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3.2 A fantasia em Freud, uma ponte para Lacan
Lunfardo nasceu, concomitantemente ao tango, no seio da malandragem portenha e do meretrício, “agindo sem pudor como calão, nomeou o que a moral e os bons costumes não queriam ouvir” (CESAROTTO, 2003, p. 33). Por muito tempo esse dialeto argentino foi negligenciado e censurado:
Todavia, o problema parece ser outro, desde que o dito até agora, por mais verdadeiro que seja, não explica seu destino histórico. Afastado cada vez mais das raízes, permeando insidiosamente o dia-a-dia da cidade, espalhando-se por todos os setores sociais, ele se tornou, aos poucos, a forma trivial de se comunicar no cotidiano, não apenas entre os marginais (CESAROTTO, 2003, p. 34)
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Encontramos assim, em Cesarotto (2003), um exemplo emblemático para o nosso estudo, pois o Lunfardo tem sua origem intrinsicamente ligada ao tango, gênero musical que se consolidou na Argentina no mesmo período em que o samba urbano se consolidou no Brasil, e que também surgiu das classes menos favorecidas. Fica claro, desse modo, a inalienável pertinência de se considerar os aspectos históricos na atual pesquisa para se entender que, muitas vezes, a incidência de certo grupo de significantes:
Longe de se restringir a uma ocorrência isolada, não poderia ser patrimônio de alguém, ou exclusividade de poucos. Pelo contrário, funciona como um dizer coletivo de uma entidade plural que, mesmo não podendo ser circunscrita, inscreve as mesmas determinações significantes em qualquer sujeito singular que dela faz parte (CESAROTTO, 2003, p. 31).
A rede simbólica do grande Outro, dessa maneira, ao mesmo tempo em que exerce sua função estrutural de conferir “significação às relações imaginárias, em função daquilo que denomino discurso inconsciente do sujeito” (LACAN, 1954-55/2010, p. 346), tem também um irrevogável caráter histórico.
3.2 A fantasia em Freud, uma ponte para Lacan
Todo mês de fevereiro, de norte a sul do território brasileiro, milhares de pessoas vão às ruas para “pular” o carnaval ou para desfilar pelas escolas de samba. Numa ruptura do cotidiano, essas milhares de pessoas vestem fantasias e desfrutam de dias de festa nos quais muito da ordem estabelecida se afrouxa perante o movimento da massa. Mas, como diria o poeta, “o que será desse mundo de branco e de azul/quando a voz das pastoras emudecer? Quando o som da batida do surdo parar/igual a um coração para de bater?”31. Curiosamente,
31 Trecho do samba “Dia seguinte”, de Carlinhos Vergueiro e Jota Petrolino.
se a fantasia é o nome que se dá às roupas que adornam os corpos durante o carnaval, sendo elemento estrutural para a realização do mesmo, é a fantasia, agora no sentido psicanalítico, elemento estrutural para existência do sujeito em sociedade. Tanto para Freud quanto para Lacan, a fantasia é a produção psíquica que dá roupagem, uma carcaça possível, para o desejo inconsciente circular sem a destruição do laço social, permitindo que a vida prossiga depois que “a batida do surdo parar”32 . Lacan defende, do início ao fim de seu ensino, a insustentabilidade de uma acepção puramente objetiva da realidade, como pode ser verificado já em Além do princípio de realidade (LACAN, 1936/1998). Não há outra realidade que não a psíquica, assinala Lacan (1954-55/2010). A pretensão de uma apreensão total do objeto pela via empírica, defendida pelo discurso científico, foi desmoronada pelo advento da experiência freudiana. Segundo o psicanalista francês, o sujeito já não se homologa com uma concepção idealizada do eu como objeto do estudo científico (LACAN, 1954-55/2010). Isto é, se não existe uma apreensão puramente objetiva da realidade para o campo freudolacaniano, a fantasia é justamente o recurso psíquico que possibilita a organização de uma realidade que consiga integrar a dimensão do real sem a desarticulação completa