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1.3.6 As Sociedades Carnavalescas

1.3.6 – AS SOCIEDADES CARNAVALESCAS

As Sociedades Carnavalescas, ou Clubes Carnavalescos, foram

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igualmente relevantes na história do nosso Carnaval brasileiro. Eneida de Moraes registra que grande e bela foi a história de cada uma dessas Sociedades, devido ao papel desempenhado por elas em defesa das liberdades democráticas, da causa da abolição da escravatura negra e da Proclamação da República. A exemplo, verifiquemos no excerto abaixo a atuação de duas delas naquele tempo – segunda metade do século XIX:

Em 1876 os Estudantes de Heidelberg, cuja sede se chamava “Universidade” e que para suas festas convidavam “todos os Beca com suas formosas teteias”, esmolaram pelas ruas para comprar um menor escravo que salvara de morrer afogada uma menina chamada Corina, na praia de Icaraí. Em 1888, publicavam os jornais: “O grupo dos Pelicanos, heroica fração do benemérito clube dos Fenianos, sempre generoso e nobre, mais uma vez fez realçar os reconhecidos méritos e elevados sentimentos nobilitando de modo imorredouro o grandioso acontecimento de hoje com a restituição de um homem ao estado livre. Não é a primeira vez que os eméritos foliões se recomendam aos louvores do público por atos de magnanimidade, tão dignos, aos quais nós não poupamos louvores e encômios. O escravo alforriado pelo ilustre clube tem vinte anos, chama-se Teodoro e acompanhará os seus bem-feitores na vitoriosa passeata carnavalesca de hoje. Um bravo à heroica falange!” (MORAES, 1958, p. 63-64)

Nessa linha expositiva, a célebre estudiosa do Carnaval carioca enfatiza que os três maiores clubes carnavalescos do Rio de Janeiro, os Fenianos, Democráticos e Tenentes do Diabo, no período anterior à abolição, compravam escravos para libertá-los, depois de apresentá-los publicamente nos seus préstimos. Era uma forma de aquelas sociedades se posicionarem diante dos eventos políticos da época. Oportuno percebermos que a festa do Carnaval, praticada por elas, transcendia o espaço deslocado, de evasão metafísica. Afinal, fazia parte da celebração carnavalesca mais que representar, apresentar a realidade. A compra de uma carta de alforria não era um simples recurso alegórico, mais que isso, era um ato político em um evento festivo, exercício,

manifestação de uma solidariedade excepcional, extraordinária, posto que o maior motivo de celebração, no entendimento daqueles foliões, seria a liberdade. A liberdade dos escravizados.

Significativo assinalar que os componentes das grandes Sociedades Carnavalescas pertenciam à alta sociedade da época, organizavam-se nos clubes e saíam às ruas, em desfile, com trajes luxuosos, inspirados nos europeus e pareciam ter a intenção de adaptar, em nossas terras, o Carnaval de Veneza. Uma contribuição estética advinda desses clubes

foram os carros alegóricos, utilizados nas nossas escolas de samba. Naquela época, os carros eram puxados por tração animal e geralmente apresentavam críticas contundentes ao sistema político brasileiro. Nessa perspectiva, oportuno destacar que José Maria Machado de Assis participou da sociedade carnavalesca Tenentes do Diabo, cujos integrantes, em 1884, compraram duas cartas de alforria “para Maria, parda de 18 anos e Rufina, preta de 43, e publicaram um jornal interno inteiramente dedicado à abolição da escravatura no Ceará”. (MORAES, 1958, p. 64) Essas informações, acerca da integração de Machado de Assis àquela sociedade, levam-nos a inferir que o nosso grande escritor muito provavelmente atuou nas decisões que possibilitaram a compra daquelas cartas de alforria para duas mulheres, no auge de afirmação dos movimentos abolicionistas. Machado de Assis, pela postura que tinha em suas crônicas sobre o Rio da época, certamente, foi um importante contribuinte para a escrita daquele documento sobre a abolição da escravatura no Ceará – primeiro estado brasileiro a fazê-lo, em 25 de março de 1884 – e um dos colaboradores financeiros para a compra das mencionadas cartas de liberdade. Do mesmo modo, Eneida de Moraes assegura que, em 1864, Tenentes do Diabo não fizera o Carnaval externo pelo fato de terem gasto os recursos de toda a coleta na compra de doze escravos. “Nesse ano, os Tenentes não saíram em passeata; o dinheiro fora gasto para dar a uma dúzia de homens o direito à liberdade.” (MORAES, 1958, p. 64) Não realizar o Carnaval externo naquele ano foi uma atitude, das mais importantes, para aquela sociedade, ao considerar o destino de doze vidas humanas. Um gesto inequívoco de grandeza. Para Eneida de Moraes, os Clubes Carnavalescos eram amantes dos ideais que a Revolução Francesa jorrava sobre o mundo e, muito antes do 13 de maio de 1888 e do 15 de novembro de 1889, já haviam eles tomado posição nas lutas nacionais. Dessa forma, ao acenar para a identificação das Sociedades Carnavalescas com a Revolução Francesa de 1789, podemos já verificar o surgimento, no Brasil, de um processo estético ideológico que seria retomado em diferentes momentos nos desfiles das escolas de samba, especialmente quando muitos figurinos franceses eram exibidos em enredos sobre o tema da liberdade.

