflexiones sobre el multiculturalismo: “la palabra ‘texto’ deriva de texere, ‘tejer’ o ‘componer’, y en su uso extendido designa

una textura o trama de relaciones entretejidas con la materia linguística” (JAMESON e ZIZEK, 2008, p. 47)1 . Analisar o uso da palavra liberdade nos sambas-enredos significa debater sobre um conceito muito amplo e plurissignificativo. A origem dessa palavra, por exemplo, remonta aos antigos romanos, diferenciando a relação entre os escravizados e os cidadãos. Segundo Descartes, “A liberdade consiste unicamente em que, ao afirmar ou negar, realizar ou enviar o que o entendimento nos prescreve, agimos de modo a sentir que, em nenhum momento, qualquer força exterior nos constrange”. (DESCARTES apud JAPIASSÚ e MARCONDES, 1991, p. 163) São diversas as formas de problematizar essa palavra – a liberdade política, a liberdade de expressão, a liberdade individual, a liberdade moral, dentre outras liberdades possíveis. Jean Jacques Rousseau argumenta, em “O Contrato social”, que a liberdade é uma característica indissociável do ser humano e que por isso as relações sociais têm de partir de um pressuposto igualitário. “O mais forte nunca é bastante forte para ser sempre o senhor, se não transforma sua força em direito e a obediência em dever”. (ROUSSEAU, 2006, p. 12) Distinguindo independência de liberdade, Rousseau afirma que a última consiste menos em fazer sua vontade do que em não ser submetido à vontade de outrem; ela consiste ainda em não submeter à vontade de outro à nossa. Norberto Bobbio

argumenta, na obra coletiva Dicionário político, que a palavra liberdade tem uma notável conotação laudatória e que o interesse pela “Liberdade política, em diferentes momentos históricos concentrou-se na Liberdade de religião, de palavra, de imprensa, de associação (religiosa, política, econômica) e de participação no processo político”. (BOBBIO, et al., 1997, p. 708-709) Importante destacar que os estudos acerca dos sambas-enredos dialogam com a chamada “a nova história”, que surgiu nos anos 70 e 80. Trata-se da história escrita que contesta o “paradigma” tradicional e se interessa pelo estudo das atividades humanas, analisando as estruturas, as mudanças econômicas, sociais, históricas e procura valorizar as experiências das pessoas comuns. Peter Burke, por exemplo, em seu artigo “A escrita da história” relativiza a questão de a história ser unicamente baseada em documentos e coloca em debate se ela é realmente objetiva. Aponta a dificuldade de a “história vista de baixo” mudar o seu

1 A palavra texto deriva do latim texere, tecer ou compor e em seu uso amplo designa uma textura ou trama de relações entrelaçadas com a matéria linguística. (Todas as traduções que integram este trabalho são de responsabilidade do autor.)

significado em contextos diferentes. Igualmente, chama a atenção para a dificuldade de definir a história da cultura popular, pois a noção de cultura é algo ainda mais difícil de precisar que a noção de “popular”. Os maiores problemas para os novos historiadores, na sua percepção, certamente, são aqueles relacionados às fontes e aos métodos, mas uma maneira possível de sair dessa dificuldade é utilizar a noção de “hábito” de um grupo social particular, formulada por Bourdieu. O hábito tem a grande vantagem de permitir que seus usuários reconheçam a extensão da liberdade individual dentro de certos limites estabelecidos pela cultura. (BURKE, 1992, p. 34) E é essa noção de hábito que poderia ter sido percebida por muitos escritores/compositores dos enredos cariocas. Hayden White, em Trópicos do discurso, argumenta que uma das marcas do bom historiador profissional é a firmeza com que ele lembra seus leitores da natureza

puramente provisória de suas caracterizações dos acontecimentos, dos agentes e das atividades encontradas no registro histórico, sempre incompleto. White destaca que a literatura, como a história, desenvolve-se por meio da produção de clássicos, cuja natureza é tal que não se pode invalidá-los nem negá-los, a exemplo dos principais esquemas conceituais das ciências. “Há algo numa obra-prima da história que não se pode negar, e esse elemento não-negável é a sua forma, a forma que é a sua função” e como estrutura simbólica, a narrativa histórica não reproduz os eventos que descreve, mas caracteriza figurativamente aqueles que pretendem representar e explicar. “Se há um elemento do histórico em toda poesia, há um elemento da poesia em cada relato histórico do mundo”. (WHITE, 1994, p.106) Walter Benjamin, em suas dezoito teses Sobre o conceito da história, opõe-se à homogeneidade, linearidade e cronologia do tempo histórico e contesta o progresso, considerando-o o precursor, o anunciador, da decadência e da barbárie da humanidade. Aponta três distintas correntes de pensamento: o Romantismo alemão, o Messianismo judeu e o Materialismo histórico. Afirma que essa terceira corrente, o Materialismo histórico, por meio da luta de classes, assumiria a vanguarda do processo histórico em direção à revolução, propondo outro ponto de vista, o dos vencidos, porque a historiografia legitimada é a dos vencedores. Dessa forma, a função do “historiador materialista” seria a de resgatar no tempo passado uma nova história, considerando os chamados “documentos de barbárie”. Nessa linha argumentativa, Benjamin questiona a história enquanto uma “imagem eterna do passado”, segundo os historicistas, e também um progresso linear, como defendem os adeptos do marxismo vulgar. Adverte que a

