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Reportagem de capa
Thainá: na escola desde antes do nascimento, hoje musa e exemplo. Dugás (no alto): experiência nos bastidores da bateria. Valmir (no meio, à esquerda) e Luiz Negão: no carro abre-alas. Rosângela: “mãezona” das passistas
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Inventores da paixão chamada Grande Rio
Eles são fundadores de uma tribo apaixonada e apaixonante, que vive para construir laços comunitários indissolúveis, e fazer história no Carnaval. Têm em comum, a obstinação dos brasileiros nascidos no andar de baixo, que precisam correr atrás dos seus sonhos. Não desistem — com energia infinita, materializam os objetivos e, no bojo, deixam como legado a mais pura arte dos bambas.
Agora, com vocês, os baluartes da Grande Rio.
Gente como Dona Norma da Silva Dantas, que chegou antes do início. Componente da Unidos da Vila São Luiz e do Bloco do China (“Brinco lá até hoje!”), com 80 anos, viveu toda a história tricolor. De lavar banheiro a costurar fantasia, fez de tudo. E guarda os 54 uniformes da escola que vestiu até hoje com capricho, limpos e organizados.
Dos 3 filhos, 17 netos, 15 bisnetos e 4 trinetos, vários exercem funções na escola. Hoje, Dona Norma integra a Velha Guarda, numa linda história na qual só cabe um lamento. “Hoje só consigo sair no carro alegórico. Gostava mesmo é de desfilar no chão”. Com ela, vai a amiga Marli, igualmente fundadora, primeira costureira da Grande Rio. Hoje na diretoria de Carnaval, ela ensaiou a comissão de frente do desfile de estreia.
Pedro da Fonseca, o Pedrinho Naval, esteve também em todos os momentos. “Somos celeiro de sambistas, merecíamos uma escola grande”, recorda, integrante do grupo que invadiu o terreno onde hoje está a quadra e em seguida foi à casa de Jayder Soares. “Vamos fazer a maior escola do mundo!”, decretou o patrono, empolgado com o fervor folião.
Naval cuidou da ala das crianças, ajudou na feijoada e virou locutor. “Faço o que for preciso pela Grande Rio”, avisa, na fala rápida e empolgada. “A gente bateu na trave, mas agora vai entrar. Teremos um grande Carnaval”, garante.
AO amor, às vezes, começa antes da maternidade. Thainá Oliveira tem mais desfiles do que seus 26 anos de vida — cruzou a Sapucaí pela primeira vez na barriga da mãe. Aos 5 anos, entrou na Pimpolhos da Grande Rio e hoje, musa, samba com perícia de passista, mas não se desliga dos protocolos da avenida.
Faz sentido. Thainá aprendeu desde cedo com o pai, Helinho de Oliveira, presidente de honra, o trabalho de conduzir a escola na Passarela. Aos 6 anos, do alto de um carro alegórico — uma das caravelas do desfile de 2000 —, entendeu a magnitude do espetáculo. A musa se tornou referência para as meninas e meninos da comunidade, que sempre tiram fotos com ela nos eventos da escola.
Aos 77 anos, G. Martins observa com gosto o entusiasmo dos jovens. Na Grande Rio desde a fundação, ele foi o autor de 12 dos 20 primeiros sambas-enredo da tricolor, desempenho que espalhou uma certeza entre os compositores: “Se o G. Martins concorre, não tem graça”. Ele teve 138 obras gravadas, por artistas como Dicró, Bezerra da Silva, Fagner, Agepê e Jair Rodrigues – mas seu grande orgulho está em Caxias. “Nossa comunidade sempre cantou meus sambas com força e paixão. Tenho orgulho de ser um dos fundadores”, exalta.
É amor pelo samba e por Caxias o caso também de Rosângela Patrocínio, mais uma pioneira. Moradora na cidade desde 1971, ela participou de todos os 31 desfiles, e tem como favorito “Prestes, o cavaleiro da esperança”, de 1998, quando era passista. Hoje, é diretora da ala, a “mãezona” das jovens sambistas. “Elas me procuram até quando têm problemas pessoais”, confirma Rô, como é chamada pelas meninas.
