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1.3.5 A Praça Onze

dos ternos de reis nordestinos, com os blocos e cordões das ruas do Rio, “do mesmo modo que foi o encontro, nos terreiros de candomblé da Saúde e da Cidade Nova, dos devotos cariocas com o samba baiano de roda, que deu origem, nas primeiras décadas deste século, ao samba.” (AUGRAS, 1998, p. 17) Nessa direção, a pesquisadora afirma que as escolas de samba incorporaram a forma de desfilar e o ritmo, a partir de diversas tradições advindas dos tempos coloniais, em que era comum o elemento religioso, imposto pelos donos do poder ou trazido no contrabando das culturas africanas. De acordo com a publicação Memória do Carnaval, os ranchos já possuíam uma organização fixa, e seu desfile incluía: “abre-alas, comissão de frente, figurantes, alegorias, mestre de manobra, mestre-sala e porta-estandarte, primeiro mestre de canto, coro feminino, segunda baliza e porta-estandarte, segundo mestre de canto, corpo coral masculino e orquestra”. (ARAÚJO, 1991, p. 170) Vê-se que essa estrutura foi quase integralmente transportada para as escolas de samba. Para Monique Augras, havia uma relação pragmática entre os ranchos que, não por acaso, coincidia com a das escolas de samba – a participação, entre seus dirigentes, de oficiais de polícia para lhes garantir a legitimidade, mesmo pacto que se repetia nos terreiros por incluírem, quase sempre, autoridades destacadas. “Essas alianças são, obviamente, de mão dupla: os policiais amigos vêm a ser também cronistas carnavalescos, e seus jocosos apelidos como que tornam visível a permeabilidade entre figuras emblemáticas da ordem e da desordem.” (AUGRAS, 1998, p. 23)

1.3.5- A PRAÇA ONZE

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A Praça Onze, que não existe fisicamente há mais de 75 anos, é uma personagem imprescindível para os estudos acerca da origem do Carnaval no Brasil. O nome daquele espaço rememora a data da Batalha de Riachuelo, ocorrida em 11 de junho de 1865, na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Muito mais que uma homenagem de um evento histórico, foi um local extremamente simbólico para a recepção e memória cultural dos negros – a maioria deles vinha da Bahia – além de lugar de inclusão de portugueses, espanhóis, italianos e judeus. Eneida de Moraes argumenta que Artur Ramos analisou psicanaliticamente o fenômeno coletivo e carnavalesco da Praça Onze e concluiu que o negro evadido dos engenhos, das plantações, das minas, dos trabalhos domésticos das cidades, dos

mocambos, das favelas e dos morros vai mostrar, naquele lócus privilegiado, o seu inconsciente folclórico. Segundo a nossa estudiosa, nenhum ponto da cidade foi tão amado pelos foliões. Além de ser o berço do samba carnavalesco, era o espaço onde ele era propagado, difundido, reconhecido. “Nascesse de onde nascesse o samba, era na Praça Onze que ele vinha alimentar seus súditos, crescer e tomar conta da cidade”. (MORAES, 1958, p. 111)

Praça Onze de Julho – Rio de Janeiro. Fonte: http://urbecarioca.blogspot.com.br/2016/05/o-samba-e-praca-onze-de-cleia-schiavo.html

O primeiro desfile das escolas de samba, que teve a Estação Primeira de Mangueira, campeã, e Osvaldo Cruz (Portela), vice, foi realizado na Praça Onze, em 1932, pelo jornalista Mário Filho, sendo que, daquela data até 1941, todos os desfiles foram apresentados naquele local. Hiram Araújo assinala que a presença dos negros era predominante ali, onde eles impunham seus ritmos, suas danças, sua cultura. Na qualidade de observador e participante dos eventos culturais, o compositor Heitor dos Prazeres definiu a Praça Onze como a “África Mirim”. (ARAÚJO, 2003, p. 100) Nessa perspectiva, é providencial verificar que o significado da Praça Onze, para a cultura carnavalesca, encontra respaldo nos estudos de Bakhtin sobre a cultura popular,

uma vez que era um lugar representativo, igual às praças públicas do fim da Idade Média e do Renascimento. Um espaço que formava um mundo coeso e singular, impregnado do mesmo ambiente de liberdade, franqueza e familiaridade [...]

[...] durante o Carnaval nas praças públicas a abolição provisória das diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e a eliminação de certas regras e tabus vigentes na vida cotidiana criavam um tipo especial de comunicação ao mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossível de estabelecer na vida ordinária. (BAKHTIN, 2002, p. 14)

A praça pública era o ponto de convergência, de união, de tudo o que não era oficial. O povo é que sempre tinha a última palavra, entretanto esses aspectos somente eram revelados nos dias de festa. Dessa forma, a cultura popular não oficial dispunha na praça de dois momentos especiais: os dias de feira e os de festa. E, nos dias festivos, formavam um segundo mundo no interior do mundo oficial da Idade Média.

Discursos especiais ressoavam na praça pública: a linguagem familiar, que formava quase uma língua especial, inutilizável em outro lugar, nitidamente diferenciada da usada pela Igreja, pela corte, tribunais, instituições públicas, pela literatura oficial, da língua falada das classes dominantes (aristocracia, nobreza, alto e médio clero, aristocracia burguesa), embora o vocabulário da praça pública aí irrompesse de vez em quando, sob certas condições. Nos dias de festa, sobretudo durante o carnaval, o vocabulário da praça pública se insinuava por toda a parte, em maior ou menor medida, inclusive na igreja (“festa dos loucos”, do “asno”). A praça pública em festa reunia um número considerável de gêneros e de formas maiores e menores impregnados de uma sensação única, não oficial do mundo. Em toda a literatura mundial, dificilmente encontraríamos outra obra que refletisse de maneira mais total e profunda todos os aspectos da festa popular, além da de Rabelais. (BAKHTIN, 2002, p. 133)

Portanto, é significativa a memória da arquitetura da Praça Onze para o nosso Carnaval. Afinal, aquele lugar possibilitou o desenvolvimento dos trabalhos artísticos dos sambistas, vivenciando as diferentes culturas que por lá se manifestaram. Com efeito, nessa investigação, não podemos negar o protagonismo dos negros, ao mesmo tempo também reconhecer, a partir de algumas observações de estudiosos do nosso Carnaval, a presença de portugueses, espanhóis, italianos, judeus e seus descendentes que podem ter colaborado, ainda que de forma indireta, para a formação dessa grande festa. A festa do povo. A festa da liberdade.

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