Fonte: http://riodejaneirodehontem.blogspot.com.br/2015/07/grupo-dos-pierrots-do-clubtenentes-do.html

Discorrendo ainda sobre o Tenentes do Diabo, Eneida de Moraes aponta outras personalidades como Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio, João Clapp, Ferreira de Araújo, que, muitas vezes, se reuniam na sede do clube para ali traçarem os planos abolicionistas. Portanto, fica evidente que os intelectuais que pensavam um novo Brasil, naquele tempo, não deixaram de participar das festas carnavalescas e, simultaneamente, de defender e praticar seus ideais políticos. De igual forma, merece destaque a observação da escritora a respeito do Clube Carnavalesco Democráticos que, “numa postura revolucionária para a época, defendiam o voto e os direitos das mulheres, apesar de eles nem sempre terem sido gentis para com elas”. (MORAES, 1958, p. 82) A propósito, apesar de Eneida de Moraes não exemplificar a indelicadeza dos integrantes daquele clube para com as mulheres, pressupomos que possa ter sido pelo conteúdo das canções que, muitas vezes, apresentavam e ainda podem

apresentar

as mulheres em condição de subserviência aos homens, de maneira discriminatória. Essa postura condenável, dentre outras não presumíveis aqui, pode ter sido combatida, pelo referido Clube, quando esse defendeu o direito de as mulheres escolherem seus representantes políticos.

Fachada do Clube dos Democráticos. Fonte: http://turismobile.blogspot.com.br/2012_04_01_archive.html

Apesar dos desentendimentos e das contendas que surgiam entre os integrantes das Sociedades Carnavalescas, Eneida de Moraes observa que eles eram os foliões mais felizes, porque sabiam cultivar um grande senso de humor, que foram vítimas das duas guerras e do desemprego, do baixo salário, da vida cara e das armas atômicas que pesaram sobre as nossas consciências. Escreve que a liberdade de expressão no Brasil sempre foi “um espantalho para os governantes”, mesmo assim, aqueles Clubes vieram, a partir de diversos governos e até mesmo da ditadura de Getúlio Vargas, desfilando, ainda que sob censura, com seus carros de crítica.

Soubesse o povo carioca o quanto Tenentes, Democráticos e Fenianos lutam para trazer às ruas os préstimos de terça-feira gorda e muito maior seria o amor que lhes dedica. Porque a essas três grandes sociedades devem o carnaval carioca e o povo desta cidade a manutenção do préstimo, o aparecimento dos carros alegóricos e de crítica, os carros de ideias que há tantos anos fazem parte da vida do folião. Aos Tenentes, Democráticos e Fenianos devemos todos a existência dessa faceta, a mais bela porque mais difícil, do nosso carnaval. (MORAES, 1958, p. 91)

Hiram Araújo, do mesmo modo, engrandece o papel das Sociedades

Carnavalescas nos movimentos brasileiros que reivindicavam o fim da escravatura e a implantação da República. Destaca, por exemplo, que os escritores Manoel Antônio de Almeida, Joaquim Manoel de Macedo e Machado de Assis fizeram parte do Tenentes do Diabo e que, antes desse nome, esse clube se chamara Zuavos Carnavalescos. Zuavos em homenagem aos argentinos que lutaram contra a França – inclusive, o uniforme daqueles foliões imitava o dos combates nas cores vermelha, branca, azul e preta. A respeito do Clube dos Fenianos, Hiram Araújo assegura que importantes figuras públicas da época apoiaram aquele grupo como José do Patrocínio, Evaristo da Veiga,

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