A cumplicidade deu no trabalho bem feito, consagrado por seis Estandartes de Ouro, recorde no Grupo Especial. “A base de tudo é a confiança”, ensina. Agora mesmo, para 2020, o trabalho cuidou da diversidade. “Tenho passistas que são evangélicas, católicas, espíritas, candomblecistas e umbandistas. A aceitação das diferenças é importante para nosso bom desempenho. Por isso, a mensagem que vamos passar na Avenida é crucial”.
Luiz Carlos Rodrigues, o Luiz Negão, e Valmir Francisco Rosa estarão lá, como sempre, agora responsáveis pelo abre-alas. “A Grande Rio é a nossa vida, onde somos grandes”, aponta Valmir, 62 anos, gráfico que desfilou na comissão de frente por 10 anos. “A escola é mais um filho que tenho”, resume Luiz Negão, 64, guarda municipal que foi o primeiro diretor de bateria.
A orquestra tricolor, aliás, é a casa de outro baluarte, José Carlos de Souza, que, de tão ligado à tricolor, era chamado em Caxias de “Grande Rio”. Hoje, aos 77 anos, conhecido como DuGás, não passou um Carnaval longe da escola, servindo-a com a humildade dos maiores.
A experiência o conduziu a ser responsável pela estrutura da ala, em 1995. Até hoje, chega antes de todos, prepara os instrumentos e dá o suporte para o coração da escola pulsar. “Sou sempre o último a sair”, orgulha-se ele, que chegou a recusar o convite para ser mestre, por entender ser mais útil na função atual.
O legado de Dugás deu fruto virtuoso. Seu filho Fabrício Machado, mestre Fafá, comanda os 270 ritmistas a partir dos saberes aprendidos em casa. Admirando o talento do herdeiro — celebrado com o Estandarte de Ouro — o professor modesto se alegra: “É como ser pai novamente pela primeira vez”.•
Reportagem de capa
Escola que realiza sonhos
Milton Perácio
Nunca me conformei com Caxias, uma cidade de tantos bambas, tão festeira e alegre, não ter uma escola de samba à altura de sua grandeza. Todo dia, pensava que não poderia conviver com esse desgosto. Fundar uma agremiação que concorresse como grande na Passarela do Samba, representasse nosso lugar e nossa comunidade, virou uma causa para mim.
As escolas que tínhamos, então — Cartolinha de Caxias, Capricho do Centenário, Unidos da Vila São Luiz e União do Centenário — eram modestas, não tinham peso nem importância. Parti para a articulação que juntaria todas elas numa só. Só a união nos faria fortes.
Não foi simples; deu trabalho conciliar todos os interesses e objetivos. Minha ideia só vingou com o apoio e a parceria dos companheiros Jayder Soares e Helinho de Oliveira, que comungam do meu orgulho por Caxias e entenderam o valor de fundar uma escola de samba. Assim, nasceu a Acadêmicos do Grande Rio.
Foi um trabalho coletivo, esforço de muitas pessoas da nossa cidade. Todos se uniram no projeto de sermos protagonistas na Sapucaí pelo caminho do samba e da alegria. Hoje, Caxias se orgulha de ser terra de bambas e, agora em 2020, vai para a avenida conquistar o título que passou perto algumas vezes.
Vamos realizar mais esse sonho com a comunidade da Grande Rio!•
Milton Perácio é presidente da Grande Rio
Vida de devoção à Grande Rio
O sonho da menina de 14 anos que ensaiava passos de samba assistindo aos desfiles se concretizou por meio de uma tia. Dona Jorgina, diretora da Grande Rio, enfrentou a contrariedade do irmão e levou a menina para um teste na ala de passistas. Ela foi aprovada para a única vaga disponível em 1997, ainda muito longe do apelido que a faria famosa: Feiticeira (foto).
A entrada definitiva só aconteceu em 1998, graças ao olho clínico do presidente de honra, Jayder Soares, que convocou a talentosa jovem para o desfile. Quando já fazia parte do grupo de shows teve de se afastar por causa da doença de sua mãe.
Com a família em dificuldades, trocou o trabalho de passista pela vaga em uma lanchonete — até Jayder, uma vez mais, interceder. Ao explicar o motivo da saída, recebeu o convite para ser assistente pessoal do presidente. Conseguiu, enfim, conciliar trabalho e paixão. Não à toa, a evangélica Tatiane o tem como um anjo.