do laço social. A fantasia aparece no ensino de Freud desde o início de sua produção. Já em “Estudos sobre a histeria” (1893-1985/1976) é constatada a presença dessa e sua relevância no adoecimento psíquico. Inicialmente, Freud articula a fantasia à teoria da sedução sexual. Essa teoria versa que em um primeiro momento a criança vivenciaria, na sua tenra infância, uma situação de proximidade e afetividade com um adulto; situação essa que não traria nenhuma consequência para ela nesse período. Em um segundo momento, após o afloramento da sexualidade e a consolidação das mudanças corporais causadas por essa, as lembranças desses primeiros contatos afetivos ressurgiriam por meio de associações entre algo do presente e algum registro mnêmico de situações passadas. Essas lembranças começam então a trazer grande desprazer ao sujeito, pois reaparecem como uma representação intolerável que evoca uma situação de grande prazer com um familiar. O aspecto incestuoso dessa lembrança provoca um grande mal-estar, fazendo com que essa representação seja recalcada e, por fim, reapareça no sintoma como retorno do recalcado. Tal perspectiva pode ser averiguada em obras de Freud como “A etiologia da histeria” (FREUD, 1896/1976) e “Meus pontos de vista sobre o papel
32 Ibid.
desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses” (FREUD, 1906/1976). Nesse momento da obra de Freud, a fantasia seria justamente a produção psíquica que tenta impedir a presença da cena de sedução na consciência. O papel do processo analítico seria justamente desarticular essa fantasia para se chegar na cena factual de sedução, de modo a extinguir o sintoma.
Porém, é num segundo momento que a fantasia ganha toda sua magnitude na teoria psicanalítica. Se, inicialmente, Freud considerava a fantasia como algo que deveria ser totalmente desmontado para se chegar aos fatos históricos de como a sedução da criança aconteceu pelo adulto, isso se modifica quando o mesmo compreende que a fantasia é uma forma de escamotear a vida sexual infantil e que, nela, muito do que é dito é uma construção que altera os fatos ocorridos em função do desejo do sujeito (FREUD, 1911/1976). Seguindo os últimos desdobramentos do pensamento de Freud, Lacan nunca defendeu que a cura psicanalítica passaria por se esmiuçar as fantasias dos sujeitos até se chegar a uma descrição sobre o que realmente acontecera na cena traumática. A verdade não pode ser alcançada em sua completude, a sua importância reside na sua função de causa e não como fato verificável, “é a causa: não causa como categoria lógica, mas como causando todo efeito” (LACAN, 1966/1998, p. 883). A própria “cena primitiva é reconstruída a partir dos entrecruzamentos que se operam no prosseguimento da análise, ela não é revivida. Nada surge na memória do sujeito” (LACAN, 1954-55/2010, p. 238). Como bem aponta Freud ao dizer que o ofício do psicanalista guarda certa semelhança com o do arqueólogo, o psicanalista trabalha com restos, com fragmentos, assim como o arqueólogo, que sempre:
[...] está lidando com objetos destruídos, dos quais grandes e importantes partes certamente se perderam, pela violência mecânica, pelo fogo ou pelo saque. Nenhum esforço pode resultar em sua descoberta e levar a que sejam unidas aos restos que permaneceram. O único recurso que se lhe acha aberto é o da reconstrução, que, por essa razão, com frequência só pode atingir um certo grau de probabilidade (FREUD, 1937/1976, p. 294).
Só temos o caminho da reconstrução. Freud, diz Lacan (1954-55/2010), “se dá conta, então, de que a perspectiva do passado do sujeito talvez seja apenas fantasística” (p. 306). É nesse segundo momento que Freud abandona a teoria da sedução sexual e começa a trabalhar a fantasia como realização de desejo e organizadora da realidade psíquica. Essa começa a ser considerada uma atividade subjetiva que edifica a leitura dos ocorridos a partir de sua articulação com o desejo do sujeito.