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5.3 O desfile como diálogo
socialmente estratificadas; na Escola de Samba, contudo, esse padrão de hierarquização vigente na sociedade global inverte-se, dando internamente dominância política ao grupo que externamente ocupa as camadas hierarquicamente mais baixas. (GOLDWASSER, 1975: 190. Grifos meus).
A questão racial, é, para mim, talvez, a principal inversão que pude observar na escola de samba Vai-Vai, onde realizei a pesquisa. Lá, negros ocupam cargos de liderança, são diretores, presidentes, secretários; são o padrão de beleza, cuja expressão máxima se dá na figura exuberante da rainha de bateria; são vitoriosos, campeões, guerreiros e valentes. (Alguém talvez conteste que esses adjetivos sejam por demasiado metafóricos, todavia, não me parecem mais ilusórios do que termos como “bemsucedido”, por exemplo). Além da competição entre as escolas de samba no carnaval, existem várias outras competições individuais paralelas: Passista de Ouro, Rainha do Carnaval, Corte Mirim. Uma das passistas com quem fiz aulas de samba no pé me confessou que gostaria de ganhar o título de Rainha do Carnaval, sobretudo pelas oportunidades decorrentes da visibilidade que o título traria. A competição carnavalesca, parecer criar, então, um sistema de autovaloração entre os sambistas que distribuem, entre si, títulos, prêmios e condecorações que, em outros contextos sociais, talvez não fossem alcançados. Dado o profundo racismo estrutural brasileiro e suas consequências nefastas, não é de espantar, então, que a competição seja uma forma de organização cultural desejada pelo povo do samba, histórica e predominantemente negro, ainda que embranquecido ou em processo de embranquecimento, na medida em que abre possibilidades de subversão de uma injusta ordem pré-estabelecida.
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5.3 O desfile como diálogo
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1994), ao analisar o carnaval do Rio de Janeiro, entende o momento do desfile como um diálogo que a escolas estabelecem com a cidade. Concordo com a autora, mas proponho que, além de um diálogo “para fora”, o desfile também possa ser entendido como um diálogo “para dentro”. Do “povo do samba” consigo mesmo. Os componentes desfilam e assistem aos desfiles, ponderam, consideram e procuram decidir se a escola, de fato, optou pelo melhor caminho para chegar ao título de campeã. É pelo engajamento nessa discussão estratégica que têm de refletir sobre o tipo de comunidade que, coletivamente, querem construir. Esse mesmo diálogo deverá
ser empreendido em um segundo nível, conforme demonstrado no capítulo 1, entre todas as escolas de samba que, em conjunto, decidirão quais serão as regras estabelecidas pela Liga da Escolas de Samba. Um caso particularmente emblemático ocorreu em julho de 2019, pouco antes da finalização desse trabalho. A rainha de bateria Camila Silva do Vai-Vai e, até então, da Mocidade Independente de Padre Miguel, postou um comunicado em suas redes sociais avisando que estava se desligando das funções de rainha na escola carioca. Segundo seu depoimento, a agremiação, justificando dificuldades financeiras, havia posto o cargo à venda e Camila só seria confirmada como rainha caso ninguém se dispusesse a comprálo. Triste e magoada, a rainha agradeceu à comunidade pelo acolhimento, mas afirmava que não aceitaria ser segunda opção. Em apoio, Valeska Reis, rainha de bateria do Império da Casa Verde fez um comentário em sua rede social que reproduzo abaixo.
Figura 14 – post da rainha Valeska Reis
Fonte: fb.com/valeskareis
O caso é emblemático por vários motivos. Em primeiro lugar, é sintomático da crise do carnaval carioca que decorre, naturalmente, da crise enfrentada pela própria cidade e do corte de investimentos municipais. Revela o quanto as escolas de samba, devido à suntuosidade que alcançaram nos últimos anos, acabaram se tornando reféns do dinheiro. Em segundo lugar, a solução apresentada por Valeska Reis é interessante. Mostra que existe um saber sambista que, mesmo em um contexto de comercialização crescente, estaria preservado. Somente pessoas de comunidade, que cresceram com o samba desde uma tenra idade, seriam capazes de atingir um nível de excelência no
samba. Dessa forma, transformar o posto de rainha em quesito faria as escolas preservarem mulheres que tenham o samba no pé. Tal ponto de vista indica que a competição, entendida muitas vezes como a responsável por estimular mudanças que destruiriam as tradições também pode, por outro lado, ajudar a mantê-las, caso a tradição seja “tombada” ao se transformar em quesito.