Aos 36 anos, recebeu o reconhecimento pela dedicação: foi alçada a vice-presidente. Recompensa justa pela entrega apaixonada. “Faço tudo pela Grande Rio, é a minha vida”.
O que vai passar no desfile da Grande Rio
SETOR 1 – A noite: visões ancestrais, caminhos
abertos | O desfile começa com os delírios de um menino de Inhambupe, interior da Bahia, e sua visão de um homem coberto de penas, o Caboclo da Pedra Preta, seu guia. Nas raízes ancestrais, bradam os gritos dos caboclos, os guardiões das encantarias, e giram as insígnias de Exu, o arrepio da pele em forma de orixá. Irmanando essas energias, definimos o Brasil como um emaranhado de saberes. As visões noturnas do menino João são materializadas em fantasias e elementos alegóricos.
SETOR 2 – O terreiro: a magia dos orixás na Go-
meia de Salvador | João deixa a pequena Inhambupe e chega à mítica, solar e cintilante Salvador, que festeja os caboclos no 2 de julho; cidade onde Pai Jubiabá desafiava outros candomblés, promovendo ritos “impuros”, mistura de orixás, inquices e caboclos. Com a cabeça raspada para Oxóssi, o jovem João da Pedra Preta dá início a seu candomblé, inspirado na visão inclusiva de Jubiabá. A Gomeia de Salvador, na Estrada de São Caetano, passaria a receber artistas e intelectuais em um ambiente roceiro. O terreiro!
SETOR 3 – A aldeia: candomblé de cabo-
clo na Gomeia de Caxias | A fama crescia, as polêmicas também. O desfile mostrará, na sequência, que João desembarcou no Rio e fincou suas raízes na Baixada Fluminense, Duque de Caxias, transformando a “Nova Gomeia” em um cenário de festa e fartura. Baixavam os caboclos na Baixada, sob a proteção de Pedra Preta, no transe do Juremá. O rito do candomblé de Joãozinho misturava a matriz Angola, o culto da jurema sagrada (praticado no Norte e Nordeste) e as especificidades do candomblé de caboclo. Temos, nesse momento do desfile, o terreiro que se transforma em aldeia.
O espetáculo
SETOR 4 – A rua: carne de Car-
naval | Mas a carne é de Carnaval e João vestiria o brilho, febril, na folia. Vedete nos bailes de transformistas, herói clássico nos mais suntuosos salões, Ramsés e Cleópatra em um mesmo corpo indócil. Tudo vai passar no asfalto da Sapucaí, além das escolas de samba: João desfilou triunfal no Império Serrano, na Imperatriz Leopoldinense e no Império da Tijuca. Exímio costureiro, levava técnicas da confecção de fantasias aos terreiros e a habilidade na produção de roupas de Santo aos ateliês das escolas. Nas ruas, debaixo das antigas decorações, João espalhou seu axé.
SETOR 5 – O palco: candomblé-espetáculo | Reconhecido artista, costurou devaneios. Chegamos a outro momento do enredo, dedicado aos palcos. João reinou nos grandes teatros e brilhou nos maiores cassinos. Bailou com Mercedes Baptista e arriou ebós para JK, na Brasília em construção. Foi capa de revista, gravou disco de pontos, fez pontas no cinema. A Gomeia recebia centenas de celebridades, o que mexia com o imaginário de Caxias. Até mesmo a amizade com o outrora coroado Chatô, enredo da Grande Rio de 1999, será citada no cortejo.