história deve ser vista como “objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”. (BENJAMIN, 1987, p. 229) O presente, nessas teses, é inacabado, passível de ser modificado, salvo, redimido. É um tempo singular e irrecuperável. A rememoração é o que transforma ativamente o agora, carregado pelas tensões pretéritas. Imprescindível verificar que Benjamin defende não o conhecimento do passado, pela impossibilidade da objetividade, da precisão, mas pelos sentidos, pelos “relampejos”. O lembrado é a origem do conhecimento histórico capaz de restaurar o presente, sempre inédito. Ademais, se o historicismo se identifica com o vencedor, o materialista histórico deve escrever a história a “contrapelo”, articulando a sua época com outra época passada, capaz de auxiliar os sujeitos em “momentos de perigo”, combatendo o progresso calcado na dominação e opressão. O poeta inglês Thomas Stearns Eliot em O uso da poesia e o uso da crítica –Estudos sobre a relação da crítica com a poesia na Inglaterra, obra em que reuniu suas preleções na Universidade de Harvard, no ciclo de Conferências de Norton, de 1932-33 – desenvolveu várias reflexões acerca da poesia que podem, perfeitamente, expandir-se para a escrita do samba-enredo. Ao afirmar que o poeta contemporâneo não é somente um compositor de versos graciosos que “forçosamente coloca a si próprio questões como ‘Para que serve a poesia?’ Não meramente para dizer ‘O que quero dizer?’, mas antes ‘Como e para quem devo dizer isso?’” (ELIOT, 2012, p. 41) possibilita refletir, em muitos

textos,

a consciência crítica dos compositores do samba-enredo, ao recontarem os episódios do passado, especialmente aqueles que marcaram a nossa memória coletiva. Significativa contribuição de Paul Ricœur, que pode ser direcionada para este estudo, é a noção de escala proposta em A Memória, a história e o esquecimento. Em forma de obra, o olhar do historiador pode ver coisas não maiores ou menores, mas diferentes. Diferentes escritas acerca de nosso processo histórico, como nas escalas, são o que propõem muitos sambas-enredos aqui analisados. “O discurso histórico deve ser construído em forma de obra, cada obra se insere em um ambiente já edificado, às vezes ao preço de custosas demolições: construir, desconstruir, reconstruir são gestos familiares para o historiador”. (RICŒUR, 2012, p. 222) Visando comprovar, ao longo das análises de 232 sambas-enredos, a reescrita de momentos históricos e as novas configurações dos fatos passados, revistos e reelaborados na inscrição da palavra liberdade, considerando os prováveis discursos dialógicos entre a literatura, a história e a memória cultural de nosso país, esta pesquisa foi organizada em quatro capítulos.

O Primeiro Capítulo, intitulado “Carnaval”, aborda, de forma resumida, as

origens, os significados e a formação do Carnaval no Brasil, apontando, em ordem cronológica as seguintes manifestações culturais, Entrudo, Zé Pereira, Cordões, Ranchos, Sociedades Carnavalescas, Samba, Escolas de Samba e Samba-Enredo. O Segundo Capítulo, “A palavra liberdade na era Vargas e na democracia populista (1943-1964)”, compreende a investigação de 10 sambas-enredos, todos que nos foram possíveis coletar sobre aqueles anos. Subdividimos aquelas composições em três agrupamentos: A Liberdade e a Segunda Guerra Mundial, a Liberdade e a Independência do Brasil e a Liberdade e a Escravidão.

O Terceiro Capítulo, “A palavra liberdade ao longo da ditadura militar (19651985)”, agrega 27 sambas-enredos. De acordo com o referente, optamos também pelos agrupamentos temáticos, a saber: a Liberdade e Outros Temas, a Liberdade e a República, a Liberdade e o Povo, a Liberdade e o Carnaval, a Liberdade e a Independência, a Liberdade e as Significações Difusas e a Liberdade e a Escravidão. O Quarto e último capítulo, “A palavra liberdade ao longo da democracia (19862013)”, possibilitou encontrarmos o maior número de sambas-enredos que empregaram a palavra liberdade, e reunirmos 195 composições. Dessa forma, aumentou o número de temas e, consequentemente, de agrupamentos, a Liberdade de Expressão; a Liberdade e a Independência; a Liberdade e os Indígenas; a Liberdade, as Mulheres e os Direitos Feministas; a Liberdade e os Países; a Liberdade e o Povo; a Liberdade, a Mitologia e a Religiosidade; a Liberdade e Outras Representações; a Liberdade, o Carnaval e Outras Artes; a Liberdade e as Significações Difusas e a Liberdade e a Escravidão. Ressaltamos que o Centro de Memória da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, LIESA, disponibilizou-nos um arquivo digital, formado por 1.112 páginas, composto por sambas-enredos coletados entre os anos de 1926 a 2003. Após a leitura do acervo, separamos aquelas composições que empregaram a palavra liberdade e

realizamos, simultaneamente, uma pesquisa em sites de música e de Escolas de Samba com a finalidade de expandir a investigação até o ano de 2013 e confirmar outras informações pertinentes à escrita do samba-enredo. Assim, totalizamos 232 textos elaborados por 70 Escolas de Samba, em 70 anos de história. Dessa maneira, este estudo foi direcionado para a área de concentração Teoria da Literatura e Literatura Comparada e para a linha de pesquisa Literatura, História e Memória Cultural, por considerarmos que a Literatura Comparada é conduzida a se

interessar “pelas realidades políticas e sociais, pelo movimento das ideias e pela história dos costumes e do gosto em geral quanto pela própria literatura”. (JEUNE, 1994, p. 227) Portanto, é inegável a força expressiva da memória cultural nos sambas-enredos, cujo discurso é o da liberdade. Aqui, ressaltamos, de igual forma, as contribuições de Henry Rousso ao assegurar que a memória tem relação com a identidade da percepção do individual e do coletivo, pois seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda vida humana. (ROUSSO, 1998, p. 95)

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