SETOR 6 – O quilombo: resistência e re-existên-
cia, respeito e eternidade | Por fim, o desfile entoará um canto de tolerância, em defesa da liberdade religiosa e da diversidade cultural. A Gomeia ainda pulsa no sangue dos herdeiros. A cultura popular que Joãozinho fomentava continua a brincar pelas ruas de Caxias, vestida de palhaço de reis ou gingando capoeira, dançando quadrilhas em junho, louvando Iansã no 4 de dezembro. Mostraremos as sementes do quilombismo, nas cores de Abdias Nascimento, vivas e verdejantes. Mostraremos que a intolerância e a violência jamais quebrarão os fundamentos, as memórias e os saberes do povo de axé. Daremos, juntos, o grito de pertencimento, união e alegria. O quilombo! É com este espírito destemido que a Grande Rio vai se reconectar à linha de enredos que celebrava, na avenida, a história não oficial e a multiculturalidade brasileiras. Somos a escola que mergulhou nas águas claras, pediu paz a Oxalá, denunciou que o Pelourinho ainda não findou, sambou com Exu, rei da noite, de corpo fechado, nas encruzilhadas do sonho. Escola de uma comunidade apaixonada e apaixonante, uma geração de “pimpolhos” que pedem desde cedo a bênção a Tia Ciata; de um corpo de profissionais unidos e dedicados, anônimos sem os quais nossos traços não ganham vida. O sopro, o cisco, a gira! Sonhemos, Grande Rio! Axé! O tempo é a nossa história: vamos, vamos de mãos dadas!•
Comissão de frente
Esforço, dedicação e arte para garantir as notas 10
No planeta Carnaval, nenhum sarrafo é tão alto quando o das comissões de frente. Os espetáculos de extrema criatividade, que abrem as apresentações das escolas são resultado de planejamento preciso e treino obsessivo, durante meses, em madrugadas insones. A Grande Rio conta com um casal dos mais valorizados da Sapucaí. Hélio e Beth Bejani unem criatividade e profissionalismo à paixão da comunidade, que serve de combustível até a nota 10.
Trabalhar com comissão de frente é viver no limite do corpo. Assim, o casal comandante do segmento na Grande Rio comunga do pensamento de que todo trabalho será pouco. Ao longo de cinco meses, três vezes por semana, eles e o grupo de dançarinos ensaiam os movimentos que vão deslumbrar a plateia.
Paulista de Piracicaba, Hélio aprendeu a receita numa admirável adaptação à bula do Carnaval, como mais um a conjugar o Teatro Municipal, onde é coreógrafo, com as escolas de samba. Cumpre a trajetória das lendas Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues e Joãosinho Trinta, a dos contemporâneos Priscila Mota, Rodrigo Neri, Sérgio Lobato e Marcelo Misailidis (entre outros). Ele e Beth passaram por Mangueira e Salgueiro, para desembarcar na tricolor da Baixada no auge da maturidade artística.
Dentro do enredo “Tata Londirá: o Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias”, a comissão de frente dialoga com a narrativa criada pelos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad. Evoca aspectos da trajetória de Joãozinho da Gomeia, sem deixar, jamais, de apresentar a escola que vem na sequência. As transformações dos dançarinos vão arrebatar a Sapucaí, num show inesquecível.
A odisseia de superação vai se consumar em excelência, no segundo desfile de Hélio e Beth na escola. “Agora estamos conseguindo trabalhar com o potencial todo, bem conectados aos componentes, e na mesma linha artística dos carnavalescos”, atesta o coreógrafo, fascinado com sua integração ao povo tricolor. “Recebemos um tratamento maravilhoso e com grande profissionalismo, de pessoas apaixonadas e comprometidas com o Carnaval”, elogia.
A transformação que a escola atravessa, processo sofisticado e radical, encontra uma etapa mais consolidada em 2020. “Não é algo que acontece de uma hora para outra”, observa Hélio. “Temos uma liberdade artística que nos incentiva a continuar e se superar. Estamos muito felizes na Grande Rio”, arremata Beth, num sorriso satisfeito.
Viver toda a história de um Carnaval fica mais ameno pela parceria indestrutível do casal. Hélio e Beth se conheceram no Municipal, num amor iniciado na dança que transbordou para a vida toda. Ela ainda orienta o casal de mestre-sala e porta-bandeira, Daniel Werneck e Tarciana Couto, revelações que Caxias deu de presente à festa.
A parte penosa da saga está nos processos do Carnaval. “Sofro mesmo”, reconhece o coreógrafo, que, totalmente integrado à tensão da disputa entre as escolas, se angustia com a abertura dos envelopes com as notas, na Quarta-Feira de Cinzas. “Ficar na dependência do julgamento é duro, obriga a um trabalho psicológico intenso”, aponta.
Mas se trabalho e dedicação contam, o casal da comissão de frente da Grande Rio tem garantidas as notas 10.•